Satyricon de Petrônio e de Fellini: Aproximações e diálogos

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O Cinema e o Mundo Antigo 

Organizadores:

Cláudio Umpierre Carlan (UNIFAL-MG / FAPEMIG) Raquel dos Santos Funari (LAP / UNICAMP) Pedro Paulo Abreu Funari (NEPAM / UNICAMP)  

Apresentação

A imaginação da Antiguidade pelo cinema

Tanto o mundo acadêmico, quanto o público em geral, terá oportunidade de analisar essa importante obra da Historiografia, sobre a sétima arte e o Mundo Antigo. Como podemos chegar ao passado, senão por meio da nossa imaginação? Robin Collinwood (1889-1943), o grande arqueólogo, filósofo e historiador britânico advertia, ainda na década de 1930, que nada seria possível sem a imaginação, algo que os jovens de nossos dias conhecem pelo norte-americano Barney e sua Ilha da Imaginação (1994). Trata-se, não por acaso, de um personagem, Barney, cinematográfico, se assim se pode dizer, difundido pela Public Broadcasting System (BPS) pelo mundo afora. Ambos, o grande estudioso e o genial boneco, retratam uma única questão: o papel central da imaginação. Também não é mera coincidência que Michael Shanks, o grande arqueólogo britânico, hoje professor em Stanford, Michael Shanks, tenha nomeado seu PDLVUHFHQWHYROXPH³$LPDJLQação arqueológica1´ Mas, o que quer dizer isso? Por um lado, claro, significa que nada somos sem a insinuação, sem o simulacro, sem a referência a algo que não está aqui, mas poderia estar. Aristóteles, em sua Poética (9.1451b5-7), já advertia que aquilo que poderia ser é sempre mais profundo e relevante do que foi de fato, em sua efemeridade. O assassinato de uma pessoa de um indivíduo, por mais importante que seja, como no caso de Júlio  ϭ

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César (100 ± 44 a.C.), não pode ser comparado com o assassinato imaginário de Édipo de seu pai, Laio. O primeiro é um fato circunstancial, o segundo é uma questão perene e eterna. Isto está na origem de toda a literatura, incluindo-se, aí, o cinema, uma forma de narrar algo que poderia ter acontecido, que é verossímil, que nos leva pela imaginação ao onírico, tanto num caso, como no outro. O cinema está, portanto, na esteira de uma longa tradição humana de imaginar e de contar histórias. Segundo alguns estudiosos, o que caracteriza a espécie humana, à diferença de outros animais e de outros hominídeos, é, justamente, a capacidade de imaginar, para além da realidade imediata e presente. Para o ser humano, em qualquer época e circunstância, o hic et nunc, o aqui e agora, não é senão uma noção relacional entre o passado e o futuro, entre um lugar e outro. Em certo sentido, então, a humanidade está nesse viver um eterno movimento de abstração, é sentir o presente não como algo em si, mas uma passagem entre imaginários. O cinema é, pois, a quintessência do humano, como poderiam concordar Collingwood e o personagem Barney (mas, faz diferença que um tenha sido um ser humano e o outro uma criação humana?). E o que é antigo, velho? Para um indivíduo, velho pode ser um pão com algumas horas, antigo um carro com vinte anos. Para além do indivíduo, tudo é antigo por imaginação: D. Pedro I, Júlio César ou Tutancamon, todos só existem na nossa cabeça, como diriam Collingwood e Barney. A convenção de denominar de antigo um período entre 3000 a.C. e 410 d.C. é apenas isso, uma convenção. Mas revela muito sobre nós mesmos, que assim o fazemos, pois chamamos Júlio César de antigo, mas Napoleão ou Hitler são contemporâneos. Os antigos, neste contexto, estão distantes, mas ao mesmo tempo reaparecem a todo instante, como o próprio Júlio César que estava lá há dois mil anos, mas também em Shakespeare ou Bertold Brecht. O cinema foi o grande responsável por potencializar a imaginação sobre quase tudo, inclusive a Antiguidade. E isso tem sido fundamental para que os próprios estudiosos do passado formem suas ideias a respeito da História. Richard Hingley2 mostrou como os acadêmicos formaram suas ideias sobre Roma antiga a partir daquilo que liam e imaginavam quando eram crianças, em fins do século XIX, pouco antes da  Ϯ

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difusão do cinema. A partir daí, não há dúvida que vemos o passado pelas lentes cinematrográficas. Este volume congrega o que há de mais criativo, na produção brasileira, sobre o tema. O leitor ficará encantado e será levado, pelos meandros misteriosos da imaginação aos mais recônditos meandros da Antiguidade e da nossa própria época. Passado e presente, faces de uma mesma moeda, apresentam-se nesta obra que poderá inspirar tantos a também se dedicarem a um tema tão profícuo.

Pedro Paulo A. Funari Professor Titular do Departamento de História Laboratório de Arqueologia Pública Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais Universidade Estadual de Campinas

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Sumário

Introdução_____________________________________________________________6

A Representação de Akhenaton no cinema: um pré-cristianismo ? André Menari Perreira ± PPGHI / UNIFAL-MG______________________________10

Autonomia e Engajamento Plítico das Mulheres Retradas no Seriado Roma: Um ensaio. Filipe Silva e Victor Menezes - LAP/UNICAMP_____________________________28

$UHWyULFDSRUPHLRGD³9R]GH'HXV´XPDEUHYHDQiOLVHGRGLVFXUVRQRGRFXPHQWR The Lost Tombo f Jesus. Tami Coelho Ocar ± LAP/ UNICAMP_____________________________________49

Carl Theodor Dreyer, Jules Dassin e as reinvenções fílmicas sobre Jesus de Nazaré André Leonardo Chevitarese e Daniel Justi ± UFRJ___________________________66

História, Cinema e Política: a legitimação do Totalitarismo Cláudio U. Carlan- PPGHI / UNIFAL-MG__________________________________83

Satyricon de Petrônio e de Fellini: Aproximações e diálogos Renata Garraffoni ± UFPR_______________________________________________95

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Gladiador, um personagem fictício em uma História Real: uma análise sobre general Maximus Meridius.

Crosley Rodrigues Gomes ± PPGHI/UNIFAL-MG Júlio César do Carmo de Sá ± PPGHI/UNIFAL-MG William Aparecido da Silva - UNIFAL-MG________________________________113

Representações da Antiguidade Tardia no cinema: o filme Alexandria Daniel de Figueiredo ± UNESP/Franca Semíramis Corsi Silva ± UFSM__________________________________________133

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Satyricon de Petrônio e de Fellini: Aproximações e diálogos

Renata Garraffoni25

µ$KLVWyULDEHPFRQWDGDHDOpPGLVVRµLQH[SULPtYHO¶TXHEURWDGRVPDWHULDLVTXHYRFr utiliza. Da luz. A luz é tudo, o verdadeiro universo de expressão do cinema. É VHQWLPHQWRLGHRORJLDILORVRILDDGMHWLYDomR¶ Frederico Fellini, 1993.

Introdução

Conheci o Satyricon, obra de Petrônio, no mesmo ano que assisti ao filme de Fellini, em 1993. Primeiro li o livro, uma sátira de costumes romanos datada do século I d.C. e fiquei encantada. Tinha acabado de entrar na Unicamp, era apaixonada por história antiga e arqueologia, como muitos iniciantes no curso de História, mas o que conhecia do mundo antigo era basicamente o que tinha visto na escola e nos grandes épicos Hollywoodianos da década de 1960. O encanto ou espanto que aquele livro, indicado pelo professor Pedro Paulo Funari na disciplina de História Antiga, exerceu sobre mim foi, em grande medida, proporcionado pela diferença com relação a tudo o que eu conhecia sobre os romanos: não havia, nas páginas do Satyricon, grandes exércitos, nada de glamour, nada de homens virtuosos, mas ao contrário, estava recheado de bandidos, de viagens incríveis, de figuras divertidamente infames, antiheróis, aventureiros e mulheres de vida incomum. Uma obra que misturava sátira de costumes romanos com fantástico, tão bem escrito por Petrônio e hilariamente traduzido por Paulo Leminiski, foi, seguramente, o suficiente para prender minha atenção e me incentivar a pesquisar mais sobre esse universo.  Ϯϱ

Dehis/UFPR e Tutora do PET-História



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Até conhecer o Satyricon de Petrônio não tinha a menor ideia que viria a me tornar estudiosa da escrita e marginalidade romana, muito menos que me apaixonaria pela diversidade de formas de escrita e expressão, que estudaria a literatura romana, os grafites de Pompeia e muito menos que me interessaria pela contra-cultura, pela capacidade da linguagem de subverter costumes ou o impacto dos antigos na modernidade. Naquele momento, a recordação que guardo é mesmo do inusitado, do irreverente, dos romanos que nunca me disseram que existiram. Isso somado ao choque de assistir a versão de Fellini para o cinema logo em seguida, ainda na mesma disciplina. Tão inusitado quanto o livro, com cores fortes e cenas histriônicas de tirar o fôlego, o Satyricon de Fellini era uma leitura muito particular da obra e uma imersão na contra-cultura dos anos 1960. Mas o mais intrigante era o fato de um cineasta se dedicar a filmar um romance antigo, em recontar as peripécias dos protagonistas romanos em um contexto totalmente distinto, no pós-guerra, no meio dos movimentos da juventude que questionavam verdades e status quo. Um filme nada Hollywoodiano, mas ao contrário, entrecortado, fragmentado, completamente diferente de tudo o que eu tinha visto. Sem dúvida as duas obras me deixaram intrigada: uma trazendo tipos diversos de romanos e romanas que nunca tinha tido notícias, outra me apresentado o cinema italiano, o realismo, o mundo onírico e circense de Fellini. Se dessa disciplina eu saí convencida que precisava conhecer mais sobre o Satyricon de Petrônio, tanto que a obra acabou sendo a base de meu mestrado (Garraffoni 2002), demorei um pouco mais para me debruçar no Satyricon de Fellini, reencontrando-o mais recentemente, depois que passei a ter mais contato com discussões sobre a recepção dos clássicos no cinema e me aprofundado em alguns debates para a disciplina que ministro sobre usos do passado. Nesse sentido, a presente reflexão é uma volta aos dois Satyricon, de Petrônio e Fellini, em um momento bem diferente desse inicial que comentei. Estimulada pela proposta da presente obra coletiva, busquei juntar elementos que sempre me intrigaram em ambas as obras, desde o primeiro contato, mas que até então não tinha tido a oportunidade de trabalhar com mais cuidado. O texto que segue é, portanto, uma tentativa de tecer alguns comentários sobre cinema, literatura, adaptação, arte e criação, com o intuito de pensar sobre antigos e modernos, sobre política e subversão da linguagem. Temas complexos que dificilmente se esgotarão, mas que seguramente nos estimulam a pensar o mundo antigo a partir de

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sua diversidade, de seus desencontros, suas ambiguidades e apropriações na modernidade.

Os antigos no cinema: controvérsias

A relação entre Cinema e História sempre esteve permeada de debates: como contar a história do cinema? O cinema importa? Seria o cinema objeto de estudo do historiador? E mais especificamente sobre os filmes épicos hollywoodianos ou sobre o mundo antigo: seriam objetos de estudo de classistas e pesquisadores do mundo antigo? O posicionamento diante dessas questões muda de acordo com o momento histórico ou a percepção de História do estudioso. Com relação às reflexões mais teóricas, sobre cinema e história, Cristina Meneguello (1996) afirma que, no início do século XX, o cinema foi visto com muita desconfiança pelos intelectuais e isso explicaria parte da reação negativa de alguns diante dos filmes que passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas. Em seu livro Poeira de Estrelas, apresenta e historiciza esse debate comentando, em especial, as diferenças de posicionamento de intelectuais ligados a Escola de Frankfurt e o pensamento de Walter Benjamin. Talvez esse seja um dos embates mais conhecidos da primeira metade do século XX, foi a partir dessas discussões que surgiram os questionamentos políticos muito conhecidos - como o de que o cinema seria ou não a causa da alienação das massas - ou estéticos - se seria ou não uma forma de arte, a particularidade de sua linguagem pautada na fragmentação, característica de um mundo mediado pela velocidade e técnica que produz uma nova maneira de ver baseada na rapidez mental. É com Marc Ferro (1992) ± originalmente publicado na década de 1970 ± que um filme definitivamente é entendido com um documento prenhe de discursos e tensões históricas. A partir da abertura do campo da história para a interdisciplinaridade, o trabalho de Ferro é um marco sobre construção de uma leitura fílmica, sobre como a projeção nas telas constituem subjetividades e além de todas as suas etapas de construção. Mesmo que seus trabalhos venham sendo revistos ultimamente (Napolitano 2005), é inegável sua contribuição para pensarmos o potencial dos filmes como documento histórico e meio de entender a modernidade. Sendo o filme uma composição ϵϳ 

artística baseada em tecnologia específica e difusão para um grande público tanto dentro como fora do país de origem, pode e deve, segundo Kellner (2001), ser entendido como produto cultural, pois trabalha o estereótipo, produz signos e forma opiniões sobre diversos assuntos (Nisbet 2008). Na atualidade, portanto, entender o cinema e os filmes como objeto de estudo do/a historiador/a é uma perspectiva de múltiplas abordagens: como fenômeno de cultura de massa, como possibilidades de problematizar a constituição da subjetividade e não se fixar no binômio produção/recepção, evitando, como destacou Meneguello (1992), a percepção de consumidor passivo, mas considerando os modos de fruição das mensagens, além de meio único para perceber como os valores projetados nas telas são compartilhados e reelaborados pelas sociedades que os recebem. Assim, a ideia de mídia de massa vai além do filme, circula na sociedade pelos seus suportes ± revistas, objetos de consumo, posters - e produz valores que são constantemente resignificados. Neste sentido, cada vez mais questões se abrem tornando interessante pensar o filme em múltiplos aspectos como o momento histórico de sua produção, gênero, tema que trata, lançamento, produtos que foram criados, revistas, os comentários e, principalmente, o fato que produz subjetividade e, com isso, meios de atuação no mundo. É por essas razões que acredito que é preciso encarar o filme como uma linguagem viva que é constantemente reinterpretada. Se voltarmos para a especificidade da reflexão aqui desenhada, a presença dos povos da Antiguidade nos filmes, esse último ponto é fundamental, em especial pelo diálogo proporcionado ente passado e presente na formulação da visão de mundo de pessoas herdeiras ou não das tradições tidas como ocidentais. Maria Wyke (1997) foi uma das pioneiras em chamar a atenção para esse fato. Inicia seu livro Projecting the Past, Ancient Rome, Cinema and History, com reflexões que considero de grande importância para fundamentar a abordagem que estou propondo: o cinema forma percepções sobre o passado antigo e, como aponta Wyke, na grande maioria das vezes constitui uma visão muito conservadora sobre o mundo clássico. Como intelectuais e estudiosos/as do mundo antigo temos que estar atentos a esses fatos e pensar os usos que o cinema faz dos antigos, abrindo espaço para discussão. Por que precisamos estar atentos a esse ponto? Wyke aponta para um aspecto que Raquel Funari (2012) trabalha com propriedade: carregamos para a escola valores que se formam a partir dos filmes épicos ou sobre o mundo antigo e contrapomos com o ϵϴ 

ensino formal. Muitas vezes esses filmes são tratados como ilustrações do passado ou como relatos deformados daquele pelos professores, mas Funari destaca que é urgente construirmos estratégias didáticas para pensar os filmes sobre o mundo antigo criticamente na escola. Ou seja, Funari propõe que mais do que hierarquizar as narrativas, como mais ou menos verdadeiras que os textos da época antiga, o importante é pensarmos meios para rever uma polarização muito difundida na qual autores canônicos antigos são entendidos puros e eruditos e o cinema como popular e, portanto, pertencente ao campo da desordem, do inverossímil. Se considerarmos as transformações no campo de estudo da História Antiga, nas formas de construir as narrativas, nas metodologias e formas de entender o que é documento e suas apropriações e usos na modernidade, percebemos alterações sobre como construímos nossas relações com os povos antigos em nosso cotidiano. Mesmo assim, o ponto de vista mais conservador ainda segue vivo e pungente, apontando, por exemplo, a crítica feminista ou pós-colonial como posturas que destróem a tradição clássica e as identidades nacionais que se formaram a partir dela. Para Wyke (1997), é papel da

academia criticar veementemente posturas conservadoras, afinal após os

avanços das perspectivas pós-coloniais fomentadas a partir de Bernal (1987) e Said (2001), em especial aos usos do passado antigo (Hingley 2000), as apropriações do cinema e o mundo antigo devem sim ser problematizadas por estudiosos em um novo contexto: o filme não deve ser entendido mais como algo menor, inverossímil, mas como discursos que formam imagens e, consequentemente, subjetividades e identidades, sobre o mundo antigo baseado no contexto político em que foi produzido. Essa perspectiva defendida por Wyke e Funari, cada uma a seu modo, é a base da inspiração para esse diálogo que proponho entre o Satyricon de Petrônio e Fellini. Nesse sentido, minha abordagem não será um estudo exaustivo das duas obras, mas ao contrário, pretendo abordar alguns pontos específicos das narrativas para pensar o potencial das obras para discutirmos sobre pluralidade, crítica e o papel da linguagem na construção de visões de mundo mais libertárias. É, portanto, uma leitura mais política explorando o potencial de diálogo entre as duas obras. Além disso, gostaria de ressaltar que essa abordagem permite pensar o cinema e os filmes sobre o mundo antigo como objeto de estudo não só de historiadores, mas também da Filosofia e Letras (Corseuil, Lisboa, Oliveira & Coelho 2009, por exemplo).

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É importante ressaltar que perspectivas críticas estão se difundindo no Brasil ora pelo viés da recepção, ora pelo viés dos usos do passado e, cada vez mais, surgem trabalhos que consideram relevante entender esse fenômeno de produções de filmes sobre o mundo antigo, afinal eles não só representam leituras do mundo antigo, mas carregam posturas estéticas que expressam a visão do mundo antigo daquela produção e sua perspectiva de política moderna. No que tange gregos e romanos no cinema, Nisbet (2008) afirma que o mundo romano é o mais representado. É possível que a preferência aos romanos no cinema esteja ligada às percepções que carregamos, no senso comum ou imaginário, de cada um desses povos: romanos mais propensos à guerra, expansão territorial e ao domínio, temas propícios aos filmes épicos, e gregos à filosofia, às artes e ao ginásio. Nisbet ainda lembra que, quase sempre, os filmes sobre os romanos tem bilheteria garantida, enquanto que sobre os gregos a possibilidade de emplacar sucessos é menor ± como exceção aponta o recente 300 de Esparta, por estar prenhe dos temas relacionados ao imaginário bélico masculino. Mesmo com essas diferenças de circulação entre os espectadores, acerca dos filmes sobre Roma antiga, nosso objeto específico aqui, alguns fatos merecem atenção. Wyke (1997) afirma que os dois países que mais produziram filmes sobre Roma são os Estados Unidos da América - no caso Hollywood e seus épicos mais sensacionalistas - e Itália ± com o cinema realista e o do período fascista. Nesse sentido, Wyke aponta que os mais estudados são os italianos, em especial os produzidos entre as décadas de 1930 e 1940, de propaganda fascista, em uma clara alusão aos usos dos romanos antigos para formar os ideais fascistas na modernidade. Os estudiosos mencionados chamam atenção, portanto, para alguns pontos que devemos levar em consideração quando nos colocamos diante dos antigos no cinema: entender que esses filmes não necessariamente retratam seu objeto, ou seja, filmes sobre gregos e romanos não são somente ilustrações do que aconteceu no passado, mas, mais do que isso, são construções que mesclam temas da antiguidade com experiências de vida dos diretores, produtores e público do período em que foi criado. Além disso, suas abordagens trazem aspectos da historiografia produzida nas academias e que também chegam às escolas. Assim, uma abordagem crítica e frutífera desses filmes não seria SHQVDURTXHµUHDOPHQWH¶pµYHUGDGH¶RXQmRPDVSHUFHEHUVHXSURFHVVRGHFRQVWUXomR (lembrando que poucos são baseados em documentos antigos, a grande maioria em ϭϬϬ 

romances e pinturas de diferentes séculos), os jogos de poder, as percepções da historiografia, a relação entre passado e presente, enfim, as adaptações, usos e discursos que transitam entre a tela e o público. É com essas considerações em mente que gostaria de pensar a relação entre o Satyricon de Petrônio e de Fellini. A escolha desse estudo de caso não foi, portanto, aleatória, mas como já argumentei está pautada na minha experiência pessoal com as obras e, também, como minha atuação dentro do campo de estudos sobre os usos do passado. Ou seja, o desafio que enfrento aqui se dá, em primeiro lugar, por se tratar de duas obras que sempre me intrigaram e me fizeram pensar. Em segundo lugar e, talvez o motivo mais forte, por seu potencial político e de reflexão, pois se trata de uma adaptação que fugiu às expectativas no momento em que foi realizada. O Satyricon de Fellini tem muitas particularidades: em um momento em que os filmes sobre Roma saiam do ambiente de justificativa do fascismo na Itália e se firmavam como épicos de proporções grandiosas em Hollywood, quase sempre com roteiros baseados em romances do século XIX bastante heteronormativos, Fellini adaptou uma obra originalmente romana com protagonistas que vivenciavam o amor homoerótico com cenas de vida cotidiana. Se até hoje sua estética choca os mais desavisados, sempre me chamou a atenção o significado de recorrer a essa obra para criar um diálogo impar com a juventude e a contra-cultura, explorando vieses sobre a História de Roma pouco convencionais até então. Para melhor estabelecer o diálogo, apresentarei alguns aspectos das obras em questão para, em seguida, explorar alguns de seus elementos.

O Satyricon de Petrônio

O Satyricon de Petrônio, como a grande maioria dos textos antigos, está envolvido em uma série de polêmicas, o que sempre traz algumas dificuldades para seu estudo. Quem está acostumado a ler sobre os antigos romanos sabe que o que chegou até nós em geral é aquilo que a tradição medieval nos legou e os estudiosos organizaram ao longo dos séculos e, portanto, sempre há imprecisões sobre a vida do autor e, em vários casos, sobre passagens das obras. A grande maioria das pessoas está acostumada a ler obras inteiras, com começo meio e fim, mas muitos textos que nos chegaram da Antiguidade estão em fragmentos, alguns de autoria incerta, por isso, quem se dedica a ϭϬϭ 

estudá-los sabe que lidará com as polêmicas e as discussões em torno de cada obra e autor. Com o Satyricon não seria diferente. As polêmicas que envolvem tanto obra como autor são muitas e apresentarei, de maneira resumida, as principais delas (para estudos mais aprofundados sobre a questão cf. Garraffoni 2002; Silva 2011). Iniciemos pela vida de Petrônio, o autor. Sua biografia é bastante imprecisa e desde o período do Renascimento há uma grande dificuldade para se determinar quem foi exatamente este homem, já foram arroladas mais de dez pessoas que poderiam vir a ser o autor da obra. A maioria dos pesquisadores - ainda que nem todos veja Gonçalves (1996) para uma discussão mais aprofundada - considera que o autor do Satyricon é o Petrônio descrito por Tácito, em sua obra Anais (XVI, 18-19), e mencionado, mais brevemente, em algumas passagens de Plínio, o Velho e Plutarco. Assim, a tradição considera que o nome completo do autor seria Tito Petrônio Níger, cônsul romano durante o ano de 62 d.C., e conhecido como arbiter elegantiae (árbitro da elegância), já que teria estabelecido padrões de elegância na corte de Nero. De acordo com esta descrição de Tácito a que me refiro, Petrônio seria um homem cínico e com alguns vícios; no entanto, foi considerado um excelente administrador quando governou a província da Bitinia. Sua capacidade de atuar e a influência que exercia na corte de Nero teriam gerado inveja em Tigelino que o difamou, acusando-o de participar de uma conspiração contra o Imperador. Como punição, Petrônio acabou sendo condenado ao suicídio em 66 d.C. O título da obra também é bastante polêmico, pois não se sabe ao certo o significado nem a origem do nome Satyricon. Dihle (1994) apresenta as duas alternativas mais aceitas para explicar o termo: pode estar relacionado com satyrikos, palavra de origem grega utilizada para se referir a pessoas que viviam do prazer sexual, ou satura, palavra latina empregada com o significado de sátira. A possibilidade de haver um duplo sentido no título já demonstrava aos leitores com que tipo de conteúdo iriam se deparar, isto é, uma narrativa repleta de personagens com comportamentos e atitudes lascivas e satíricas. Outro problema bastante discutido diz respeito à composição do texto em si: a versão que chegou até nós é muito fragmentada, diferente da tradução de Leminski na qual adapta o romance com início, meio e fim ± para traduções e comentários mais recentes cf. Bianchet 2004 e Aquati 2008. Sabe-se que o que restou são partes dos livros ϭϬϮ 

XIV-XVI e que o original seria bem maior, uma vez que, a sua concepção seria feita nos moldes da Odisséia de Homero e teria mais ou menos o seu tamanho (Walsh 1995). No que diz respeito à estrutura do texto é importante destacar que a sátira é narrada em primeira pessoa pelo personagem Encólpio. Ele e Gíton são aventureiros educados e pobres que viajam de um lado para outro, sem destino definido, perseguidos pela ira do deus Priapo. No decorrer das viagens, ambos contracenam com uma diversidade de personagens: Agammenon, Eumolpo, Licas, Ascilto, algumas bruxas, sacerdotisas do deus Priapo e vários libertos, desde os milionários até os mais pobres. A grande maioria das situações em que se envolvem é de natureza erótica, mas também encontramos histórias de naufrágios, roubos, bruxarias e orgias culinárias. Segundo Walsh (1995), é possível detectarmos a presença de dois tipos de episódios no desenrolar dos acontecimentos; eles podem ser de origem interna ou externa. Os episódios internos ocorrem quando os acontecimentos centram-se na relação homoerótica entre Encólpio e Gíton e o ciúme que nasce diante da presença de Ascilto e Eumolpo. Aqui a presença do deus Priapo é fundamental, pois é devido a sua ira que o protagonista Encólpio se torna impotente. Já os episódios externos são constituídos a partir da relação de Encólpio com os demais personagens. Este segundo tipo de ação permite a Petrônio deslocar a narrativa e introduzir os elementos de sua sátira, como no caso do jantar de Trimalcião ou no caso da Dama de Éfeso. No jantar Encólpio ouve uma série de histórias de outros personagens enquanto que a história da Dama é narrada quando estão a bordo do navio de Licas. O importante é perceber que a obra está centrada no olhar de Encólpio, é a partir dele que ouvimos histórias e percebemos as sensações descritas e, por ter chegado até nós de maneira fragmentada, não sabemos o desenrolar de determinadas cenas ou mesmo a entrada de determinados personagens. Além disso, outro aspecto marcante da obra são os exageros. Por ser satírica, escrita parte em prosa e parte em verso em um latim mais coloquial que o dos demais tratados romanos, chama a atenção a presença constante de hipérboles e, também, a descrição detalhada dos rostos, das expressões dos personagens, de suas ações e reações, o que levou Panayotakis (1994a; 1994b; 1995) a discutir os aspectos teatrais e de mimos presentes na narrativa. Todos esses detalhes são fundamentais para entender as escolhas de Fellini, assim como acredito que um breve resumo das partes que nos restaram é importante para percebemos como o diretor

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procedeu com sua adaptação para o cinema. Para tanto, recorro ao resumo proposto por Faversani (1999: 15-16): Primeira parte - Puteoli ou outra cidade da Campânia (?), próxima a Nápoles. Aqui ocorrem as primeiras aventuras de Encolpius - que narra em primeira pessoa - e dois companheiros: Acyltos e Giton. Aparecem, de forma destacada, dois episódios: o do debate retórico no pórtico (cc. 1-25) e o da sacerdotisa Quartilla. Outras cenas se desenrolam em prostíbulos, albergues, pequenos mercados e outros cenários urbanos (cc. 1 a 25). Segunda parte - Cena Trimalchionis. Constitui praticamente a única parte explorada pela historiografia. Introduz o leitor na casa de Trimalchio, um liberto milionário, que oferece um lauto banquete no transcorrer do qual, além de explicar a origem de sua fortuna, expõe suas idéias, hábitos e cultura. Nesse trecho falam escravos, libertos ricos e pobres, além de personagens de origem livre (cc. 25 a 78). Terceira parte - Na praia com Eumolpus. Ascyltos deixa de compor o trio de Protagonistas e aparece Eumolpus, um velho poeta, que o integrará. Esta cena se dá em um lugar próximo ao mar (talvez o Golfo de Nápoles). Dois episódios se destacam: no primeiro, passam por uma pinacoteca e examinam a arte clássica e, no segundo, se envolvem em um conflito dentro de uma hospedaria (cc. 89 a 115). Quarta parte - Caminho de Crotona. Os protagonistas embarcam em um navio que pertence a Lichas, do qual fugiam Encolpius e Giton. A embarcação naufraga. Eumolpus escreve um extenso poema, o da Guerra Civil (cc. 116 a 124). Quinta parte - Crotona. O trio consegue enriquecer através de uma farsa que ilude toda a cidade. São descobertos e Eumolpus é morto ritualmente pela população. (QFROSLXVH*LWRQHVFDSDP)LQDO FD ´

O Satyricon de Fellini

Neemias Oliveira da Silva (2009), ao estudar a adaptação da obra de Petrônio por Fellini, chama a atenção para um aspecto relevante: a simbologia presente em cada obra é múltipla, pois ambas pertencem a sociedades plurais. Ao partir desse pressuposto, Neemias Silva apresenta os alicerces de seu trabalho, um estudo interdisciplinar entre História, Literatura e Cinema que nos ajuda a perceber tanto traços auto-biográficos de Fellini como sua visão política ao produzir seus filmes. Perceber essa conexão é, para o estudioso, fundamental, pois a literatura e o cinema trabalham signos e linguagens diferentes, assim, Fellini não estaria interessado no realmente aconteceu no início do Império Romano, mas em como estabelecer um diálogo com essa obra satírica escrita ainda na antiguidade e apresentá-la para um público no final da década de 1960. ϭϬϰ 

Embora Fellini seja bastante conhecido, gostaria de relembrar alguns aspectos principais de sua vida ± para maiores detalhes ver Neemias Silva 2009: 26-36 ± comentar resumidamente a estrutura do filme para, em seguida, propor algumas leituras possíveis sobre ele. Fellini nasceu em Rimini, na Itália, em 1920 e, por lá viveu até a adolescência. Neemias Silva (2009: 27) afirma que em 1937 se mudou para Florença e, no ano seguinte, para Roma a fim de estudar Direito, quando trabalhou como colaborador em roteiros de histórias em quadrinhos e escrito canções para o teatro de revista. Sua relação com o universo do teatro de revista lhe rendeu a oportunidade de conhecer a Aldo Fabrizi, ator que, segundo Neemias Silva (2009: 27), indicou-o para colaborar como roteirista em seu primeiro filme. Já em 1944 conheceu Roberto Rosselini que o convidou para escrever o roteiro de Roma, Cidade aberta, início de uma parceria que fez com que Fellini descobrisse sua própria maneira de filmar (Neemias Silva 2009: 28). Com La Strada veio a consagração internacional e ganhou o Oscar com 8 ½, o que levou a N. Silva a comentar que Fellini se formou como sujeito entre a indústria hollywoodiana e o neo-realismo (2009: 29), equilibrando-se entre seu conhecimento circense ± mistura de técnicas de precisão com improvisação ± e a própria história do Estúdio Cinecittá. Faleceu em 1993. Com relação ao Satyricon em específico, Neemias Silva nos lembra que Fellini certamente usou de bastante liberdade na sua adaptação, em especial por entender que literatura e cinema são duas dimensões distintas (Neemias Silva 2009: 34). Ele teria relido o livro de Petrônio enquanto estava em tratamento devido a problemas respiratórios e a produção do filme se deu em pleno momento de explosão da contracultura na década de 1960. Neemias Silva (2009: 35) enfatiza esse momento que culminou na sua realização em um contexto de experimentação: como foi feito entre 1968 e 1969, o filme se insere em um contexto no qual jovens aderiam ao movimento hippie, caracterizando um Zeitgeist de busca pela liberdade, pela vivência da sexualidade em suas múltiplas possibilidades e de autodescoberta. Este teria sido um dos filmes mais caros de Fellini, tendo sido classificado pela United Artists como filme para adolescentes (Neemias Silva 2009: 36). De maneira resumida, é possível dividir o filme na seguinte sequencia de cenas (para roteiro original, cf. Neemias Silva 2009: 166-271):

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Inicia com Encólpio dizendo que vai encontrar Ascilto que fugiu com Gíton. Encólpio ama Gíton e Ascilto o vendeu. ϭϬϱ



Ϯ͘ Cena do Teatro. ϯ͘ Vista dos prostíbulos. ϰ͘ Terremoto: aparece Eumolpo. ϱ͘ Banquete de Trimalcião. ϲ͘ Dama de Éfeso é narrada no banquete. ϳ͘ Tornam-se prisioneiros de Licas, que morre em uma rebelião. César também é morto. ϴ͘ Suicídio do casal. ϵ͘ Noite de Encólpio, Ascilto e a jovem. ϭϬ͘ Soldados colocam fogo na casa. ± corte ± ϭϭ͘ Hermafrodita, deus que interrompe o culto (Priapo) ϭϮ͘ Deus morre. ϭϯ͘ Deus do Riso (pregar uma peça em estrangeiros) ϭϰ͘ Impotência: protagonistas têm que se desculpar com Priapo. ϭϱ͘ Crítica a César: o local está tão ruim que precisam partir. Um chefe é morto como Eumulpo no final. Corte! FIM!

Literatura antiga e cinema: os desafios da adaptação

Este breve resumo do filme nos permite perceber como Fellini adaptou o romance e construiu a base de suas escolhas estéticas para a constituição de um diálogo entre passado e presente. Um primeiro aspecto relevante é que a sequência dos episódios do filme não é a mesma do texto original, mas por outro lado, a presença de cortes sistemáticos em diversos momentos indica a fragmentação no qual o romance chegou até nós. O realismo das cenas também é muito presente, o que nos permite pensar que o processo de adaptação é complexo e não se restringe ao conteúdo em si ± que é recriado a partir de sua visão de mundo-, mas da forma, tanto estilística, ou seja, pautada no realismo, como na fragmentação. Nesse sentido, Fellini realiza um diálogo entre passado e presente, preservando aspectos formais do romance original e de sua história até a modernidade. No seu processo de criação, embora acrescente uma série de episódios e troque vários deuses, os diálogos e situações que reproduz são como o original latino. Além disso, é visível ϭϬϲ 

seu esforço em criar cenários que rementem ao aspecto da pobreza, como descrito em detalhes no romance. Aparecem os prostíbulos e as termas por onde os personagens circulavam, o que é raro em filmes hollywoodianos e, também, é bastante cuidadoso ao reconstruir a sensação de movimento que o romance de Petrônio apresenta, uma vez que os protagonistas se deslocam bastante ou ouvem história de viajantes. Ao apresentar os protagonistas interagindo com uma infinidade de situações e personagens reforça a narrativa de viagem antiga e abre espaço para adaptar sua própria visão na trama usando como ponto de conexão o realismo, os exageros na cenografia e na expressão facial dos atores, elaborando cenas com claras referências ao universo circense e teatral. Como exemplo da elaborada construção e de sua estética realista, retomo alguns dos argumentos de Airton Pollini (2008). Ao estudar a tumba do mergulhador e seu contexto arqueológico, Pollini comenta sua presença no filme de Fellini. Como essa tumba foi descoberta pelos arqueólogos no período das filmagens, 1968, e se tornou muito conhecida devido à particularidade de suas pinturas, Fellini utilizou-a para a construção do cenário na pinacoteca por onde passeiam os protagonistas. Essa cena é particularmente interessante, pois mescla retratos com as pinturas da tumba do mergulhador, enquanto Eumolpo, o poeta, discorre sobre a decadência da arte ± cena que se encontra no original do romance. Polini aponta que Fellini adapta a pinacoteca aos padrões da museologia de sua época, dispondo uma pintura do lado da outra, mesclando, portanto, elementos do presente facilmente reconhecíveis pelo público italiano da época com diálogos originais do romance. Pollini afirma também que essa cena permite o movimento e a continuidade da narrativa, pois na cena anterior, quando Encólpio chega à pinacoteca, está relembrando os amores dos deuses e de seu Giton e a pintura que Fellini escolhe para a parede é exatamente a dos homens amantes da tumba do mergulhador. Fellini mescla, portanto, passado e presente a partir da construção de cenários e sequencias fílmicas que exploram o homoerotismo, trazendo para a tela do cinema um tema presente no romance, mas que no contexto dos anos de 1960 se insere nas discussões sobre sexualidade e contra-cultura, apresentando o mundo dos romanos antigos de maneira plural e anti-normativa em uma clara menção crítica as imagens comumente difundidas pela indústria hollywoodiana ou das que se consagraram ao longo do fascismo italiano. Essa sequencia é, para mim, bastante instigante para

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compreender os jogos que Fellini faz, construindo uma trama baseada em um romance romano e atualizada a partir das discussões de seu contexto histórico. A estratégia que predomina é, portanto, adaptar diálogos do romance com cenários que remetem ao presente ou inserir novas situações no filme para realizar uma crítica ao período em que vive. Se a cena da pinacoteca ilustra bem a primeira estratégia de construção da narrativa, talvez o exemplo mais marcante da segunda estratégia seja a morte de César que não existe no original, mas que se torna um mote para criticar suas ações e, consequentemente, as do poder conservador e autoritário na modernidade. Também é possível notar outras mudanças nas seguintes situações: interrompem um culto ao deus Hermafrodita e no romance é um culto a Priapo, inserção da história do dia do Riso que não existe no original, além de centrar boa parte do filme no banquete de Trimalcião, embora o fato de Trimalcião ser um liberto não seja tão enfatizado. Embora Fellini mesmo tenha afirmado que não se preocupava tanto com questões políticas, sua adaptação do romance de Petrônio deixa algumas portas abertas que podem nos levar a pensar como desloca o universo hollywoodiano e constrói uma estética baseada na pobreza, nos prazeres do corpo, na alimentação e na crítica ao conservadorismo político da modernidade. Esses aspectos saltam aos nossos olhos quando os jovens protagonistas declaram que vão sair em viagem porque César não seria um bom Imperador. Os jovens do Satyricon de Fellini buscam alternativas de vida, diante da transformação dos costumes de sua época. Talvez esse seja o grande contraponto entre as obras: Petrônio satiriza o cotidiano romano sim, mas apresenta jovens perseguidos pela ira de Priapo enquanto Fellini enfatiza a necessidade do abandono das tradições e formas autoritárias de vida em busca de um futuro melhor, mais livre e plural.

Passado e Presente: diálogos possíveis.

Pensar sobre o Satyricon de Fellini nos remete, sem dúvida, ao campo dos conflitos políticos, socais e culturais dos anos de 1960. Faz perceber sua estética e postura diante da indústria do cinema. Se os filmes épicos de Hollywood da época apresentavam um discurso linear e se destacaram por sua grandiosidade e riqueza, ϭϬϴ 

Wyke (1997), já mencionada, chama atenção para o fato de o diretor propor a adaptação do romance romano com ênfase no popular, com uma narrativa fragmentada e realista. Sua postura questiona um determinado tipo de discurso tradicional sobre Roma, eivado de poder e glória, construído pela academia ao longo do século XIX e primeira metade do XX e difundido pela indústria cinematográfica norte-americana ou mesmo pela italiana do tempo de Mussolini. Arrisco a dizer que isso foi consciente, ou seja, Fellini buscou um meio de ironizar com as convenções do seu tempo e com as visões de Roma com as quais convivia. Em suas conversas com Goffredo Fofi e Gianni Volpi (2009), pouco antes de sua morte, por exemplo, Fellini discorre sobre muitos aspectos que fundamentam sua obra e que são perceptíveis no Satyricon. Entre ironias e reflexões, Fellini deixa claro que trabalha arquétipos da cultura criando sua visão de mundo explorando o inconsciente social e a memória. Direta ou indiretamente teria questionado os valores burgueses, entrado em choque com o Vaticano, com a moral católica e provocado as feministas, embora afirme que foi injustamente criticado por muitas delas. Ouvir Fellini comentar sua própria obra e fazer um balanço não linear de sua vida é surpreendente, lá está seu entusiasmo com as cores, com os volumes que cria para seus cenários, com os processos de construção dos personagens, produção de sentimentos e, por fim, sua preocupação com a narrativa por meio das imagens. De todas essas percepções, o que mais me chamou a atenção nessas entrevistas é, sem dúvida, a sua percepção sobre linguagem: viva, plural, libertária e, em última instância, subversiva. Sua busca pela fuga da narrativa estruturada o fez experimentar com o Satyricon de Petrônio. Fellini mesmo destaca nessas entrevistas que filmar Satyricon foi a possibilidade de explorar o humor em sua obra. Sua busca por transito entre linguagens, fluidez, descontinuidade, prazeres e humor nos presenteou com uma adaptação ímpar e uma atitude ousada no sentido de abrir espaço para um diálogo entre passado e presente de maneira contundente e profundamente crítica. 7DOYH] R FDUWD] GH GLYXOJDomR ILOPH TXH WUD] HVFULWR µ5RPD DQWHV GH &ULVWR H GHSRLV GH )HOOLQL¶ HP VHXKXPRUiFLGR DSRQWHSDUDDSRVVLELOLGDGHGDSOXUDlidade de Roma extrapolar o universo acadêmico e nos fazer pensar. O ato de Fellini adaptar Petrônio em um contexto de contra-cultura e de experimentações estéticas tem, para mim que estuda o mundo romano, um significado bastante especial: indica que é possível criar discursos libertários sobre o passado e questionar legados lineares de ϭϬϵ 

poder. Essa talvez seja a inspiração para os estudiosos do mundo antigo, saber que a diversidade, o humor, os conflitos, os prazeres, a religiosidade, enfim, os devires estavam presentes na Roma antiga, basta buscarmos obras ou documentos que nos ajudem a pensar sobre a pluralidade das formas de viver e sentir.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer à Raquel Funari e Claudio Carlan pelo convite para contribuir com essa obra coletiva. Também agradeço aos alunos que estiveram presentes na disciplina de História Antiga para o curso História, Memória e Imagem, em especial nos anos de 2012 e 2013 e aos seguintes colegas pelo diálogo ao longo desses anos sobre história, literatura e cinema: Alessandro Rolim de Moura, Glaydson José da Silva, .RQVWDQWLQRV1LNRORXWVRV, Lorena Pantaleão da Silva, Lourdes Feitosa, Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, Paulo Vasconcelos, Pedro Paulo Funari e Rodrigo Gonçalves. A responsabilidade das ideias aqui expostas recai apenas sobre a autora.

Bibliografia citada: Fontes: Literárias Satyricon de Petrônio Petrônio, Satyricon, tradução de Paulo Leminski, São Paulo: ed. Brasiliense, 1987. Petrônio, Satyricon, tradução de Sandra Bianchet, Belo Horizonte: Crisálida, 2004 Petrônio, Satyricon, tradução de Claudio Aquati, São Paulo: Cosac Naif, 2008. Tacito, Annals, tradução de John Jackson, Londres: CUP ± Coleção Loeb, 1937. Filme

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Satyricon de Fellini ± lançamento: 1969. Direção: Federico Fellini; Produção: Alberto Grimaldi; Roteiro: Federico Fellini e Bernardino Zapponi; Direção de fotografia: Giuseppe Rotunno Para roteiro completo e cartazes, cf: Silva, N. O., 2009. Carpe diem: Rituais cotidianos no Satyricon ± Petrônio e Fellini, dissertação de mestrado apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.

Bibliografia Moderna

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Kellner, D. 2001. A Cultura da Mídia - Estudos Culturais: Identidade Política Entre o Moderno e o Pós ±moderno, Bauru: EDUSC. Meneguello, C. 1996. Poeira de Estrelas ± o cinema Hollywodiano na mídia brasileira das décadas de 40 e 50, Campinas: Editora da Unicamp. Napolitano, M.   µ)RQWHV DXGLRYLVXDLV D KLVWyULD GHSRLV GR SDSHO¶ ,Q &DUOD Bassanezi Pinsky. (Org.). Fontes Históricas, São Paulo: Editora Contexto: 235-290. Nisbet, G., 2008. Ancient Greece in film and popular culture, Exeter: Bristol Phoenix Press. 3DQD\RWDNLV & D ³4XDUWLOOD¶V histrionics LQ 3HWURQLXV´ LQ Mnemosyne, Leiden, E.J.Brill, vol. XLVII, fasc.3, pp.319-336. 3DQD\RWDNLV&E³7KHDWULFDOHOHPHQWVLQWKHHSLVRGHRQERDUG/LFKD¶VVKLS´LQ Mnemosyne, Leiden, E.J.Brill, vol. XLVII, fasc.5, pp.596-624. Panayotakis, C., 1995. Theatrum Arbitri ± Theatrical Elements in the Satyrica of Petronius, Leiden. 3ROOLQL $  µMergulhar no Satyricon de Fellini: a pintura da tumba do 0HUJXOKDGRUGH3DHVWXPHDFHQDGDSLQDFRWHFD¶LQ História. Questões e Debates, 48/49: 303-320. Said, E.W. 2001. Orientalismo ± Oriente como invenção do Ocidente, São Paulo: Companhia das Letras. Silva, L. P. 2011. Rindo do Sagrado: As práticas femininas nas obras de Juvenal e Petrônio (sec. I e II d.C.), Dissertação apresentada ao curso de Mestrado do PGHIS da Universidade Federal do Paraná. Silva, N. O., 2009. Carpe diem: Rituais cotidianos no Satyricon ± Petrônio e Fellini, dissertação de mestrado apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. Walsh, P.G., 1995. The Roman Novel, Londres: Cambridge University Press. Wyke, M., 1997. Projecting the past ± Ancient Rome and History, Londres: Routledge͘

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