Sappho : A lição de música

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Santoro, Fernando, A lição de música, Folha de São Paulo, caderno Mais!, p.7, 17/07/2005

A lição de música Fernando Santoro Safo, considerada pelos gregos a décima musa, é, para a posteridade, “A Poetisa”, o modelo clássico de lirismo e da poesia feminina. Como disse Estrabão: “Safo foi um ser extraordinário, e não temos conhecimento, em tempo algum, por mais remoto, de mulher que fosse capaz de rivalizar com ela, um pouco que fosse, em matéria de poesia”. Isto é certo para toda a antiguidade clássica; para a idade contemporânea poderíamos trazer-lhe algumas companheiras, mas ninguém para suceder sua majestade. Pois já não compete com as belezas mortais, foi raptada por Apolo e canta ao seu lado entre as demais divindades da poesia. De fato, Safo já guarda em nossa memória tudo de que precisa um mito: a distância, o mistério, o acesso indireto, uma pletora de lendas, e a beleza inconteste na pouca superfície que se nos mostra. A distância, cada vez maior e inalcançável, dos séculos. O mistério, escondido nas lacunas da obra e dentro de cada vestígio de poema que nos sobrou. O acesso indireto, seja pelas fontes secundárias distantes vários séculos do tempo em que os poemas foram compostos, seja pela própria materialidade frágil dos papiros, que hoje, para serem lidos, requisitam desde a mais alta tecnologia arqueológica até a mais experiente perícia filológica. As lendas, como as de seus amores não correspondidos, as da fundação da primeira escola intelectual para mulheres no sexto século antes de Cristo, as das suas jovens alunas, as mais belas de Lesbos... E, sem dúvida, a coroa brilhante dessa majestade musical: eles, os poemas – mesmo que de Safo conheçamos apenas algumas dezenas de fragmentos esparsos e pouquíssimos poemas que possam ser apreciados como peças mais íntegras de seu lirismo. Martin West faz as contas: “nas modernas edições os fragmentos são numerados acima de 264, porém muitos desses não contêm uma única palavra original, apenas 63 contêm algumas linhas completas, apenas 21 alguma estrofe completa e apenas três – até agora – dãonos poemas suficientemente próximos da completude para serem apreciados como estruturas literárias”. A conta parece afunilar-se como uma mina que guarda em seu fundo as pedras mais preciosas. Pois eis que foi encontrada mais uma! Uma quarta

ametista para a coroa, ou para o colar que orna “os seios floridos” da musa, iokolpon, literalmente “seios de violeta” (seios que o editor sustenta com colchetes). Sabe o leitor a alegria do garimpeiro? Mas a pedra já não nos chegou bruta, veio lapidada pelo editor, Martin West, que fez um verdadeiro trabalho de ourives, incrustando no mesmo suporte duas peças separadas do mesmo poema, cada peça encontrada em um papiro diferente, papiros distantes entre si por seis séculos de existência. Conhecíamos, de fato, uma parte do poema, mas não uma parte “íntegra”, por assim dizer, isto é, não alguns versos ou estrofes, mas apenas as últimas palavras de cada verso. Pois são assim os fragmentos, papiros rasgados ao meio, comidos pelas bordas com o passar dos séculos. Este rasgo de papiro foi reunido numa coleção chamada Oxyrhynchus Papyri, publicada por Grenfell e Hunt, no início do séc.XX, e está no tomo XV, nº 1787. No ano passado, porém, os paleógrafos Michael Gronewald e Robert Daniel conseguiram ler um outro papiro mais antigo, do séc. III antes de Cristo, conservado na Universidade de Colônia. Trata-se do mais antigo manuscrito que conhecemos com poemas de Safo. E, felicidade do acaso, lá estava o outro lado, também incompleto, mas encaixando muito bem no pedaço já conhecido. Apresentamos abaixo ao leitor o resultado da remontagem, seguida de uma tradução para o português. Não se trata ainda do poema inteiro; pelo papiro mais recente (mas que conhecemos primeiro) o poema teria pelo menos quinze estrofes de dois versos. A recomposição nos dá seis desses quinze dísticos. Mas no-los dá numa posição central, que não apenas ilumina o sentido e a estrutura de composição do poema como um todo, como também, por si só, já pode ser lido com uma integridade que lhe dá uma beleza toda própria. O poema tem a forma de uma lição de música, a maestrina ensinando suas discípulas, que trata carinhosamente de filhas, meninas – paides, literalmente, crianças. A lição tem três aspectos: primeiro, a exortação ao esmero da técnica instrumental, à dedicação à lira; segundo, traz o conteúdo de uma lição de vida, a sua brevidade e o advento da velhice; terceiro, apresenta um mito, quer dizer, um pouco da cultura tradicional. Nestes três aspectos aparecem também três elementos musicais: a melodia, a dança, a poesia. O aspecto mais desenvolvido daqueles três é o segundo: a lição da existência no tempo. Suponho que o primeiro aspecto tenha sido mais desenvolvido antes do trecho, e o terceiro depois. O terceiro, que aparece nos dois últimos dísticos do nosso trecho, trata do mito do rapto de Titônio. Aurora, encantada com sua beleza, o toma como esposo e pede a Zeus que lhe conceda a imortalidade. Zeus a concede, mas Aurora esqueceu de pedir a

conservação da juventude e, assim, Titônio segue envelhecendo por todas as eras. É a própria imagem da velhice como, para nós, o nome de Matusalém. Trata-se de uma estrutura lírica clássica que faz um mito tradicional ser interpretado e vivido como uma experiência pessoal, íntima. A marca inconfundível da poetisa está nos dísticos terceiro e quarto, que traçam com serenidade o contraste entre a beleza perdida e a dor da perda. Fernando Santoro Rio de Janeiro, 4 de julho de 2005

O POEMA e sua tradução

Fontes: Oxyrhynchus Papyri, 1787, frg. 1-2, III a.D. (Grenfell & Hunt) Papyrus Coloniensis, 2004, III a.C. (Michael Gronewald & Robert Daniel) Editor: Martin West, 2005 (in: Times Literary Supplement, 24/06/05) Tradutor: Fernando Santoro, 2005

ÓUmmej peda\ Moisan i)]ok[o/lpwn ka/la dw¤ra, pai¤dej, Spouda/sdete kai\ ta\]n fila/oidon ligu/ran xelu/nnan: eÓmoi d )aÓpalon pri/n] pot )eÓonta xro/a gh¤raj hÓdh e)pe/llabe, leu¤kai d )e)g]e/nonto tri/xej e)k melai/nan: ba/ruj de/ m )o) qu¤moj pepo/htai, go/na d [)o]u) fe/roisi, ta\ dh/ pota lai/yhr e ) Óon oÓrxhsq )iÓsa nebri/oisi. ta\ stenaxi/sdw qame/wj: a)lla\ ti/ ken poei/hn; a)gh/raon aÓnqrwpon eÓont )ou) du/naton ge/nesqai.

Kai\ ga/r p[o]ta Ti/qwnon eÓfanto brodo/paxun AuÓwn eÓrwi f aqeisan ba/men )ei)j eÓsxata ga¤j fe/roisa[n, eÓonta [k]a/lon kai\ ne/on, a)ll a ) uÕton uÓmwj eÓmarye xro/nwi po/lion gh¤raj, eÓx[o]nt )a)qana/tan aÓkoitin Vós, dotadas de belezas pela Musa de seios floridos, filhas, aplicai-vos também ao canto límpido da lira: Eu que fui delicada outrora, agora já a tez da velhice me alcançou, brancos tornaram-se os cabelos negros; Meu coração se fez pesado, os joelhos já não levam quem foi lépida dançarina, certa vez, como um fauno. Lamento-me dia após dia; mas que posso eu fazer? Não envelhecer, para o homem, é um caso impossível. Assim contam que Aurora, apaixonada, em braços róseos carregou Titônio, levando-o até o extremo da terra, quando belo e jovem – mas este igualmente foi calçado pelo tempo grisalho da velhice, tendo uma esposa imortal

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