São Paulo atravessando o deserto, ou a biografia como saudade em Pascoaes

June 2, 2017 | Autor: Roberta Ferraz | Categoria: Biografia, São Paulo, Teixeira De Pascoaes
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São Paulo atravessando o deserto, ou a biografia como saudade em Pascoaes Roberta Almeida Prado de F. Ferraz Universidade de São Paulo | FAPESP (...) toda alma é labareda, todo o ser é labareda1 (...).

Propomo-nos a falar de São Paulo, texto publicado por Teixeira de Pascoaes, em 1934, como um texto atravessando o desejo, texto híbrido que, desestruturando os limites do gênero da ‘biografia’, pode ser lido, no conjunto da obra pascoaesiana, como escrita da saudade. A forma como Pascoaes encena e encarna seu périplo da saudade por meio da biografia de alguns de seus eleitos, no caso São Paulo, é peculiar. A projeção de si numa escrita íntima do outro a partir de uma deliberada subjetividade autoral acaba por dar à saudade o seu conteúdo complexo, anulando tempo, espaço, história e qualquer espécie de distância ou nitidez, pois no verbo de Pascoaes, “Paulo está vivo e presente” (PASCOAES, 2002, p.23). A saudade refaz o contato do ser com as coisas e a escritura da biografia de São Paulo será mais um exemplo disso, da fusão entre autobiografia, biografia, ensaio, aforismo, fragmento, etc.: a escrita experimentando-se. Essa errância por entre gêneros estaria de acordo com a invocação daquele ‘homem universal’ que Pascoaes saúda e convoca, ao longo de sua obra. No livro-ensaio sobre sua poética, não à toa intitulado O Homem Universal2, afirma: “Sempre considerei o ser inteligente como tendo um valor universal, desde o início espontâneo da minha obra”, sujeito cujo valor está em ser ponte pulsante, um elo entre o mais pessoal e o mais impessoal, ou seja, o sujeito simpático, em comunicação/comunhão com as coisas, em suas presenças e ausências, principalmente nestas últimas, numa hesitação e jogo de sombras, entre o corpo e o fantasma. Ou ainda, o sujeito enquanto mola entre o inorgânico, o orgânico e o divino, entre o natural e o sobrenatural. Lidamos com os vestígios, realidades fulgurantes, saudades. O olhar à travessia do desejo/deserto, por meio da perspectiva poética saudosa, garante a Pascoaes recursos vocais intermináveis, exercidos por um narrador que ultrapassa uma categoria estanque de ‘onisciente’. Enquanto narra, em 1ª pessoa, o percurso de Paulo, numa gradação cronológica, o narrador se permite colocar-se na cena narrada, fazendo uso de verbos como ‘acompanhar’ e ‘ver’, mostrando proximidade com o personagem Paulo, muitas vezes, inclusive, fazendo-o no plural, inserindo nós, leitores, nas cenas narradas, cenas que o narrador faz avançar e recuar, acelerando e/ou congelando passagens, conforme lhe interessa. Vindo mesmo a plasmar-se no protagonista narrado, entranhando-se de tal forma na narrativa, acaba por constituir um texto 1 2

Teixeira de Pascoaes, São Paulo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 23. Teixeira de Pascoaes, O Homem Universal, Lisboa, Assírtio & Alvim, 1993, p. 21. 1

cuja textualidade mesma será a da paixão, da comunhão dolorosa. A narrativa se faz, portanto, narração, gesto de escrita, que, voltando-se sobre o tema da paixão de S. Paulo, faz-se, ela mesma, texto apaixonado. Somos convidados, enquanto leitores, a penetrar na paixão textual conduzidos por este narrador constantemente possuído pelo ardor da escrita. Convirá ainda acrescentar, a este fogo textual, a ocorrência constante de repetição de personagens e figuras – um longo diálogo, inacabado – por toda a obra de Pascoaes. Perdemos o contorno de suas obras enquanto ‘obras avulsas’ e percebemos que Paulo avulta agora numa página do Livro de Memórias ou reacende-se n’O pobre tolo não passando mais do que um espectro de Marânus ou uma fluorescência vista dentro do olho do próprio Pascoaes enquanto investigava o rio do espelho. Como ler este livro? Ou ainda, como ler a obra pascoaesiana? Essa recorrência faz com que desejemos ler a obra de Pascoaes como um todo, conduzida por uma voz híbrida, na maior parte das vezes em 1ª pessoa, intercalando e mesclando figuras, personagens e trazendo a baile, muitas vezes, cenas intimamente relacionadas à biografia do próprio autor, Pascoaes. Isto nos vai dando um vislumbre das características específicas dessa voz narrativa, valorizando sua paradoxal indefinição, a qual muito se afina com a matéria mesma desta poética: a parelha de presença e ausência, móvel e sem fronteiras claras, a que Pascoaes chamou Saudade e fez dela toda uma arte poética. Trata-se de um ‘jogo’ ontológico em que a linguagem se faz rosto e efígie, aparição e máscara, de um eu e de um outro: “A imagem que projetamos nos outros, refletese logo sobre nós. Não há melhor espelho” (PASCOAES, 2002, p. 212). Sobre a imbricação entre narrador e Paulo, vejamos como aquele nos apresenta (nos convida e nos inclui) o ‘plano de narração’ com o apóstolo: Vamos acompanhar S. Paulo, durante os anos em que ele andou na terra. Desejaria mostrá-lo a uma luz que, revelando as figuras, completa-as. Não as cria, porque o seu esboço perde-se na origem das cousas; dá-lhes a última demão, o traço geral que define, sem limitar. É uma linha que parte; e, curvando, regressa ao ponto de partida: a órbita que o ser em si, descreve; e o destaca, mas não desintegra do espaço indefinido (...). A nossa imagem, nitidamente recortada, emana uma expressão interior, que a envolve e prolonga, no Infinito; mas é sempre a nossa imagem, ou aqui, neste núcleo concentrado, ou, além, como esparsa numa auréola. Nessa íntima auréola é que vivemos e tocamos as cousas exteriores. Interiormente é que tocamos o exterior. É com os dedos da alma que pegamos numa pedra: e a pedra, a si mesma, se reconhece, em nossas mãos. O que há de belo, na criatura, é o ponto em que ela hesita entre o pessoal e o universal (idem, p. 26).

Lemos neste parágrafo um detalhamento da poética da saudade pascoaesiana: em eu/nós que, em texto, segue colado ao narrado, ‘revelando’, como num procedimento fotográfico, a imagem obscurecida de um outro que se faz espelho de um eu/nós. Escrever, portanto, é um jogo de espelhos, projetando a virtualidade de imagens onde um corpo se mostra mas não está. Entendendo a presença no mundo como máscaras e vestígios de uma força movente e quase invisível, que de si só deixa ver aquilo que o encontro com a matéria produz, a sua sombra, cabe ao poeta “dar a última 2

demão”, uma pincelada final (final, mas infinita, que não acaba) na imagem que, curvando-se, regressa a si mesma, abissal, no ‘entre-quase’ do jogo mesmo de espelhos em que se buscara. Tratase, a escrita, na concepção poética da saudade, de uma travessia pelos não limites entre interior e exterior, saudando a beleza desta hesitação. Não se trata de um simples processo mimético de ‘cópia’ do real. A palavra que o narrador de São Paulo usa para pincelar o seu personagem é, sublinhemos, ‘revelação’. Não se trata também de conferir à escrita a criação final e definitiva do real. A escrita é vinculação, gesto de encontro, formação de uma nova relação entre visível e invisível que abre acessos à revelação do ser, numa compreensão metalinguística da saudade, o que se aproxima de uma leitura gnóstica da religião cristã com que Pascoaes dialoga, conforme veremos em seguida, através da crítica de Jorge Coutinho. Paulo será o fósforo, em Pascoaes, do fogo da religiosidade poética da Saudade, lugar de ausência em que o desejo de encontro eu-outro se presentifica. Dito de outra maneira: o narrador que se espera desta prosa nascente de Pascoaes (São Paulo é a primeira das ‘biografias’ assinadas pelo autor) é um narrador, como já o anunciamos, bastante ‘plástico’, continuador de um eu lírico que, na sua obra poética anterior, já se experimentara ‘fora de si’, como se pode ler, por exemplo, numa passagem de Marânus, de 1911: “E, num estonteamento interior; / Vou através de caos confundidos, / De estrelas hesitantes, mundos vagos / E nocturnos desertos esquecidos. / Vou em procura de mim próprio, ao longo / De infinita e deserta escuridão (...)” (PASCOAES, 1993, p. 21). Nada de atenções historiográficas que não passe pelo prumo de uma voz delirante, a do narrador que, como em outros livros pascoaesianos, muito mais se interessa pelo caudal fabuloso e ígneo capaz de revigorar o encontro que o texto é, do que por uma sequência pouco ou muito fidedigna àquilo que se convencionou ler como ‘história’. Segundo o crítico Jorge Coutinho, em ensaio sobre São Paulo publicado em 20083, argumentando a favor de um sentido gnóstico-saudosista à obra de Pascoaes, que comentaremos adiante, diz: Cada biografia é uma narração fantasiada, constituindo uma interpretação pessoal, orientada por uma ideia de fundo, que é parte do ideário do mesmo autor. Como tal, encarna e ilustra, em modo narrativo, aquela ideia e/ou ideal ou mesmo toda uma visão do mundo ou de ‘um mundo’. Em função dessa ideia/ideal ou dessa visão de mundo, a narração torna-se selectiva – e por isso, redutora – no uso das fontes, e orientada no seu fio condutor. Conhecer previamente essa ideia torna-se particularmente relevante para a interpretação, já que ela abre o sentido global da obra. (COUTINHO, 2008, p. 113)

Com Pascoaes, a expectativa da biografia é algo oscilante, já que o texto-suporte dessa andança ‘acompanhada’ do apóstolo se mostra, diversas vezes, mais próximo do ensaio, da memória, e até, de uma autobiografia desdobrada, em que a paixão pelo narrar (sobre a personagem que é S. Paulo) se transmuta no ser da própria narração da paixão (o texto que é São Paulo). A 3

Jorge COUTINHO, “Um São Paulo em chave gnóstico-saudosista: Teixeira de Pascoaes”, DIDASKALIA XXXVIII, 2008, p. 113. 3

narrativa, o narrador e a personagem se contagiam numa mesma fogueira que não distingue vida e obra, impulso criativo e criação: “Paulo é deste mundo interior que envolve o mundo e os outros mundos, e ninguém sabe onde ele acaba. (...) dentro de si, é que ele descobre tudo, - o Infinito. A nossa memória é universal, e excede o próprio Universo, quando aliada à fantasia criadora” (PASCOAES, 2002, p. 135). Talvez pouco interesse viesse a despertar em nós, leitores, uma ‘certa escrita’ da vida do apóstolo, fulgurado pela revelação na estrada de Damasco, se esta escrita seguisse a linha de uma hagiografia comprometida não apenas com os percursos ditos ‘vividos’ pelo biografado, como também pelo verter destes percursos numa moral afeita aos padres e corolários de uma Igreja católica oficial. Todos nós que lemos o São Paulo, sendo já leitores de Teixeira de Pascoaes, pressupomos, antes mesmo de abrir o livro, que não encontraremos ali uma narração afeita ao estilo dos comentadores bíblicos que repetem e reiteram um fechamento à exegese da ortodoxia religiosa. Esta heterodoxia para com a matéria religiosa já o narrador a expõe em suas primeiras linhas: “A religião interessa-me como Revelação instintiva ou consciente (...) e não como regra de conduta. Deus não está nos preceitos da Moral, que é de origem social, um produto da vida comum. Deus é, além de tudo, o Espírito criador; e o homem, antes de tudo, é o ser” (idem, p. 29). O entendimento, portanto, poético da religião se explicita na postura do narrador ‘entusiasmado’. Conforme aponta Antonio Cândido Franco em seu estudo4: “O ‘São Paulo’ de Teixeira de Pascoaes caracteriza-se por uma teatralização do narrador e da sua enunciação (...) [em que] o plano da narração ou do discurso, onde impera o narrador, acaba por ser mais importante que o plano da narrativa ou da história”. Isto leva Cândido Franco à conclusão de que São Paulo seja não um livro sobre o apóstolo e seu tempo, mas sim sobre o tempo presente de sua escrita, os anos 30 de Pascoaes, numa ‘contemporaneidade europeia’ que pode ser atestada pela quantidade de traduções e reedições que a obra teve, logo depois de publicada em Portugal5. Mas, leiamos ainda, para além da focagem insistente do narrador na narração, um movimento também reversivo, em que a personagem e seus atributos espaço-temporais venham até o presente da escritura, numa contaminação geral em que o narrador, apesar de conduzir-se maestro, em 1ª pessoa, da construção do personagem Paulo, também sofre uma construção por parte dele, desestabilizando a hierarquia entre narrador-personagem. É por meio dessa dupla atividade e passividade entre narrador e personagem que o São Paulo insere-se na poética da saudade, princípio estético e ético que move a obra pascoaesiana. As coisas, em texto, todas se participam, e é a esse contágio que Pascoaes convida o leitor: a participação num tempo/espaço de paixão,

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António Cândido FRANCO, A literatura de Teixeira de Pascoaes , Lisboa, INCM, 2000, p. 153. Diz FRANCO: “Isso faz com que o São Paulo seja mais um livro sobre o presente que sobre o passado, sobre o narrador que sobre as personagens. O narrador das hagiografias de Pascoaes é mais um pensador agônico da modernidade que um paleontólogo das religiões e, em primeiro lugar, do cristianismo”. (idem, p. 154)

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consubstanciação de eras, distâncias, ausências; fantasmagoria que a saudade feita texto dá à experiência, revitaliza, torna vivo, incansavelmente. Nas palavras de A. C. Franco: “o que interessa ao narrador é deixar em aberto a possibilidade de abrir uma nova fratura no materialismo mecânico moderno por onde resvale uma nova forma de espiritualidade idêntica afinal ao de algum cristianismo pauliniano primitivo” (FRANCO: 2000, p. 157), ou ainda: “Interessa sempre ao narrador de Pascoaes salientar a imposição totalitária da técnica ao quotidiano moderno do homem, com a imediata esterilização de relações sociais mais fecundas” (p. 159). Paulo é o primeiro dos biografados porque, mais do que os outros, será o apóstolo doador da fagulha: aquele que, depois de perseguir cristãos e matar Estevão, sofrerá, via remorso, o entendimento criativo da redenção via saudades da origem, que é saudades do ser. A consciência da ressurreição de Cristo em Paulo é a consciência do desejo renascente do ser em si mesmo, participante ativo de sua própria e constante revelação. A força com que Paulo mergulha nesta sua consciência cristã – arrebatado por um relâmpago – será imagem recorrente a Pascoaes para tratar da revelação da saudade: um relâmpago criativo da consciência movendo o desejo de ultrapassar-se, de ‘sobrenaturalizar-se’. Paulo, para Pascoaes, será a ‘essência do cristianismo’, pois “é nele que a ideia cristã adquire a verdadeira forma irradiante” (PASCOAES, 2002, p. 31) Em toda sua obra, Pascoaes sustenta o seu entendimento do humano como valor poético porque “o homem é corpo e alma, existe e vive; ocupa um espaço limitado e outro ilimitado e transcendente. Existindo, não excede a Natureza; mas excede-a, vivendo; e vivendo apaixonadamente” (PASCOAES, 2002, p. 42), numa comunhão amorosa entre desejo e deserto que forma em grande parte o eixo imaginário da saudade. No poema Regresso ao Paraíso, de 1912, diz o eu lírico que “Deus está na paisagem do Deserto” (PASCOAES, s/d, p. 134), paisagem ardente do vazio que a escrita revela jogando luz às sombras: O amor é fome de outra vida, desejo de transitar. Quando dois amantes se abraçam e beijam, entredevoram-se, morrem um no outro, de algum modo, e transitam para um novo ser. A vida não pode ficar, em nós, a repetir-se, que repetir é estar parado, é ocupar o mesmo lugar. O amor compensa a morte, dá o que ela tira. O homem perpetua-se, amando e alimentando-se: Comei! Este é o meu corpo! O corpo é fruto assimilado; e o fruto é húmus, água e Sol. E o fruto assimilado se transformará em espírito, alcançando assim a Divindade. A Natureza espiritualizase, através do homem, que é a própria consciência universal. O homem é a faculdade intelectual da Natureza. A sua fronte eleva-se da paisagem, como paisagem ainda (PASCOAES, 2002, p. 32).

Eis porque a figura de São Paulo, já o acompanhando anteriormente e seguindo com Pascoaes até o seus trabalhos finais, se fará eixo ético-poético de sua escrita da saudade, que encontrará imagem apurada na ideia do ateoteísmo, assim nomeado no livro Duplo Passeio, de 1942. Em linhas gerais, o ateoteísmo substantiva aquela postura do descrente com fé, daquele que ardentemente persegue, em dúvida, o desejo de conhecer o divino, investigando ou ‘cismando’ 5

sobre a natureza do ser, de deus, dos vivos, dos mortos. Sim, podemos ler a figura de Paulo (junto com a do ‘pobre tolo’, no texto-poema de mesmo título) como a faísca inicial ou ‘iniciante’ do ateoteísmo de Pascoaes. Ambos têm como tema central a loucura sonhadora, cuja aspiração ao impossível confere, ao poetar/magicar das personagens e de seus respectivos narradores, a realidade como poesia. Nas palavras de Coutinho, citando Pascoaes: É a vida em sonho ou ilusão, sendo que ‘a desilusão é um movimento no sentido da matéria, como a ilusão é um movimento no sentido espiritual’. ‘Vivendo o seu ideal até ao rubro incandescente, é que ele [Paulo] o afirma, vitorioso contra todos os frios raciocínios’, consciente de que ‘o que se entende não vale nada. O que vale é o que é para além do entendimento’. (COUTINHO, 2008, p. 125)

Paulo erra, caminha, muda de lugar, hesita, transpira: é em movimento, e movimento doloroso. Para Pascoaes, a religião, como a poesia, não se oferecem via calmaria da fé certeira, nem no desenvolvimento racional de pequenas verdades comprováveis e corruptíveis. A fé, como o poema, são acontecimentos de um sujeito vivo, em trânsito de si para o outro, esforço não sem dor, operação estrangeira que dispõe o sujeito, tal como Paulo, à vida em sua vontade de ultrapassagem de si, por meio do crime, da criação e do remorso, infinitamente. Uma das demandas agônicas que nos chega com a modernidade é a necessidade de reavaliação da ‘dor’ numa dimensão já ‘sem deus’, sem o aporte do divino como teleologia do ‘sofrimento ou alegria humanos’ ou como causa deles. Neste sentido, Pascoaes integra um coro de escritores contemporâneos a ele que, de uma maneira ou de outra, reagirão à tormentosa vidência de um mundo a vir anestesiado por sua própria capacidade de destruição acelerada. Num mundo em que o deserto se faz frio, Pascoaes, com esforço grandioso – toda a sua obra – fará do deserto uma arena ainda ardente, território de conflito transcendental da paixão e da dor, conjugação da paixão e da dor, numa atitude miraculosamente ‘incólume’, na leitura do crítico Eduardo Lourenço6. Outro estudioso do apóstolo Paulo é filósofo francês Alain Badiou7. Leitor de Nietzsche, Badiou escreveu a sua leitura de Paulo, num texto em que procura entender a dimensão contemporânea daquele, indagando quais seriam os interesses possíveis em dialogar com o texto paulino em fins do século XX. Já no prólogo, o autor alerta que não compartilha da fé cristã e

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Eduardo LOURENÇO, em “Uma poiética da sombra”, Revista da Faculdade de Letras - Série de Filosofia (2ª Série), 2014, v. 21, n. 1, pp. 144, escreve: “Que aconteceria quando esta crença numa outra vida imune à Dor e às suas metamorfoses monótonas e infinitamente renováveis, se convertesse na pior das dores, na dor inconsolável da Desilusão e do Desencanto? O vale de lágrimas que através do seu choro consolava, converter-se-ia num deserto. O deserto, a essência da vida humana como Modernidade, não chora. Não há lágrimas na terra calcinada, devastada em que, quase simultaneamente, Pessoa e Elliot, instalaram suas tendas. Ou apenas lágrimas frias. É a “Waste Land” o nome próprio da Modernidade, aquela vida universalmente desvinculada da sua matriz divina, gozando-se a si mesmo como estéril, que Pascoaes, nascido já em pleno deserto atravessará miraculosamente incólume. O Nada será impotente contra a sua paixão e vocação redentora de toda a sombra do mal sobre a vida encarnada pela Saudade. Nesse sentido ficou às portas da Modernidade, guardando-se para um futuro em que o Nada mesmo perderá o negro esplendor”. 7 Alain BADIOU, São Paulo¸ São Paulo, Boitempo, 2009. 6

afirma: “jamais liguei Paulo à religião” (BADIOU, 2009, p. 7), o que não o impediu de ver em Paulo “uma figura subjetiva de importância fundamental” (idem, ibidem). Paulo, no seu entendimento, foi quem inaugurou uma nova Teoria do Sujeito. Este novo sujeito, o ‘sujeito cristão’, seria aquele que, diferentemente do sujeito alicerçado pela visão de mundo judaica, não mais necessitaria da anterioridade (e autoridade) da lei como forma de julgamento e testemunho, como forma de verificar ‘a verdade’ dita. Diferentemente também do sujeito alicerçado pela visão de mundo pagã, o cristão desloca do juízo da razão objetiva a comprovação daquilo que atesta. Paulo, portanto, desloca-se da identidade fundada na lei e no discurso lógico, ‘fundando’ um sujeito (o cristão) a partir unicamente da subjetividade em ‘si mesmo’, daquele que sabe e diz o que viu, abrindo a crença cristã a uma universalidade não marcada pelos critérios anteriores (judaico e grego) de participação religiosa8. Um dos principais enunciados de Paulo – aquele de que ‘não há mais judeu nem grego, não há mais escravo nem livre, não há mais homem nem mulher’– fundamenta, no entender de Badiou, as condições de uma ‘singularidade universal’, na qual “ninguém é exceção” (idem, p. 23). Esta moral pauliniana, reinterpretada por Pascoaes, também se encontra na sua demanda po-ética: um ‘todo mundo-ninguém’ que se corresponde ao arfar das coisas, entre sujeitos e paisagens, conforme se pode ler neste trecho de O Homem Universal: Somos nós, diante de nós e das cousas, ou de cada uma na sua imagem concreta ou de todas reunidas numa só abstrata, que é, em desenho espiritual, a mancha indecisa em que as formas aparecem. Vemos o sítio onde estamos e não estamos. Vemos um panorama, que vai dos nossos pés à nebulosa Andrômeda e se desdobra através da nossa intimidade ou do infinito. Somos a nossa alma, no meio de outras, imanente a ela mesma, e transcendente nas demais. E, nestas, alcançamos uma figura acabada e luminosa; entramos assim na posse integral do nosso ser, imanente e transcendente, gerado em nós e nos outros. Nosotros, palavra ibérica dum valor extraordinário! Eu e Vós, o Mesmo (PASCOAES, 1993, p. 56).

É em nós, em cada um, que é possível gerar essa ‘imanência-transcendência’ comum, cujo valor reside na loucura poética do transbordamento da razão e do limite imposto por esta entre as coisas; conjugação simpática do todo a cuja realidade temos experiência via saudade, em seu cantar(-se). Sustentando um lugar bastante especial em sua obra à dor, Pascoaes dará a ela a dignificação de valor maior como antídoto ao ‘esfriamento’ do mundo moderno. Lembremo-nos que, embora o livro estivesse em consonância com um debate europeu – vide o número de traduções que

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Nas palavras de Badiou: “Digamos que, para Paulo, trata-se de explorar qual é a lei que pode estruturar um sujeito sem qualquer identidade e suspenso a um acontecimento cuja única ‘prova’ é justamente a sua declaração por um sujeito. (...) O gesto inédito de Paulo é subtrair a verdade da dominação comunitária, seja de um povo, de uma cidade, de um império, de um território ou de uma classe social. (...) Separar arduamente cada processo de verdade da historicidade ‘cultural’ na qual a opinião pública pretende dissolvê-lo: essa é a operação em que Paulo nos guia. Repensar esse gesto, desfazer suas divergências, vivificar sua singularidade e força instituinte é, com toda certeza, uma necessidade contemporânea (BADIOU, 2009, p. 13) 7

encontrou para outras línguas europeias, em tão pouco tempo –, ele foi publicado em Portugal, no começo da ditadura salazarista, iniciada em 1927; ditadura que, como sabemos, tinha como um de seus pilares a Igreja Católica, em seu viés mais ortodoxo, para a qual o livro de Pascoaes fora um verdadeiro escândalo. Se politicamente o país se fixava num modelo autoritário, auxiliado pela caduca moral cristã, impondo aos cidadãos a fixação dos corpos, dos afetos e das ideias, o Paulo de Pascoaes vinha com o fogo herético, disposto a queimar qualquer sedimentação, saturando o corpo, o Estado e a Igreja. Esse trabalho de saturação não poderia ser uma ‘obra alegre’, “incólume” ao Nada; pelo contrário: é por meio da dor viva, da inquietação, da hesitação, do ‘talvez’, que se toca numa liberdade possível. Neste sentido, a libertação por meio da dor nada tem de passadista ou conservadora, lamuriosa. Pelo contrário: recusando o parasitismo de qualquer verdade imposta, acionamos um corpo vivo, quente, movente que, se não nos é capaz de oferecer o vivo em plenitude e liberdade – pois estamos condicionalmente marcados pela queda, à cruz de um corpo definido e limitado –, ao menos aciona em nós aquela memória imaginativa, aquele desejo de ser que nos impulsiona, aquela esperança dolorosa, aquele ímpeto para o sobrenatural, chamado saudade. Dor que, no entender do crítico Maurice Blanchot9, qualifica a recusa à facilidade de uma razão mundana, dor de um “pensamento trágico”: Compreender-se-á que, se o homem trágico possui essa luz que é o Deus oculto, ela metamorfoseie todas as coisas, faça desaparecer as nuanças e transforme a justa medida no encontro abrupto do ser e do nada. Não há mais meio de viver medianamente. É preciso viver na tensão sem repouso de exigências exclusivas, grandemente com minha baixeza, nulificado por uma lembrança de grandeza, como um justo que não passa de um pecador, precisamente o justo pecador cuja prece é necessária, mas não é necessariamente atendida (...). O homem trágico, diante da presença-ausência de Deus oculto e tendo da incompreensível união dos contrários um poder de compreender que não é jamais nem seguro nem duvidoso, deve, pois, aprender a ‘viver’ no mundo ‘sem dele tomar parte e gosto’ e aprender a conhecê-lo por sua própria recusa, que não é uma recusa geral e abstrata, mas constante e determinada, que serve melhor ao conhecimento do que todo otimismo racionalista, pois essa razão o liberta das mistificações do falso saber.

A dor também tem o seu papel na importância criativa que Pascoaes confere ao ‘remorso’. Partindo de uma visão de mundo gnóstica, Pascoaes aproxima-se de uma perspectiva religiosa que buscará entender a Criação como um crime que nos constitui, crime criador, que convém, via dor e remorso, expiar, numa difícil conjugação inquieta entre o alto e o baixo, pois “através do ser criminoso, murmura a alma inocente” (PASCOAES, 1999, p. 53). Neste sentido, a figura de Jesus, enquanto filho que ‘rompe com o Pai’, expiando os crimes paternos, será também modelar para a relação biógrafo-biografado. Como entender o cristianismo de Paulo em Pascoaes? Paulo será, para este, o criador de Cristo, no sentido não de um Cristo histórico, mas espiritual. Pascoaes cria assim, Paulo criador de Cristo, a redenção via o seu remorso. De acordo com Jorge Coutinho, “no fundo, o que Pascoaes viu no Apóstolo foi um exemplo histórico de excelência que ilustrava e dava 9

Maurice Blanchot, A conversa infinita – a experiência limite, São Paulo, Escuta, 2007, p. 33-35. 8

cobertura à sua visão saudosista do mundo e da vida. Mas essa visão saudosista (...) é a sua versão pessoal da gnose dos tempos tardo-modernos” (COUTINHO, 2008, p. 118), nomeada por Coutinho gnose-saudosista, que parte do gnosticismo do início do cristianismo, o qual foi com clareza explicada pelo crítico10. Nos termos de Pascoaes, lemos que “o criminoso é um sonhador, um poeta. Matamos Deus para que ele nos doa, como um remorso eterno” (PASCOAES: 1993, p. 66). Tal qual a relação homem-deus, a relação biógrafo-biografado se faz também via maceração, subversão, revisão11, num crime, incessante, que vincula criadores e criaturas. O remorso é dor ativa, pois “o pecado é mais fecundo que a virtude. A virtude é ponto de chegada e não caminho a percorrer; chegar é parar” (PASCOAES, 2002, p. 35). Frente à apatia, ao tédio, à domesticação racional, Pascoaes nos propõe Paulo, aquele que o narrador qualifica sob o signo do fogo: “é todo paixão concentrada e elevada a uma potência infinita” (PASCOAES, 2002, p. 24); “não amava, apaixonava-se” (idem, p. 27); “é um animador de cadáveres” (idem, p. 99); “é o homem em toda a sua complexidade misteriosa, mais dramático e profundo que existiu” (idem, p. 156); “é um incêndio inextinguível, paixão que não desfalece, luta sem tréguas” (idem, p. 163). Paulo “é um ser atraente e inquietante. Em volta da sua pessoa, não reina o marasmo nem a paz. Não há nada morto. Paulo ou é Cristo ou o Anticristo, conforme tem, diante de si, o sedento ou o ébrio, o judeu puro ou o helenizado, o passado ou o futuro” (p. 164): Paulo, senhor de si e de Cristo, lá vai, acompanhado de Silas, através de povoados e desertos. Não dorme, nem descansa, queimado pela febre, mortificado pelos nervos duma afinação dolorosíssima. Vibram, como um feixe de relâmpagos, naquele corpo de nuvem, levado pelo 10

Diz Coutinho: “De facto, o gnosticismo, desde a sua expressão clássica nos séculos II-III, propondo-se encontrar uma via para a redenção do mal e alimentando uma mística soteriológica, procura primeiro indagar sobre a origem deste. Desenvolve então uma cosmogonia de tragédia, na base de uma ontologia monista-emanentista, a metamorfosear-se em dualista, de novo resolúvel em monista-reintegracionista. Ao contrário da tese judeo-cristã da criação, entendida como dom do ser às criaturas, o gnosticismo sustenta que o mundo resulta de uma ‘queda’ de Deus, pela cisão da sua originária unidade divina em dualidade de espírito e matéria, sendo isso o verdadeiro ‘pecado original’, e sendo desse caimento na matéria que emerge o mal. O mundo material é, pois, a catástrofe de Deus, a sua queda cósmica. Sendo, por outro lado, o ser humano a ‘consciência do Universo’, o seu coração torna-se o lugar onde o pathos da tragédia ganha ressonância. Em Pascoaes, é isso a saudade em sua dimensão metafísica: ‘canto magoado’ do homem e das próprias coisas, o próprio mal em busca da sua superação. Enquanto saudade da Origem, com desejo de regresso a ela, em seu último horizonte de sentido a saudade metafísica é uma saudade de Deus. A salvação só pode, por conseguinte, advir por meio de uma redenção a operar através do movimento ascensional, de sentido contrário ao da queda. Mas essa salvação é obra do esforço humano e não dom ou graça divina, como o pecado é aquela queda e não livre decisão do homem. De fato, no gnosticismo não é Deus quem salva o homem. É o homem que a si mesmo se salva e salva Deus por acréscimo” (COUTINHO, 2008, pp. 119-120). Lemos também, em São Paulo, “Só vivemos, depois do crime e do remorso, depois do sofrimento amoroso. Assim, o criador só existe depois da criatura, do seu pecado, mas arrependido do pecado. Este arrependimento manifesta-se no homem; e é a causa transcendente do sentimento religioso. O que há nele de mais profundo e verdadeiro, é uma saudade dramática da origem, uma sede de água da Fonte, exasperada pela febre. Num pesadelo sequioso, interior imagem do deserto, ouve murmurar o veio cristalino, entre as flores da sua infância paradisíaca. O homem é religioso por lembrança da Origem, que é Deus” (PASCOAES, 2002, p. 31). 11 Essa relação entre canto, memória, saudação (dos antepassados) e anunciação de um eu, está já nas origens da cultura clássica dos hinos homéricos, fazendo do todo cantar um gesto dúplice de continuação de uma tradição e rompimento, instauração de um elemento novo nela. Tal qual o procedimento genesíaco dos deuses gregos nos hinos homéricos, por exemplo, que, ao nascer, cantavam a sua genealogia (nascer com um cantar que saúda os antepassados), Pascoaes, ao escrever a biografia de seus eleitos, também canta o seu próprio nascimento, gesto duplo, ambíguo, já que, como o deus nascido, continuando a tradição que lhe exige cantar ‘seus pais divinos’, sabe também que o canto lhe pertence, já que é através do seu canto que ele se apresentará aos demais, nascendo, em relação mas, principalmente, em diferença com os seus antecessores. 9

vento da inspiração. Lá vai, anunciando Cristo a judeus e pagãos, que o abraçam ou apedrejam. Cercam-no labaredas de amor ou de ódio, - o mesmo fogo. Não lhe pousa um bloco de neve, no manto; e o gelo das montanhas derrete, sob os seus pés, foge em gorgolejos de água que mata a sede. Paulo caminha sempre (PASCOAES, 2002, p. 123) (grifos nossos).

Este ir e vir (mote – o relâmpago, a aparição; e glosa – os inúmeros comentários que dali se pode tirar) do texto mais uma vez reforça o seu movimento, a sua instabilidade. O que importa a Pascoaes, sabemo-lo quando lemos a obra como um todo, é o processo, o caminho, o textoenquanto, a escritura, espaço do vivo, em que Paulo dá lugar, via calcinação, ao lento labor de construção do espelho, em que seu autor, Pascoaes, assim como seu biografado, Paulo, se entreveem, via narrador, ele também “ignota substância ondulante, em metamorfose, ondas e ondas fugidias” (PASCOAES, 2002, p. 64). A postura apostólica de Paulo, que interessa a Pascoaes, é esta deste sujeito desimpedido, disposto à ação fulminante: “A dimensão ‘descentrada’ da ação de Paulo é a subestrutura prática de seu pensamento, o qual estabelece que toda universalidade verdadeira não tem centro” (BADIOU: idem, p. 28), ou, nas palavras do narrador de Pascoaes, “Paulo quer partir e ficar. Hesita, batido de contrários ventos. É uma situação angustiosa. Domina-o este desejo absurdo de estar, ao mesmo tempo, em vários sítios deste mundo” (PASCOAES, 2002, p. 173), pois: Afirma e não demonstra. Nem a verdade se demonstra: afirma-se. Não é ela um produto da nossa experiência? Quando sinto que Deus existe, não será este sentimento um instante vivo do meu ser, formado de todos os elementos etéreos e terrestres, desde a água, a cal, o ferro às vibrações misteriosas emitidas de além dos astros? E este meu instante vivo não será uma parte da Eternidade e do Infinito? Quando acredito em Deus, não sou eu (o eu é apenas um sinal) que acredita: é o Universo, em mim, presente. É o próprio Deus que, em mim, se reconhece, ou, antes, Deus refletido em mim, feito imagem transitória, como a do sol na onda. Creio em Deus, logo Deus existe. Creio em Deus, como creio nesta árvore. Creio na árvore, porque a vejo. E creio em Deus, porque o vejo. Crer é ver interiormente. A crença e a visão representam duas experiências de igual valor. São dois instantes vivos, no meu ser, da Eternidade e do Infinito” (PASCOAES, 2002, p. 161).

A travessia circular – “é uma linha que parte; e, curvando, regressa ao ponto de partida” – (PASCOAES, 2002, p. 26) pelo desejo de dizer o outro, faz-se com Paulo, num trabalho de construção reflexiva, espelhar, especular, em que o eu se lhe aparece enquanto saudades, – “o eu é apenas um sinal” – saudade de si, saudade do Ser. Mostramos algumas passagens em que a linguagem ardente é-nos oferecida à apresentação de Paulo e como a sua presença febril traduz em texto o tema da paixão e do combate corpóreo que são, para o autor, valores da vida que só pode ser viva em esplendor, em luta, movimentando-se. O narrador circula ao redor deste lema: “Viver é queimar a vida, transformá-la em calor e claridade. Viver e arder é o mesmo fenômeno” (PASCOAES, 2002, p. 193). Reunindo imagens do fogo, chegamos à imagem-chama do desejo, acendendo o drama da matéria, que canta 10

exasperadamente, na obra de Pascoaes, sobretudo neste São Paulo. Para além, portanto, da busca metafísica e da resposta ao contexto (português e europeu), com atravessamentos heterodoxos e/ou ortodoxos na matéria religiosa e na concepção da relação homem-deus, é notório apontar a espessura do ‘corpo’ enquanto matéria e madeira ardente. É assim que, somando-se a relação ambivalente entre narrador e personagem, simbióticos, às imagens constantes do fogo com que o autor qualifica esta relação, podemos ler neste texto, na sua materialidade, a escrita da paixão. Paixão entendida corpórea e textualmente, revelando a ardência trágico-sublime do sujeito atravessado e atravessando o seu próprio desejo de buscar(-se) sem alcançar(-se), nesta trajetória que valoriza a dor pois “a virtude é procurar e não encontrar” (PASCOAES, 2002, p. 119), já que “deus integra-se na existência pela força do desejo, que é sombra do homem incendiada” (idem, p. 42). Segundo Blanchot, no ensaio citado, a própria natureza da religiosidade é tingida, no homem, por este misto de desejo e ausência: “Mas se conhecemos Deus e conhecemos sua miséria, conhecemos só poder conhecer o distanciamento de Deus, Deus manifesto enquanto distante. (...) não podemos encontrar Deus, mas procurá-lo, (...) não podemos possuir Deus, mas desejá-lo (BLANCHOT, 2007, p. 40). Pois, como dirá Pascoaes: A vida é imperfeição, desejo sempre a realizar-se. Realizado, morreria. Que é o desejo satisfeito? O Vácuo cheio de nada. A imperfeição é eterna, como a dor e o Amor. O amor pauliniano é um anjo que se alimenta de lágrimas. O amor platônico é também um anjo, abstrato e deslumbrante, que se alimenta de luz. Encanta, mas não comove. E o homem prefere à beleza a comoção, e o calor à luz. O homem é um animal apaixonado (PASCOAES, 2002, p. 253)

Eduardo Lourenço, no prefácio a Marânus12, argutamente reflete sobre a relação entre desejo, saudade, corpo, origem e conflito em Pascoaes, numa abordagem que entendemos como desdobrável para qualquer uma das obras de Pascoaes, ou melhor, para a obra como um todo. Diz Lourenço: Não há na nossa literatura poema mais perturbador e incandescente, poema do Desejo como forma de existência buscando desde a Origem novas formas para se encarnar em vão e nessa busca criando o que não existe e por fim o verbo escuro em que se redime da sua própria insatisfação. É a esse verbo escuro que Pascoaes chamou com nome nosso imemorial Saudade, pondo nele nova substância, a do mesmo Desejo transfigurado pela consciência da sua imperfeição divinamente criadora (PASCOAES, 1990, p. XII)

É sob, portanto, esta visão místico-erótica que Pascoaes persegue Paulo, valendo-se de um narrador onisciente mas simultaneamente maleável, plasmável, resiliente à narração e ao personagem, chegando sempre a ‘quase’ consumá-lo em si, num texto-incêndio, que não por acaso, é a imagem derradeira narrada de Paulo, o incêndio de Roma, no ano de 64 d.C., em que Paulo 12

Teixeira de PASCOAES, Marânus, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990. 11

‘desaparece’. Desaparece, mas sobressai e sobrevive, porque o texto, curvo, volta-se sobre si mesmo, compondo-se de uma nostalgia combustiva, saudade. Parece-nos interessante, a título de conclusão, ler, como mote da obra pascoaesiana, sobre a qual se constrói a sua poética da saudade, uma passagem belíssima do texto de 1934, em que o narrador define o ser humano como um ‘talvez’, um ‘quase’: “Talvez. Este advérbio é a substância de que somos feitos, pois nem somos o espírito nem o corpo, mas o encontro do corpo com o espírito – o relâmpago, o instante em que a imagem se reflete no espelho” (PASCOAES, 2002, p. 56). É neste sentido que também o texto de Pascoaes se comporta como um ‘quase’: quase-biografia ou quase-autobiografia, junção de um corpo/desejo buscando-se por sobre outro corpo/deserto. Diz o narrador, próximo do fim da narrativa: “a alma no corpo é fogo na lenha seca. O fogo arde enquanto houver que arder. Haverá vida enquanto houver morte – lenha. Haverá sempre vida, pois a vida é uma luta sem a vitória desejada. E, porque não há vitória, é que a luta continua” (PASCOAES, 2002, p. 270). A luta segue e a ausência impera, mas ela se faz fogo, luz mais que solar, com que ver nossa invisibilidade constitutiva: A ausência é mais clara que a presença. Somos feitos duma substância que, desaparecida, é que se mostra. As cousas revelam-se na memória, bem melhor que à luz do Sol. A memória é interior prolongamento dos sentidos; está, por isso, em íntimo contato com a realidade. Só ela conhece a realidade. Só existe o que nela se fixar. Se me recordo dum sonho, é que ele existe, como qualquer nuvem ou penedo (PASCOAES, 2002, p. 71)

É ao longo de uma obra que tem como ‘causa amante’ a deriva no deserto, que se pode perceber, via corpo agonístico, corpo cheio, carregado de seu ‘quase’, a sua substância ígnea da ‘ausência’, deixando no canto um rastro do rastro de sombra (encontro entre lume e cinza) que o canto circular reacende, a Saudade. Saudade que se faz ambíguo rosto no deserto/desejo de cantá-la cantando-nos.

Bibliografia Final Alain BADIOU, São Paulo, São Paulo, Boitempo, 2009. Maurice BLANCHOT, A Conversa Infinita – a experiência limite, São Paulo, Escuta, 2007. Jorge COUTINHO, “Um São Paulo em chave gnóstico-saudosista: Teixeira de Pascoaes”, DIDASKALIA XXXVIII, 2008, pp. 113-127. António Cândido FRANCO, A Literatura de Teixeira de Pascoaes, Lisboa, INCM, 2000. Eduardo LOURENÇO, “Uma poiética da sombra”, Revista da Faculdade de Letras - Série de Filosofia (2ª Série), 2014, v. 21, n. 1, pp. 143-148. Teixeira de PASCOAES, Marânus, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990. Teixeira de PASCOAES, Obras Completas – poesia, IV Volume, Amadora, Livraria Bertrand, s/d. Teixeira de PASCOAES, O Homem Universal, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993. Teixeira de PASCOAES, O Pobre Tolo – prosa e poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000. Teixeira de PASCOAES, São Paulo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.

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