São Paulo nas territorialidades expositivas do Projeto Arte/Cidade

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SILACC 2010 – Simpósio Ibero Americano Cidade e Cultura: novas espacialidades e territorialidades urbanas Título: “São Paulo nas territorialidades expositivas do Projeto Arte/Cidade” Seção temática: ST01 - Espacialidades e Territórios Híbridos da(na) Contemporaneidade

Este texto discute significados e implicações das edições do Projeto Arte/Cidade em São Paulo enquanto uma experiência singular de aplicação de uma lógica expositiva a espaços urbanos. Ou seja, as exposições como transformações de dados segmentos da cidade — e, em certa medida, da imagem de São Paulo como um todo — em alvo de contemplação/experiência/participação trabalhadas e ocasionadas por operações artísticas/arquitetônicas/mediáticas. Interessa a este trabalho especificamente o tipo de territorialidade construída na estruturação do espaço expositivo, a qual está diretamente relacionada a certas expectativas quanto à constituição do público visitante e quanto à natureza da participação/fruição deste. Isso porque compreende-se aqui que uma dada “arquitetura expositiva” — ou seja, a escolha do que mostrar na cidade, como mostrar e do tipo de intervenção sobre esse elemento ou espaço exposto — produz determinados recortes, determinadas representações e determinadas apropriações do espaço, elaborando uma certa narrativa em relação aos locais de intervenção e à cidade como um todo. A questão é pensar as implicações de se recodificar espaços, memórias e processos urbanos numa estrutura expositiva no contexto contemporâneo mais amplo de espetacularização da cidade e da cultura. A partir de material já pesquisado, depoimentos e de análises de outros autores, este texto fará um balanço de aspectos expositivos dos quatro eventos Arte/Cidade em São Paulo, colocando questões julgadas pertinentes sobre as relações estabelecidas com a cidade.

Palavras-chave: 1. arte urbana; 2. eventos culturais; 3. paisagem urbana; 4. territorialidade.

São Paulo nas territorialidades expositivas do Projeto Arte/Cidade 1. Arte na cidade A presença da arte na cidade, como parte dos processos humanos de codificação do espaço, participa na constituição de territorialidades urbanas. Seja se utilizando de um espaço urbano como simples espaço de exposição ou seja uma intervenção contextual que comenta esse mesmo espaço, as operações de linguagem artística constituem um enunciado: tanto em seu “conteúdo” específico quanto em sua relação espacial e visual com a cidade (e às vezes à sua própria revelia), obras de arte tomam parte do jogo de léxicos urbanos da territorialidade. De fato, é desta maneira que se compõe uma territorialidade: um espaço permeado por sistemas de relações, as quais o constroem, produzindo cultura. Constituem-se mais como dimensões sociais, culturais, políticas: um espaço de relações, um espaço de encontros. Portanto, mais do que espaço-físico, trata-se de espaço-tempo, fruto de uma memória corporificada e uma potência de futuro: a territorialidade acontece sempre no presente, sempre na sua ação constitutiva. (MOASSAB e REBOUÇAS, 2005, p.5)

A construção e codificação do espaço urbano, contudo, não é uma obra coletiva harmoniosa, mas produto do choque entre práticas e territorialidades distintas relacionadas à divisão social, política e econômica da coletividade. Nessa codificação se traduz e se reproduz uma “partilha do mundo sensível” (RANCIÈRE, J., 2005) ligada a uma dada estrutura social de poder — partilha a todo o tempo reforçada e questionada. Michel de Certeau fala das práticas cotidianas de uso do espaço como uma manipulação semelhante à própria operação da linguagem no interior dessa estrutura: Pois essas práticas são igualmente manipulações, maneiras de utilização da língua, do sistema, perante as relações de força, utilizando-as para contornar o léxico existente, dos objetos, dos lugares de uma sociedade, dos lugares de uma cidade, etc.(CERTEAU, M., 1985, p.17)

Estabelecendo relações com os demais agentes e as muitas dimensões utilitárias e simbólicas da vida cotidiana desta, portanto, a arte necessariamente participa da produção do espaço, seja em favor dos processos, usos e valores dominantes, seja contra estes. A reflexão sobre a participação da arte na construção das territorialidades urbanas tem ganhado peso em tempos recentes sob diferentes ópticas, e ganha especial relevância em vista do processo de espetacularização e mercantilização do espaço urbano das

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grandes cidades que se tem visto desde o fim do século XX. Concomitante à transformação da cultura em mercadoria central do mundo contemporâneo e ao acirramento da segregação social e conflitos urbanos, é indispensável considerar tal processo ao se pensar como a cidade tem sido e pode ser vivenciada como artefato cultural — e ao se pensar no papel da arte na construção dessa vivência. Nesse contexto recente, a arte “na cidade” passou a ser usada com freqüência como construtora de uma estetização do urbano que, na esteira da construção de uma imagem vendável da cidade, a reivindica como espaço coeso e harmonioso — relegando os “dissonantes” à marginalidade simbólica. Ao mesmo tempo, houve e têm existido iniciativas artísticas que reconheceriam e enfatizariam a cidade como espaço “estruturado pelo conflito” (DEUTSCHE, R., 1996, pp.278). Tendo isso em vista esse embate, destaco aqui um tipo específico de ocorrência da “arte na cidade” que caracterizou os últimos anos do século XX: os grandes eventos de arte em espaços urbanos. Entre estes, destaco os eventos de arte site-specific que, capturando atenção do circuito artístico, da mídia e da intelectualidade, reúnem uma grande quantidade de artistas trabalhando com locações, espaços públicos e, por vezes, com a população, agrupados em torno de determinados eixos temáticos. Poderíamos citar, no grupo heterogênico desses grandes eventos, o Chambres d'amis em Gand (1986); o Skulpturenboulevard em Berlin (1987); o SkulpturProjekte em Münster (1987); certas edições da Documenta de Kassel (1987); os eventos inSite em Tijuana e San Diego (1994 - 2002); e as quatro edições do Projeto Arte/Cidade em São Paulo, as quais são o objeto deste ensaio. Minha questão aqui — e aquela com a qual pretendo abordar Arte/Cidade — é que o conjunto expositivo de grandes eventos teria um efeito distinto sobre os territórios que ocupa na cidade e sobre a percepção e uso que os expectadores/transeuntes/usuários têm sobre esses territórios. Exposições como InSite ou Arte/Cidade produziriam agenciamentos de uma ordem e escala distinta dos agenciamentos provocados pelas obras particulares que as integram (ainda que fatalmente imbricados a elas). Ao selecionar, tratar e circunscrever determinadas áreas a um certo eixo temático e a uma certa experiência de visitação, tais eventos estabeleceriam o que chamarei aqui de territorialidade expositiva. A respeito dessas “territorialidades”, creio ser razoável fazer a seguinte generalização: eventos e obras de arte em espaço urbano demarcam (ou tentariam demarcar) uma

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diferenciação1 na territorialidade anteriormente estabelecida em um espaço. Entre as muitas diferenciações possíveis, destaco três dimensões básicas: em primeiro lugar, o “enobrecimento” de um local pelo embelezamento ou mesmo pela simples presença da arte, uma vez que ela permanece signo social e intelectual de distinção (“aqui há uma obra de arte, portanto deve ser um lugar mais especial”). Em segundo lugar, há a crítica: a desestabilização dos usos e significados de um local, revelando quais as forças que o estruturam. E em terceiro lugar, cada vez mais comum nos dias de hoje, estaria o estabelecimento de um espaço de entretenimento. É importante considerar isso, em nossa época de investimentos turísticos para grandes públicos internacionais e de redução da cultura, da arte e da cidade à dimensão de experiências consumíveis e imagens propagandeáveis: cada vez mais os conhecimentos das artes plásticas, da arquitetura e do design se combinam na codificação de espaços para formar uma espécie sofisticada de “parque de diversões”, numa tendência para exposições tecnológicas e culturais que, se não são características exclusivas do contexto contemporâneo, nele partilham de uma nova configuração que coaduna informação, cultura e entretenimento, tendo como veículo a experiência sensória do espaço que abrange — e coopta — visão-paladar-olfato-tato e imaginário. (SPERLING, D., e SARDINHA, R., 2007, p.426)

É a partir dessa perspectiva que farei a seguir um balanço sobre as diferentes territorialidades expositivas sobrepostas a locais de São Paulo pelo Projeto Arte/Cidade.

2. O Projeto Arte/Cidade Mais amplo e ambicioso projeto de intervenção artística em espaço urbano realizado até agora no Brasil, o Projeto Arte/Cidade nasceu em 1993 como uma inovadora iniciativa institucional na Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, e depois passou a ser gerido por uma associação (o “Grupo de Intervenção Urbana”). Idealizado e coordenado desde o início pelo filósofo e curador Nelson Brissac Peixoto, o projeto envolveu muitos e diferentes profissionais e colaboradores em sua conceituação e realização, se desenvolvendo sob o signo da hibridização de meios, linguagens e disciplinas. O Projeto surgiu num momento em que a cidade adquirira grande projeção como assunto em várias áreas de conhecimento. Havia então a confluência, por um lado, do 1

Uso um termo tão vago por que “diferenciado” pode comportar abordagens tão diferentes quanto a “contemplativa”, “participativa”, “crítica” ou “estetizante”, todas estas tendo em comum o fato de retirar seu espaço da condição de simples instrumento ou “paisagem de fundo” para torná-lo objeto fruto de atenção, fruição e /ou reflexão.

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panorama de discussões "pós-modernas" sobre interdisciplinaridade, cultura e cidade e, por outro, do conjunto crescente de iniciativas articulando o Estado e o setor privado em torno da recuperação de patrimônio urbano como estratégia financeira e turística em meio à globalização. Numa perspectiva internacional, Arte/Cidade poderia ser encarado como a primeira manifestação brasileira do boom mundial de eventos artísticos site-specific em espaços não-institucionais ou públicos que se iniciara nos meados dos anos 80. O Projeto ocasionou quatro eventos em São Paulo: Cidade sem Janelas (1994), a Cidade e seus Fluxos (1994), A Cidade com suas Histórias (1997); e Arte/Cidade Zona Leste (2002)2.

Com dimensões progressivas e temas distintos, seus sucessivos

eventos possuíram em comum a estratégia de ocupar e elaborar locais em desuso e/ou em processo de reconfiguração com intervenções temporárias de artistas e profissionais das mais diferentes linguagens. O desenrolar das quatro sucessivas edições, contudo, atestam uma evolução marcada pela progressiva imbricação com discussões ligadas à área de planejamento e urbanismo, e por um desenvolvimento do discurso sobre o urbano. Em suas primeiras edições (1994), o projeto surgiu como iniciativa artística, compreendendo a metrópole e a experiência de seu espaço como campo catalisador onde se misturavam e dialogavam artes e linguagens. Já seu último evento em São Paulo, Arte/Cidade Zona Leste (2002), apresentava um óptica mais política e acabou se valendo dos campos de hibridização experimental da arte como forma de discussão e proposição de perspectivas diferentes de intervenção na cidade3. Arte/Cidade, assim, foi em suas quatro edições um evento tanto na cidade quanto sobre a cidade. A seleção e preparo de lugares para cada exposição lidou com o fato de que a própria cidade — real e “ideal” — seria também um objeto de exposição. Com isso em vista, este texto vai se dedicar especificamente a um balanço do que chamarei de “arquitetura expositiva” dos eventos: como o conjunto expositivo final de cada edição de Arte/Cidade circunscreveu, organizou e ocupou determinados espaços da cidade visando uma certa coerência temática e uma certa experiência de fruição por parte dos visitantes. O principal objeto aqui será a organização do espaço 2

Arte/Cidade permanece em andamento hoje, mas desvinculou-se de São Paulo e de questões de percepção e intervenção na megalópole contemporânea. Se dedica agora à reflexão sobre relações e gestão de grandes territórios em circuitos de circulação de recursos industriais entre regiões mineradoras do Estado de Minas Gerais e Espírito Santo. Para informações, consultar http://www.pucsp.br/artecidade/mg_es/index.htm 3 Embora eu não me alongue aqui a respeito da transformação do projeto — assunto abordado mais detalhadamente em SOUZA, 2006 — friso que a trajetória de Arte/Cidade está imbricada à situação cultural e política do Brasil na década de noventa (e a uma série de episódios a ela relacionados), bem como ao panorama de discussões sobre a cidade e cultura de então.

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expositivo e como este regrou a relação entre espectadores e a cidade. Terei, por isso, de passar ao largo da heterogeneidade de abordagens presentes nas intervenções dos artistas e no discurso curatorial, as quais só serão citadas como parte integrante da vivência e do enunciado sobre a cidade ocasionado pelas exposições.4 A seguir discutirei cada um dos quatro eventos em seqüência, apresentando em linhas gerais as relações expositivas estabelecida com a cidade. Para isso, me baseei em material documental reunido em pesquisa anterior (depoimentos dos envolvidos, reportagens e críticas da imprensa), em publicações de divulgação do próprio Arte/Cidade e em trabalhos acadêmicos sobre ele.

2.1. Cidade sem janelas (1994) A primeira exposição de Arte/Cidade, Cidade sem janelas, ocupou temporariamente o antigo Matadouro Central do bairro Vila Mariana, um edifício industrial desativado. Sem alterar a configuração arquitetônica do local e sem reformá-lo, o evento transformou o local apenas com as obras de artistas e com condições mínimas para acesso (iluminação e etc.), e o abriu à visitação. Do ponto de vista da ocupação, portanto, o traço distintivo do evento estaria em trabalhar com sua locação em estado de ruína. Desprovido de sua função, o espaço racionalizado do matadouro tornava-se labiríntico para o visitante; um local estranho a ser percorrido e ao longo do qual uma série de obras, inserções, ambientações e experiências o aguardavam, ressaltando a materialidade, opacidade e a estagnação do local, e fazendo referências aos aspectos de decadência e fragmentação da cidade contemporânea. Várias obras dos artistas haviam trabalhado e interferido diretamente nas superfícies materiais do local. A despeito da heterogeneidade e assimetria do conjunto de obras de todos os tipos — pictóricas, escultóricas, ambientais, fotográficas, tipográficas e audiovisuais — estas teriam contribuído para construir uma expressiva experiência ambiental geral com os sentidos e o imaginário. O fator maior de unificação seria o próprio sítio ocupado, material comum das obras. O crítico Marcelo Coelho — que definiu a exposição como um “espaço de pesadelo” — colocaria que

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Tal abordagem tem o prejuízo de conferir ao objeto analisado uma feição mais coesa do que a que ele provavelmente teve, deixando de abordar embates e contradições internas que concorreram para produzilo. De fato, em SOUZA, 2006 e ROIFFE, 2006, pode-se ver que os projetos de cada exposição sofreram várias mudanças em seus conceitos iniciais, de acordo com debates, com mudanças de repertório teórico e, em especial, com as muitas necessidades pragmáticas surgidas no processo de realização da exposição. Há, enfim, uma série de dados relevantes que não serão abordados devido ao escopo reduzido do texto: o processo de evolução e concretização dos eventos, a evolução discursiva do evento na mídia e as proposições individuais de obras artísticas.

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(...) de certa forma, cada um deles [artistas] contribuiu para a criação de uma obra de arte coletiva. A intenção de cada autor retrai-se um pouco, ocupada pela experiência geral que absorve o visitante, a de entrar num matadouro abandonado" (COELHO, M., 23/03/94).

Figuras 1 e 2: Instalação de Marco Giannotti, e Carmela Gross para Cidade sem Janelas. Fotos de Nelson Kon. Fonte: SECSP, 1994

Cabe perguntar sobre o caráter da territorialidade expositiva estabelecida aqui sobre a cidade. Obviamente, apenas muito genericamente uma edificação como o Matadouro poderia ser chamada de “espaço urbano”. Designá-lo como “cidade” faz mais sentido se tivermos em vista que aqui “cidade” seria definida em oposição a “galeria”. A questão de Cidade sem Janelas era artística: a exploração de um sítio como forma de ocasionar uma interação multidisciplinar. A “cidade” codificada no primeiro evento seria então, por um lado, uma referência metafórica e simbólica a uma cidade imaginária, algo genérica; e, por outro, esse espaço “fora dos museus”. Pode-se considerar que, antes mesmo de se adentrar o local, haveria uma pequena vivência de “cidade” ocasionada pela iniciativa: o deslocamento do público consumidor de cultura até um espaço estranho, degradado e fora do circuito urbano de elite, bem diferente dos “espaços tranqüilizadores” (FARIAS, 1994) do circuito de museus e galerias aos quais tal público estaria acostumado e aos quais o Projeto queria se contrapor como iniciativa inovadora. Nesse primeiro momento, portanto, a ação de Arte/Cidade estabelece a “cidade” real — mais especificamente, os lugares “sujos” e “esquecidos” da cidade — como um reservatório potencial para a produção de experiências estéticas. Contudo, embora fosse um território físico e simbólico mais “selvagem” que o dos museus, tratava-se obviamente de uma cidade “domesticada”: um espaço seccionado

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e recodificado num ambiente estético, onde ainda, de certa forma, valiam as “regras” comportamentais do consumo de arte. Desse ponto de vista, Cidade sem janelas se assemelharia pioneiramente ao que anos depois se tornaria uma tendência em espaços culturais: um conjunto expositivo fechado montado para ocasionar experiências sensoriais e simbólicas.

2.2. A Cidade e seus Fluxos (1994) Se no primeiro Arte/Cidade a "cidade" era quase uma instância metafórica, no segundo ela se tornou presença incontornável. A Cidade e seus Fluxos não lidava mais com um claustro apartado da vida urbana, mas com os fluxos, espaços e edificações do Vale do Anhangabaú, no centro histórico e simbólico de São Paulo. Ao contrário da unidade de ambientação e experiência de Cidade sem Janelas, os visitantes da mostra iriam encontrar uma situação verdadeiramente urbana e dispersiva, seja pelo ruído visual e complexidade da paisagem ampla, seja pela organização espacial da mostra, que abraçou a dispersão e se organizou como uma série de pontos e ambientes espalhados. As obras foram feitas em alguns pontos no espaço público do Vale do Anhangabaú e em três imóveis (nenhum deles abandonado como o Matadouro, mas todos deteriorados e em transição de uso): o edifício Guanabara, o edifício da Eletropaulo (hoje Shopping Light) e a antiga sede do Banco do Brasil (hoje o Centro Cultural Banco do Brasil). Diferente do Matadouro, transformado num ambiente único multifacetado, os três edifícios permaneceriam em uso e teriam apenas seus últimos andares ocupados por trabalhos artísticos, reforçando a fragmentação da mostra. Na ocupação, havia obras que constituíam ambientações; obras que dialogavam com a arquitetura; obras que estavam simplesmente locadas, sem relação mais específica aos locais; e obras que procuravam capturar o olhar e interagir com os fluxos no espaço público. Uma característica que marcou a exposição e boa parte das obras foi o recurso à interação e à aparatos. Várias obras, tanto internas quanto no espaço público, interagiam com o público mais ou menos diretamente (Detetor de ausências, Pesa o quanto vale, Periscópio), e o jogo, e a mídia e o gadjet, deram o tom de boa parte do evento; incluindo as então novíssimas mídias digitais hipermediáticas5.

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A Cidade e seus Fluxos teve o primeiro CD-ROM artístico do Brasil, com obras exclusivas feitas por participantes do evento. É necessário lembrar que em 1994 obras computadorizadas, CD-ROMs e quaisquer artigos multimídia eram grande novidade no país: a popularização do computador ainda estava em seu início, e internet era algo de que poucos haviam ouvido falar. Demoraria anos ainda para que a presença de terminais interativos em exposições se tornasse praxe.

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Figura 3: Periscópio de Guto Lacaz no edifício da Eletrobrás, em A Cidade e seus Fluxos. Fonte: Revista Veja, 1994. Figura 4: Detetor de Ausências de Rubens Mano, em A Cidade e seus Fluxos. Foto de Rubens Mano. Fonte: SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA DE SÃO PAULO, 1994-B.

O espraiamento das obras e a distância dos edifícios obrigava o visitante a uma considerável perambulação pela área, tanto na vasta abertura do vale quanto nas ruas estreitas adjacentes6, trazendo à visita uma certa dimensão de “deriva urbana”. Assim, nos interstícios do evento por entre a procura e fruição das obras, se articulava para o espectador uma certa vivência da cidade “externa”: ao invés de circunscrever um espaço urbano, haveria aqui uma sobreposição da territorialidade expositiva à territorialidade urbana cotidiana que fazia desta última um objeto de contemplação e fruição. Essa contemplação estaria, pelo menos nos esforços do evento, direcionada ao tema da exposição: rapidez, fragmentação, anonimato e inapreensibilidade. Há que se considerar, então, que num momento em que iniciativas de “revitalização” estavam em processo, mas em que o centro ainda estava longe de ser o atual pólo cultural, Arte/Cidade trazia a ele um visitante de elite que não o freqüentava. Este, que agora o visitaria já predisposto a um “olhar estético”, encontraria uma sucessão de obras e algumas experiências participativas — mas, mais importante, encontraria uma pequena vivência estética da cidade real.

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É importante o fato de que se tratava de uma área de pedestres; a transformação de ruas em calçadões e o extremo congestionamento do centro não deixaram a opção de, por exemplo, andar de carro entre cada um dos edifícios.

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Ao se colocar num espaço público e cotidianamente movimentado, contudo, A Cidade e seus Fluxos não estabelecia relação apenas com o público visitante já prédirecionado à fruição estética, mas com os muitos milhares de transeuntes de todas as classes que cruzavam o espaço. É difícil mensurar qual a percepção desse público tão variado; mas algumas poucas obras em espaço público (em especial o Periscópio de Guto Lacaz) tinham em vista interagir e capturar as atenções de um público mais amplo, trazendo um tipo de interação inexistente àquele espaço tão utilitário. A arquitetura expositiva dispersa do evento, portanto, acabara por sobrepor à cidade uma territorialidade “estética”, ocasionando outras percepções do local. A força que tal experiência teve para alguns está indicada na fala da filósofa Olgária Matos: [...] Diante de um espaço desencantado, Arte/Cidade criou um outro iluminado e revelado, convertendo o arbitrário em necessário, passando do lugar pleno de significação a seu grau zero, de um não sentido a significações inéditas. Este acontecimento nos presenteou com a arte, o pensamento, a cidade.[...] O evento reencantou a cidade depois de um longo período de despoetização.(MATOS, in SECSP, 1994-B)

2.3. A Cidade e suas Histórias (1997) Após a abertura para a cidade de A Cidade e seus Fluxos, o evento seguinte do Projeto Arte/Cidade retornaria de certa forma a temas e espaços mais próximos da primeira exposição — a ocupação de espaços isolados ligados a uma obsolescência industrial — mas agora com questões e escalas bem diferentes. A Cidade e suas Histórias se organizou como um passeio de trem ao longo de um trecho de cinco quilômetros da estrada de ferro metropolitana de São Paulo, entre os bairros da Água Branca e da Barra Funda, passando ao longo de antigas áreas industriais. Ao longo desse trecho, três locais foram mobilizados pelo evento: a Estação da Luz, o edifício e terreno do Moinho Central e a área do antigo Complexo Industrial Água Branca das Indústrias Reunidas Matarazzo. O Moinho Central (bairro do Bom Retiro) era um imóvel abandonado, ilhado entre duas linhas de trem. Apartado espacialmente e socialmente da cidade, estava em avançado estado de depredação e era antes ocupado por alguns sem-tetos e usuários de drogas — cuja retirada foi negociada por Arte/Cidade7. A área das Indústrias Matarazzo (na Barra Funda), por sua vez, era também uma grande ruína industrial, mas não estava tão depredada e

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Os detalhes do episódio de negociação e saída temporária dos ocupantes do Moinho ainda são obscuros, mas o fato é referido por várias pessoas. Ver o depoimento de Marta Bogéa em SOUZA, 2006, p.151.

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marginalizada quanto o Moinho: uma eventual reconexão da área com a cidade era simples, e o local estava previsto para investimentos e transformações futuros. Já a Estação da Luz, em pleno funcionamento, era um espaço cotidiano e movimentado, também sendo um patrimônio público, símbolo da modernização paulistana do início do Século XX. A estrutura expositiva montada para a visitação das ruínas foi gigantesca e inédita para Arte/Cidade até então. Incluiu, em primeiro lugar, um amplo e delicado projeto de adequação arquitetônica, mais a adaptação e reforma de ramais ferroviários e de vagões de trens. Em segundo, incluiu um trem especial adaptado só para o evento, o Kinotrem. Este, "inspirado" em experiências da vanguarda russa, era o principal elo de ligação do evento como um todo: era ao mesmo tempo transporte, parte de um circuito mediático (o Circuito Kinotrem) e peça de comunicação visual (com um tratamento gráfico externo baseado no suprematismo modernista). Em terceiro lugar, havia as chamada Intervenção em Escala Urbana: um conjunto de grandes intervenções cromáticas sobre passarelas, torres de escada e parte de viadutos no percurso da mostra, que visavam demarcar a presença do evento na cidade.

Figura 5: Passarela do Projeto de Adequação Arquitetônica no interior do Moinho Central em A Cidade e suas Histórias, São Paulo, 1997. Foto de Nelson Kon. Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/97. Figura 6: Moinho Central com Intervenção em Escala Urbana (torre) e o Kinotrem à frente, em A Cidade e suas Histórias, São Paulo, 1997. Foto de Nelson Kon. Fonte: GRUPO DE INTERVENÇÃO URBANA, 1997.

Do ponto de vista da visitação, novamente se teria o deslocamento de um público consumidor de cultura (ainda que talvez até mais variado que os eventos anteriores) para uma área — o bairro da Luz — que, embora já estivesse em processo de revitalização, era decididamente popular. Contando com apenas uma intervenção pontual, a Estação da Luz praticamente não foi alterada pelo evento; aos olhos do visitante da mostra, a Estação serviria como a “entrada principal” em meio à cidade 10

cotidiana para a cidade “morta” exumada pela exposição. A partir da Luz, os visitantes pegariam o trem especial do evento e seriam levados, numa velocidade mais lenta que a normal dos trens daquela linha, até o Moinho, e depois às indústrias Matarazzo (esta possuía acesso próprio, também servindo de entrada ao evento e ao trem). Em cada parada, os visitantes desceriam e percorreriam os locais, tomando contato com os espaços, os vestígios de usos anteriores presentes neles e as intervenções artísticas. De maneira resumida, as diferentes intervenções de A Cidade e suas Histórias — sejam de artistas, sejam da estrutura expositiva — poderiam ser separadas três grandes grupos de abordagens dos sítios: o “vivencial”, que enfatizava a experiência sensorial fenomenológica dos locais e seu estado de ruína; o “histórico-simbólico”, que enfocava as memórias, significados e usos anteriores dos lugares; e o “territorial”, que aludia a aspectos e conexões em escalas que não poderiam ser apreendidas pela experiência corporal (SOUZA, 2006, p.149). É necessário frisar que, diferente de Cidade sem Janelas, a escala das ruínas e seus terrenos agora era tal que, mesmo com muitos artistas a mais8, as intervenções muitas vezes se tornaram “comentários” soltos nos espaços. Durante a visitação, portanto, haveria trechos praticamente sem obras, ou nos quais as obras estariam pouco perceptíveis, de maneira que as edificações e áreas abertas acabariam se sobrepondo à arte como objeto principal de fruição. Assim, é possível dizer que a experiência de visitação da ruína teria sido a tônica da exposição, sobrepondo-se ao resto. Em A Cidade e suas Histórias, a exposição adquiriu pela primeira vez feições de excursão controlada — até por questões práticas. Por um lado, havia o acesso pelo circuito ferroviário e o Kinotrem, o que regrava o evento do ponto de vista dos horários e dos acessos. Por outro, havia o projeto de adequação arquitetônica: diferente da circulação mais livre entre os espaços dos Arte/Cidade anteriores, havia a necessidade de maiores adaptações para o acesso seguro das ruínas. A adequação — que incluía passarelas, plataformas, caminhos, instalações sanitárias — definiu os acessos, circulações e serviços da exposição, determinando os tipos e níveis de interação do público com os variados ambientes dos sítios e assegurando a segurança dos visitantes, fosse por pequenas alterações (como retirar telhas e vigas que ameaçavam cair), fosse pela limitação do acesso a locais inseguros. Essa organização acarretou que em muitos pontos o espaço de circulação do público estivesse circunscrito a caminhos pré-determinados, passarelas construídas para o evento.

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A exposição contou com trinta e três “interventores”, o maior número de todos os Arte/Cidade.

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Embora tenha sido condição necessária para o acesso a certos lugares, essa limitação traria talvez uma relação mais distanciada. Ao mesmo tempo, os demais elementos da “arquitetura” do evento adquiriram escala e visibilidade tais que passava a rivalizar com a das obras particulares na percepção dos visitantes, algo que não havia ocorrido ainda nos Arte/Cidade. Mais importante ainda: é justamente essa estrutura que demarcava a presença da exposição para os territórios contíguos aos sítios: as Intervenções em Escala Urbana e o Kinotrem, como marcos visuais em meio à cidade, “conectavam” os diferentes sítios, mas ao mesmo tempo ganhavam uma função publicitária de “identidade visual”9. Afora isso, havia ainda o Circuito Kinotrem: além de trazer vídeos para dentro dos trens, ainda propunha uma “reconexão” mediática e televisiva entre os visitantes dentro dos sítios e moradores e transeuntes dos bairros adjacentes às áreas10. Em A Cidade e suas Histórias o evento em si, separado das obras, se “declarava” na cidade muito mais força que nas edições anteriores. Tudo isso considerado, cabe nos questionar sobre a “territorialidade expositiva” estabelecida por A Cidade e suas Histórias. A esta altura, Arte/Cidade não era mais “novidade”: o tipo de experiência expositiva proposta começava a se cristalizar como um modus operandi reconhecível. Junto a isso, há a estrutura de “excursão” configurada pela visitação, e a ênfase mais publicitária do evento: o elo principal de conexão entre as áreas, o Kinotrem, constituiu-se um “trem multimídia” cuja caracterização visual e funcional é uma citação da história da arte, reforçando a demarcação do evento como campo de cultura (diga-se de passagem, uma cultura já com “logomarca”). É lícito perguntar se tais características não inclinariam a exposição perigosamente na direção de uma espécie de “parque temático” intelectualizado de estetização de ruínas, a despeito até das intenções declaradas por seus organizadores11.

O kinotrem, primeiro entre os projetos especiais do evento, foi o próprio símbolo do evento na imprensa durante a vigência da exposição, no final de 1997. As reportagens sobre A Cidade e suas Histórias da Folha de São Paulo, por exemplo, trariam estampada uma representação icônica do kinotrem como "logomarca" da exposição. 10 Dirigido por Lucas Banbozzi, Lili Caffé e Fabiano Gullane, o Circuito Kinotrem se dividia em: Percurso, sistema que dentro dos vagões do trem que trazia informações acerca das atividades desenvolvidas no evento, incluindo vídeos das áreas feitos pelos próprios visitantes (haveria um sistema de empréstimos de câmeras de vídeo para visitantes interessados); a Malha/Rede, rede local presente nas Indústrias Matarazzo que mostrava imagens e cenas de arquivo ligado ao universo histórico do trem e da cidade, assim como registros dos bairros adjacentes à área de intervenção; e a Unidade Móvel ("Kinokombi"), que se deslocava nos espaços em torno de Arte/Cidade, gravando e transmitindo imagens e participações de habitantes dos bairros próximos, como uma comunicação entre o exterior e o interior das áreas (PEIXOTO, 2002, pp.151-51). 11 Em depoimentos anteriores ao evento, o coordenador Nelson Brissac colocava que não queriam fazer de modo algum uma “Disneylândia de sucata” (apud CARVALHO, 29/10/1995). 9

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Seria, é claro, um “parque” que propunha-se a levantar questões e olhares sobre os locais ocupados — algo consideravelmente crítico. Arte/Cidade, como colocara Gisele Beiguelman, integrante do grupo organizador, não “arruma, enfeita e nem fantasia” seus locais (BEIGUELMANN, 1997, p.93-94), mas trabalha com estes em sua situação tensa de transição, de suspensão. Ainda assim, ao se olhar a iniciativa a partir dos atuais tempos de Big Brother, é difícil não se questionar o quanto a atividade expositiva em si não compreende certa fetichização do real. Principalmente quando, em seu recorte e abordagem, território criado pelo evento não problematizava sua própria presença como agente urbano num campo de disputas. A decadência dos locais era elaborada de maneira um tanto naturalizante e genérica, como exemplo dos grandes e impiedosos processos de transformação da cidade, e não como produtos de forças e agentes que ainda estavam presentes e atuantes.12 A “territorialidade expositiva” aqui colocada, no fim, ainda acaba por ser a de espaços “selvagens” separados para uma experiência de apreciação estética. Experiência esta que, no caso específico das intervenções que figuraram os significados de marginalidade e violência do Moinho, torna-se irônica: visitantes majoritariamente da elite social que podiam ver em primeira mão vestígios de marginalidade porque a presença real dessa mesma marginalidade já fora momentaneamente extirpada pelo próprio evento.

2.4. Arte/Cidade Zona Leste (2002) Diferentemente dos eixos temáticos mais generalizantes do primeiros três eventos, a última edição de Arte/Cidade em São Paulo tomava como tema uma região da cidade: a zona leste. O recorte que Arte/Cidade fez da zona, uma região imensa da cidade de São Paulo, incluía áreas dos bairros do Brás, Pari, Mooca e Belenzinho: bairros antigos e populares, com a presença de imóveis industriais degradados, espaços urbanos fragmentados por obras de infra-estrutura viária e uma grande população de camelôs, ambulantes, moradores de rua, favelados e ocupantes de edifícios abandonados. Em meio a esses bairros, Arte/Cidade Zona Leste partia justamente das questões e processos urbanos da região para selecionar as áreas de intervenção específica.

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A história posterior das áreas ilustra esse jogo de forças: o Moinho tornou-se uma imensa favela, e até hoje é objeto de disputa e discussão. O terreno Matarazzo, por sua vez, deu lugar a um conjunto de prédios empresariais, e sua Casa das Caldeiras foi transformada num “salão de eventos” de caráter conservador.

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Na mostra resultante dessa seleção, pode-se distinguir três tipos distintos de “arquitetura expositiva” empregada pelo evento. O primeiro deles concentrou-se na ocupação da antiga Torre Leste das Indústrias Santista, propriedade do então recentíssimo SESC Belenzinho, e que formaria a principal sede do evento. A ocupação do espaço guardava aqui semelhanças com a experiência de visitação desenvolvida na edição anterior de Arte/Cidade: a perambulação e exploração de um grande edifício industrial abandonado. As intervenções, contudo, não se concentravam no aspecto de ruína: a maioria dos trabalhos agora reconfiguravam e discutiam mais a estrutura espacial e arquitetônica do edifício, ou tomavam a cidade “lá fora” como assunto de representações simbólicas. Ainda assim, do ponto de vista da estruturação territorial desse espaço, tinha-se aqui novamente a configuração de um espaço “artístico”, o recorte e recodificação temporária de um espaço fechado como objeto e território de apreciação estética13. A segunda forma de exposição, no Pátio do Pari, era um espaço expositivo comum no qual se viam protótipos e propostas de intervenção não realizadas ou parcialmente realizadas. Uma exposição tradicional, menos do que sobre o evento — mas que veiculava algumas das discussões sobre a cidade, a informalidade, e os processos políticos e econômicos que disputariam as áreas do centro às quais o projeto se debruçava. A terceira forma expositiva do evento era a de intervenções pontuais espalhadas em pontos diversos da região. Tal como em A Cidade e seu Fluxos, era uma configuração dispersiva, que obrigava os visitantes a irem em busca das obras em meio à cidade cotidiana. Essa condição, porém, foi radicalizada em Arte/Cidade Zona leste: tratavase agora de uma escala de território que, diferente do Vale do Anhangabaú, teria dificuldade em ser visitada a pé de uma única vez. A região tampouco possuía os traços de monumentalidade visual do Anhangabaú, nem a beleza do espaço e dos imóveis do centro; não possuía, tampouco, a “beleza de ruína” e dos sítios da terceira edição. Os sítios escolhidos na Zona Leste compreendiam espaços desestruturados, fragmentados e, mais importante ainda, espaços populares de ocupação informal e/ou marginal, ou seja: estavam cheios de uma população completamente distinta dos habituais consumidores de eventos culturais. Em comparação aos Arte/Cidade anteriores, tratava-se portanto de uma situação mais “inóspita” infra-estruturalmente, esteticamente e socialmente para visitantes “de fora”.

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Segundo Peixoto em entrevista para SOUZA, 2006, p.239, o isolamento de acesso do edifício como um “museu” teria ocorrido por imposição do SESC, que vetou a abertura completa do local à cidade como seria pretendido pelo evento.

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As intervenções no espaço urbano que visitantes e transeuntes encontrariam variavam muito em sua abordagem: algumas faziam experimentos escultóricos (José Resende, Ângelo Venosa); outras apontavam “desastres” urbanos, como grandes construções de infra-estrutura que fragmentaram o espaço à sua volta (Antoni Muntadas, Carlos Vergara); algumas trabalhavam com reconfigurações de uso de espaços públicos (Schi 2.0 e Urban Fabric); e outras trabalhavam justamente com os agentes de ocupação informal do espaço: camelôs, sem-teto e catadores de lixo. Em contraste a A Cidade e suas Histórias, a parcela de Arte/Cidade Zona Leste presente no espaço urbano constituiu provavelmente uma das parcelas mais “invisíveis” das edições do Projeto. Certas intervenções estavam tão misturadas a seus lugares e usos que só seriam notadas como “obras” pelos visitantes à procura delas. O evento contava, entretanto, com mapas e monitores: exigências de seu principal parceiro e realizador, o SESC14, ambos seriam elementos advindos da lógica dos espaços culturais tradicionais — lógica da qual, aparentemente, o Arte/Cidade estaria tentando distanciar-se mais. Mesmo com a conotação relativamente “estetizante” de uma visitação guiada, não havia para o visitante hipotético uma experiência de redescoberta estética da cidade análoga ao segundo Arte/Cidade, mas sim o contato frontal com configurações e a agentes atuais desse espaço. Esse contato, obviamente, ainda seria mediado pelo evento: por ser ele a ocasionar a visitação, por serem as intervenções a demarcar pontos privilegiados ao olhar; por ser seu discurso a articular a leitura e apontar as questões e conexões existentes nas áreas. Esse fato é interessante se consideramos que o evento preparou ainda um pequeno “engodo” para a experiência de visitação: o mapa do evento exigido pelo SESC para as obras em espaço urbano fora feito a partir de um mapa do início do século XX, com configurações de ruas já inexistentes. Isso levou alguns visitantes a literalmente se perderem na zona leste. Assim, nem mesmo uma peça da estrutura expositiva do evento — normalmente um “background” que visa a eficiência da fruição — seria exatamente “segura”. Quando junto das áreas ocupação informal, a presença de monitores da exposição acarretava

uma

sobreposição

da

territorialidade

“expositiva”

do

evento

à

territorialidade daqueles que eram usuários dos locais. Essa sobreposição ocasionou

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Segundo SOUZA, 2006, p.239-240, referências ao conservadorismo do SESC e conflitos com este em Arte/Cidade Zona Leste foram feitas nos depoimentos de Brissac, de Renata Motta, Paula Santoro e Elísio Yamada, dos artistas Nelson Félix e Regina Silveira e da assistente de curadoria Andréia Moassab.

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situações tensas e constrangedoras — como as visitas guiadas pelo equipamento coletivo para sem-teto de Vito Acconci e Ary Pérez15. Mas ocasionou outras relações. O grupo de design Holandês Atelier Van Lieshout fez de sua intervenção uma parte da “estrutura expositiva” do evento, construindo “infoboxes” em algumas das áreas. Estes, por sua vez, serviriam de apoio tanto aos monitores do SESC quanto aos trabalhadores e comerciantes informais dos locais, numa justaposição dos usos.16

Figura 7: Infobox do Atelier Van Lieshout no Largo da Concórdia, Arte/Cidade Zona Leste, 2002. Fonte: Arquivo Arte/Cidade. Figura 8: Equipamento para moradores de rua, Vito Acconci e Ary Perez. Viaduto do Largo Glicério, São Paulo, Arte/Cidade Zona Leste, 2002. Fonte: arquivo Arte/Cidade.

Pode-se concluir que a configuração e o tipo de intervenção preconizados por Arte/Cidade Zona Leste fizeram dele o mas diverso de todos os Arte/Cidade em termos de territorialidades. Se de um lado mantém-se uma “territorialidade expositiva” de fruição do espaço da Torre Leste, há situações de intervenção que pela primeira vez lidam com territorialidades distintas desse campo estético — dotações de sentido ao espaço que não advém da dualidade entre expor/experimentar, mas em práticas de apropriação cotidiana do espaço. Resta ainda questionar-se sobre a justaposição dessas lógicas de uso do espaço às lógica expositiva da visitação ocasionada pelo próprio evento. Diante de situações como visitas-guiadas de curadores estrangeiros17 e reportagens filmadas no equipamento dos sem-teto, deve-se refletir sobre as reinscrições de algumas

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Relatos sobre impressões e tensões resultantes podem ser vistas em CARDIM, 2003, e no depoimento de Andréia Moassab em SOUZA, 2006, p. 279. Esse equipamento é creditado como uma intervenção de Vito Acconci, mas trata-se de uma adaptação projetada pelo engenheiro e coordenador do evento Ary Pérez com base na idéia inicial do artista. O próprio Acconci teria rejeitado a autoria da obra (ROIFFE, 2006). 16 De maneia correlata à essa justaposição, a arquitetura dos infoboxes fazia uma fusão entre uma formas padronizadas e as técnicas de autoconstrução informais mais comuns dos pontos em que se localizavam. 17 Depoimento de Andréia Moassab em SOUZA, 2006, p. 279.

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intervenções e do evento, na percepção de seus visitantes, em ordens préconhecidas: a ordem do experimentalismo “vanguardista” (no qual “tudo vale” mas nada é realmente importante); a ordem da “etnografia” social, da visita pitoresca à pobreza; e mesmo a ordem do assistencialismo. Ainda assim, essa reinscrição não se deu pacificamente no evento: a sobreposição da lógica expositiva sobre a apropriação informal parece não se resolver facilmente. Esse “desencaixe” talvez possa ser atestado justamente pelo tom freqüente de mal estar das críticas de visitantes ao evento que, compreensivelmente, acusavam alguns projetos de espetacularizar a miséria.

3. Considerações finais Na perspectiva das discussões apresentadas no início deste texto, podemos considerar a experiência desenvolvida pelas edições paulistanas de Arte/Cidade um caso complexo e ambíguo, que se estrutura e se viabiliza em meio ao contexto de espetacularização da cidade e da cultura, mas não abdica de constituir reflexões e levantar outras ópticas para a cidade. Ele não chega a se configurar como reformatação ou “enobrecimento” de espaços — até por sua natureza efêmera — mas, antes de seu último evento, não considera o embate político da cidade como seu assunto. Os eventos descritos têm em comum o tema da invisibilidade: apesar da grande diferença entre as situações, em todas os eventos trazem à vista locais e aspectos tornados relativamente “invisíveis”, seja pelo isolamento (na primeira e terceira edições), seja pela exposição excessiva em meio ao cotidiano (segunda edição), seja pela complexidade e periferização social (quarta edição).

Contudo, enquanto as

abordagens expositivas dadas às grandes escalas de A Cidade e seus Fluxos e A Cidade e suas Histórias vão enfocar a incomensurabilidade do espaço metropolitano e a impossibilidade de apreensão coesa deste, Arte/Cidade Zona Leste já procura chamar atenção dos processos e reformas urbanas que moldavam suas áreas. Nesse meio, podemos destacar três configurações gerais de territorialidade do evento, diretamente relacionadas às características dos sítios: o recorte de um espaço e constituição de um ambiente de experiências neste (Matadouro, indústrias Matarazzo, Moinho e Torre Leste do Belenzinho; a sobreposição da lógica expositiva a um espaço urbano cotidiano em funcionamento (Anhangabaú e algumas obras na Zona Leste); e o agenciamento de situações e processos em conjunto com populações e usuários. Embora não tenhamos descrito a história de desenvolvimento de Arte/Cidade, creio que as descrições dos eventos aqui feitas e as diferenças implícitas nessas diferentes

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formas de apropriação dos territórios urbanos dão boa idéia das mudanças de abordagem ocorridas no interior do Projeto. Há, nos três primeiros Arte/Cidade, uma certa dimensão de publicização da cidade. No caso do Matadouro, do Moinho e das indústrias Matarazzo, tratam-se de espaços privados (abandonados ou não) que, ao serem assim “acionados” pelo evento, momentaneamente se tornam parte da “cidade”. Essa “publicização” de que falo aqui, porém, teve um sentido estrito, fora de uma noção de esfera pública política (com que a qual autores como R. Deutsche trabalham). Esses fragmentos momentaneamente “reconectados” ao acesso do público urbano tornam-se reconectados como espaço e objeto de experiências estéticas — e considero pertinente dizer que num sentido predominante de consumo. Na verdade, talvez seja essa a melhor definição para o que chamei aqui de “territorialidade expositiva”: um uso de território onde impera a separação entre produção e consumo no processo de significação e apropriação de um espaço. Digo isso não tanto como uma condenação ao projeto, mas antes para localizar mais claramente o tipo de relação cultural que ele reproduz: a estrutura de relação da cultura erudita (e da cultura de massa), separada entre produtores especializados e público. Sob esse ponto de vista, o último Arte/Cidade inicia um tipo de operação que extrapola essa relação, pois lida com o diálogo, hibridação e uma apropriação direta do espaço que é da ordem funcional, da ordem da prática cotidiana. Essa relação nova, por sua vez, não substitui e nem poderia substituir de um golpe a relação “estética” anterior; pessoas continuam a visitar as obras munidas de um olhar “pitoresco”. O que haveria é, como colocado antes, uma sobreposição de situações dissonantes. É certo que as recodificações de espaços propostas por Arte/Cidade não poderiam ser comparadas às ações de captura e reinserção efetiva do espaço no circuito econômico — como o são muitas iniciativas de renovação patrimonial. Mas pode-se dizer que, num certo sentido, havia uma "captura" sutil: a criação um nova prática cultural que possa se aproveitar dos espaços “desgarrados” implica em reinseri-los num âmbito de uso cultural que não está, de modo algum, fora do jogo de forças e interesses da cidade. Não é à toa que, nos três primeiros Arte/Cidade, São Paulo pode ser tematizada em sua contemporaneidade de maneira um tanto “naturalizada”, sem referência aos processos econômicos e políticos em andamento sobre os espaços ocupados. Não é que não houvesse no projeto inovação estética e de abordagem à cidade, nem reflexões valiosas e críticas; havia. Nem é que antes os organizadores do

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evento ignorassem a cidade como espaço conflituoso e desigual; depoimentos e publicações do evento indicam que não teriam ilusões quanto aos poderes da arte de reinserir e harmonizar os espaços em questão, e realmente os projetos não tentaram fazê-lo. A questão é que a estrutura na qual se constituiu a “narrativa” dos sítios para o público estava orientada, nos primeiros três eventos, a uma questão fenomenológica de apreensão e vivência do espaço que deixava de lado as pressões do poder sobre a cidade e a participação do próprio evento nos processos de poder que a constroem. Arte/Cidade Zona Leste, por sua vez, já trouxe os processos políticos para dentro de seu foco, podendo ser visto como um esforço de superação — ou, ao menos, de problematização — da relação anterior. O evento tampouco consegue superar a questão de estetização, mas já está mais consciente dela e a problematiza. Em seu enunciado urbano a arte, a cultura e a exposição em si eram declaradamente negadas como dimensões autônomas e começavam a ser defendidas como parte integrante dos agenciamentos que constituem a realidade política e, para usar novamente o termo de Rancière, a “partilha do sensível” de uma cidade conflituosa. Embora não seja este o único motivo — talvez nem o mais importante — essa mudança certamente está ligada ao fato de nenhum outro Arte/Cidade ter sido feito em São Paulo desde então. Por fim, há que se ressaltar que a opção deste texto em se concentrar na arquitetura expositiva das edições de Arte/Cidade deixa de fora um aspecto muito importante, entre outros, de seu impacto sobre a percepção das pessoas e o debate sobre a cidade: a mobilização da imprensa, os ciclos de debates e as ocasionais exposições secundárias e vídeos que existiram em torno dos eventos. Acredito, contudo, que a sua ausência não chega a afetar as considerações específicas feitas aqui. Esse aspecto, porém, levanta uma outra questão, não enfrentada mas na verdade subjacente a todo este texto. Quando se tenta pensar os “recortes” de cidade ocasionados pelos Arte/Cidade, é impossível deixar de se pensar em como sua recepção e compreensão é necessariamente condicionada pelo tipo de público em questão. A princípio, seria muito difícil definir um perfil de público expectador para uma obra que se coloca no espaço urbano, em acesso aberto e/ou gratuito. Do ponto de vista dos enunciados, todavia, o “público” da maior parte dos quatro Arte/Cidades parece ser claramente uma população intelectualizada. Por serem aqueles que vão até os lugares especificamente para ver as exposições e por terem acesso ao discurso do evento, dos críticos e da mídia — ou seja, por serem os que em tese têm acesso às diferentes facetas dos eventos — não me parece absurdo considerar os visitantes voluntários e consumidores de “cultura” como principal “público-alvo” da intervenção

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ampliada de Arte/Cidade, e é por isso que, como pode-se perceber, me dediquei a eles ao considerar as vivências e compreensões da cidade acarretadas pelas diferentes lógicas expositivas do projeto. Isso valeria mesmo para Arte/Cidade Zona Leste: as iniciativas de trabalhos inovadores com moradores e trabalhadores informais se limitaram a um curto período, pouco superior à duração da mostra. Pelo que relata Roiffe em sua pesquisa, houve muito poucas ramificações do evento, e pouco teria sobrado de memória da exposição e das propostas deste entre essas pessoas (ROIFFE, 2006, pp. 05-10). O sujeito último do debate colocado pelo evento, então, me parece ser ainda a classe intelectual. Assim, a despeito da quantidade de projetos concretizados, pode-se dizer que a intervenção mais duradoura de um evento temporário como Arte/Cidade se daria, acima de tudo, no campo de um debate intelectual sobre cidade e cultura. É pela tentativa de contribuição à manutenção desse debate, de resto ainda tão relevante, que este ensaio foi escrito.

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