Sara Oliveira da Costa

September 28, 2017 | Autor: Sara Costa | Categoria: Lawyers, Judges 19
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A (im)possibilidade de recurso à citação edital nos procedimentos cautelares – o caso particular da inversão do contencioso. Sara Oliveira da Costa

Trabalho elaborado para a UC de Direito Processual Civil Mestrado em Direito Dezembro de 2014

IMP.GE.10.0

Introdução

Como é consabido, nos procedimentos cautelares está vedado o recurso à citação edital como forma de chamamento do requerido ao processo a fim de, querendo, exercer o contraditório, mormente, o seu direito de defesa. Tal proibição já existia no anterior Código de Processo Civil (e falamos aqui da versão do diploma legal anterior à conferida pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho). Porém, em sede de procedimentos cautelares, o novo Código de Processo Civil veio introduzir uma das suas maiores inovações, mais concretamente, a “inversão do contencioso” a que alude o artigo 369.º. Isto é, sendo pedida e decretada a inversão do contencioso, fica o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal, adquirindo a decisão cautelar as vestes duma potencial composição definitiva do litígio. Aquele ónus transfere-se, mutatis mutandis para o requerido. A grande dificuldade surge quando não é possível efectivar a citação/notificação pessoal do requerido, por desconhecimento do seu paradeiro, e esgotadas que estejam todas as diligências possíveis com vista à sua localização. Recorde-se que, à partida, não pode recorrer-se à citação edital. A questão a que urge responder é então a de saber como compatibilizar a tutela do direito do requerente que obteve ganho de causa e quer ver a situação definitivamente regulada, e a tutela do direito do requerido que tem ser chamado ao procedimento cautelar para se defender dessa regulação tendencialmente definitiva. Este trabalho abordará essa temática apontando pistas possíveis para a conciliação prática dessas duas posições.

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1. A citação enquanto acto fundamental do processo Nos termos do artigo 385.º do Código de Processo Civil, “o Tribunal ouvirá o requerido, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência”. O princípio do contraditório, que constitui um dos pilares fundamentais do sistema processual civil, impondo-se em todas as fases de qualquer processo, encontra nos procedimentos cautelares as principais limitações decorrentes, precisamente, dos objectivos que através deles se pretendem alcançar. Considerando que os procedimentos cautelares assentam na necessidade de ser assegurada a eficácia de decisões posteriores ou da prevenção de danos, nem sempre a decisão cautelar é compatível com a prévia audição do requerido que poderia inutilizar ou fazer demorar a tomada de tal decisão. Ainda assim, devem ser tidas como excepcionais as situações em que a providência deva ser decidida, e eventualmente decretada, sem audiência contraditória. Portanto, em geral, deve ser facultado ao requerido a oportunidade de se pronunciar sobre a pretensão deduzida e os respectivos fundamentos e de apresentar as provas que entenda por convenientes para infirmar os factos alegados pela parte contrária. A não audição do requerido nos procedimentos cautelares apenas ocorre obrigatoriamente no arresto e na restituição provisória da posse. Para além dos casos em que a própria lei veda a citação do requerido antes da apreciação judicial da pretensão do requerente, há casos em que essa citação é dispensada pelo Tribunal, normalmente, a pedido do requerente (embora o Juiz possa dispensá-la oficiosamente). Mas para que tal pedido seja deferido, o requerente deve fundamentar cabalmente esta sua pretensão, alegando no requerimento inicial factos objectivos e consistentes tendentes a demonstrar que a audição da parte contrária poderia inutilizar a providência a decretar. Quando o requerente se limita a reproduzir a formulação legal, como sucede amiudadamente, o Tribunal deve concluir que não está satisfeita a exigência da parte final do n.º 1 do artigo 385.º do Código de Processo Civil e, consequentemente, manter 3

a regra geral de cumprimento do contraditório (artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil).

2. A impossibilidade legal de recurso à citação edital nos procedimentos cautelares

2.1 As modalidades da citação Há duas modalidades de citação previstas no Código de Processo Civil, no artigo 225.º n.º 1: a pessoal e a edital. A citação pessoal é feita por uma das vias previstas nos n.ºs 2 a 5 do sobredito artigo, a saber, a transmissão electrónica de dados; entrega de carta registada com aviso de recepção ou seu depósito, ou certificação de recusa de recebimento; contacto pessoal de agente de execução ou funcionário judicial; ou promovida por mandatário judicial; ou citação efectuada na pessoa de terceiro ou ainda na pessoa do mandatário constituído. A citação edital tem lugar em duas situações, nos termos do n.º 6 da mesma norma: quando se desconhece o actual paradeiro do citando ou se desconhece a identidade das pessoas a citar. Como é consabido, a possibilidade de se recorrer à citação edital num processo judicial exige que, previamente, sejam esgotadas todas as tentativas possíveis com vista à localização do paradeiro do citando (e debruçar-nos-emos sobre este fundamento de citação edital em particular por ser o que revela para a temática a desenvolver). Isto é dizer, já depois de tentada a citação nas várias moradas indicadas pelo autor, já depois de tentada a citação através de agente de execução ou funcionário judicial, já depois de consultadas as bases de dados à disposição do Tribunal, continua sem saber-se o actual paradeiro da parte. Acto contínuo, impõe-se despacho a determinar a citação edital do réu, a qual obedece, em termos de formalidades, ao disposto nos artigos 240.º a 245.º do Código de Processo Civil, culminando na citação do Ministério Público em obediência à norma do artigo 21.º do mesmo diploma. Estas regras valem quer para a citação de pessoas singulares, quer para a citação de pessoas colectivas, com as necessárias adaptações (por exemplo, não se faz a citação edital da pessoa colectiva em si, mas sim do legal representante da pessoa colectiva), como resulta do artigo 246.º do Código de Processo Civil. 4

2.2 A citação edital nos procedimentos cautelares A lei processual civil afastou a possibilidade de se recorrer à citação edital nos procedimentos cautelares, como decorre do artigo 366.º n.º 4. Assim, verificado no processo que a citação pessoal do requerido não é viável, o Juiz deve dispensar a sua audiência prévia. Não avança para a citação edital; dispensa-se simplesmente de ouvir previamente o requerido. Essa falta de viabilidade pode decorrer não só do paradeiro incerto do requerido, mas também da demora que essa citação edital pode acarretar. Recorde-se que a lei estabelece prazos muito curtos para a conclusão do procedimento cautelar (prazo máximo de dois meses, em caso de audiência prévia do requerido – artigo 363.º n.º 2 do Código de Processo Civil) e pode não conseguir fazer-se tal citação em tempo útil (por exemplo, se o requerido se encontra incapacitado de facto para receber a citação e é necessário recolher informações e provas demoradas – Freitas, José Lebre, In Código de Processo Civil anotado, 2.ª edição, [S.l], 2008, volume 2.º, Coimbra Editora, p. 29. Compreende-se que não haja recurso à citação edital pois o requerente carece de tutela urgente, impõe-se uma decisão rápida, o que não se mostra compatível com as démarches daquela forma de citação. Diz ainda Lebre de Freitas (ob. cit.) que “Este preceito é aplicável à notificação a efectuar ao requerido cuja audiência prévia tenha sido dispensada nos termos do n.º 1”. Com efeito, o artigo 366.º n.º 4, última parte, do Código de Processo Civil é bem explícito ao determinar que a notificação do requerido subsequente ao decretamento da providência cautelar segue as regras da citação. Ora, as regras da citação nos procedimentos cautelares vedam indubitavelmente o recurso aos éditos para efeitos de chamamento do requerido ao procedimento. Salvo melhor opinião, cremos ainda que essa norma (que veda o recurso à citação edital) aplica-se também nos casos em que, por força da lei, não tem lugar a audiência prévia do requerido, a saber, o arresto e a restituição provisória da posse. Como vai então compatibilizar o Tribunal essas duas situações: a necessidade de chamar o requerido para se defender da decisão cautelar e inutilizar a providência decretada e a eternização do procedimento cautelar quando aquele não é localizado? A solução que temos vindo a adoptar na prática é a de, também nesta fase ulterior do procedimento cautelar (em que a providência já está decretada), dispensar a notificação do requerido, por manifesta inutilidade do prosseguimento das diligências 5

com vista à sua localização e ordenar a notificação do requerente, nos termos e para os efeitos do disposto 373.º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Civil, isto é, para propor a acção principal, em 30 dias (devendo entender-se que são 30 dias a contar da notificação ao requerente de tal despacho, posto que não pode falar-se aqui de trânsito em julgado da decisão que decretou a providência cautelar por falta de cumprimento do contraditório subsequente do requerido). Na acção declarativa já é admissível o recurso à citação edital, pelo que se mostra viável a tramitação e a conclusão do processo judicial.

3. A novidade da inversão do contencioso

3.1 O que é e em que situações pode ocorrer Com a reforma do Código de Processo Civil, possibilita a lei o requerimento de inversão do contencioso, deixando o procedimento cautelar de ser necessariamente instrumental e provisório, uma vez que se permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos. A solução da inversão do contencioso surge na sequência da observação de uma espécie de duplicação de acções, dado que a referida instrumentalidade e dependência da acção principal leva, muitas vezes, a que nela se repitam os fundamentos e os elementos já trazidos ao procedimento cautelar, correspondendo, frequentemente, à controvérsia antes apreciada com menor ou maior segurança naquele procedimento. Entende-se, pois, que nos casos em que no procedimento cautelar é produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (Rego, Carlos Lopes In Os princípios orientadores da Reforma do Processo Civil, Revista Julgar, n.º 16, [S. l.], Coimbra Editora, 2012, p. 109). Nos termos do artigo 369.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a inversão do contencioso pode ocorrer caso o Juiz, na decisão que decrete a providência, entenda que a matéria adquirida no procedimento lhe permite formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

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Da análise desta norma verifica-se que, para que o requerente seja dispensado do ónus de propor a acção principal, terão de estar verificados dois pressupostos cumulativos, a saber: a) Que a matéria adquirida no procedimento permita ao Juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado; b) Que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio. Decorre do estatuído que é a lei que define quais as condições que devem estar verificadas para que seja decretada a inversão. Trata-se, por isso, de uma decisão vinculada do Tribunal e não de uma decisão tomada no uso de um poder discricionário. O Tribunal não inverte o contencioso segundo um critério de oportunidade ou de conveniência, mas de acordo com aqueles critérios legais (Sousa, Miguel Teixeira, In As Providências

Cautelares

e

a

Inversão do Contencioso,

disponível

em

https://sites.google.com). A convicção segura acerca da existência do direito Para que se encontre preenchido este primeiro pressuposto não basta a prova sumária do direito acautelado. Assim, no âmbito do procedimento cautelar, o Juiz terá de fazer um juízo mais profundo, de molde a formar a convicção segura da existência do direito acautelado. A inversão pressupõe, por isso, uma prova stricto sensu do direito que se pretende tutelar. Como refere Miguel Teixeira de Sousa (ob. cit.), “o que conta é que o Juiz forme a convicção segura do direito que a providência se destina a acautelar, não a convicção segura da procedência da providência decretada”. Segundo o Conselheiro Lopes do Rego (ob. cit.), “o Juiz só decretará a inversão do contencioso quando o grau de convicção que tiver formado ultrapassar o plano do mero fumus bonus juris, face nomeadamente à amplitude e consistência da prova produzida e à evidência do direito invocado pelo requerente (...) e entenderponderadas as razões invocadas pelas partes-que a composição de interesses alcançada a nível cautelar pode servir perfeitamente como solução definitiva para o litígio”. A adequação da natureza da providência decretada a realizar a composição definitiva do litígio A providência decretada tem ainda de ser adequada a realizar a composição definitiva do litígio. Assim, a lei exige que a providência decretada se possa substituir à 7

tutela definitiva que o requerente da providência poderia solicitar na acção principal se não tivesse sido decretada a inversão do contencioso - Miguel Teixeira de Sousa (ob. cit.) Justifica-se a imposição deste pressuposto, uma vez que, tendo sido decretada a inversão e não tendo o requerido proposto a acção principal, a tutela cautelar tornarse-á definitiva. No que respeita às providências especificadas é a própria lei que determina quais aquelas onde pode ser requerida a inversão. Segundo o disposto no n.º 4 do artigo 376.º do Código de Processo Civil, “o regime de inversão do contencioso é aplicável, com as devidas adaptações, à restituição provisória da posse, à suspensão de deliberações sociais, aos alimentos provisórios, ao embargo de obra nova, bem como às demais providências previstas em legislação avulsa cuja natureza permita realizar a composição definitiva do litígio”. A inversão do contencioso só é, assim, admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e, tendo em conta o elenco previsto no artigo 376.º, apenas se a providência cautelar requerida - de carácter nominado ou inominado - não tiver um sentido manifestamente conservatório. A inversão não é, deste modo, aplicável às restantes providências especificadas previstas no Código de Processo Civil, nomeadamente, ao arresto, ao arrolamento e ao arbitramento de reparação provisória. Nestes casos, a tutela definitiva e a tutela cautelar cumprem uma função totalmente distinta e prosseguem objectivos completamente diferentes, não sendo admissível aplicar-lhes a inversão – Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit. p. 12.

3.2 A compatibilização da inversão do contencioso com a proibição do recurso à citação edital Imaginemos, então, uma situação prática em que não houve a audiência prévia do requerido – seja por força da lei, seja por força de dispensa judicial – e a providência cautelar é deferida. Imaginemos ainda que o Tribunal decreta a inversão do contencioso e, dessa forma, dispensa o requerente de propor a acção principal. Nessa situação, o requerido deve ser notificado das decisões do Tribunal (que decreta a providência e inverte o contencioso) e, subsequentemente, pode apresentar um

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articulado de oposição onde, para além de impugnar a providência, opõe-se também à inversão do contencioso – artigo 369.º n.º 2 do Código de Processo Civil. A pecha surge, precisamente, nas situações em que não é possível concretizar esta notificação ao requerido, justamente, porque o mesmo tem paradeiro desconhecido. Repare-se que esse contraditório diferido é fundamental num procedimento cautelar que tende a transformar a decisão proferida numa sentença definitiva, pois nos termos do artigo 371.º n.º 1 do Código de Processo Civil, o requerido é notificado “com a advertência de que, querendo, deve intentar a acção destinada a impugnar a existência do direito acautelado nos 30 dias subsequentes à notificação, sob pena de a providência decretada se consolidar como composição definitiva do litígio”. Se o requerido nada fizer (isto é, se, convertido o contencioso, não propuser a “acção revogatória da inversão do contencioso”), no prazo legal, a providência conserva a vocação que lhe foi concedida de definitividade. Portanto, as consequências da inacção por parte do requerido, nesta situação, são para si muito gravosas. E se assim é, a efectiva audiência do requerido, ainda que a título diferido, constitui uma das pedras de toque deste novo instituto. A questão é: uma vez decretada a medida cautelar que fazer se, tentando citar o requerido, se repetir a frustração da citação pessoal? Aplica-se, também nesta hipótese, a regra de que não há lugar à citação edital ou, neste caso, já deve haver lugar a esta modalidade de citação? A lei não se pronuncia expressamente sobre esta problemática. Há quem entenda que, nesta circunstância, deve haver lugar à citação edital. Neste sentido, veja-se Silva, Lucinda Dias, “As alterações no regime dos procedimentos cautelares, em especial a inversão do contencioso”, In O novo processo civil – contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil [Em linha], 2.ª edição, Centro de Estudos Judiciários, [consultado em 16 de Dezembro de 2014], disponível em www.cej.pt). Na defesa desta tese, diz a Autora: Compreende-se que, estando em causa um procedimento urgente (o requerente solicita uma tutela rápida, especialmente célere), tal não seja compatível com a natural morosidade que está normalmente associada à citação edital. Porém, depois de concedida a providência cautelar, depois de superadas estas especiais exigências de rapidez que a posição em que o requerente se encontrava solicitava, parece-nos ser de defender que, caso a citação pessoal se frustre, o 9

requerido deve ser citado editalmente, pois as razões que ditam a proibição de citação edital na tutela cautelar já não se verificam – o requerente já se encontra garantido, a providência já foi concedida. A essencial razão da urgência processual cessou. Esta fase (em que, depois da concessão da providência cautelar, o requerido é citado) destina-se, verdadeiramente, a assegurar ao requerido a possibilidade de deduzir defesa. Visa, sobretudo, assegurar a realização das garantias de tutela deste sujeito processual. Contraditório seria, assim, que, não sendo possível a citação pessoal, não houvesse lugar à citação edital (diligência que se destina, precisamente, a assegurar a garantia do exercício do contraditório). E, se já é duvidoso, quando o contencioso não é invertido, que a providência cautelar se possa manter, mesmo transitoriamente, se, frustrando-se a citação pessoal, não houver lugar a citação edital, maiores reservas surgirão se, adoptando interpretação diferente da referida, se admitisse, na mesma circunstância (ausência de qualquer tipo de citação – pessoal ou edital – do requerido), a possibilidade de a providência se manter com carácter potencialmente definitivo (isto é, de haver inversão do contencioso). De outro modo, seria fortemente circunscrita a possibilidade de o requerido vir, em inversão de contencioso, propor a acção principal (pois se não há qualquer tipo de citação, dificilmente terá conhecimento da pendência do procedimento cautelar e do decretamento da providência cautelar a que tenha havido lugar, bem como da gravidade das consequências que a conversão do contencioso importa). Esta medida convolar-se-ia em medida definitiva sem que ao requerido fosse, efectivamente, concedida a possibilidade de propor a acção principal. Não reage, não porque não queira, mas porque não dispõe de elementos que lhe permitam optar. Sustentamos, assim, que, quando haja diferimento do contraditório, se não for possível, depois de concedida a providência cautelar, citar pessoalmente o requerido, deve este ser citado editalmente. Tanto vale, sobremaneira, quando ao diferimento do contraditório se some a inversão do contencioso”. Este entendimento suscita-nos, todavia, algumas objecções. Em primeiro lugar, parece-nos que não existe qualquer lacuna na lei processual civil no que respeita à impossibilidade de recurso à citação edital nos procedimentos cautelares, nomeadamente, em sede de contraditório diferido. 10

Como já referimos supra, o artigo 366.º n.º 6, parte final, manda aplicar à notificação do requerido, a título de contraditório diferido, “o preceituado quanto à citação”. E a primeira parte do n.º 4 do mesmo artigo é clara: “Não tem lugar a citação edital (…)”. Em segundo lugar, também não concordamos com a ponderação dos interesses que a Autora faz e que se pode resumir desta forma, quiçá um pouco simplificada: o procedimento cautelar já não é urgente porque o requerente já viu a sua pretensão acolhida pelo Tribunal, não havendo óbice à delonga duma citação edital. Na verdade, a própria lei, no artigo 363.º n.º 1 do Código de Processo Civil, determina que “os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente (…)”; ou seja, até à derradeira apreciação judicial das pretensões deduzidas, o processo é sempre urgente. Se deixou de ser urgente para o requerente (que viu a sua pretensão acolhida pelo Tribunal), passou a ser urgente para o requerido (que viu ser decretada contra

si

uma

providência

cautelar

desfavorável,

acrescida

da

tendencial

convertibilidade em carácter definitivo da decisão judicial) – e não se vislumbra que a urgência do requerente deva ser sobrevalorizada em detrimento da urgência do requerido. Em terceiro lugar, a citação edital não assegura, em bom rigor, o conhecimento da pendência da acção por parte do requerido. Como é consabido, afixados os éditos nos termos legais, e decorrido o prazo de oposição acrescido de dilação máxima de 10 dias (artigo 366.º n.º 3 do Código de Processo Civil), é citado o Ministério Público para contestar ou deduzir oposição. Mas não pode olvidar-se que também o Ministério Público não dispõe de quaisquer elementos de facto que lhe permitam deduzir fundamentadamente qualquer oposição – o Magistrado do Ministério Público não teve qualquer contacto com o requerido e, como tal, desconhece em que termos poderá/deverá opor-se à providência decretada e à decisão de inversão do contencioso. O Ministério Público assegura uma defesa formal, quando muito circunscrita à invocação de excepções dilatórias ou peremptórias (como incapacidades, prescrição), mas não uma defesa de mérito ou efectiva. Na maioria das situações, o Ministério Público não deduz qualquer oposição ou contestação e essa omissão, nos casos de providência cautelar decretada contra o requerido ausente com inversão do contencioso é extraordinariamente gravosa: é que passa a ter-se o requerido, para todos os efeitos, notificado; passa a correr o prazo de 30 11

dias de que dispõe para revogar a inversão do contencioso; findo tal prazo, atenta a inércia do Ministério Público, a decisão converte-se em composição definitiva do litígio. Dir-se-á que esses mesmos constrangimentos existem na citação edital que tem lugar na acção declarativa. É verdade, mas na acção declarativa não existe a condicionantes de tempo que existem nos procedimentos cautelares e que levam inevitavelmente a um aligeiramento das diligências realizadas com vista à descoberta do actual paradeiro do requerido. Com efeito, na acção declarativa, antes de avançar para a citação edital, o Tribunal pode notificar o autor para informar novas moradas, pode fazer as pesquisas nas bases de dados com esse objectivo, podem/devem ter lugar tentativas de citação por contacto pessoal de agente de execução nas várias moradas apuradas, pode ordenar às autoridades policiais que recolham junto de familiares e de vizinhos informações pertinentes, pode oficiar aos Consulados Portugueses no estrangeiro a fim de apurar se o requerido se encontra registado em qualquer um deles, etc.. Em quarto lugar, não pode olvidar-se que a citação edital constitui um dos factores que excepcionam a aplicação do regime da revelia operante. Na verdade, os efeitos da revelia que se encontram plasmados no artigo 567.º do Código de Processo Civil – a saber, considerarem-se confessados os factos alegados pelo autor – não se produzem quando o réu houver sido citado editalmente e permaneça na situação de revelia absoluta – artigo 568.º alínea b) do mesmo diploma. Nessa situação, o Tribunal deve proceder à produção da prova que couber ao caso e só depois decidir. Revertendo este regime para o caso que nos ocupa, teríamos aqui também uma situação em que a situação de revelia absoluta do requerido levaria a que não pudessem ser considerados confessados os factos articulados pelo requerente. Logo, o Tribunal teria de agendar data para julgamento destinado exclusivamente à repetição da produção de prova já efectuada em sede de procedimento cautelar, desta feita, na presença do Digno Magistrado do Ministério Público em representação do ausente. Esse cenário, salvo melhor opinião, também acaba por conduzir à duplicação de acções que o legislador, afinal, quis evitar com a criação do instituto da inversão do contencioso.

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4.

Propostas para o tratamento da questão

O nosso entendimento, face aos argumentos acima expostos, é o de que não há, nos termos da lei, recurso à citação edital nos procedimentos cautelares, seja a título de audiência prévia, seja a título de contraditório subsequente. Claro que, em termos processuais, esta tese levanta dificuldades práticas de gestão do processo. O processo caracteriza-se por uma sucessão encadeada de actos tendentes ao alcance de uma finalidade que, uma vez atingida, há-de decretar a extinção da instância, seja por via do julgamento, do compromisso arbitral, da deserção, da desistência, confissão ou transacção, seja por via da impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide – artigo 277.º do Código de Processo Civil. Só depois de alcançado um destes desideratos é que o processo está pronto para ser arquivado. Ora, num procedimento cautelar, em que o contraditório diferido do requerido não consegue efectivar-se, o Juiz não pode, sem mais, mandar o processo para o arquivo porque se não verifica qualquer daqueles sobreditos fundamentos de extinção da instância. O requerido não foi notificado, logo, não nasceu a seu cargo o ónus de intentar a “acção revogatória da inversão do contencioso” a que alude o artigo 371.º n.º 1 do Código de Processo Civil e, como tal, não se consolida também para o requerente a composição definitiva do litígio. Uma das hipóteses possíveis é a de o Juiz determinar a notificação do requerente para vir aos autos informar do actual paradeiro do requerido, sem prejuízo do disposto no artigo 281.º n.º 1 do Código de Processo Civil, ou seja, da declaração de extinção da instância por deserção, caso aquele não impulsione o processo através da informação de novas moradas. O argumento contra esta hipótese reside no facto de não ser exigível ao requerente um conhecimento pessoal e actualizado do paradeiro do requerido. Se o próprio Tribunal, através do recurso às suas bases de dados, não foi capaz de apurar o paradeiro do requerido, não é razoável exigir esse conhecimento ao requerente. Portanto, se o procedimento parou, tal paragem não é imputável ao requerente. Uma segunda hipótese é manter o procedimento cautelar “em aberto”, ou seja, pendente, até que venha a ser localizado o paradeiro do requerido e concretizado o contraditório diferido, um pouco à semelhança do que acontece no regime da 13

contumácia do processo penal, com pesquisas periódicas ordenadas oficiosamente pelo Tribunal nas bases de dados disponíveis até que surja um elemento novo e consiga concretizar-se a pretendida notificação. Contra esta hipótese militam dois argumentos: tal não se compadece com a urgência que a lei atribui aos procedimentos cautelares que, dessa forma, poderiam eternizar-se anos a fio nos Tribunais. Ademais, essa prática seria muito nefasta para ambas as partes: para o requerente que, apesar do decretamento da inversão do contencioso, tardaria a ver tal decisão como composição definitiva do litígio; para o requerido que, não pode esquecer-se, tem a sua esfera jurídica atingida por uma providência cautelar que lhe é desfavorável. Uma terceira hipótese consiste em adoptar um entendimento restritivo em relação aos procedimentos cautelares em que pode haver inversão do contencioso. Com efeito, o Juiz poderá entender que, nos procedimentos cautelares em que não haja audiência prévia do requerido – seja por força da lei, seja por dispensa judicial – fica logo vedada a possibilidade de vir a ser decretada a inversão do contencioso. E até nos parece que o Juiz deverá plasmar logo esse entendimento no primeiro despacho a proferir no procedimento cautelar. Se a inversão já veio pedida no requerimento inicial, fica logo liminarmente indeferida, sendo certo que tal decisão não é recorrível, nos termos do artigo 370.º n.º 1 do Código de Processo Civil. Se não foi ainda requerida – e anote-se que pode sê-lo até ao encerramento da audiência final, ao abrigo do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 369.º do mesmo diploma legal – o requerente fica já com conhecimento antecipado da posição do Juiz na matéria podendo, depois, agir em conformidade com esse conhecimento. Cremos que este é o único entendimento que assegura de forma efectiva e eficaz o respeito pelos direitos e interesses de ambas as partes: do requerente, que terá de propor a acção principal com vista à tutela definitiva do direito acautelado, tal como sucedia sempre no regime anterior; do requerido, que não irá ser confrontado, no futuro, com uma decisão judicial que lhe é desfavorável sem que tivesse tido a oportunidade de se defender cabalmente. Da análise que fomos efectuando aos pareceres apresentados pelas várias instituições ouvidas pelo Ministério da Justiça previamente à aprovação do novo Código de Processo Civil, afigura-se-nos que este é o entendimento que perpassa transversalmente aos pareceres.

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A Ordem dos Advogados, no parecer que apresentou sobre o projecto de reforma do Código de Processo Civil, de 29 de Março de 2012 (disponível no site www.oa.pt) defendeu claramente a não admissibilidade da inversão do contencioso nas providências cautelares decretadas sem audiência prévia do requerido. Nesse parecer é dito, sem qualquer margem para dúvidas para a defesa de tal opção, que “nem se diga que, no procedimento sem contraditório prévio do requerido, este sempre poderá opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação que venha a deduzir contra a providência decretada, pois, como se sabe, uma coisa é o requerente produzir provas sem qualquer contraditório da outra parte, e foi com base nessas provas sem contraditório do requerido que o juiz formou a tal convicção segura para também decretar a inversão do contencioso, e outra bem diferente é, em momento posterior e continuando a não poder exercer o contraditório em relação às provas já produzidas, vir a provar factos que abalem ou infirmem a tal anterior convicção segura do juiz. Não se afigura, por isso, compatível com um processo justo e leal que nas providências cautelares decretadas sem audiência prévia do requerido se possa admitir e consagrar a referida solução de inversão do contencioso”. Um entendimento próximo deste foi defendido no parecer sobre a reforma do processo civil, apresentado pelo Conselho Superior da Magistratura, em 2012 (disponível em www.csm.pt), preconizado previamente pelos Juízes da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, num “Contributo para a Reforma do Código do Processo Civil”), ali citado nos seguintes termos: “Não vemos, na verdade, qualquer bondade ou interesse, que o Juiz desde logo decida, sem contraditório prévio, pela inversão do contencioso e depois, na decisão que aprecie a oposição subsequente do requerido venha a decidir novamente da manutenção ou revogação da inversão do contencioso inicialmente decretada. Afigura-se que a adoptar-se esta nova figura da inversão do contencioso, a decisão sobre tal temática deverá ser relegada para um único momento, uma vez que seja exercido o contraditório quanto à providência requerida e sobre o próprio requerimento de inversão do contencioso”. Daqui decorre também uma opção de atribuir ao Juiz a decisão de inverter o contencioso uma vez garantido e cumprido o contraditório em relação ao requerido. Não foi essa, todavia, a opção do legislador. Resta ao aplicador da lei (que sufrague o entendimento de que não pode haver decisão a decretar a inversão do contencioso nos procedimentos cautelares em há 15

dispensa legal ou judicial de audiência prévia do requerido) recusar a aplicação da norma do artigo 369.º do Código de Processo Civil, por violação do disposto no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, que garante ao cidadão o acesso a um processo equitativo, declarando tal norma inconstitucional.¹

¹ Também pode falar-se aqui de “um défice de processo equitativo por restrição excessiva da garantia fundamental do contraditório, que pode abalar a constitucionalidade do regime legal” – Fernandez, Elisabeth, In UM NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL? EM BUSCA DAS DIFERENÇAS, [S. l.], Vida Económica, 2014, p. 136.

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Conclusão

Sintetizando, diremos que o princípio do contraditório, sendo reconhecido no próprio Código de Processo Civil como um princípio estruturante do sistema, decorrente do próprio direito de acesso à Justiça e ao processo judicial equitativo, tutelado constitucionalmente, não se compadece com a prolação de decisões judiciais com carácter potencialmente definitivo, sem que exista no processo a garantia da notificação pessoal efectiva de tal decisão ao requerido (pelo menos, nos procedimentos cautelares). Neste conspecto, a solução que melhor garante a harmonização dos direitos e interesses em jogo passa pela recusa, pelo Juiz, do decretamento da inversão do contencioso em todos os procedimentos cautelares em que não haja audiência prévia do requerido, com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 369.º do Código de Processo Civil por violação do disposto no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

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