Sapatonas no Cinema: A produção brasileira de Cinema Lésbico

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA

THAÍS FERNANDA RAPOSO

SAPATONAS NO CINEMA: A PRODUÇÃO BRASILEIRA DE CINEMA LÉSBICO

Jaguarão 2016

THAÍS FERNANDA RAPOSO

SAPATONAS NO CINEMA: A PRODUÇÃO BRASILEIRA DE CINEMA LÉSBICO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de bacharelado em Produção e Política Cultural da Universidade Federal do Pampa, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Cultura. Orientadora: Carla Daniela Rabelo Rodrigues

Jaguarão 2016 2

THAÍS FERNANDA RAPOSO

SAPATONAS NO CINEMA: A PRODUÇÃO BRASILEIRA DE CINEMA LÉSBICO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Produção e Política Cultural da Universidade Federal do Pampa, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Cultura.

Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em: Banca examinadora: ______________________________________________________ Profa. Dra. Carla Daniela Rabelo Rodrigues Universidade Federal do Pampa Orientadora ______________________________________________________ Profa. Dra. Maíra Kubik Taveira Mano Universidade Federal da Bahia ______________________________________________________ Ms. Sara Teixeira Munaretto Universidade Federal do Pampa

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Dedico este trabalho à minha sanidade que se foi.

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AGRADECIMENTO Aos meus pais e minha irmã, as melhores pessoas que poderiam ter me guiado por esses anos. A minha cativante orientadora, tutora e professora, doutora Carla Daniela Rabelo Rodrigues, por toda a inspiração e ajuda. Ao grupo PET-PPC pela experiência sem igual e por toda a troca de conhecimento. A comunidade acadêmica jaguarense, um verdadeiro laboratório da diversidade brasileira. E ao curso de Produção e Política Cultural como um todo, que apesar de todas dificuldades possíveis, é uma resistência política desconstrutora de muito potencial.

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Eu gosto de mulheres. Eu sou sapatão. Eu sou sargento. Fanxona. Lésbica. Eu colo velcro, eu gosto de colocar a aranha pra brigar. Paloma Duarte (A Partilha)

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RESUMO A indústria cinematográfica brasileira foi construída predominantemente masculina, por isso, assumiu um papel político na sociedade que recupera valores desse universo de gênero. Com a revolução sexual, o cinema pôde reinventar-se, idealizado pela vontade de transformar a realidade das minorias oprimidas pelo patriarcado. O objetivo deste trabalho é fomentar o pensamento crítico e teórico dos estudos culturais lésbicos no Brasil, com ênfase no cinema, ao contextualizar a lésbica com os estudos de gênero e identidade e ao analisar a produção nacional de longas-metragens com narrativas lésbicas. Conclui-se que a lésbica está inserida no sistema social brasileiro através de políticas públicas de cultura, porém, a construção patriarcal e religiosa do Brasil inviabiliza o desenvolvimento de sua cultura e expressões simbólicas como a linguagem cinematográfica. O trabalho propõe que a comunidade lésbica brasileira aproprie-se mais potentemente de linguagens e de mecanismos de fomento à cultura para o fortalecimento de sua resistência. Palavras-Chave: Política Cultural, Lésbicas, Identidade, Cinema Lésbico, Estudo Culturais.

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ABSTRACT The Brazilian film industry was constructed predominantly masculine, taking a political role in society that recovered this gender's universal values. With the sexual revolution, cinema could reinvent itself, idealized by the will to transform the reality of oppressed minorities by the patriarchy. The objective of this work is to foster critical and theoretical knowledge of lesbian cultural studies in Brazil, emphatic on cinema, contextualizing the lesbian with gender and identity studies and analyzing the Brazilian production of feature films with lesbian narratives. It's concluded that lesbians are inserted in the Brazilian political system through its cultural policy, however, its patriarcal and religious construction difficults the development of lesbian culture and its symbolic expressions like film language. This work proposes that the Brazilian lesbian community make more potent use of languages and cultural fostering mechanisms in order to strengthen its resistance. Keywords: Film, Cultural Policy, Lesbians, Identity, Lesbian Films, Cultural Studies

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Filmes brasileiros com narrativas lésbicas

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SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT INTRODUÇÃO

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1. IDENTIDADE LÉSBICA

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1.1. Identidade e construção

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1.2 A lésbica na teoria

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2. CINEMA

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2.1 Cinema brasileiro

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2.2 Cinema e mulheres

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2.3 Cinema lésbico

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3. POLÍTICA E PRODUÇÃO PARA LÉSBICAS

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3.1 Governos Lula e Dilma

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3.2 Representatividade através da política

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4. FILMES LÉSBICOS

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4.1. Matou a Família e Foi ao Cinema

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4.2. Amor Maldito

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4.3. A Partilha

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4.4. Quanto Dura o Amor?

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4.5. Como Esquecer

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4.6. O Uivo da Gaita

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4.7. Flores Raras

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4.8. Tessa, a Gata & Cassandra: a Safo de Perdizes

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4.9. Cássia

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4.10. O Perfume da Memória

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4.11. Amores Urbanos

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS

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INTRODUÇÃO O trabalho foi inicialmente pensado pelo questionamento da existência filmes lésbicos brasileiros, ao considerar um aumento no número de produções com narrativas homossexuais nos últimos anos, e como suas narrativas conversam com a sociedade brasileira. O cinema é uma linguagem poderosa, através dela podemos interpretar, refletir e influenciar a sociedade com ideais e representações; é um importante tema dos estudos culturais, que aborda os fenômenos culturais como o Cinema LGBT enquanto um processo desconstrutor durante a crise da identidade da pós-modernidade. Com a implementação de políticas culturais no Brasil, a comunidade LGBT pode expandir sua produção cultural com incentivos governamentais. A cena LGBT brasileira cresceu e tem uma boa visibilidade mundial, entretanto, notase que a maioria dos filmes narra histórias sobre homens homossexuais, sem muita representatividade de outras sexualidades. Há uma dificuldade em encontrar filmes circulando com temáticas lésbicas ou transexuais, inclusive praticamente não há fomento e mapeamento promovido pelos órgãos específicos como ANCINE e a Secretaria do Audiovisual (MinC), e esta pesquisa se presta a tentar entender o motivo desta lacuna. Essa dificuldade também se estende aos estudos culturais lésbicos no Brasil, há pouquíssima literatura teórica específica; a produção cultural, enquanto mediadora e promotora da diversidade, pode e deve se envolver nos estudos gays e lésbicos e atrelá-los às grandes áreas da cidadania e cultura, pois é preciso um olhar analítico sobre o que é produzido pelos movimentos sociais que há décadas lutam pela visibilidade. A invisibilidade lésbica é uma realidade negligenciada no Brasil. A lésbica, na sociedade patriarcal, é oprimida através de violência simbólica, e física, intrínseca na construção identitária brasileira. Mesmo que os movimentos igualitários tenham trazido mudanças fundamentais para a aceitação de sexualidades diferentes àquela da ordem heteronormativa, a invisibilidade lésbica ainda ocorre, e também dentro da comunidade LGBT: o desenvolvimento de conhecimento sobre a sexualidade, no contexto brasileiro, é muito mais propício de aceitar e conhecer os homens gays brancos da classe média, o que influencia a produção de cultura em velocidades desiguais no segmento LGBT. Assim, pensamos no papel de um cinema sexualmente liberto perante a sociedade. Seria através da reapropriação da linguagem cinematográfica que o Cinema Lésbico poderia 11

beneficiar sua cultura e produção simbólica, pois o imaginário lésbico da sociedade brasileira é composto pelo fetiche, pela competição contra o homem e pela objetificação, criando uma impossibilidade de identificação, e consequentemente, uma fragmentação da identidade lésbica carregada de impotência em virtude deste cenário lesbofóbico construído e fortalecido pelo patriarcado. Considerando que a indústria cinematográfica brasileira é dominada por homens, como seriam as narrativas lésbicas que são, então, feitas por eles? A relação de poder entre homens e mulheres indicaria que as narrativas lésbicas dirigidas por homens teriam, mesmo que inadvertidamente, ideologias masculinistas; a visão do homem sobre ser lésbica não confere credibilidade por narrar uma experiência simulada, pela impossibilidade empírica; e como as ações da política pública de cultura voltada para o segmento LGBT, segundo mais atendido por recursos (Rubim, 2010), podem ter ajudado para transformar a realidade brasileira enquanto viabilizadora de culturas marginalizadas no sistema patriarcal. Tanto a luta por direitos representativos, a disputa das identidades, quanto a luta por políticas culturais específicas são temas contemporâneos e caros a essa pesquisa que observa dados sobre o número da produção lésbica no Brasil e os desdobramentos, ou seja, quantos filmes nesta temática existem, quantos circulam, quantos são lançados por ano, quem são seus principais cineastas e indagações fundamentadas por teóricos das áreas de cinema e sexualidade. Dessa forma, este trabalho de conclusão de curso repousa na importância do Cinema Lésbico enquanto desconstrutor, por meio de narrativas que desmitificam qualquer entendimento de anormalidade no ser homossexual, e que deveria haver um vínculo melhor estabelecido com os estudos culturais e as políticas culturais. A análise aqui apresentada sobre a produção cinematográfica com temática lésbica, sua narrativa, sua produção e viabilização por meio de políticas culturais cinematográficas, procura ser uma contribuição para a comunidade LGBT, uma vez que a sociedade contemporânea se encontra em um estopim de movimentos procurando combater as inúmeras desigualdades que ainda permeiam nossos cotidianos; este trabalho também procura fomentar a produção acadêmica na temática lésbica: o desenvolvimento dos estudos culturais lésbicos no Brasil é muito necessário, pois temos hoje o conhecimento de como uma manifestação política pode influenciar a produção de conhecimento sobre a sexualidade, como no caso das Revoltas de Stonewall. Representativo dos movimentos igualitários, o Stonewall Inn é um bar nova-iorquino muito frequentado pela comunidade LGBT, um espaço livre de preconceitos que sofreu 12

uma invasão policial em 28 de junho de 1969, quando vários foram presos e mortos por serem homossexuais. Dias após o ocorrido, houve um protesto contra a ação da polícia: o primeiro momento onde um enorme grupo de homossexuais se reuniu para reclamar seus direitos, tornando-se um marco histórico. Depois de Stonewall, principalmente nos Estados Unidos, houve uma procura da ajuda de comunidades acadêmicas, com este intuito de desmitificar a diversidade sexual e projetar uma aceitação na sociedade, à base de argumentações e pesquisas com fundamentos teóricos: os estudos gays e lésbicos (Lopes, 2006). No Brasil, em agosto de 1983 ocorreu um caso parecido – praticamente ignorado na história – em São Paulo, onde o dono do Ferro’s Bar, frequentado pela comunidade LGBT, proibiu o Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF) de vender seu jornal na frente do bar. Houve um protesto de mulheres lésbicas, contando com apoio da vereadora Irede Cardoso e da conselheira da OAB Zulaiê Cobra Ribeiro, que resultou na ocupação do bar e um pedido de desculpas do dono; um ano antes, o primeiro filme lésbico brasileiro teve sua estreia, igualmente ignorado pela sociedade brasileira. Nota-se um descaso naturalizado com as manifestações lésbicas no Brasil. A estrutura deste trabalho de conclusão de curso divide-se em quatro capítulos. No primeiro capítulo “Identidade Lésbica”, temos uma contextualização do conceito de identidade por Stuart Hall, um resgate histórico do posicionamento da mulher lésbica na sociedade brasileira, instigando a construção religiosa do país como uma das causas da invisibilização, por Ronaldo Vainfas; e o embasamento da teoria feminista e queer na questão lésbica, utilizando muito da literatura de estudos culturais e de gênero, como Simone de Beauvoir, Eve K. Sedwick, Judith Butler, Monique Wittig e Denilson Lopes. Seu intuito é compreender o posicionamento da lésbica na sociedade e seus obstáculos perante uma sociedade construída em termos masculinistas que a oprime e marginaliza. O segundo capítulo, “Cinema”, faz um panorama histórico das relações de poder na sociedade no desenvolvimento da sétima arte desde sua criação à contemporaneidade. Através de Robert Stam, Ismail Xavier, Jacques Aumont e Jean-Claude Bernadet podemos evidenciar a criação masculinista do cinema internacional e nacional e seus desdobramentos na indústria, como foi idealizado a partir da ótica dos homens e como excluía as mulheres. Com a emergência da Segunda Onda Feminista, teóricas como Anneke Smelik, Molly Haskell, Laura Mulvey e Jackie Buet, puderam construir o contraponto da presença feminina desde o começo do cinema e problematizar sua posição desde então, inspirando continuidade nos trabalhos de 13

Giselle Gubernikoff e Marina S. Faria, que retomam a teoria feminista de cinema no contexto do Brasil. A contribuição teórica de autores dos estudos lésbicos e queer, como Patrícia White, Ruby Rich, Jackie Stacey, Teresa de Lauretis, Julianne Pidduck e Richard Dyer foi utilizada para contextualizar os ideais do Cinema Lésbico e para suprir a pouca produção científica brasileira nos estudos culturais lésbicos. Em “Políticas Culturais para Lésbicas”, fizemos uma breve análise das ações promovidas a partir de 2002, com o governo Lula, para lésbicas (enquanto parte do segmento LGBT). Aqui, podemos ter uma noção de como um programa de intervenção do Estado pode propiciar o desenvolvimento da produção cultural de minorias sociais, possibilitando-a sem amarras ideológicas da classe dominante. Reforçando a importância de políticas culturais, acionamos Lia Calabre, Teixeira Coelho, Antônio Rubim e Alexandre Barbalho que delimitam seu propósito e intenções para a sociedade brasileira. O quarto capítulo “Filmes Lésbicos Brasileiros” mapeou treze longas-metragens com temática lésbica a serem analisados pela abordagem narrativa, circulação, relação com a identidade lésbica, com as teorias de cinema previamente abordadas, repercussão social, críticas cinematográficas, se foi viabilizado por incentivo de políticas públicas ou iniciativas privadas na produção e quais são as características que contextualizam os filmes lésbicos no cinema brasileiro. O próprio título também procura instigar a ressignificação cultural do termo pejorativo sapatona (e variantes) com o intuito de reapropriar positivamente, dentro e fora da comunidade LGBT, uma expressão muito empregada na língua portuguesa. Este trabalho de conclusão de curso, portanto, aciona os estudos culturais, as teorias feministas, lésbicas e queer, a área de políticas públicas numa tentativa de fomento à cultura lésbica brasileira e de compreensão nas perspectivas sociocultural e histórica da identidade lésbica, explorando o cinema enquanto guerrilha simbólica na luta igualitária.

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1. IDENTIDADE LÉSBICA Contextualizando gênero e sexualidade, neste capítulo, o gênero é entendido enquanto um caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, sendo uma ferramenta analítica e política que não nega as noções biológicas e do corpo, mas prioriza sua construção social e histórica: o gênero se refere à compreensão e representação de características sexuais em prática na sociedade, sem a pretensão de conferir papéis (masculino/feminino) mas sendo apenas uma parte constituinte da identidade dos sujeitos. As noções de gênero variam de acordo com o contexto de uma sociedade ou de momentos históricos. A sexualidade é diferente do gênero, embora entrelaçados, e aqui foram utilizados dois entendimentos desta: (1) enquanto parte constituinte da identidade do sujeito, aberta a diversas possibilidades, de construção instável, mutável e desconstrutora1; e (2) enquanto sistema que liga as noções de poder, saber e sexualidade, culminado da repressão ao sexo em virtude do masculino2. Eve K. Sedwick (2008) aponta a importância dos estudos gays e lésbicos em "A Epistemologia do Armário", que mesmo com sua recém emergência e fragilidade, tanto dentro quanto fora de instituições acadêmicas, e ainda dependente de limitados paradigmas e interpretações, se estabeleceu solidamente devido ao persuasivo projeto feminista de interpretar as configurações, opressões e resistências no modernismo Euro-Americano e na modernidade da virada do século, que possibilitaram seu trabalho, podendo escolher seu próprio trajeto teórico. Seu objetivo foi fomentar a habilidade humana para que possamos chegar a um entendimento de sexualidade que respeite a irredutibilidade certa desta nos termos e relações do gênero, ou seja, que respeita todas suas possibilidades. Os estudos de gênero compreendem o estudo cultural no momento que desloca a generalidade que retém o poder de estimular e dividir, podendo assim ser imprevisível. Sobre os estudos lésbicos, segundo Segwick (2008, p. 36), sua linha de pensamento emerge com o feminismo separatista da década de 1970 e seu quadro delimita não haver fundamento válido de semelhança na experiência e identidade do gay e da lésbica, os colocando em extremidades opostas no espectro do gênero. Apesar do radicalismo, foi uma revisão eficaz, em termos femininos, sobre o desejo homossexual enquanto argumento de definição de cada gênero, ao invés de

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LOURO, Guacira C. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. 2 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de Saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977.

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ocupar uma posição liminar ou de cruzá-los. A essência desta interpretação era "Feminismo na teoria, lesbianismo na prática". Em "O Segundo Sexo", publicado em 1949, Simone de Beauvoir analisa a condição feminina pelas esferas sexual, política, social e psicológica. No capítulo "A Lésbica", a autora utiliza dessas perspectivas para analisar casos de algumas mulheres que tiveram experiências com a homossexualidade, como isso se desdobrou socialmente (em alguns politicamente) e o que "causou" aquela vivência utilizando métodos psicanalíticos (de Freud, Ellis e Stekel) envolvendo a relação com os pais na infância e adolescência da "paciente". À primeira leitura, entende-se que as gerações de mulheres, desde a publicação do livro, conseguiram adquirir mais autonomia e/ou empoderamento, que as oferecem mais liberdade ou senso de igualdade. A interpretação de Beauvoir sobre as lésbicas indica que há uma maior facilidade de dominar a sexualidade lésbica, em termos de relação de poder e sociedade, em virtude do silenciamento de sua identidade. A principal preocupação de Beauvoir é sobre a mulher enquanto Outro se empoderando e escapando da objetificação, deixando a submissão pela independência, negligenciando condições sociais e históricas, o que descontextualiza a lésbica numa tentativa de deliberar sobre o desejo e a escolha: ela enfatiza preocupações existencialistas sobre a liberdade e a transcendência, focando-se no processo da formação da identidade feminina. A homossexualidade, para Beauvoir (1949), é uma escolha definitiva, ainda que nela haja influência de circunstâncias ambientais (como escolas separadas por gênero, condições de moradia, classe social, educação). Seus argumentos sobre a sexualidade feminina são sustentados pela teoria psicanalítica de Freud. Contudo, a psicanálise, tão baseada no sexo, é contraditória para a elucidação da identidade lésbica, pois busca uma origem ou acontecimento inicial que, no caso da lésbica, é classificada como uma queda retrógrada ao pré-histórico da formação individual. Conforme Diana Fuss, Freud conclui "Caso de Homossexualidade em uma Mulher" como uma forma de provérbio misógino: "quando uma garota cai, ela cai de costas" (FREUD apud FUSS, 1993). Além de tantas premissas mitológicas, é importante que o trabalho de Freud não seja considerado absoluto quanto à lésbica, uma vez que sua conclusão confere ao lesbianismo a vontade de uma única paciente em se "tornar mãe" e sua linguagem continua incapaz de capturar as dimensões da sexualidade ao encaixar-se na ordem heteronormativa.

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Outro ponto pertinente é considerar a data de publicação desta obra de Beauvoir e a geração de lésbicas que foram estudadas. Já se passaram quase 70 anos desde sua primeira publicação, e ao longo do tempo, "O Segundo Sexo" influenciou diversas gerações à desconstrução e busca pela igualdade; sua própria repercussão já é uma prova de que houve desconstrução do que nos é imposto para a mentalidade feminina e lésbica desde então. 1.1. Identidade e construção Stuart Hall (2005) apresentou concepções de identidade em "Identidade Cultural na Pós-modernidade", abordando o declínio de identidades sólidas das sociedades anteriores à pós-modernidade e argumentando a existência da fragmentação do indivíduo moderno perante novas estruturas e a diversidade, chamando este processo de crise de identidade. Analisar a identidade, ainda mais contemporaneamente, é extremamente complexo, pois diversos acontecimentos modificaram a sociedade sem precedentes, como os avanços tecnológicos que fortalecem a globalização, além de muitos outros fenômenos sociais e políticos, como os movimentos igualitários. A liquidez vivenciada na pós-modernidade (Bauman, 2005) representa um processo de transformação na sociedade e nas concepções fixas e sólidas que um dia determinavam ultimamente a identidade de um sujeito. Hall, então, apresenta três momentos importantes para a identidade: o momento do sujeito do Iluminismo, baseada no indivíduo da razão, unificado e certo de si a partir de seu próprio nascimento; o momento do sujeito sociológico, que começa a compreender a sociedade como influenciada por meios externos e interessado na complexidade do mundo moderno e na troca de simbologia entre culturas; e o momento do sujeito pós-moderno, o contemporâneo, que foi culminado a partir do sujeito sociológico, que não tem identidade fixa, que pode transformar-se com a diversidade e viver com ela, entretanto, ainda retendo as contradições que formam a crise de identidade. O último conceito é o considerado para este trabalho justamente por embasar a dificuldade de definir a identidade lésbica (HALL, 2005). A própria área do patrimônio nas políticas culturais leva em grande consideração a questão da identidade, entretanto, esta, traduzida nos prédios e fachadas de cidades "históricas", confere importância apenas ao que o homem branco europeu construiu em terras indígenas. A identidade brasileira, que a classe dominante e opressora define, é branca e heterossexual, nos mais diversos aspectos estruturais da política e sociedade. A quebra com este "entendimento" de identidade é um grande desafio para as gerações que, como diz o 17

músico e poeta Tom Zé na música “Geração Y”, terão que governar. A partir deste entendimento, o momento do colonialismo português pode conferir uma causa à invisibilidade e à própria identidade lésbica perante a construção religiosa que se fixou no Brasil. Um dos principais obstáculos na identidade lésbica são as proporções históricas, que segundo teóricas lésbicas, não conectam características identificadoras em lésbicas. A experiência lésbica no passado aconteceu em diversas situações diferentes, entretanto, historiadores e cientistas culturais passaram a resgatar um passado lésbico. Nesse sentido, o historiador Ronaldo Vainfas (1997) resgata registros do Tribunal do Santo Ofício de Portugal durante o período colonial no Brasil em “Homoerotismo feminino e o Santo Ofício” para rastrear as “lesbos brasílicas” e oferecer uma perspectiva histórica sobre a experiência dessas mulheres. O Tribunal do Santo Ofício foi uma instituição criada pelo Papa Gregório IX com o principal objetivo de levar à justiça todas as heresias do homem e a conversão forçada ao catolicismo. Perante o Santo Ofício, a sodomia violava a lei natural do uso do corpo e era um crime processável tanto em Portugal quanto nas colônias, e em 1640 os Tribunais da Inquisição de Portugal foram consultados sobre a possibilidade de mulheres cometerem a sodomia, uma vez que seu pecado era a “molície”, ou seja, o ato do feminino de “esbanjar” sensualidade. A questão foi pouco discutida entre as autoridades da Inquisição, entretanto, rendeu diversas interpretações, como a do Inquisidor Mateus Homem de Leitão que alegava apenas penetrações anais eram atos de sodomia, ou a de Luigi-Maria Sinistrati que foi mais além para propor que para serem capazes de praticar os “desvios nefandos”, a mulher teria que ter um “pênis clitórico” ou “excrescência carnal” (mais encontrada nas mulheres etiópias) capaz de penetrar, e também a de Dom Veríssimo de Lencastro, único a reconhecer o homoerotismo entre mulheres e, consequentemente, ser o mais rigoroso quanto à sua punição. (VAINFAS, 1997, p. 122-124) O contexto que resgata tais registros de homoerotismo entre mulheres se dá na Primeira Visitação do Santo Ofício ao nordeste do Brasil de 1591 a 1595, quando 29 mulheres foram indicadas como praticantes do “pecado nefando”. Dentre elas, a maioria eram meninas de 9 a 10 anos e donzelas de 18 a 20 que não queriam comprometer a honra de sua castidade, haviam casos de sinhás que se relacionavam com escravas e casos de mulheres libertas. No caso de uma mulher liberta que admitiu relacionar-se com outras mulheres e foi explícita sobre os atos sexuais que praticava, o inquisidor Heitor Furtado de Mendonça a condenou a ser açoitada nas ruas. Vainfas nota que 18

“Se comparados aos documentos inquisitoriais sobre a sodomia praticada entre homens, os processos relativos ao “nefando feminino” apresentam diferenças sensíveis. Um cortejo superficial das duas séries documentais parece indicar, no caso de homens, um frenesi puramente sexual, alta circulação de parceiros, encontros breves e nenhuma demonstração de afetividade; no caso do feminino, por outro lado, ao menos nos casos envolvendo mulheres adultas, é possível perceber enredos amorosos, paixões, cartas enamoradas, e absoluta monotonia no que diz respeito aos atos sexuais.” (VAINFAS, 1997, p. 133)

Mesmo este sendo um ponto pertinente enquanto diferença observável sobre o comportamento homoerótico nos gêneros, até mesmo na contemporaneidade, também é observável a romantização das mulheres coloniais, as conferindo apenas uma sensualidade feminina, inocente e sem virilidade alguma, inferior ao masculino dominante. O “status” conferido às mulheres, na construção católica do Brasil Colônia, foi de objeto submisso, como se não tivesse lugar na sociedade dos homens, os reais “seres racionais” de imagem mais semelhante ao deus do catolicismo. Tendo essa argumentação da construção religiosa, fortemente embasada no patriarcado e heteronormatividade, voltemos à questão de como isso se impõe na sociedade hoje. Michael Warner (1993, p. 11) propõe duas mentalidades a serem analisadas, um pensamento conservador-libertário antiquado onde o sexo é visto como assunto privado, a não ser envolvido em política, ou um pensamento de ênfase pós-moderna e pós-identitária que depende de metanarrativas utópicas, naturalizando os gays e as lésbicas como não diferentes. A primeira pode muito bem ser um fator para a invisibilidade lésbica, sendo o Brasil um país ainda extremamente conservador. “Identidade e Política em uma Cultura Gay "Pós-moderna” de Steven Seidman reforça a ideia de que há uma maior facilidade em aceitar o homem gay na sociedade antes das mulheres lésbicas. Seidman (2000) nos traz um contexto sócio-histórico que declara o separatismo entre gays e lésbicas, justamente pelo movimento e teorias gay serem construídos por homens brancos da classe média, que apesar de homossexuais, ainda desfrutam do privilégio imposto pela ordem machista e heteronormativa da sociedade. Isto é evidenciado através de diversas manifestações críticas e teóricas, envolvendo até mesmo raça, conforme o escritor Joseph Beam, negro e gay, aponta: “Nós não somos família. Muito claramente, gay homem significa: branco, classe média, jovem, malhado, e provavelmente masculino, não há espaço para homens gays negros dentro do pentágono gay" (BEAM, 1986, p. 14, tradução 19

nossa). Contudo, este princípio não se exclui do feminismo lésbico, também criticado por ser construído por mulheres brancas eurocêntricas de classe média, trazendo também a problemática sobre a representação das lésbicas negras. Seidman (1993) coloca que “No contexto lésbico, o protesto focou-se na destacada ideologia do feminismo lésbico e sua variante cultural-feminista. Feministas culturais colocaram uma natureza feminina sexual única e unitária (na divisão hetero/homo) como a base de uma ética sexual. Sexo foi definido como uma expressão de intimidade, um modo de compartilhar e mostrar amor; comportamento sexual deve exibir sua natureza erótica essencialmente carinhosa, tenra, centrada na pessoa e difusa. Sexo legítimo deve incorporar relações de longo prazo que tem intimidade e comprometimento. O sexo que é centrado no corpo, motivado pelo prazer carnal, casual, envolvido em roleplaying, ou promíscuo foi identificado como masculino." (p. 123, tradução nossa)

Esse trecho compactua com os registros estudados por Vainfas (1997), mencionados anteriormente, e também está evidenciada no cinema lésbico brasileiro, onde o propósito do “fazer” sexo seja exclusivamente romântico, atrelado em monogamia, provando a influência do feminismo lésbico – ao concretizar diferenças entre gays e lésbicas – enquanto descrição da natureza lésbica, ainda que seja um ideal um tanto quanto opressivo para lésbicas que não concordem com plenitude. Afinal, as teorias de cinema construídas por gays e lésbicas incluem uma respeitabilidade que liberta a margem se apoiando fortemente na semiótica e no pós-estruturalismo, ou seja, dialoga significação com sua natureza desconstruída (STAM, 2000, p. 248). Entretanto, sendo o gênero culturalmente construído e, portanto, embasado na heteronormatividade e no machismo, compreende-se que ele conversa com as várias "modalidades" da identidade, resultando em uma barreira na desconstrução do gênero em termos políticos e culturais, e, consequentemente dificulta o sujeito pós-moderno lésbico de construir sua própria identidade livre dos pressupostos da classe dominadora, ou seja, liberta do que a mentalidade heteronormativa e machista automaticamente impõe (BUTLER, 2003, p. 20). 1.2. A lésbica na teoria A teórica do feminismo, Monique Wittig (1980), sugere que a lésbica vem de um terceiro gênero que promete a quebra com a heterossexualidade compulsória por ser o único conceito além das categorias de sexo, sendo usuário de linguagem dentro das regras do patriarcado. Wittig coloca que "o gênero é o índice linguístico da oposição política entre os 20

sexos. E gênero é usado aqui no singular porque sem dúvida não há dois gêneros. Há somente um: o feminino, o "masculino" não sendo um gênero. Pois o masculino não é o masculino, mas o geral" (WITTIG apud BUTLER, 2003, p. 42). Podemos fazer uma analogia a essa proposta com a palavra "humanidade", quando nos referimos aos grandes feitos da humanidade, há orgulho em dizer "o homem inventou a roda", ou seja, o construtor da realidade humana sempre foi e é um sujeito masculino universal, não se é pensada a palavra humanidade para se referir à humanidade, é, por padrão, utilizada a palavra homem. Isto providencia um entendimento de que a mulher não teve parte ativa na história da humanidade, a mulher foi caracterizada como um tipo de subespécie humana para fins apenas reprodutivos. Tanto Judith Butler quanto Monique Wittig compreendem o lesbianismo como um tipo de terceiro gênero ou uma transcendência que não se encaixa na binaridade da heterossexualidade, por promover uma oposição e recusa desta, excluindo-se e problematizando o entendimento político das categorias de sexo e gênero. Portanto, segundo as autoras, a lésbica propõe uma fragmentação das noções atuais de gênero e sexo que são, de alguma forma, uma ameaça a esse sistema compulsório pela heterossexualidade e por significações opressoras (BUTLER, 2003; WITTIG, 1980). A justaposição de identificações com características construídas do sexo, na lésbica (gênero), gera uma série de identidades sexuais,

sistematicamente

identificadas

como

estereótipos

superficiais

que,

consequentemente, são associados ao fetiche masculino ou à competição pelo sexo. Conforme Butler: “A estratégia mais insidiosa e eficaz, ao que parece, é a completa apropriação e deslocamento das próprias categorias de identidade, não meramente para contestar o “sexo”, mas para articular a convergência de múltiplos discursos sexuais para o lugar da “identidade”, a fim de problematizar permanentemente essa categoria, sob qualquer de suas formas.” (BUTLER, 2003, p. 184) Sendo a binaridade do gênero regulada pela heteronormatividade, com sua vasta complexidade e dificuldade de desconstrução, há ainda a "separação" pela sexualidade, onde a lésbica confirma-se problemática por contestar a construção heterossexista e fazer parte da recirculação dos lugares de gênero. A lésbica, então, tem diversas interpretações. Segundo ótica da teoria psicanalítica de Freud (1920) e Lacan (1975), a lésbica apenas existe por decepcionar-se com a heterossexualidade, com a demanda de amor ou com a recusa do desejo estabelecido como normal em meios de suas teorias (naturalizadas) machistas e falocêntricas, 21

onde não há mulher sem o homem. A recusa deste trabalho contra as teorias masculinistas e da psicanálise fundamenta-se em Beauvoir (1949), que em O Segundo sexo, argumentou que homens não podem pensar a "mulher" por colocarem-se no lugar de juiz ou como parte interessada. Julia Kristeva, psicanalista búlgaro-francesa, descreveu a homossexualidade feminina como a emergência da psicose na cultura, ou seja, a perda de contato com a realidade (culturalmente construída e dominada), uma prática nada racional que resulta, então, na perda de si mesma ao rejeitar a lei "natural" do patriarcado heteronormativo, além de conferir as lésbicas à margem da sociedade. Ao chegar na conclusão de que a homossexualidade feminina é a manifestação da perda total aos privilégios culturais que o sujeito submisso (mesmo que este esteja fadado à margem invariavelmente) retém por não contrariar o indivíduo (masculino). A psicanálise, portanto, possui fundamentos na mentalidade heterossexual e masculina e ao analisar a homossexualidade (ou o próprio sexo, desejo e sexualidade), ela é refutada como se fosse uma "fase" ou psicose da humanidade, que sempre retornará à lei heterossexual. (KRISTEVA apud BUTLER, 2003). Assim como nos estudos sobre identidade de gênero, mais especificamente sobre a identidade lésbica, a humanidade levou sempre em consideração a produção masculina sobre o tema feminino. A indústria cinematográfica não foge à suposta regra, quando deflagra tanto aos pensadores do campo quanto aos fazedores um papel masculino, silenciando o cinema feminino e oprimindo o cinema lésbico. Assim como a psicanálise, que vê a lésbica como um fracasso ao prazer com o homem, como a psicose na cultura por não indultar aos métodos da heterossexualidade compulsória e do patriarcado, as narrativas cinematográficas trazem temas costumeiramente conservadores como a estereotipação da lésbica, o fetichismo e o machismo enraizado, embora haja também temas mais pós-modernos com relações fora da heteronormatividade, o empoderamento e a desconstrução sexual e social.

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2. CINEMA O cinema é também contado pela ótica masculina, por isso cabe ressaltar seus marcos históricos e como os homens são monopólio tanto no fazer quanto no pensar, apesar de haver produção feminina nas duas categorias. A história da sétima arte começa no século XIX, quando os primeiros dispositivos capazes de captar e projetar imagens foram inventados e progressivamente aperfeiçoados. A partir do século XX, o cinema já estava estabelecido como uma forma legítima de entretenimento do modernismo. Cada vez mais avançado, despojado de novas e mutantes técnicas de edição de imagens, de montagem, de duração, de implementação do som, de narrativas, de estilos cinematográficos, o cinema já aglomerava fãs que lotavam exibições e despertavam seu poder de influência. A indústria Hollywood começava a se estabelecer e criar sua ideologia baseada no mercado do consumismo, criando a cultura de estrelas (star system) que segue atuante até hoje. A França contribuiu para a história com o Cinema Impressionista e o Realismo Poético Francês, a Alemanha com o Expressionismo, a Itália cria o grande complexo Cinecittà e o Neorrealismo, a Espanha com o Surrealismo, a Índia desenvolve suas indústrias regionais de cinema, na Rússia o cineasta Serguei Eisenstein criava a montagem intelectual ou dialética, os gêneros cinematográficos iam tomando forma e enfim, o cinema transformou-se um sucesso mundial. As mulheres apareciam, e aparecem ainda, principalmente como coadjuvantes indefesas, pueris ou sensuais, e em relação a um poder masculino na narrativa. Segundo Smelik (1985), a personagem feminina no cinema é passiva e impotente, sendo um mero objeto de desejo para o masculino: isto gerou a estruturalização da estética e da arte ocidental que favorece o desejo masculino, onde a mulher é alvo de fetiche ou simboliza a castração do macho. Segundo Haskell (1987): “Embora poucas tenham chegado ao cargo de chefia, como diretor ou produtor, as mulheres tiveram sucesso em todas as outras áreas onde tamanho e força física não eram fatores: como roteiristas, particularmente nos anos 20 e 30; como editoras; como diretoras de arte e figurinistas; como críticas; e, é lógico, mas especialmente como atrizes – como as estrelas que não só invadiam os sonhos de nossas vidas, mas começaram moldando as formas de nós pensarmos sobre nós mesmo antes que nós começássemos a andar.” (HASKELL, 1987, p. 8)

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O star system (Gubernikoff, 2016) do cinema estadunidense foi o principal construtor de

estereótipos femininos através do olhar do homem, impulsionando a fragmentação da identidade feminina uma vez que as mulheres eram impostas a identificação com a domesticação de sua existência, em virtude do masculino. A mulher, enquanto o homem manejava o poder do cinema seu favor, foi então um veículo de fantasia masculina, sexualizada e domesticada; esta diferença sexual também influenciava sua rejeição enquanto produtoras de cultura. Esses estereótipos influenciam as mulheres a adequar-se de acordo com sua estética, incorporando o consumismo estético à experiência feminina na sociedade. O cinema brasileiro, ao trabalhar sobre o modelo estadunidense, também utilizava o star system, tendo Carmem Miranda como principal estrela, e manifestava os valores do sistema patriarcal. Segundo Gubernikoff (2016, p. 82), “o que mais se explora é a imagem da “mulher-apêndicemasculino”, mesmo quando o que se discute são as transformações do mundo colonial para o capitalismo”, gerando a fragmentação da identidade feminina brasileira com estereótipos de prostituta, empregada, dona de casa e musa. 2.1 Cinema brasileiro No Brasil, o cinema foi primeiramente introduzido pelo exibidor itinerante belga Henri Paillie em 8 de julho de 1896, no Rio de Janeiro, mesma cidade onde o imigrante italiano Paschoal Segreto inaugurou a primeira sala de cinema. A Baía de Guanabara, em 1989, foi o primeiro lugar de filmagens em terras brasileiras, por Afonso Segreto. Com a melhoria da energia elétrica no Brasil, as exibições de filmes se tornaram mais frequentes e a cultura do cinema passa se enraizar. Logo no começo do século XX, mais de trinta curtas e médias metragens foram produzidos por homens e mulheres, entretanto, com a Primeira Guerra Mundial interrompendo o fornecimento de matéria-prima, entre 1912 e 1922 foram produzidos aproximadamente sessenta filmes, nos gêneros de documentário (predominante em números), adaptações literárias e a primeira animação brasileira. O cinema brasileiro de 1930 consistia em produções carnavalescas, época quando Carmen Miranda ficou conhecida. Em 1940 o primeiro gênero cinematográfico brasileiro é criado, a chanchada, caracterizada pelo humor ingênuo, burlesco e de uma tipificação do cotidiano nacional: a mulher, neste gênero, era caracterizada superfluamente, tendo a beleza da atriz como principal foco e uma ambígua, mas contida, liberdade. As produções musicais surgem em 1950, junto do primeiro filme nacional em cores, “Destino em Apuros” (1953) de Ernesto Remani. 24

Em 1950, começou a escrita teórica inspirada no nacionalismo crescente entre os países latino americanos, e baseando-se nas teorias do cinema Pós-Colonial, esta é englobada no conceito de “Terceiro Mundo” ou “Terceiro Cinema”, caracterizado pela defesa de um cinema nacional e popular, que transcendesse as experiências de nacionalidades e seus indivíduos em filme. Teoricamente procura expressar assuntos nacionais, confrontar a negligência de áreas de experiência social, refletir o papel do produtor independente e do autor, entender a relação dos produtores deste movimento com as pessoas que pretende representar e desconstruir a colonização da cultura. Diversos pensadores da área se manifestaram poeticamente, conferindo jargões como “nascido para o ativismo político”, de Julio Garcia Espinosa (Cuba), e “E o povo em frente, mas não em festa”, de Rui Guerra (Brasil), inadvertidamente prometendo uma ambiguidade no que é feito em prática. O Cinema Novo, período importante da história do cinema brasileiro e constituído majoritariamente por homens, segundo livros de cinema por Ismail Xavier, Jean-Claude Bernadet, Eduardo Morettin e Fernão Ramos, e tem como principal contribuinte Glauber Rocha, cineasta constantemente citado, assim como Benedito Duarte, Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, que cristalizaram o propósito do cinema brasileiro. Segundo Rocha (1963), ele deveria ser “tecnicamente imperfeito, dramaticamente dissonante, poeticamente rebelde e sociologicamente impreciso”, com autores virtuosos que dão voz à subjetividade individual ao invés de conferir este mérito à nação como um todo. Nesta agenda, Rocha também tinha uma afinidade com a fórmula Brechtiana, cujo um de seus pilares é o “masculinismo”, negligente de valores “femininos” relacionados estereotipicamente a empatia e consumismo. Shohat e Stam (1994) apontam que as obras de Terceiro Mundo dispensam o realismo, que são de culturas e tradições não-ocidentais narrando perspectivas diferentes sobre o corpo, a sexualidade, espiritualidade e vida coletiva. O conceito de cinema nacional se deu naturalmente como a manifestação e produção cultural de um país, florescendo sua própria estética, técnica e gêneros, indo além à política, entretanto, ao conferir um aspecto de resistência ao imperialismo estadunidense. Há uma forte conexão entre a política e cinema, principalmente durante épocas de Estados totalitários, por influir muito mais do que no entretenimento e causar reflexões críticas sobre a indústria, o comércio e as identidades culturais. O cinema foi usado mais diretamente pela política como nos casos de totalitarismo, que retinham o controle da produção cinematográfica para fins de propaganda e na instalação de instituições que então a controlava (AUMONT, 2003). Mas é a 25

partir do “avanço” de ideologias igualitárias e democráticas, que a política – quando pensada pelo cinema – mostra-se como uma alternativa de alavancar mudanças e melhorias, utilizando do processo de manifestação cultural que é a produção cinematográfica nacional. Encontra-se, portanto, com a idealização do Cinema Novo no Brasil como uma expressão mais pura, não atada a influências externas, que compreendesse o florescer de uma identidade cultural em sua (des)construção. No artigo “Além do Cinema Novo” (1979), de Robert Stam e Randal Johnson, lê-se um grande número de elogios ao Cinema Brasileiro e seus praticantes “originais” – seis homens brancos – e a relação de trocas entre o Brasil e os EUA, acentuando a problemática da distribuição (que, contemporaneamente, afeta o Cinema LGBT) tanto nacional quanto internacional, ao mesmo tempo em que outras indústrias culturais experimentavam algo similar, e identificando o problema como o eurocentrismo e o colonialismo cultural. Ismail Xavier (2001) em “O Cinema Brasileiro Moderno” referencia Paulo Emilio Salles Gomes, cujo clássico ensaio de 1973 “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” coloca em balanço o percurso do cinema em meio de um subdesenvolvimento técnicoeconômico, demarcando os obstáculos criados pela condição do país e as diferentes iniciativas e movimentos que denunciavam o colonialismo e se dedicavam a trabalhar contra as adversidades. Xavier também faz referência ao texto “Revisão crítica do cinema brasileiro” de 1963 de Glauber Rocha, que reivindicava os princípios do cinema brasileiro. Nos dez anos entre os textos, o Cinema Novo passou pelos desdobramentos e empecilhos que a conjuntura política causou na área da cultura, evoluindo de um veículo de informação crítica a um tensionador dos “desafios do tempo”. Conforme Xavier, quando “expressou uma conexão mais funda que fez o Cinema Novo, no próprio impulso de sua militância política, trazer para o debate certos temas de uma ciência social brasileira, ligados à questão da identidade e às interpretações conflitantes do Brasil como formação social. Desde Deus e o Diabo na Terra do Sol, é nítida a incidência de um velho debate sobre as formas de consciência do oprimido.” (XAVIER, 2001, p. 19)

Entretanto, são feitas extensas referências a nomes e fazeres na escrita sobre o Cinema Brasileiro, sem menção aprofundada alguma de mulheres, gays ou lésbicas, os contemporaneamente oprimidos, apesar de Stam e Johnson fecharem seu artigo brevemente informando sobre as obras feministas "Mom Mulheres" e "Brasil Mulher" e o cinejornal gay "Lampião"; e Ismail Xavier, em sua recapitulação da história do cinema brasileiro, mencionar 26

diretoras como Ana Carolina, Suzana Amaral, Tata Amaral, Teresa Trautman, Helena Ignez, Tizuka Yamasaki, Inês Castilho, Sandra Werneck, Vera Figueiredo, Raquel Gerber e Olga Futemma. 2.2 Cinema e mulheres Enquanto a história do cinema ia se construindo, as mulheres nunca estiveram literalmente excluídas. As indústrias, principalmente Hollywood desde seus primórdios, tinham um uso específico para mulheres: eram as chamadas "sex symbols", objetos de consumo utilizados para perpetuação de estereótipo, mas conforme Buet (1999), as mulheres já existiam na direção e produção nas primeiras décadas do cinema, mesmo que raramente. A dificuldade de incorporar-se na indústria masculina está na invisibilização que impossibilita o holofote sob o outro. Entre 1914 e 1921 Grace Cunard já havia dirigido 11 filmes e produzido 2, Mabel Normand fora uma grande parceira de Charlie Chaplin, Lois Weber dirigiu 115 filmes e escreveu 114 com temas políticos como tensões sociais, religião, mulheres e em sua obra "Hypocrites" (1915) teve o primeiro nu frontal feminino (considerado muito polêmico para a época), e Alice Guy Blache fora a primeira mulher a ser creditada pela direção de um filme, além de inventar novas técnicas de gravação com o estúdio Gaumont. Metade dos filmes estadunidenses até 1925 foram escritos por mulheres, mas quando os bancos assumiram o controle das produtoras de Hollywood, a produção de filmes tornou-se padronizada para o motivo único do mercado. Em 1930, o famoso Hays Code (Código Hays ou Motion Picture Production Code - Código de Produção de Filmes, tradução nossa) foi aplicado em Hollywood. Este código de produção, que servia como guia moral da indústria Hollywoodiana, teve aderência forçada através de Will H. Hays, presidente da Motion Picture Association of America (MPAA), que a forçou nos principais estúdios com uma estrita política sobre qual conteúdo era ou não aceitável para o povo estadunidense, altamente influenciada por sua posição religiosa. Essa medida dificultou qualquer produção não convencional ao código, o que coincide justamente com o que as mulheres estavam fazendo no cinema. Dorothy Arzner foi a única diretora que trabalhou na década de 1930 após a mudança, ainda que suas produções fossem filmes nesta "ordem" com sutis elementos feministas (Kuperberg, Kuperberg, 2016). O Código Hays perdeu força e foi abandonado no final da década de 1960.

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A Primeira Onda Feminista foi focada na busca pela igualdade legal, como o direito ao voto, ao trabalho e carreira, saúde e na amplitude do conhecimento sobre o gênero e sexualidade. A Segunda Onda Feminista começa, então, no final da década de 1960, incorporando outras áreas de conhecimento, como o cinema. O movimento era contra o cinema dominante, Hollywood e o cinema de autor e burguês da Europa. Os principais conceitos deste movimento era a resistência à violência patriarcal e sexual, exploração da sexualidade do ponto de vista feminino, narrativas feministas e representações fiéis. No começo da década de 1970, estudiosas do feminismo aumentaram a produção acadêmica científica sobre o cinema. Laura Mulvey, teórica do cinema feminista, incorporou as perspectivas da psicanálise de Sigmund Freud e Jacques Lacan em seu artigo "Prazer Visual e Cinema Narrativo", que revolucionou a teoria do cinema com o ponto de vista psicanalítico: “Este ensaio se propõe a utilizar a psicanálise na descoberta de como e onde a fascinação pelo cinema é reforçada não só por modelos preexistentes de fascinação já operando na subjetividade como também pelas formações sociais que a moldaram. O ponto de partida é o modo pelo qual o cinema reflete, revela e até mesmo joga com a interpretação direta, socialmente estabelecida, da diferenciação sexual que controla imagens, formas eróticas de olhar e o espetáculo. Torna-se útil entender o que tem sido o cinema, como sua magia operou no passado, ao mesmo tempo em que se propõe uma teoria e uma prática que desafiarão este cinema do passado. A teoria psicanalítica é, desta forma, apropriada aqui como um instrumento político demonstrando o modo pelo qual o inconsciente da sociedade patriarcal estruturou a forma do cinema.” (MULVEY, 1973).

No capítulo “A Intervenção Feminista”, Stam (2000, p. 170) define que a meta do feminismo no cinema é explorar a organização do poder e mecanismos psicossociais que coagissem a favor da sociedade patriarcal, com intuito último de transformar não somente o pensar da teoria do cinema, mas também todas as relações sociais classificadas hierarquicamente pelo gênero. Ao mesmo tempo em que a teoria do cinema feminista criticava os termos da ortogênese masculinista do cinema de autor – metodologia que reflete a criatividade do diretor para dar vida a obra, para mostrar a sua visão de mundo – do Cinema Novo no Brasil, ela facilitava a redescoberta de cineastas como Gilda de Abreu e Carmen Santos, revisitando a questão teoria do cinema de autor na perspectiva feminista. Apesar de reconhecer, então, a presença de mulheres produzindo e dirigindo na história do Cinema Brasileiro, Stam se compromete em separar “as histórias” – dos homens, e do outro. Segundo o relatório do Center for the Study of Women in Television and Film (Centro para o estudo da mulher na televisão e cinema) da San Diego State University, entre 2015 e 28

2016, as diretoras representam 28% de 1036 filmes que circularam por 23 festivais no período: 35% eram documentários e 19% eram ficções. Em um país que desenvolve constantemente o feminismo e suas ramificações, a representatividade feminina ainda fica estagnada, mesmo que haja um aumento nos números nos últimos anos. Estatisticamente, o documentário é o gênero fílmico mais abraçado por mulheres. O documentário está vinculado a um caráter didático ou informativo, focado em fazer a realidade afílmica, ou seja, sem as manipulações de representações previamente pensadas, que seja esporádica e autêntica. Assim como as outras modalidades do cinema, o documentário também tem variações em termos de técnica e adapta-se regionalmente aos reais locais. A modalidade documental do cinema, desde a redemocratização do Brasil, está vinculada aos movimentos sociais como um recurso que aborda os problemas e experiências da “classe de outro”, conforme Jean Claude Bernardet (1979), dando oportunidade àqueles marginalizados de mostrar sua perspectiva e ter uma auto-representação que afirma e confronta sua invisibilidade. Esse é um viés social e crítico, que se posiciona politicamente, que elucida e informa, entretanto, que também se encontra majoritariamente apropriada pelo gênero masculino e suas narrativas. Consuelo Lins e Cláudia Mesquita em "Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo" (2008) nos trazem um excelente histórico que compactua com a problemática da ordem patriarcal e heteronormativa: duas mulheres analisando obras que, em sua grande maioria, são de homens brancos e héteros. Em algum momento, mulheres são mencionadas, enquanto diretoras (Kátia Lund, Lúcia Murat) e objeto ("Estamira" e "Jogo de Cena"), mas sem a reflexão acerca seu envolvimento direto na produção e direção do cinema documental. A diversidade, através da história do cinema documental no Brasil, não é nem mencionada, apesar de existente. Marina Sartório Faria (2013) argumenta que o cinema documental pode manter-se estável durante as várias crises da indústria cinematográfica brasileira devido à sua sustentabilidade, pois a interrupção da produção fílmica atingiu apenas os longa-metragens, ao fortalecimento do seu princípio diante a realidade da crise e aos avanços tecnológicos. O grande problema do documentário, no Brasil, é a indústria de distribuição. A produção documental feminina, diante este cenário e a hegemonia masculina na indústria, sempre esteve fragilizada no Brasil por uma série de motivos, até mesmo a temática "realidade brasileira", social, que o documentário brasileiro abraçou. As mulheres trabalhavam com

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outras temáticas, ocasionada pela forma como conquistou seu espaço no documentário brasileiro, principalmente durante o Cinema de Retomada, pois “a constante associação à esfera privada fez com que a entrada da mulher no mercado de trabalho, principalmente em áreas consideradas masculinas, sofresse um atraso considerável. O período anterior à Retomada, o Cinema Novo, não contou com nenhuma figura feminina na direção de filmes. Assim, o cinema de retomada é marcante pelo aumento da participação feminina da direção de filmes” (FARIA, 2013, p. 52).

Na Retomada, período entre 1992 e 2003, portanto, a mulher conquista de fato seu espaço no cinema com maiores números. Desde a década de 1990, mulheres como Lucia Morat, Bia Lessa, Tatá Amaral, Sandra Werneck, Rosane Svartman, Carla Camurati, Suzana Amaral, Tânia Lamarca e diversas outras retomaram a direção. Entretanto, não existe necessariamente nos filmes dirigidos por mulheres uma veia feminista (Faria apud Noritomi, 2013, p. 53) pela força da esfera privada em sistematizar temáticas vinculadas ao sistema de dominação. 2.3 Cinema lésbico Produções de homens são vastamente estudadas no Brasil (Glauber Rocha, Humberto Mauro, Rui Guerra, Walter Salles, Nelson Pereira dos Santos) e utilizados como exemplos que se manifestam da teoria, mas aqueles produzidos por mulheres, não. A composição e história do cinema foram feitas quase que exclusivamente por homens, o que não foi feito pelo masculino é um estudo a parte ou uma “tentativa”, ainda que muitas delas tenham um teor homoerótico que por si só já excluem a hegemonia do patriarcado, conforme autores queer e feministas sugerem. Autoras como Patricia White (1991) enxerga uma presença fantasmagórica do lesbianismo no cinema e Ruby Rich (1992) ainda vai além a propor que uma “grande reescrita sapatão” deve fazer-se necessária. “Ou o patriarcado é ultimamente mais fundamental para a opressão social do que classicismo e o racismo, como algumas versões do feminismo sugerem? Podemos "alegorizar" um tipo de opressão, digamos racismo, através de outra forma de opressão, como o sexismo?" (STAM, 2000, p. 268, tradução nossa). Stam instiga a fonte da opressão no patriarcado e machismo, enquanto desconsidera seu extenso foco de estudo assinado por homens brancos, sendo ele próprio um intelectual branco e hétero, que contrariamente aos outros, apesar de enaltecê-los, também confere importância para as mulheres e LGBTs. 30

Após Stonewall, um novo cinema surgiu. A década de 1970 foi marcada pelos movimentos pelos direitos civis, que se apropriaram de diversas linguagens para impor-se e promover a igualdade na sociedade (Duprat, 2007). Na academia, a terceira onda do feminismo e a teoria queer foram fórmulas multidisciplinares para repensar os conceitos básicos sobre sexualidade e a complexidade humana em torno dela. A palavra queer agora é entendida como qualquer sexualidade que não reproduza a heterossexualidade e a monogamia, abrangendo então, em estudos culturais de gays e lésbicas como o cinema, muito bem apropriado pela comunidade LGBT, principalmente nos Estados Unidos. A teoria feminista do cinema segundo Smelik (1985), entretanto, ao focar-se na desconstrução da reprodução do patriarcado, se limitava de temas sobre a diferença sexual entre macho e fêmea e não abria espaço para o diálogo com outras diferenças entre as mulheres. As feministas lésbicas inicialmente notaram o viés heterossexual da teoria feminista do cinema. O cinema lésbico produz novas, impensadas, narrativas para essa cultura, entretanto, apenas quando não tratada como uma reprodução da heterossexualidade: Stacey (1987) notou que seria necessário até mesmo que o espectador de cinema, em narrativas homo, tivesse mais flexibilidade para desmascarar a heteronormatividade do cinema. De Lauretis (1994) utilizou a teoria psicanalítica para analisar especificamente o desejo lésbico nos termos do fetiche, procurando uma forma de retirar o desejo erótico – absolutamente afetado pela instituição da heterossexualidade – do cinema, e torná-lo um meio de erotizar a identificação (uma vez que as estrelas de Hollywood tinham um apelo homoerótico e a indústria aproveitava-se disso), também usando e elaborando a teoria feminista do cinema ao analisar o filme "She Must Be Seeing Things" (1987) de Sheila McLaughlin através de sua estrutura narrativa para discutir novas formas de dar visibilidade para o desejo e sexualidade lésbicos, além de ilustrar os riscos e as possibilidades da teorização lésbica com argumentação pós-estruturalista. Para de Lauretis, teóricas e praticantes do lesbianismo ainda estão presas no “paradoxo irresolúvel da (in)diferença sociosexual”, cujo processa a representação fílmica, crítica e literária da sexualidade butch-femme (lésbica masculina) como impossível de compreensão e visibilidade. Essa discrepância afastou as lésbicas da teoria feminista de cinema e as aproximou do cinema gay, resultando em teorias críticas da história e cultura do cinema feito por gays e lésbicas. Certas obras estadunidenses, como Thelma & Louise (1991), direção de Ridley Scott, que continham narrativas lésbicas, platônicas ou tangíveis, foram criticados por criar 31

uma representação reacionária de mulheres independentes em virtude do vouyerismo, ainda que apenas a "existência" (oprimida) dessas narrativas fosse considerada como filmes lésbicos por espectadoras. Na Europa, o cinema lésbico é evidenciado pela obra Mädchen in Uniform (Garotas de Uniforme, 1931), um filme anti-fascista de tema lésbico que discute as estruturas autoritárias e a opressão sexual, enquanto resistência de uma subcultura lésbica na Alemanha (RICH, 1984). Ruby Rich (1992; 2013) sobre o Cinema Novo na América Latina, reforça a dificuldade de manter-se na direção neste período caracterizado por golpes de Estado e violência física e simbólica, mas enaltece a inspiração que este cenário político causou no cinema, estimulando a cultura de cineclubes e a influência da estética neorrealista na América Latina. É com a "reinstalação" da democracia a partir da década de 1980 que houve a brecha para que o gênero e a sexualidade tomassem seu lugar como trajetórias políticas alternativas no cinema latino americano, emergindo com força na década de 1990. Anteriormente à brecha, o cinema na América Latina usava gays e lésbicas como uma narrativa mais simbólica, que são cruciais para a construção dessa cultura, mas eram tidos como exceções, ao invés de movimentos. Rich cita o entendimento de Richard Dyer e Julianne Pidduck sobre o cinema gay e lésbico como parte de um processo de construção, reconstrução e desconstrução de identidades e culturas tão incessantemente, que não exatamente dão conta, pois necessitam da construção de um léxico baseado na experiência para realmente expressar sua representação fiel, resultando no principal argumento para que gays e lésbicas façam o cinema gay e o cinema lésbico. Judith Butler, ao citar Monique Wittig, compactua com este ideal de apropriação de uma linguagem em prol do fortalecimento da voz: “Wittig argumenta que a “a obra literária pode perfeitamente operar como máquina de guerra”, até mesmo como “máquina perfeita de guerra”. Para as mulheres, as lésbicas e os gays – que foram todos particularizados por via de uma identificação com o “sexo” –, a principal estratégia dessa guerra é apropriar-se antecipadamente da posição de sujeito falante e de sua invocação do ponto de vista universal.” (BUTLER apud WITTIG, 2003, p. 172-173).

A partir do entendimento de que intimidade passa a ser politizada e que a sexualidade é abordada culturalmente com o suporte de contribuições teórico-metodológicas e analíticas, Lopes (2006) instiga a situação da representatividade enquanto reafirmadora no cinema LGBT pensando as noções do seu impacto transnacional. Esta, aplicada às lésbicas, surge em 32

meio de estereótipos masculinizados, como presidiárias ou vampiras (esta última, provavelmente remetente à homotextualidade de obras como Carmilla (1872), de Joseph Sheridan Le Fanu), que, entretanto, passa por um desenvolvimento mais natural e progressivo no cinema lésbico mundial – como ele chega no Brasil, com "Amor Maldito" de Adélia Sampaio em 1984, primeiro filme lésbico brasileiro. Adélia Sampaio foi a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, coincidentemente este o primeiro filme lésbico brasileiro, que começou a trabalhar na área com uma distribuidora chamada DIFILM em 1969. Autodidata, aprendeu tudo observando seus amigos e colegas trabalhando, e com as referências de Jacques Tati, Charles Chaplin, Nelson Pereira dos Santos e outros. Devido à temática lésbica, a Embrafilme negou o financiamento de “Amor Maldito” por ser “absurdo”, forçando a produção a ser independente com a ajuda dos atores e amigos de Sampaio, apesar da engenheira Edy Santos ter apoiado financeiramente o projeto. A exibição, entretanto, foi inviabilizada pelos donos de cinemas que se opuseram a rodá-lo (Sampaio, 2016, em entrevista concedida ao blog Blogueiras Negras). O cenário para a temática lésbica no Brasil parece não ter mudado muito neste sentido desde a estreia de Amor Maldito. Talvez o problema para o cinema lésbico brasileiro esteja no vácuo de um movimento revolucionário de força, influenciado pelo ideal de mudar o panorama conceitual da sociedade através das linguagens culturais. O impulso multidisciplinar gerado pela Revolta de Stonewall fora essencial para a produção de culturas e criação de comunidades desviantes da heterossexualidade compulsória. Sem este impulso, o Brasil ainda se encontra sem o desenvolvimento de literatura teórica e crítica de linguagens culturais queer, gay ou lésbica e, consequentemente, tem uma fraca produção de cinema LGBT. Relacionando a recente campanha da Avon em prol do Dia Mundial do Orgulho LGBT, que "reverencia" artistas fora da heteronormatividade, há uma possibilidade de que o cinema LGBT contemporâneo, em contraponto àquele de lutas das décadas de 1980 e 1990, se naturalize com mais facilidade no Brasil por intermédio do capital, possível cicatriz do militarismo no pós-colonialismo. Diversas empresas em diversos países já fizeram suas pesquisas de mercado e reconheceram a comunidade LGBT como grandes consumidores e utilizam do fôlego da geração Z em combater a desigualdade para vender seus produtos. Uma estratégia tão positiva quanto negativa; positiva por incluir a comunidade LGBT, reconhecer de fato sua existência, mas negativa por tirar proveito de uma instância forte de lutas para o benefício do capital. Ainda 33

que não haja um "impulso" maior por parte do Estado, como políticas públicas mais eficientemente voltadas à produção de cinema LGBT, há um pressuposto privado disposto ao seu desenvolvimento.

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3. POLÍTICAS CULTURAIS PARA LÉSBICAS Inter e transdisciplinar, o conceito de política cultural é debatido numa variedade de perspectivas. Houve um esforço único feito no Brasil, de Teixeira Coelho (1997), que a conceitua enquanto um programa de intervenções do Estado, entidades privadas ou comunidades para atender as demandas culturais e promover o desenvolvimento de representações simbólicas mais verdadeiras ao incentivar a produção, a distribuição e o uso da cultura. O trabalho de Lia Calabre (2007) faz um histórico das políticas culturais no Brasil relatando que, quando surgem, inicialmente, no governo Vargas (1930-1945) seu objetivo era ampliar a institucionalidade do setor cultural, criando o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), o Instituto Nacional do Livro (INL) e o primeiro Conselho Nacional de Cultura. Após 1945, desenvolvese o campo da iniciativa privada através de subvenções do governo federal, mesmo que tal financiamento ocorresse irregularmente, enquanto ocorria a consolidação dos meios de comunicação rádio, televisão e cinema. Em 1953 é criado o Ministério da Educação e Cultura (MEC), que trabalha com o entendimento de política cultural estabelecido no governo Vargas, mas sem muitas ações diretas devido ao foco ter sido todo voltado para a área de educação. Durante a ditadura militar houve mudanças para a cultura, como a criação do Conselho Federal de Cultura (CFC), que apesar de apresentar três planos de cultura, nenhum deles foi posto em prática. Na gestão do ministro Jarbas Passarinho (1969-1973) há a elaboração do Plano de Ação Cultural (PAC), que dialogava patrimônio, atividades artísticas e culturais e capacitação de pessoal. Segundo Calabre, “o Plano teve como meta a implementação de um ativo calendário de eventos culturais patrocinados pelo Estado, com espetáculos nas áreas de música, teatro, circo, folclore e cinema com circulação pelas diversas regiões do país, ou seja uma atuação no campo da promoção e difusão de atividades artístico-culturais.” (Calabre, 2007, p. 4)

A intenção ao desenvolver o setor cultural, durante a ditadura militar, era de também propiciar o desenvolvimento econômico, a preservação cultural e a criação de uma identidade para os produtos brasileiros, uma lógica que se aproxima mais do neoliberalismo e deixa sua marca neste campo a ponto de ter influenciado na criação da Lei Rouanet, promulgada em

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dezembro de 1991, que utiliza o mecanismo de renúncia fiscal. Também foi criada a lei do Audiovisual, focada no cinema com a mesma intenção de contribuição para leis de mercado. Segundo a pesquisa de Venturi e Bokany (2011), “Diversidade sexual e homofobia no Brasil”, 70% dos entrevistados acreditam que a discriminação contra a comunidade LGBT “é um problema que essas pessoas têm que resolver entre elas” e apenas 24% acreditam que o Estado deve interferir em prol do combate à lesbofobia/homofobia. Os dados da pesquisa revelaram como a discriminação ainda é forte na sociedade, e revelam a necessidade de políticas, programas e legislações que garantam os direitos de todas comunidades minoritárias. A invisibilidade se dá pela heterossexualidade naturalizada, e reforça a ideia de que lésbicas e gays não são dignos de respeito, naturalizando então as práticas lesbofóbicas/homofóbicas, ou ainda, conforme Bourdieu (2003, p. 18), mulheres que rompem o paradigma da normalidade porque tentam expressar sua sexualidade de forma diferente, não só procuram se invisibilizar como também se fecham num mundo alheio, de isolamento, e vivem sua sexualidade à margem do mundo de dominação masculina. A produção cultural, enquanto mediadora e promotora da diversidade, pode e deve se aliar a área de políticas culturais para proporcionar acessibilidade a diferentes grupos da sociedade a essas ações, que também visam essa inclusão. É também preciso um olhar analítico sobre o que é produzido pelos movimentos sociais que há décadas lutam pela visibilidade, e com a sociedade e Estado (pós governo Lula) dispostos a debater questões que vão além da heteronormatividade, ainda que esteja com um pé na exclusão, opressão e invisibilidade. 3.1. Governos Lula e Dilma A partir de 2002, através de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, quando é criada a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, o Estado foca-se em ações que promovam políticas pública de cultura, não excluindo a importância do segmento LGBT. Sua intenção era a ampliação da ideia de cultura, englobando expressões simbólicas de aspectos econômicos, sociais e de cidadania, conferindo acesso a recursos para agentes que desenvolvam ações para o propósito através de contato direto entre a SID e os diferentes movimentos, grupos e entidades. O segmento LGBT é o segundo mais atendido por recursos, obtendo mais editais neste período e arrecadando R$2.959.557,44 de 2005 a 2008 para a viabilização de produtos culturais LGBT (Rubim et al, 2010). 36

Pesquisando sobre políticas culturais voltadas para a comunidade LGBT, o Estado de São Paulo tem um concurso público de consistência desde 2011 – o Concurso de Apoio a Projetos de Manifestações Culturais com Temática LGBT – viabilizando a produção de filmes lésbicos na esfera estadual, sua maioria da modalidade documental. A cineasta lésbica Hanna Korich, visando resgatar a visibilidade de Cassandra Rios, idealizou e dirigiu o documentário contemplado pelo concurso paulista em 2012 "Cassandra Rios: a Safo de Perdizes" (2013), trazendo depoimentos de familiares da escritora e personalidades, como o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e a escritora Lúcia Facco. A escritora Cassandra Rios (1932 – 2002) estreia na literatura em 1948, publicando várias obras sobre lesbianismo e erotismo, inclusive a "Eu Sou Lésbica" em 1978, num momento de plena censura da ditadura militar, sendo a primeira escritora brasileira a vender mais de um milhão de cópias. A maioria de suas obras foram censuradas, impedindo um progresso literário na abertura de diálogo das questões lésbicas no Brasil. Na esfera nacional, o Ministério da Cultura promove o Edital Carmen Santos Cinema de Mulheres, que contempla filmes produzidos e dirigidos por mulheres, em qualquer gênero cinematográfico e temática. Nenhum filme especificamente lésbico foi contemplado, mas houve contemplados na temática LGBT, como "Viver de mim", curta-metragem de Juily Manghirmalani realizado pelo Coletivo Lumika, atualmente disponibilizado no YouTube. Esta política, que homenageia uma cineasta brasileira, é baseada no Plano Nacional de Políticas para Mulheres 2013-2015, que propôs a realização de ações de formação para lésbicas sobre políticas públicas e acesso aos seus direitos para o enfrentamento da lesbofobia e sobre as políticas de afirmação de promoção da igualdade, além de ações como difundir o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica no país todo; seu propósito, com as lésbicas, é promover maior atuação política para essas mulheres. Há uma política pública pensando e incentivando o cinema lésbico, porém, o resultado final do Edital Carmen Santos optou por outras narrativas de representatividade dos diversos ser mulher. O Plano Nacional de Cultura, Lei 12.343 de 02 de dezembro de 2010 menciona o segmento LGBT no seu anexo, nas seguintes Estratégias e ações: "1.10.12. Promover políticas, programas e ações voltados às mulheres, relações de gênero e LGBT, com fomento e gestão transversais e compartilhados" e "2.1.12. Integrar as políticas públicas de cultura destinadas ao segmento LGBT, sobretudo no que diz respeito à valorização da temática do combate à homofobia, promoção da cidadania e afirmação de direitos". 37

No Dia Internacional do Combate a Homofobia, Lesbofobia e Transfobia, o SNIIC (Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais) anunciou a alteração nos campos de cadastro de agentes culturais do Mapas Culturais, seu software livre. Com esta alteração, as opções de identidade de gênero agora incluem Mulher Transexual, Homem Transexual, Travesti, Não Binário e Outros e agora há as opções de heterossexual, lésbica, gay, bissexual, assexual e outras na categoria de orientação sexual. Isso reflete as ações do Ministério da Cultura para efetivar as diretrizes do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos e dos LGBT de 2009, criado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República que aponta ações para a elaboração de Políticas Públicas voltadas para esse segmento e que fossem de inclusão social e de combate às desigualdades, visando promover o art. 5º da Constituição Federal, os direitos sociais dos LGBTs e combater estigmas e discriminações. Apresentando as 51 diretrizes do Plano, apenas duas remetem à criação de políticas culturais: o item 5.22 das Diretrizes indica a necessidade de medidas que promovam o turismo LGBT no Brasil e de difundir informações que promovam o respeito à diversidade cultural de gênero e sexualidade; o item 5.36 traz a proposta de fomento a projetos e atividades de entidades privadas e da sociedade civil do segmento LGBT. As demais diretrizes tem caráter social, de saúde, educação, direitos humanos, combate à discriminação e legislativo. Das ações propostas e realizadas, a de maior destaque é: "apoiar, por meio dos mecanismos instituídos pela Lei 8.313/91 – Lei Federal de Incentivo à Cultura, projetos culturais que tratam da temática LGBT, a realização de estudos sobre a temática LGBT, a preservação do acervo que compõe a memória cultural LGBT, a criação de espaços culturais LGBT e eventos de visibilidade massiva de afirmação de orientação sexual, identidade de gênero e de uma cultura de paz, com vistas a promover e socializar o conhecimento sobre o tema LGBT”. Segundo o Relatório Final do Comitê Técnico de Cultura LGBT do Ministério da Cultura, criado em 2013 pela então Ministra de Estado da Cultura Marta Suplicy, que é descritivo do histórico e das ações do Comitê responsável pela elaboração e discussão de propostas de diretrizes e ações estratégicas de atuação para o fomento, reconhecimento, valorização, intercâmbio e difusão de produções da comunidade LGBT no âmbito do Ministério da Cultura. Como resultado, são apontadas as várias conquistas do Comitê, como o reconhecimento pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC das Paradas de 38

Orgulho GLTB (sigla usada na época), o mapeamento de entidades GLBT, a elaboração de editais de apoio a eventos e projetos da temática, entre outros. É importante ressaltar os objetivos do Comitê Técnico de Cultura LGBT: apresentar subsídios técnicos e políticos para apoiar a implementação de políticas culturais voltadas para a população LGBT, como diferentes formas de difusão de produtos e manifestações artísticas e culturais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e demais grupos de diversidade sexual que visam combater o preconceito, a homofobia e promover os direitos humanos da comunidade; acompanhar e monitorar as ações do MinC focadas no LGBT; contribuir para a produção de conhecimento sobre cultura LGBT. O relatório traz mais informações importantes, como o incentivo de Pontos e Pontões de Cultura da temática LGBT através do programa Cultura Viva, o lançamento de editais de apoio a paradas de orgulho LGBT, premiações de 2005 a 2009 como o Concurso Cultura GLBT 2007, viabilizado por meio da Secretaria de Identidade e da Diversidade Cultural (SID/MinC), que teve mais de 150 projetos inscritos no país todo. Em 2013, a SID divulgou o Edital de Intercâmbio Nº1, que incluía o segmento LGBT em um de seus eixos. A SID/MinC parece ser mais comprometida com as lésbicas na data 29 de agosto, Dia da Visibilidade Lésbica. O Dia da Visibilidade Lésbica foi decidido em homenagem ao primeiro encontro lésbico brasileiro em 1997, o I Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), e desde então a data tem sido o momento de maior foco sob a comunidade lésbica. O SID promoveu, em 2014, o Festival de Cinema Lésbico no Museu da Imagem e Som (MIS) de 28 a 30 de agosto exibindo filmes nacionais como “Cassanda Rios: a Safos de Perdizes”, “Meu Mundo é Esse” (2009), “Lésbicas no Brasil” (2004) e “São Paulo em Hi-Fi” (2013) e o francês “Tomboy” (2012). Também em 2014, de 29 de agosto a 02 de setembro, a SID junto com a Comissão Interministrial Brasil sem Homofobia promoveram uma mostra de cinema lésbico no Complexo Cultural do MinC, que visava ampliar o acesso a essa cultura e divulgar obras cinematográficas de reconhecido valor. 3.2 Representatividade através da política A representatividade social e política parece ser um caminho que abre mais portas na sociedade brasileira, quando consideramos o árduo trabalho do deputado federal Jean Wyllys para a comunidade gay, que além de apoiar os movimentos igualitários ministrou uma aula 39

sobre os LGBTs no cinema, também ressaltando sua pertinência enquanto mediador da representatividade e identidade de gays, lésbicas, transsexuais, bissexuais e travestis no cinema; ou seja, da mesma forma que há o primeiro deputado federal gay, há de ter a primeira deputada federal lésbica atuante abertamente nas causas LGBT. Inclusive, a aula ministrada pelo deputado foi uma atividade do Rio Festival de Gênero & Sexualidade no Cinema, em 2013, um grande festival carioca, que existe desde 2011, que inclui filmes lésbicos de produções nacionais e internacionais em sua programação. Em 2016, estreiou "Em Defesa da Família" de Daniella Cronemberg na categoria de Competição de Curta, um filme sobre um casal lésbico em risco de perder seus três filhos e também "Uma Noite e Meia" de Susana Costa Amaral, de produção majoritariamente feminina e com representatividade lésbica no cinema carioca. Foi no governo Lula, com o ministro Gilberto Gil, quando o segmento LGBT foi ouvido, entendido como constituinte da sociedade. Mesmo que algumas das ações mais estabelecidas tenham desacelerado no governo Dilma e pioradas no atual governo de Michel Temer, a construção dessas políticas culturais ainda são de suma importância para o movimento LGBT que luta pelo fim da desigualdade e pela inclusão; é importante notar que a comunidade LGBT consegue se apropriar dos mecanismos fornecidos pelo Estado de captação de recursos e afins, também facilitando esse processo. Afinal, o que é mais destacável em relação à comunidade LGBT é seu desprendimento às convenções culturais e simbólicas; seu olhar diverso para o mundo; seu lugar de fala empoderado por sua condição social em relação à uma sociedade heteronormativa e sua política intrínseca. Um caminho de visibilidade e representatividade LGBT é o cinema, apesar de não conferir total importância à representação da forma feminina em todo seu simbolismo e possibilidades, mais provavelmente devido a forma de concepção do espectador, ou seja, o consumidor que negligencia a interpretação e falha ao reconhecer padrões autoritários e desiguais em uma arte tão transcendente onde a absorção do conteúdo é interpretativa. Tanto a forma de representação quanto a de observação têm que mudar, para que possa privilegiar mais a interpretação que o visual. O que a tela manifesta é um conteúdo que influencia o comportamento humano, e mesmo entendendo o perigo da generalização, ela pode manifestar uma natureza de agressão, opressão e desigualdade que, atualmente normalizada, é simplesmente engolida sem contestar a exatidão da representatividade ou identidade do indivíduo não masculino, em todas suas facetas. 40

O crescimento do cinema LGBT é muito bem evidenciado por meio do grande número de filmes inscritos em festivais de cinema dos mais variados tipos, prova de que essa produção cinematográfica existe e está circulando, e também de uma melhor aceitação da sociedade nesta específica luta. O cinema lésbico especificamente, entretanto, ainda conta com diversas barreiras, por exemplo o filme "Flores Raras" (2013) é um dos únicos casos que teve algum destaque midiático e crítico, muito elogiado e com boa repercussão, mesmo que o diretor Bruno Barreto, em entrevista para o G1, tenha declarado a dificuldade para captar recursos ao fazer um filme na temática lésbica. Considerando o conceito dessas ações, com as políticas culturais estabelecidas, intensifica-se a produção que naturalmente amplia o conhecimento de um assunto ainda tratado como tabu em uma sociedade patriarcal e heteronormativa. Os produtos culturais LGBT são uma forma de empoderamento e estabelecimento de um grupo marginalizado na sociedade por não se encaixarem nesses padrões, sendo também uma forma de combate ao preconceito ao apresentar, representativa e positivamente, um estilo de vida tido como errado por todo um contexto histórico de ignorância sobre genética, corpo, gênero e sexualidade. Desta forma, podemos entender que há um mecanismo estatal voltado para o combate da invisibilidade lésbica e que é necessário uma maior apropriação dele da parte das mulheres lésbicas para que ocorra, como Ruby Rich, Judith Butler, Richard Dyer, Julianne Puddick e vários outros sugerem através da apropriação de linguagens.

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4. FILMES LÉSBICOS BRASILEIROS Este capítulo disserta sobre as características de treze filmes nacionais que contém narrativa lésbica, sua relação com as teorias previamente citadas e com sua repercussão no Brasil. Dentre eles, nove foram dirigidos por homens e apenas quatro por mulheres. Apenas quatro obtiveram apoio de leis de incentivo fiscal para a produção, Quanto Dura o Amor? (2009), Como Esquecer (2010), Cassandra: a Safo de Perdizes (2013) e Amores Urbanos (2016); os restantes nove contaram com financiamento de fundos privados. Em todos os filmes, o elenco é majoritariamente branco, a maioria contextualiza seus personagens na classe média ou alta; todos, porém, reforçam a dificuldade de definir a identidade lésbica devido a suas infinitas possibilidades individuais, por mais que reproduzam o estereótipo da lésbica enquanto mulher intelectual branca e rica. A tabela abaixo, resultado do mapeamento de narrativas lésbicas em longas-metragens proposto por este trabalho, apresenta os dados básicos (nome, ano de lançamento e direção) dos filmes que serão analisados. Nº Filme 1. Matou a Família e Foi ao Cinema 2. Tessa, a Gata 3. Amor Maldito 4. Matou a Família e Foi ao Cinema 5. A Partilha 6. Quanto Dura o Amor? 7. Como Esquecer 8. O Uivo da Gaita 9. Flores Raras 10. Cassandra: a Safo de Perdizes 11. Cássia 12. 13.

Ano de lançamento 1969 1982 1984 1991 2001 2009 2010 2013 2013 2013 2015

O Perfume da Memória Amores Urbanos

2016 2016

Direção Júlio Bressane John Herbert Adélia Sampaio Neville de Almeida Daniel Filho Roberto Moreira Malu de Martino Bruno Safadi Bruno Barreto Hanna Korich Paulo Henrique Fontenelle Oswaldo Montenegro Vera Egito

4.1. Matou a Família e Foi ao Cinema 1969 | 78' Direção | Júlio Bressane

1991 | 101' Direção | Neville de Almeida

O filme “Matou a Família e Foi ao Cinema” de 1991, (remake do original de 1969, dirigido por Júlio Bressane) de Neville de Almeida, é um exemplo da influência da 42

psicanálise no cinema. O cinema marginal brasileiro se envolve no visceral, permeado de narrativas desviantes, sendo o tipo de arte feita para incomodar e consequentemente, que foi fortemente censurada pelo regime militar. O filme é iniciado fazendo uma alusão à violência e à sexualidade, esteticamente desagradável ao combiná-las para uma significação conectada à realidade daquele momento de totalitarismo e libertação sexual e social. Após matar a família e ir ao cinema, são exibidos dois curtas tratando o lesbianismo: no primeiro, protagonizado por Cláudia Raia e Louise Cardoso, as personagens têm uma narrativa romântica e erótica conduzida por um sentimento de libertação da personagem Márcia (Cláudia Raia) de um casamento com um homem conservador; sua conclusão, entretanto, compactua com a psicanálise de Kristeva sobre a questão da psicose, progressivamente afastando a realidade das personagens por intermédio da violência simbólica – então imposta pelo marido –, as induzindo ao pináculo da loucura que causa seu mútuo assassinato; e no segundo, um casal adolescente lésbico têm que lidar com a homofobia em sua vizinhança em cenas também românticas e eróticas, que são desestabilizadas por uma violência que as fazem contemplar o suicídio enquanto única saída. Ainda que intencionadas criticamente, e podendo ser altamente relacionadas à conceituação de outsider por Howard Becker (2009) – ou seja, por promover alguma visibilidade a desviantes, quem não vive de acordo com as “regras” da sociedade –, a direção de Bressane reforça a “impossibilidade” do ser lésbica diante da ordem patriarcal e heteronormativa, bem como a psicanálise coloca. Segundo Xavier (2001, p. 77), este filme (de 1969) “define a forma mais nítida e consistente aos caminhos de uma experimentação capaz de, ao lado da colagem de Sganzerla, estabelecer uma nova matriz estilística no cinema brasileiro” com o estilo “udigrúdi”3, porém, não se estende sobre o contexto social do filme. A versão de Neville de Almeida venceu nas categorias de melhor direção e melhor atriz coadjuvante (Ana Beatriz Nogueira), também indicado para melhor filme no Festival de Gramado de 1991. As produtoras envolvidas na versão de Almeida foram Cineville Produções Cinematográficas, Columbia Tristar Pictures, Art Filmes e Skylight Cinema Foto Art Ltda.

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XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 77.

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4.2. Amor Maldito 1984 | 76' Direção | Adélia Sampaio O filme traz a história de Fernanda Maia, interpretada por Monique Lafond, acusada de assassinato pelo suicídio da companheira Sueli Oliveira, interpretada por Wilma Dias, que é vista no início do filme se jogando da janela do apartamento de Fernanda, que está deitada com um homem. A história é baseada em fatos reais ocorridos em Jacarépagua, no Rio de Janeiro. O filme se passa no julgamento de Fernanda. Toda a família de Sueli está presente, amigos de Fernanda e pessoas do cotidiano local. Assim que Fernanda chega no estabelecimento, a família de Sueli age agressivamente contra ela, acusando-a de assassina e começa o julgamento. O advogado de acusação deixa seu caso claro: Fernanda havia corrompido a moral cristã de Sueli através do “homossexualismo”. Sua abordagem contra Fernanda é agressiva e exagerada, carregada de fanatismo religioso. São chamadas diversas testemunhas. A primeira é pastor Daniel, pai de Sueli. Seu discurso é exatamente o mesmo do advogado de acusação, Fernanda corrompeu Sueli, corrompeu outras “mocinhas”, não tem respeito por seus semelhantes ou à lei de deus. A mãe de Sueli, em depoimento, também diz acreditar que sua filha tinha sido desencaminhada, pois antes de relacionar-se com Fernanda, era uma menina boa, educada e devota à religião. Nestes discursos, a palavra “homossexualismo” é usada, o termo que confere o entendimento de doença a homossexualidade, e a expõe como imundice e falta de vergonha. A irmã de Sueli, ao testemunhar, mostra uma perspectiva muito inocente sobre a irmã, lembra dela como a irmã mais velha que era ambiciosa por uma carreira midiática, de natureza rebelde. Acusam Fernanda de ser uma criminosa fria e calculista por praticar pecados contra a moral cristã, digna de pena máxima. Ao investigá-la, o advogado da defesa pede que Fernanda diga como conheceu Sueli: após ter se candidatado ao concurso de miss, Sueli procura por Fernanda na firma onde trabalhava e lhe pede ajuda com os convites para o concurso. A segunda vez que se encontraram fora depois do concurso, na praia, Sueli havia ganhado às custas de ser expulsa de casa. Fernanda conta ao júri que ficou com pena e quis ajudar, oferecendo pouso em seu apartamento. O filme, que utiliza flashbacks nos momentos contados por Fernanda, retrata uma cena erótica entre as personagens durante um banho em um jardim. Relembrando o começo do relacionamento, havia um sentimento de companheirismo entre as duas, Fernanda confortava e ajudava Sueli com seu dilema familiar 44

com a troca de suas próprias experiências como desviante. São retratados momentos de um passeio em um parque de diversões, quando Sueli fala sobre sua ambição de ser miss mais uma vez, aparecer em revista para homens e acreditar que faria sucesso na mídia. A próxima testemunha é o síndico do prédio de Fernanda. Esta parte do julgamento volta-se à questão comportamental da vida da acusada. O advogado de acusação questiona o síndico sobre o comportamento de Fernanda e sobre uma suposta cerimônia de casamento entre ela e Sueli. Em uma ocasião social para amigos e família, o casal havia se casado ali mesmo, assinando um papel e se acabando em festa. A intenção principal do advogado de acusação é provar que esta festa teria sido uma orgia, que havia envolvido forçadamente até a irmã de Sueli. É revelado através de depoimentos que durante a festa, Sueli havia dançado e beijado Jorge, um jornalista e que Fernanda, após confrontá-la, bateu em Sueli. Uma vizinha, moradora do prédio, também é uma testemunha que diz não gostar da grande quantidade de homens que entrava e saia do prédio, “gente de cinema e televisão”. A próxima testemunha é um amigo gay de Fernanda, que esteve na festa de casamento. Em seu depoimento, prontamente ignorado pelo advogado de acusação, é questionado sobre a virtude da moral e responde que a ocasião era apenas uma festinha para as minorias injustiçadas. Ainda tentando provar a orgia que aconteceu, o advogado de acusação chama Jorge, o jornalista, que nega envolvimentos românticos com Sueli. Vencida a pauta falha da orgia, o foco do julgamento agora são os eventos que se seguiram após a briga. É revelado que Sueli procurou por Jorge atrás de emprego e tiveram um caso, de onde surge uma sessão de fotos nu da miss e quando ela engravida do jornalista. Jorge pede Sueli em noivado, e ao aceitar, separa-se de Fernanda. Por um período, a miss viveu na casa de Dona Lígia, que também testemunhou e contou sobre a vivência de Sueli com a família: o pai, pastor Daniel, a espancava e a aliciava na prostituição para seus patrões. Uma cena crua de violência muito ocasionada pela religião se sucede, o pai de Sueli a espancava durante o jantar em família, gritando “satanás” contra a filha enquanto sua esposa e outra filha continuavam a jantar. A próxima cena é uma memória apaixonada entre Fernanda e Sueli. Lígia também revela uma interação agressiva que teve com o pastor Daniel quando o procurou para falar sobre a situação de Sueli. Antes da decisão do júri, Fernanda se defende enquanto ser uma mulher livre e assumida, convicta diante das agressões verbais e de seu amor por Sueli. A cena é impactante, no momento que afirma seus sentimentos por outra mulher, Fernanda quebra a quarta parede e 45

olha diretamente para a câmera. Absolvida pelo júri, Fernanda é vista novamente levando flores ao túmulo de Sueli, onde escreve “só eu te amei”. Uma interpretação adequada à obra de Adélia Sampaio é entender este acontecimento como uma influência direta da Inquisição no Brasil, conforme Vainfas (1997) resgatou. Tratase do mesmo tipo de julgamento, em uma linguagem mais contemporânea, a jurídica, que coloca na balança o peso do poder da Igreja contra a liberdade individual, e como este sistema político forma uma sociedade alienada e agressiva. As vidas de Fernanda e Sueli foram julgadas perante um sistema de valores morais criado para o controle de massa, confirmadamente através da história nos mais diversos ângulos. É importante que Fernanda tenha sido absolvida, pois reproduz um senso de justiça no mínimo adequado para um caso de lesbofobia do fanatismo religioso. Em 2016, Amor Maldito e Adélia Sampaio foram resgatados mais abrangentemente devido aos movimentos de resistência e feminismo negro. A diretora, que hoje tem 72 anos, foi chamada para participar de diversos eventos na temática do cinema, incluindo exibições de Amor Maldito em Porto Alegre, Niterói, Aracaju, Fortaleza e diversas rodas de conversa. Na época original de estreia, quase não houve repercussão, apenas uma resenha de Leon Cakoff na Folha de São Paulo e tímidas sinopses sem muito aprofundamento segundo o texto de Pedro “Pepa” Silva para a revista Geni. A repercussão após redescoberta é geralmente positiva, elogiando tanto o conteúdo do filme quanto a direção de Sampaio. 4.3. A Partilha 2001 | 96' Direção | Daniel Filho Baseado na peça de teatro de Miguel Falabella e roteiro adaptado por João Emanuel Carneiro e Miguel Falabella, o filme retrata a história de quatro irmãs perante a morte da mãe e o compartilhamento da herança. Trata-se de uma família branca de classe média que ramificou diferentes estilos de vida, com a irmã caçula Laura (Paloma Duarte) tendo a narrativa lésbica. A personagem tem uma companheira, Célia (Guta Stresser), e pretende fazer doutorado na Alemanha com o dinheiro da herança. Não é exatamente uma personagem de grande destaque, entretanto, suas cenas englobam as problemáticas do ser de uma sexualidade desviante, como a cena em que Laura se assume, explosivamente, para as irmãs usando uma quantidade de gírias e termos considerados pejorativos, constantemente ouvidos pelas 46

lésbicas. Sua narrativa também aborda a questão do amor, onde a personagem Célia não pretende mudar-se para Alemanha com Laura, mas que a partir de declarações de amor e clichês românticos muito usados no cinema muda de ideia e declara-se publicamente para Laura. Nesta obra, portanto, temos duas mulheres brancas de classe média, economicamente independentes, de escolaridade superior na representação lésbica em um filme de homens. A Partilha teve produção pela Globo Filmes, Columbia Tristar Filmes do Brasil e Lereby Produções e distribuição pela Columbia Filmes e sofreu críticas sobre a execução do filme, apesar de uma história interessante e atraente, mas que não mencionam o contexto da personagem Laura mesmo exaltando a atuação de Paloma Duarte em sua química com o elenco. As críticas não se aprofundaram nas histórias individuais das quatro personagens, apenas o contexto geral, a direção de Daniel Filho nesta comédia dramática e a atuação das atrizes. 4.4. Quanto Dura o Amor? 2009 | 83’ Direção | Roberto Moreira Produzido pela Coração de Selva – produtora criada em 2003 por Geórgia Costa Araújo e Roberto Moreira –, Quanto Dura o Amor? foi financiado com recursos do Governo do Estado de São Paulo, de leis de incentivo ao audiovisual do Governo Federal e do Município de Paulínia e das empresas Sabesp, BNDES, Estre, Petrobrás, Volkswagen, Adidas e Galvani. Segundo Roberto Moreira, o filme não pretendia representar o mundo exatamente como ele é, mas como poderia ser ao retratar experiências da cidade de São Paulo; a construção dos personagens foi delicadamente pensada, pela semiótica de apresentá-los como uma imagem da realidade. A história é localizada numa realidade urbana e contemporânea, a vida dos moradores da região da Avenida Paulista em São Paulo. Uma das personagens principais, Marina (Silvia Lourenço) com a narrativa lésbica, traz a perspectiva do deslumbramento com a cidade, vinda do interior buscando pelo sonho de ser atriz, que enquanto adapta-se a ela em meio ao seu caos, se apaixona pela cantora Justine (Danni Carlos). A questão da transsexualidade é retrata pela personagem Suzana, advogada reclusa e fechada, trabalhada pela sua intérprete Maria Clara Spinelli, atriz transexual, sendo a narrativa de maior destaque entre a crítica brasileira e rendendo o prêmio de melhor atriz do Festival de Paulínia para Spinelli. 47

Quanto Dura o Amor? lida com a sexualidade como ela é nos cotidianos em uma cidade que permite todas as possibilidades de experiências. Ele procura sustentar as teorias queer, gays e lésbicas de representação, além de perpetuar as intenções do Cinema Novo brasileiro de retratar o social de forma naturalizada, e não imposta. 4.5. Como Esquecer 2010 | 100' Direção Malu de Martino Baseado no livro de Myriam Campello, “Como Esquecer – Anotações quase inglesas”, este filme acompanha Júlia (Ana Paula Arósio) pela superação do término de um relacionamento estável de dez anos com sua ex-companheira Antônia. O foco do roteiro de José Carvalho está nas indagações sobre o amor e o sofrimento e como as pessoas lidam com eles, principalmente na comunidade LGBT, mesmo que trate esta com uma naturalidade refrescante. A sexualidade das personagens não é explorada cruamente, é de uma sutileza queer muito instigante e matura. A personagem Júlia, professora universitária mergulhada na melancolia de uma decepção amorosa, lida com seus problemas de uma forma que transcende sua paixão por seu objeto de estudo, a Literatura Inglesa de autoras como Charlotte Bromtë, Virginia Wolf, Emily Bromtë e outras,

incorporando tais referências em sua

contemporaneidade. Júlia divide uma casa com seu amigo gay, Hugo (Murilo Rosa), recém viúvo e Lisa, abandonada pelo namorado devido a uma gravidez não planejada, que em suas histórias mostram suas perspectivas sobre o amor. Quando Júlia conhece e se envolve com Helena (Arieta Corrêa), uma artista que é aparentemente seu total oposto, ela desconstrói sua solidão pela perspectiva de independência emocional. Ainda que seja um elenco hegemonicamente branco, com personagens da classe média, intelectuais e criativos – perpetuando a noção de que o homossexual liberto é o branco economicamente independente –, “Como Esquecer” é uma obra fiel com as intenções do viver homossexual. Em entrevista concedida ao Programa Revista do Cinema Brasileiro, a diretora Malu de Martino coloca que o filme é uma forma de dar “homovisibilidade”, ou seja, retratar o cotidiano de homossexuais com naturalidade, para que as diversidades sexuais sejam vistas com igualdade à heterossexualidade. A direção de Martino pratica o ideal de Wittig e Butler de apropriação de uma linguagem, o cinema, para o fortalecimento de uma cultura e produto de desconstrução. 48

Também entrevistada pelo site Epipoca, a diretora Malu de Martino reforçou a dificuldade de conseguir incentivo para a produção de longas-metragens, sendo este um assunto pertinente entre cineastas, ainda que Como Esquecer tenha recebido o prêmio adicional de renda de apoio da Ancine e sido patrocinado pela BB Gestão de Recursos Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários, pela Secretaria de Política para as Mulheres e pela Clear Channel e tendo a Europa Filmes como distribuidora. O filme teve boa circulação e premiações em festivais de cinema do Brasil e do exterior: melhor roteiro no Festival dos Sertões (2011), melhor filme no Festival Brasileiro de Montevidéu (2011), no Festival de Natal (2010) no Rainbow Film Festival (2011) em Fortaleza, melhor fotografia (Heloísa Passos) também no Rainbow Film Festival, melhor figurino no Festival de Petrópolis (2010), Ana Paula Arósio ganhou o prêmio de melhor atriz no Rainbow Film Festival, no Festival de Natal, no Festival de Petrópolis e no Prêmio APCA (2010) e Murilo Rosa ganhou melhor ator no Los Angeles Brazilian Film Festival (2010). Como Esquecer foi muito bem elogiado na crítica da Revista Cinética, escrita por Eduardo Valente. 4.6. O Uivo da Gaita 2013 | 75' Direção Bruno Safadi Produzido pela Alumbramento, Daza Cultural e TB Produções e distribuído pela Arthouse, O Uivo da Gaita fez parte de um projeto coletivo chamado “Operação Sonia Silk”, inspirado pela produtora Belair dos cineastas Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, e não contou com incentivos públicos para sua produção. O filme circulou por festivais de cinema nacionais e internacionais e recebeu o prêmio de finalização do Hubert Bals Fund. O Uivo da Gaita é um filme experimental que faz uma homenagem ao amor líquido. Em ritmo lento, quase angustiante, usando a fotografia da costa literal carioca em um aspecto pacificamente aflitivo e a sonografia usa ritmos intensos que acompanham a performance dos atores em cenas ricas em significação, o que confere ao filme um aspecto erótico em suas eventualidades. A história gira em torno da relação do casal Antônia (Mariana Ximenes), Pedro (Juddi Pinheiro) e Luana (Leandra Leal), mulher por quem Antônia se apaixona enquanto tenta resgatar alguma emoção de seu relacionamento comum com Pedro. A performance do ator transcendendo uma narrativa mostra-se a linguagem principal, que

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transmite a ideia de uma desconstrução sexual e social, pois o filme possui apenas dois diálogos em sua plenitude e foca nas expressões corporais. A leitura etnográfica do filme de Bruno Safadi também reforça a ideia da homossexualidade enquanto comportamento social da raça branca, de indivíduos intelectuais e economicamente independentes; e o filme não escapa a um teor fetichista que a direção masculina impõe, uma influência direta do trabalho de Júlio Bressane com Helena Ignez em Copacabana Mon Amour (1970), apesar de procurar transparecer apenas uma experiência do amor líquido. 4.7. Flores Raras 2013 | 118' Direção Bruno Barreto Baseado no romance real entre Lota de Macedo Soares (Glória Pires), arquiteta urbanista responsável pelo projeto Parque do Flamengo no Rio de Janeiro, e Elizabeth Bishop (Mirando Otto), autora americana considerada uma das mais importantes poetisas do século XX. Por intermédio da parceira de Lota, Mary (Tracy Middledorf), Elizabeth é convidada para conhecer a fazenda em Petrópolis que Lota construiu. A narrativa do filme aborda diferentes temas que constroem as personalidades das personagens, o momento político que o Brasil se passava na época do romance era a ditadura militar, logo, a interação entre uma brasileira e uma americana estabelece um jogo de poder em sua relação que reflete da conjuntura nacional da época e sua relação com os Estados Unidos. O entendimento de “família” também é discutido na narrativa, quando Lota aceita criar uma criança com Mary, mesmo separando-se dela por Elizabeth, que agora também divide o espaço da fazenda (algo como um oásis onde aquelas mulheres podem ser lésbicas, em referência a um diálogo no filme). É importante destacar a interpretação de Glória Pires, um renomado nome da emissora nacional Rede Globo, em um papel que é visto como um risco na carreira de uma atriz, contracenando um romance lésbico mergulhado em emoções humanas muito intensas em fortes personalidades, o que, contextualizado com a experiência de Pires, mulher heterossexual e mãe, em sua desconstrução durante o processo criativo com a personagem acaba resultando na representação da lésbica neste contexto de diversidades sexual, política, social e cultural.

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Lota é um personagem interessante, é uma mulher branca rica da high society do Rio de Janeiro, com experiências de vivência nas culturas europeias e americana, arquiteta estabelecida, com conexões políticas (Carlos Lacerda como o de maior destaque nos registros e no filme), que passa a maioria dos seus dias em sua fazenda com sua parceira; sua relação com Mary, entretanto, parece saturada pela rotina, pelo posicionamento de Lota sobre ser mãe, que questiona a obrigatoriedade da maternidade sob a mulher, contra um posicionamento maternal e como isso pode ser relacionado com a heteronormatividade. Com a chegada de Elizabeth em sua rotina, o desejo de Lota, quase perdido em sua relação com Mary, é despertado e intuitivamente impossível de ser refreado num romance “opostos se atraem”, também relacionado com as posições políticas contrárias das personagens ao mesmo tempo que dividem e troquem suas experiências em diversas linguagens, é como se, para Lota, existisse um aspecto de disputa sexual, já conquistada na relação com Mary. Impedir que Mary a deixasse negociando um filho reforça o aspecto de dominação e submissão desta relação e a competitividade de Lota, mas que indica uma ressignificação de família, afinal, quando a reimagina sob a criação de três mulheres lésbicas. A cena de adoção da menina Clara causa uma sensação de que a criança fora comprada, o que instiga sobre as questões socioeconômicas do Brasil e a posição de Lota neste quesito. Sua reação depressiva ao confrontar a separação com Elizabeth, após anos de convivência; o detrimento da relação foi causado pelo mesmo motivo da relação com Mary, cansaço da rotina - muito por parte de Elizabeth - e pela situação política saturante que Lota estava envolvida. A depressão manifestada pela personagem pode ser interpretada como Lota encarando o sentimento de perda muito intensamente, similar à narrativa do filme “Como Esquecer” de Malu de Martino, contrariar ao mesmo no desenlace da solidão - Lota comete suicídio após visitar Elizabeth em Nova York e encontrá-la vivendo sem as amarras do seu relacionamento juntas. 4.8. Tessa, a Gata & Cassandra: a Safo de Perdizes 1982 | 110’ Direção | John Herbert

2016 | 62’ Direção | Hanna Korich

Neste subitem, a junção de Cassandra: a Safo de Perdizes (2013) e Tessa, a Gata (1982) foi feita para resgatar um pouco sobre a vida de Cassandra Rios, anteriormente citada. Nascida em São Paulo em 1932, Odete “Cassandra” Rios foi uma escritora brasileira de 51

ficção, mistério, erotismo e homossexualidade feminina. Seus temas foram gravemente censurados durante a ditadura militar, proibindo 36 de seus livros e a processando inúmeras vezes, Rios era descrita como comunista e obscena. Sua linguagem literária é permeada por uma resistência irônica, inteligente e revolucionária, que captou fielmente a realidade brasileira perante a lésbica: foi a primeira autora dos estudos de gênero do Brasil, uma das originárias da cultura lésbica nacional, um tabu pecaminoso e pervertido que a ditadura militar não podia permitir cuja existência. O acesso ao trabalho de Cassandra Rios no Brasil ainda é inviabilizado. Com o intuito de resgatar visibilidade para a contribuição de Cassandra Rios à cultura lésbica, Hanna Korich, com apoio do Programa de Ação Cultural, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e circulação em festivais. A diretora conta, em entrevista ao site Blogay, que ficou escandalizada com a (quase total) falta de conhecimento sobre as obras de Cassandra Rios enquanto pioneira da cultura lésbica. A decisão de fazer um documentário foi feita por causa da experiência de Korich quando trabalhou para a Editora Brejeira Malagueta – única editora lésbica da América Latina, criada em 2008 – chegou à conclusão de que as lésbicas brasileiras compram poucos livros e também pelas novas gerações da Era da Imagem. Para Korich, a maior ação afirmativa de Cassandra Rios foi a visibilidade lésbica no Brasil desde 1948 (sua primeira publicação, “Volúpia do Pecado”). O documentário contou com depoimentos da família, amigos e conhecidos de Cassandra Rios, fotos, capas de seus temas, imagens de seus objetos pessoais e relacionadas ao tema LGBT e trilha sonora composta por Laura Finocchiaro. Já Tessa, a Gata, lançado em 1968, teve adaptação com elementos subversivos para uma pornochanchada em 1982. O roteiro foi escrito por Cassandra Rios, John Herbert, Tácito Rocha e Carlos Alberto Sofredini, produzido pela Enzo Barone Filmes S.C. Ltda, Atlântida Cinematográfica Ltda e John Herbert Produções Ltda, distribuidora pela União Cinematográfica Brasileira, W.V. Filmes e Condor Filmes. Narra a história de três mulheres: Tessa (Nicole Puzzi), casado com Gustavo (Walter Forster) enquanto mantém um relacionamento amoroso com Débora (Patrícia Scalvi); Débora, que vai para São Paulo trabalhar na indústria de Raul (Carlos Kroeber); e Roberta (Rosina Malbouisson), irmã de Tessa e esposa de Raul. O casamento de Roberta é totalmente dominado por Raul, traficante adepto a fantasias sexuais machistas e sádicas. Tentando escapar o relacionamento abusivo, Roberta se envolve sexualmente com Débora, que procura nesta relação relembrar seus 52

momentos com Tessa. O enredo se desenvolve a partir da ligação lésbica das três personagens. 4.9. Cássia 2015 | 92’ Direção | Paulo Henrique Fontenelle Produzido pela Midgal Filmes e GNT, e distribuído pela H2O Filmes, o documentário traz depoimentos tocantes sobre a cantora Cássia Eller, que morreu aos 39 anos em 2001, no auge de sua carreira. Para conseguir o aval da família da cantora, Fontenelle teve a condição de retratar fielmente a vida de Cássia Eller, podendo abordar todas as polêmicas como sua homossexualidade, casos extraconjugais, abuso de drogas, a paternidade do filho num casamento lésbico e que difundisse a verdadeira informação sobre sua morte – a mídia, na época, noticiou sua morte devido a uma overdose de cocaína, mesmo que o resultado da autópsia tenha revelado um infarto. Maria Eugênia Vieira, companheira de Cássia Eller por catorze anos, cedeu grande parte de seu acervo pessoal para o documentário. A personalidade de Cássia foi o foco principal dos depoimentos de amigos, como Zélia Duncan, Nando Reis e Oswaldo Montenegro, reforçando a dualidade tímida e rebelde da cantora. O documentário acompanha gradualmente o trajeto de sua transformação através dos estilos musicais, de roqueira à intérprete da MPB. Cássia é um filme importante para a comunidade lésbica por discutir a homossexualidade da cantora, uma das principais causas de polêmica sobre sua vida, além de retratar a batalha pelos direitos LGBT e desmitificar, ao filmar o real, uma experiência lésbica em uma sociedade machista e lesbofóbica que “ignorava” a sexualidade de Cássia Eller por “respeito” ao seu talento. 4.10. O Perfume da Memória 2016 | 73’ Direção | Oswaldo Montenegro Financiado totalmente pelo diretor, Oswaldo Montenegro, O Perfume da Memória retrata a paixão entre duas mulheres muito diferentes, Ana (Kamila Pistori) e Laura (Amandha Monteiro), que se conhecem através da esporádica curiosidade da personagem 53

Laura durante uma noite depressiva do momento emocionalmente complicado da vida de Ana. Declaradamente, o filme faz referência ao amor líquido e procura “esclarecê-lo” através dos longos diálogos entre Ana, que se encontra num relacionado aberto há anos que cultiva primariamente a amizade entre o casal, e Laura, devastada pelo término inesperado do casamento. Ainda que a crítica brasileira tenha rejeitado a intervenção musical e da narração de Oswaldo Montenegro, a ideia de discutir o amor livre enquanto uma possibilidade para todos gêneros e sexualidades (e, consequentemente, não se focando no lesbianismo) e como ele se encaixa no cotidiano é geralmente bem aceita. Os diálogos, que caracterizam as personagens através da astrologia e da psicologia, foram bem recebidos e colocados como ponto forte do roteiro que desliza entre a poesia e o teatro. Sobrecarregado de influência dos 40 anos de carreira multidisciplinar, Montenegro consegue se sustentar intelectualmente no cinema ao abordar um tema gradualmente mais discutido no século XXI, devido a abertura causada pelos movimentos libertários, e por apropriar-se da produção independente e as novas tecnologias. O cinema de autor faz parte da bagagem de Montenegro. 4.11. Amores Urbanos 2016 | 73' Direção | Vera Egito Financiado pela Spcine através do Programa de Investimento em parceria com o Fundo Setorial do Audiovisual da Ancine, o primeiro longa-metragem de Vera Egito é uma comédia dramática sobre a vida de três amigos na cidade de São Paulo, Júlia (Maria Laura Nogueira), Diego (Thiago Pethit) e Micaela (Renata Gaspar). Júlia é a deprimida protagonista, com mais desenvolvimento no enredo do filme, lidando com o fim de um relacionamento heterossexual e com a pressão da mãe para arrumar um emprego. Ela vive em seu próprio apartamento – presente dos pais – dividido com Diego e Micaela, e chegou aos trinta anos de idade como estagiária. Diego, homossexual, não consegue se ajustar à monogamia exigida de um parceiro romântico e tem um passado infeliz com sua família, devido à sua sexualidade. Micaela, lésbica que um conturbado relacionamento de armário com Eduarda (Ana Cañas), tem pouquíssimo desenvolvimento no enredo. 54

Seu tema principal é retratar o estilo de vida de uma geração nas possibilidades das grandes cidades, que conforme argumenta a promissora cineasta, são um grupo muito específico da realidade brasileira, que faz referências pessoais sobre sua própria vida e círculo social. Toda a equipe de produção de Amores Urbanos foi composta apenas por mulheres, um reflexo da militância feminista de Egito, por mais que a formação feminina tenha acontecido ao acaso. O trabalho de Vera Egito é notadamente influenciado pela teoria feminista do cinema, uma vez que descentraliza totalmente o homem da produção e a revoluciona com a perspectiva puramente feminista, mesmo que reproduza, inadvertidamente, os ideais que separam as lésbicas do feminismo. Amores Urbanos, produzido pela Paranoid e distribuidora pela Europa Filmes, teve estreia mundial no Miami International Film Festival, concorreu ao Prêmio do Público no Festival de Cinema Brasileiro de Paris, teve visibilidade no Miami Gay and Lesbian Film Festival, no Cine Fest Brasil Montevideo e no Cine Fest Brasil Buenos Aires, além de concorrer na mostra competitiva do Cine Las Americas em Austin, Texas.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O propósito deste trabalho de conclusão de curso foi buscar e reunir informações sobre uma subcultura lésbica no Brasil, o Cinema Lésbico. Ao procurar especificamente sobre o assunto, podemos perceber que a temática lésbica tem muito pouco alcance no pensamento do cinema teórico e acadêmico no Brasil, e o pouco é encontrado com dificuldade. Isto gerou a primeira grande pergunta deste processo, um simples “por que?” que minuciou a pesquisa para o contexto da sociedade brasileira em relação à lésbica. Em “Identidade Lésbica” procuramos trazer o que nomes consagrados das teorias culturais contribuíram para o estudo de gênero, sexualidade e identidade. É possível considerar que Beauvoir (1949) influenciou nos estudos lésbicos com o ponto de vista da psicanálise e que Hall (1987) revoluciona a noção de identidade no momento pós-moderno neste e em vários outros estudos culturais ao encaixar-se como único momento em que o lesbianismo pode começar a se manifestar. A história também pode nos elucidar sobre como a sociedade brasileira contemporânea é afetada pela construção religiosa do Brasil intermediada pela insidiosa Inquisição no período colonialista, através de Vainfas (1997) que resgata casos de lesbianismo processados pelo Tribunal do Santo Ofício de 1591 a 1595. A hierarquia política da igreja católica é machista e heteronormativa, e seu poder perpetua esses ideais como supremacia na sociedade brasileira. Compreendendo esta como uma dinâmica da sociedade, há o contraponto dos movimentos igualitários que se propuseram a expandir a fórmula do viver e prová-las tão dignas quanto a ordem machista heteronormativa. Warner (1993) e Seidman (2000) trazem uma ótica com ênfase na pós-modernidade pós-identitária, a vertente queer, cuja política procura desconstruir a heterossexualidade compulsória, o machismo e o racismo, naturalizar qualquer vivência fora desta ordem e proporcionar seu conhecimento e cultura. É uma ótica utópica para a contemporaneidade brasileira como um todo, que ainda é regida pela ordem do masculino e tem um lento desenvolvimento sobre a igualdade de gênero e sexualidade. A lésbica, segundo Wittig (1980) e Butler (2003), seria um terceiro gênero que quebra a heterossexualidade compulsória por “retirar-se” das regras masculinistas da sociedade, ela fragmenta a ordem vigente de sexo e gênero e também a ameaça. A sexualidade da lésbica é majoritariamente discutida pela ótica psicanalítica, seja por reforçar as teorias Freudianas e Lacanianas ou para desconstruí-las por serem falocêntricas e prognósticas. O nosso atual sistema machista, patriarcal e 56

heteronormativo dificulta o reconhecimento da vivência lésbica utilizando a violência simbólica como principal arma de controle. O Cinema, claramente, não escapa à essa ordem. A contextualização histórica, social e teórica da sétima arte foi importante por ter uma construção empírica no machismo: é inventada uma linguagem capaz de expor as falhas da sociedade e proporcioná-la prazer, que é controlado, desde o princípio, por homens (brancos) mesmo que as mulheres estivessem envolvidas também desde o começo e contribuído para seu desenvolvimento. O que essa linguagem reproduz, sendo majoritariamente masculina, são todas as possíveis narrativas que universo masculino deturpa a seu favor, ela transmite a interpretação masculina sobre tudo. O cinema brasileiro tinha grandes propósitos, desvencilhar-se e vencer o colonialismo, impulsionar a nacionalidade e abalar a realidade da sociedade brasileira com sua imperfeição, dissonância, rebeldia e imprecisão (Stam apud Rocha, 2003). Entretanto, parece ter sido uma arma muito conectada ao jogo político dos homens brancos, porque era excludente e invisibilizava as mulheres. O verdadeiro momento onde a mulher pode infiltrar-se no cinema brasileiro foi a partir de 1990, com o cinema de Retomada, pois sua existência no cinema anteriormente não foi reconhecida, mas contemporaneamente, ela pode ser resgatada. A teoria do Cinema Lésbico utilizada neste trabalho traz os conceitos de Rich (1992), Stacey (1987), De Lauretis (1994), Patrícia White (1991) que o entendem como um cinema desconstrutor, político e simbólico que deve seguir o raciocínio feito por e para lésbicas, capaz de construir um léxico empírico que quebra com a visão masculinista sobre o Outro e representa fielmente todas as possibilidades desta identidade sexual. A representação fiel só pode ser alcançada uma vez as linguagens sejam apropriadas com a intenção de causar uma transformação social positiva na sociedade, dando continuidade aos ideais dos movimentos de luta e fortalecendo as culturas que ameaçam a ordem patriarcal. A análise sobre as políticas culturais, embasada na desenvoltura teórica de Rubim (2010), Coelho (1997) e Calabre (2007), prova que desde 2002 há políticas de fomento à cultura LGBT quando a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura foi criada. O Plano Nacional de Cultura (2010) enfatiza o papel do Estado em promover políticas, programas e ações voltadas ao segmento LGBT, principalmente sob o intuito de combater a homofobia, promover a cidadania e a afirmação de direitos. A premissa de que os estados brasileiros acatarem a essas políticas não foi muito bem sucedido até o momento, entretanto, alguns estados incluíram o segmento LGBT, como o estado de São 57

Paulo, possibilitando a produção de algumas obras na temática lésbica. As lésbicas, portanto, estão incluídas no sistema político brasileiro, o que cancela (simbolicamente) a invisibilidade lésbica, mas que provoca uma inviabilidade fortalecida pela hegemonia masculina (que, no caso LGBT, dá preferência ao homem gay branco) e a ausência da apropriação lésbica destas ferramentas políticas. A análise das obras de narrativa lésbica do Brasil também fortaleceu a conclusão de que não há Cinema Lésbico no Brasil, uma vez que nove dos treze longas-metragens mapeados foram dirigidos por homens. Apenas quatro filmes exclusivamente sobre lésbicas foram dirigidos por mulheres, reforçando a predominância masculina na indústria cinematográfica e impõe um olhar duvidoso sobre o que os diretores pretendiam significar com a narrativa lésbica. Os filmes dirigidos por homens podem ser relacionados com a teoria psicanalítica, a perspectiva de psicose humana por negar a ordem patriarcal, ou têm uma visão geral masculinista que, de certa forma, usa o fetiche como um filtro que impede a identificação com as personagens. Os documentários biográficos escapam dessa perspectiva devido ao conceito maior do documentário, o filmar o real, e resgatam personalidades muito importantes para a cultura lésbica brasileira. Ainda que algumas das obras sustentem os ideais “importados” do Cinema Lésbico e Queer, todos os treze filmes têm elenco majoritariamente branco; mesmo que o número de produções com temática lésbica seja pequeno, é depreciativo da diversidade brasileira que o estereótipo da lésbica como femme branca, independente e culta seja única identidade possível de identificação na linguagem cinematográfica. Esta incidência vai contra a idealização do cinema brasileiro e do cinema LGBT, pois evoca um ângulo tendencioso na proposta de desconstrução. Concluindo, é muito simbólico demarcar que o Cinema Lésbico não existe no Brasil. Uma produção sólida feita por lésbicas para lésbicas ainda não se consolidou, justamente devido à construção religiosa, o patriarcado e predominância masculina na indústria cinematográfica fincados na sociedade brasileira. O empoderamento da lésbica no Brasil é extremamente recente e frágil, como se no século XX ela tivesse se conformado em ficar à margem já que o sistema vigente não possibilitava sua aderência total no cinema. É de fato necessário um acontecimento de peso político como as Revoltas de Stonewall, específico a lésbicas, um engajamento político muito mais persistente e este trabalho também propõe a “grande reescrita sapatão” para que a cultura lésbica se desenvolva no Brasil. 58

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