Saudade: Representação e semiótica em Villa-Lobos

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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

CLEISSON DE CASTRO MELO

SAUDADE: REPRESENTAÇÃO E SEMIÓTICA EM VILLALOBOS

SALVADOR-BA 2016

CLEISSON DE CASTRO MELO

SAUDADE: REPRESENTAÇÃO E SEMIÓTICA EM VILLALOBOS

Tese apresentada ao Programa de Pesquisa e Pósgraduação em Música, Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em música. Área de concentração: Composição

Orientador: Prof. Dr. Wellington Gomes Coorientadores: Prof. Dr. Eero Tarasti e Prof. Dr. Paulo Costa Lima

SALVADOR-BA 2016

M528 Melo, Cleisson de Castro Saudade: Representação e semiótica em Villa-Lobos /Cleisson de Castro Melo. -Salvador, 2016. 174 f. Orientador: Prof. Dr. Wellington Gomes Tese (Doutorado - Programa de Pós-graduação em Música) -Universidade Federal da Bahia, Escola de Música, 2016. 1. Música : Análise e apreciação. 2. Villa-Lobos, Heitor. 2. Semiótica. I. Título. CDD 780.15

© CopyLeft Cleisson Melo 2016

FICHA DE APROVAÇÃO

SAUDADE: REPRESENTAÇÃO E SEMIÓTICA EM VILLA-LOBOS CLEISSON DE CASTRO MELO

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em música, Escola de Música da Universidade Federal da Bahia Aprovada em 13 de julho de 2016.

Welligton Gomes da Silva – Orientador, UFBA Doutor em Música pela Universidad Federal da Bahia

Paulo Costa Lima – Co-orientador Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia

Paulo Cesar de Amorim Chagas Doutor em Composição pea Universidade de Liége, Bélgica

Paulo de Tarso Salles Doutor em Música pela Unicamp

Wellington Mendes da Silva Filho Doutor em Música pela Universidade Federal da Bahia

A Kadija Teles

“A Saudade é Brigitte Bardot acenando com a mão num filme muito antigo”. Zeca Baleiro

AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, sem Ele nada disso seria possível. Aos meus pais Linaldo Oliveira e Cecilia Mello pela educação e suporte a mim proporcionados. Aos meus irmãos Cleisse e Linaldo Jr pelo apoio e companheirismo. À minha amada esposa Kadija Teles pelo apoio incondicional e suporte necessários para que este trabalho chegasse até aqui. À CAPES pelo apoio financeiro que permitiu a condução desta pesquisa tanto no Brasil, como na Universidade de Helsinki durante o ano de doutorado sanduíche. Ao meu orientador Prof. Dr. Wellington Gomes pelos ensinamentos meticulosos, disposição, paciência, orientações e o norte acadêmico, o meu muito obrigado! Aos meus coorientadores Prof. Dr. Eero Tarasti pelo meticuloso norteamento, suporte, orientações e por ser a bússola deste trabalho, e ao Prof. Dr. Paulo Costa Lima pelas conversas sempre atenciosas e direcionamentos meticulosos para que essa pesquisa caminhasse neste sentido, o meu muito obrigado a vocês. Ao Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA, na pessoa da Profa. Dra. Diana Santiago (coordenadora), pelo imenso apoio, ajuda e atenção. Aos professores(as) do Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA pela doação de conhecimento. Às funcionárias do Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA Maísa e Selma, pela apoio prestado sempre. À Juliana Gois por tudo! Aos amigos Prof. Dr. Luciano Carôso, Valéria Almeida e Prof. Dr. Pablo Sotuyo pela amizade, companheirismo, pelas contribuições para este trabalho, e por estarem sempre presentes. Aos Professores Dr. Paulo Chagas e Dr. Paulo Salles pelas valiosas contribuições e pelo empenho, dedicação e disponibilidade para estarem na banca examinadora. À Profa. Dra. Heloisa Valente pelo empenho e préstimos. Ao Professor Dr. Dario Martinelli pelo manifesto “Numanities” (New-Humanities), o que abriu novas possibilidades para esta pesquisa. Aos meus colegas de pós-graduação, nas pessoas de Laurisabel Silva, Ernesto Silva e Reis, Vilma Fogaça e Larissa Padula, pela assistência e companheirismo.

Aos funcionários da Biblioteca da Escola de Música da UFBA pela dedicação. Às amigas e colegas Grisell Macdonel, Julia Shpinitskaya, Marjo Suominen, Dra. Aurea Dominguez pela ajuda, acolhimento e enorme amizade! Também à Dra. Tiina Vainiomäki e Takemi Sosa pelo companheirismo e suporte! Kiitos Paljon! À Dra. Sári Helkala-koivisto pelo incentivo e colaboração. A Paul Forsell pela inestimável ajuda. À Universidade de Helsinki, nas pessoas de Irma Rinne e Maija Urponen, pelo imenso amparo e suporte a mim prestados. Ao Museu Villa-Lobos, na pessoa de Pedro Belchior e sua inigualável memória, pela imensa ajuda e dedicação. Aos funcionários da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro pela cordialidade e presteza. Ao Banco de Partituras de Música Brasileira da Academia Brasileira de Música, na pessoa de Alessandro de Morais, pela eficiência e presteza. A todos que de uma forma direta ou indireta contribuíram para este trabalho, mas que por um lapso de memória não estejam aqui, muito obrigado.

MELO, Cleisson de Castro. Saudade: Representação e semiótica em Villa-Lobos. 173 f. 2016. Tese (Doutorado) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

RESUMO Este trabalho visa identificar elementos do processual villalobiano no sentido de revelar atitudes que, ligadas ao sentimento da saudade, nos permita uma reconsideração de sua música pelo viés da semiótica existencial. Para isso, almejamos construir um arcabouço teórico fundamentado na semiótica existencial, no gesto musical e tópicas, tendo como fio condutor o sentimento da saudade que, ativando ou sendo ativada por esta abordagem semiótica, nos possibilite investigar aspectos e relações com o hibridismo cultural brasileiro, buscando identificar elementos e atitudes do seu processual. Assim, uma abordagem teórico analítica plural permite nos debruçarmos sobre suas danças em ambiente orquestral, com o objetivo de identificar tais atitudes e seus desdobramentos, evidenciando aspectos do seu compor na tentativa de melhor entender seus processos composicionais. Palavra-chave: Villa-Lobos. Saudade. Semiótica Existencial. Análise Musical. Significado Musical.

MELO, Cleisson de Castro. Saudade: Representation and Semiotics on Villa-Lobos. 173 p. 2016. Doctoral Thesis – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

ABSTRACT This research aims to distinguish Villa-Lobos’ processual elements in order to uncover attitudes, which associated with saudade (nostalgia), allows us a reconsideration about his music by the bias of existential semiotics. In this regard, we aim to build a reasoned theoretical framework in the light of existential semiotics, musical gesture, and topics, where saudade is the guideline among these points. Therefore, saudade acting or being activated by this semiotic approach allows us to investigate aspects and relations with Brazilian cultural hybridity, trying to recognize elements and attitudes of Villa-Lobos’ processual. Thus, a plural analytical theoretical approach allows us to deal with his orchestral dances in order to identify such attitudes and developments, underlining aspects of his composing in an attempt to better understand Villa-Lobos’ compositional processes. Keywords: Villa-Lobos. Saudade. Existential Semiotics. Musical Analysis. Musical Signification.

LISTA DE EXEMPLOS Exemplo  1:  Danças  Características  Africanas  1.Mov.  Comp.  75-­‐78  (redução).  _________________________________  90   Exemplo  2:  Danças  Características  Africanas  1.Mov.  Comp.  102-­‐105  (redução).   ______________________________  91   Exemplo  3:  Danças  Características  Africanas  1.Mov.  Comp.  34-­‐38  (redução).  _________________________________  92   Exemplo  4:  Floresta  do  Amazonas,  Dança  de  Índios,  Comp.  01-­‐07  (redução).  __________________________________  94   Exemplo  5:  Floresta  do  Amazonas,  Conspiração  e  Dança  Guerreira,  Comp.  102-­‐109.   _________________________  97   Exemplo  6:  Floresta  do  Amazonas,  Conspiração  e  Dança  Guerreira,  Comp.  110-­‐114.   _________________________  99   Exemplo  7:  Bachianas  No.  4  –  IV.  Dança  Miudinho.  Comp.  01-­‐10.  ______________________________________________  101   Exemplo  8:  Bachianas  No.  4  –  IV.  Dança  Miudinho.  Comp.  11-­‐16  ______________________________________________  102   Exemplo  9:  Bachianas  No.  4  –  IV.  Dança  Miudinho.  Comp.  115-­‐124   ___________________________________________  104   Exemplo  10:  Bachiana  No.2  -­‐  III.  Dança  (Lembrança  do  Sertão).  Comp.  01-­‐06.  _______________________________  107   Exemplo  11:  Bachiana  No.2  -­‐  III.  Dança  (Lembrança  do  Sertão).  Comp.  24-­‐29.  _______________________________  109   Exemplo  12:  Bachianas  Brasileiras  No.  7  –  Giga  (Quadrilha  Caipira).  Comp.  192-­‐201   _______________________  111   Exemplo  13:  Bachiana  Brasileira  No.  4.  Dança  Miudinho.  Comp.  191-­‐197.  ____________________________________  115   Exemplo  14:  Amazonas  –  Dança  do  Encantamento  das  Florestas.  Comp.  68-­‐72.  Cifra  9.  _____________________  116   Exemplo  15:  Floresta  do  Amazonas.  Conspiração  e  Dança  Guerreira.  Comp.  42-­‐52.  __________________________  119   Exemplo  16:  Amazonas  –  Dança  do  Encantamento  das  Florestas.  Comp.  73-­‐76  ______________________________  122   Exemplo  17:  Amazonas  –  Dança  do  Encantamento  das  Florestas.  Comp.  81-­‐84.  Cifra  10.  ____________________  123   Exemplo  18:  Dança  dos  Mosquitos.  Comp.  21-­‐30  ________________________________________________________________  126   Exemplo  19:  Dança  dos  Mosquitos.  Comp.  96-­‐105   ______________________________________________________________  129   Exemplo  20:  Dança  Frenética.  Comp.  31-­‐39.   ____________________________________________________________________  132   Exemplo  21:  Bachiana  Brasileira  No.  2.  Lembrança  do  Sertão.  Comp.  86-­‐93  __________________________________  134   Exemplo  22:  Danças  Características  Africanas.  1.  Mov.  Comp.  01-­‐04  (05-­‐08).  ________________________________  138   Exemplo  23:  Danças  Características  Africanas.  3o  Mov.  Comp.  188-­‐197.  ______________________________________  140   Exemplo  24:  Dança  Frenética.  Comp.  101-­‐120.  __________________________________________________________________  144   Exemplo  25:  Floresta  do  Amazonas.  Dança  da  Natureza.  Comp.  27-­‐34.  _______________________________________  148   Exemplo  26:  Amazonas  –  A  Dança  Sensual  da  Jovem  Índia.  ____________________________________________________  151   Exemplo  27:  Bachiana  Brasileira  No.  2.  Lembrança  do  Sertão.  Comp.  15-­‐18.  _________________________________  152   Exemplo  28:  Bachiana  Brasileira  No.  7.  Guiga  (Quadrilha  Caipira).  Comp.  222-­‐231.  _________________________  155  

LISTA DE FIGURAS Figura  1  -­‐  Eixos  –  Sintagma  e  Paradigma  ________________________________________________________________________  49   Figura  2  -­‐  modelo  do  Dasein  -­‐  semiótica  existencial  (Tarasti)  ___________________________________________________  60   Figura  3  -­‐  Quadrado  Semiótica  de  Greimas  x  Moi/Soi   ___________________________________________________________  62   Figura  4  -­‐  Z-­‐model  (Tarasti)  _______________________________________________________________________________________  63   Figura  5  -­‐  Z-­‐model  e  processo  composicional   ____________________________________________________________________  67   Figura  6  -­‐  interseção/comunicação  entre  Moi(s)  e  Soi(s)   _______________________________________________________  70   Figura  7  –  Z-­‐model  _________________________________________________________________________________________________  79   Figura  8  –  Ação  do  Moi1  ___________________________________________________________________________________________  96   Figura  9  -­‐  Ich-­‐Ton  e  Transcendência  filtrados  no  Soi-­‐Moi  (Tarasti)   ____________________________________________  98   Figura  10  -­‐  Soi  no  Moi  –  gesto  ____________________________________________________________________________________  128   Figura  11  –  Kankikis:  ritmo  ______________________________________________________________________________________  139   Figura  12  –  Movimento  M1-­‐S1  –  S1-­‐M1  no  processual  villalobiano  (Z-­‐model)  ________________________________  153  

SUMÁRIO 1   INTRODUÇÃO  ..........................................................................................................................  15   1.1   PRIMEIRAS PALAVRAS ....................................................................................................... 15   1.2   CONTEXTO DE PESQUISA .................................................................................................. 17   1.3   ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO ..................................................................................... 18   2   VILLA-­‐LOBOS  ...........................................................................................................................  20   2.1   MEMÓRIAS, SAUDOSISMO E DANÇAS ............................................................................ 20   2.2   BRASIL E A OBRA DE VILLA-LOBOS ............................................................................... 23   2.3   MODERNISMO E OUTROS DIÁLOGOS ............................................................................. 26   3   UM  CAMINHO  TEÓRICO  .......................................................................................................  29   3.1   A SAUDADE ........................................................................................................................... 29   3.1.1   Ontologia,  mito  e  simbolismo  ..........................................................................................  29   3.1.2   Memória  e  representação  .................................................................................................  35   3.1.3   Saudade  e  seus  lugares  ......................................................................................................  37   3.2   DO GESTO MUSICAL............................................................................................................ 45   3.2.1   Gesto  e  ritmo  ..........................................................................................................................  52   3.3   TÓPICAS: DO GESTO À SAUDADE .................................................................................... 55   3.4   A SEMIÓTICA EXISTENCIAL.............................................................................................. 58   3.4.1   A  semiótica  existencial  e  processo  composicional  ...................................................  66   3.4.2   O  gesto  existencial  ...............................................................................................................  71   3.4.3   Villa-­‐Lobos  e  a  semiótica  existencial.  ............................................................................  72   3.4.4   Representação  e  saudade  ..................................................................................................  76   3.4.5   Lugares  da  Saudade  .............................................................................................................  79   4   MODALIDADES  NAS  DANÇAS:  ATITUDES  E  PROCESSOS  ...........................................  83   4.1   REPERTÓRIO ABORDADO .................................................................................................. 84   4.2   QUERER: VILLA-LOBOS E O BRASIL SONORO .............................................................. 88   4.3   PODER: PERTENCIMENTO E EXPRESSÃO .................................................................... 105   4.4   SABER: ESTÍMULO E REPRESENTAÇÃO ....................................................................... 120   4.5   DEVER: FENÔMENO E COMPOSICIONALIDADE ......................................................... 136   5   CONSIDERAÇÕES  FINAIS  ....................................................................................................  158   REFERÊNCIAS  ...............................................................................................................................  164  

1 1.1

INTRODUÇÃO PRIMEIRAS PALAVRAS Villa-Lobos, um dos mais importantes compositores brasileiros, desenvolveu uma

linguagem musical notadamente criativa e exuberantemente numerosa. Porém, entender seu estilo, ideologia, técnica e estratégias continua sendo um desafio. Considerando a quantidade de trabalhos a respeito de Villa-Lobos, na sua maioria bibliográficos ou focado nos aspectos nacionalistas, os estudos analíticos mais sistemáticos a respeito de sua obra ainda estão longe de superar estes em número. Ainda falta considerar e evidenciar mais os méritos de sua obra como contribuição significativa para a música ocidental, dando assim substância para a prerrogativa que é a de ser um dos maiores compositores de seu tempo. A vida de Villa-Lobos foi marcada por períodos de viagens e experiências dentro e fora do Brasil. Seu primeiro período parisiense (1923-1924) foi fundamental no desenvolvimento de sua linguagem musical. Com a ajuda de pintores e outros artistas, alguns dos quais ele conheceu pouco antes da Semana de Arte Moderna de 1992, Villa-Lobos, através de encontros e desencontros, conseguiu galgar seu lugar como compositor numa cidade bastante distinta culturalmente de suas origens. Já as suas andanças pelo Brasil lhe rendeu bastante conhecimento sobre seu país em seus diversos aspectos, culturas, personagens, lendas, mitos, etc. O contato com essa diversidade lhe proporcionou noções desses Brasis, o que refletirá mais tarde nas representações dessas “realidades”. Esta pesquisa caminha no sentido de reconsiderar a música de Villa-Lobos e suas relações com o hibridismo cultural-musical brasileiro, na tentativa de identificar atitudes que, conectadas ao sentimento da sensibilidade saudosista brasileira, nos proporcione meios para entender alguns processos composicionais que fundamentam sua música. Tendo isso em vista, investigar algumas de suas atitudes e processos composicionais pelo viés da semiótica pode iluminar outros aspectos de suas obras, em contrapartida às investigações mais institucionalizadas a este respeito. Desta forma, fica mais claro observar essas relações e atitudes, assim como sua expressividade composicional em desenvolver parâmetros estéticos capazes de promover seu discurso musical. As danças representam um importante componente no folclore brasileiro, estando diretamente ligadas à tradição e cultura (inclusive são vistas como uma forte expressão

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cultural em determinadas sociedades). Por isso que investigar as danças de Villa-Lobos pode ajudar a esclarecer sua miscigenação musical, bem como os caminhos por ele trilhados na construção da “alma brasileira”; uma linguagem musical brasileira. Através de uma abordagem analítica que parte do sentimento da saudade e com base na semiótica existencial, no gesto musical e na teoria das tópicas, demonstraremos estratégias e atitudes do processual de Villa-Lobos, especialmente quando se pretende explorar os mecanismos de composição e expressão. Sendo assim, esta abordagem aplicada aos aspectos brasileiros emergentes do seu processo de criação poderá nos permitir identificar signos culturais-musicais em sua música orquestral. Posto isto, esta pesquisa visa retratar certas atitudes que, através do gestual, apontam para a construção de elementos representativos e significativos através da experiência e imersão cultural. Portanto, tendo a saudade como principal “fio condutor”, este sentimento da sensibilidade saudosista presente na alma brasileira, seja como elemento identitário ou anexo (como veremos mais adiante), está ativando e sendo ativado pela semiótica existencial proposta por Eero Tarasti. Isso nos permitirá agregar diversas abordagens teóricas que, fundamentadas pela saudade e através da fluidez e flexibilidade da semiótica existencial, nos possibilita um arcabouço teórico capaz de evidenciar as atitudes e estratégias processuais almejadas. Assim, o que buscamos com diferentes abordagens é estabelecer uma fundamentação teórica alicerçada na saudade e embasada pela semiótica existencial que, em conjunto com o gesto musical, tópicas e o processo composicional segundo Lindembergue Cardoso, irão compor pequenos conglomerados que servirão de pontos de apoio para as análises pretendidas. Assim, almejamos demonstrar alguns elementos e atitudes do processual villalobiano através de análises fundamentadas por este complexo teórico a ser desenvolvido. Neste sentido, vale ressaltar que partimos em busca de uma teoria da saudade que fosse original a partir de uma perspectiva portuguesa e também universal, contemplando uma visão brasileira e de como este sentimento se apresenta na alma brasileira. Por este ponto de vista, pudemos estabelecer uma interpretação de modo a fazer um contraponto com abordagens brasileiras, privilegiando uma perspectiva que discutirá a música brasileira pelo viés de uma teoria brasileira. No sentido de contextualizar o leitor para melhor entendimento dos objetivos almejados com esta pesquisa, esta também visa contemplar aspectos de teorias de Brasil. Ou seja, a partir do momento em que buscamos tratar da música brasileira no contexto brasileiro, estamos trazendo estas abordagens teóricas para o contexto brasileiro, o que justifica uma

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proposta de assegurar o Brasil como lugar de falas. Mas por que a semiótica? Por que uma semiótica europeia? Para responder estas e outras questões é necessário abrirmos um breve parêntese a respeito de como esta pesquisa foi construída e desenvolvida.

1.2

CONTEXTO DE PESQUISA Esta pesquisa começou no mestrado, cujo aspecto fulcral era a música orquestral

brasileira. Já durante o doutorado, o interesse era de desenvolver um estudo específico e mais aprofundando a respeito de uma possível orquestração tipicamente brasileira. Os problemas foram diversos, e não cabe discuti-los aqui. A pesquisa terminou mudando de rumo e passou a focar nos aspectos estruturais e processuais das danças orquestrais brasileiras de um determinado período histórico. Um ponto amplo, mas que permitiu um contato com diversas vertentes analíticas e um vasto repertório; mais de 30 movimentos e músicas. Dentre todas as vertentes vistas, o campo da significação e do significado em música parecia muito promissor, com diversas possibilidades de abordagens. Por isso, a semiótica passou a ser uma linha muito pertinente para o caminho analítico desejado. Para que isso se concretizasse, seria necessário um aprofundamento no campo da semiótica e da música brasileira. Então optamos por uma abordagem semiótica que permitisse interseções e confluências com o gesto e elementos da orquestração. Diante deste quadro, surgiu a possibilidade de conduzir esta etapa de pesquisa fora do Brasil. Este trabalho terminou sendo acolhido pelo Prof. Dr. Eero Tarasti da Universidade de Helsinki. Frente a este cenário bastante promissor (as facilidades e recursos bibliográficos e acadêmicos), a pesquisa seguiu, desta vez, na direção de Villa-Lobos, com amplas possibilidades de aprofundamento no campo da semiótica. O contato com os ensinamentos e direcionamentos do Prof. Tarasti permitiu vislumbrar o uso da sua teoria da semiótica existencial; uma teoria bastante fluida e capaz de abarcar uma enorme gama de possibilidades de interseções analíticas, seja pela sua base filosófica ou por agregar uma espécie de releitura da semiótica “clássica”, apontando para novas perspectivas em meio ao mundo moderno. Ao deparar com uma abordagem em torno da escola franco-alemã de filosofia a respeito do Moi (eu) e Soi (coletivo, sociedade), um amplo caminho se abriu com diversas possibilidades de intercâmbios e interseções teóricas. Essa extrema fluidez apresentada pela

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semiótica existencial tornou-se o principal elo que permitiu juntar todas as peças. Durante o tempo na Universidade de Helsinki, muita coisa foi escrita, discutida e analisada. A peça que faltava viria de um pedido do Prof. Tarasti para falar de sentimento/emoção e música em Villa-Lobos. Eis que surgiu a saudade como o fio condutor de todo o processo, costurando cada abordagem teórica dentro de uma visão nossa; brasileira. Assim, discutir música brasileira, Brasil e suas culturas passa, nesta pesquisa, de vicissitude a realidade. A intenção deste trabalho não é apenas introduzir a semiótica existencial no meio acadêmico brasileiro, mas fazer uma leitura e aplicabilidade pelas lentes de um discurso brasileiro. Com isso, faremos um contraponto e interseções com alguns autores e abordagens locais que, além de demonstrar a flexibilidade dessa teoria semiótica, nos permitirá reafirmar teorias e abordagens que dão conta de abarcar nossa realidade sócio-musical.

1.3

ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO Este trabalho está estruturado em três partes e conclusão. No primeiro capítulo, faremos

uma reflexão a respeito do sentimento da saudade presente na alma brasileira, das andanças, e experiências de Villa-Lobos e suas danças. Também faremos uma consideração sobre VillaLobos e sua relação composicional com o Brasil, bem como o seu processo de apropriação e diálogo com o modernismo. No segundo capítulo, montaremos um arcabouço teórico com base na saudade, semiótica existencial e o gesto, capazes de lidar com os processos e atitudes a serem demonstrados. Através da semiótica existencial será possível levantar e responder algumas questões sobre o pensamento composicional villalobiano, bem como estabelecer uma abordagem plural onde se possa contemplar os elementos simbólicos e representativos da personalidade e do compor villalobiano. Este quadro teórico, tendo como fio condutor a saudade com a semiótica existencial, torna-se o elo entre os diversos tópicos, permitindo-nos fundamentar as análises propostas. Por este viés, esperamos ter uma visão mais ampla a respeito da música de Villa-Lobos e suas relações com o hibridismo cultural brasileiro, procurando identificar elementos e atitudes do seu processual. Já o terceiro capítulo (analítico) abordará as danças villalobianas, ou melhor, as músicas ou movimentos de músicas exclusivamente em ambiente orquestral que tenham o nome “dança”, ou de alguma dança. Para este processo analítico listaremos quatro pontos

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fundamentados nos desdobramentos oriundos de superposições de algumas modalizações. Este processo segue na direção da prerrogativa de Sílvio Ferraz (2014) quando ele diz: “decompor” para “re-compor”, ou seja, “desmontar para montar” (FERRAZ, 2014, p. 191). Isso abre nosso leque de opções e experimentações nos recortes analíticos que pretendemos “desconstruir”, no sentido de “re-construir”1 um sentido no discurso villalobiano. Por fim, no quarto e último capítulo, apresentaremos as considerações finais a respeito das atitudes analisadas, evidenciando o comportamento dos Mois e Sois nestas atitudes, e oferecendo ideias para futuras investigações.

1

Estamos fazendo uma alusão ao re-presentar (nachzuwirken – continuar a ter efeito), no sentido de interconectar a semiótica com o fazer composicional.

2 2.1

VILLA-LOBOS MEMÓRIAS, SAUDOSISMO E DANÇAS Em 5 de março de 1887, na cidade do Rio de Janeiro, nasceu Heitor Villa-Lobos, filho

de Noemia Umberlina Santos Monteiro e Raul Villa-Lobos. Um dos personagens fundamentais na história da música brasileira, Villa-Lobos sempre apresentou um caráter e postura excepcional como compositor, músico e maestro. Suas obras figuram em grande parte dos estudos a respeito do nacionalismo musical brasileiro e/ou na busca por elementos de brasilidade na música nacional. Uma das possíveis explicações para isso, poder ser o fato de que, no processo de construção de nossas memórias (musicais), Villa-Lobos é um personagem constante com sua multifacetada brasilidade. Compositor de centenas de obras, ele soube como ninguém usar o universo musical à sua volta que, com sua formação e sensibilidade, conseguiu alçar grandes voos, principalmente na construção de uma obra repleta de significados, significantes e enredos dramáticos que eram o reflexo de seu ímpeto e orgulho dessa terra brasilis. Nesta sensibilidade brasileira, considerando o processo de formação do Brasil como nação, as múltiplas expressões de saudade são parte do cotidiano, do aprendizado cultural e das construções históricas do sentimento de pertencimento da comunidade de língua portuguesa. Assim, esse sentimento muitas vezes subjetivado (e identificado como nostalgia, perda, desilusão, melancolia, etc.) como expressão consciente de valores compartilhados, pode ser evocado como sentimento ou emoção por meio de categorias que permitem sua articulação com diferentes significados. O que acontece em Villa-Lobos não são só elementos saudosistas no sentido estrito da palavra (apesar de um tom nostálgico saudosista em algumas de suas obras), mas atitudes fundamentadas por aspectos saudosistas que se apresentam como processos na construção de seu discurso. São essas estratégias de conexão entre o intra e o extramusical que identificam singularidades específicas de um compositor. Neste sentido, Villa-Lobos foi bastante profícuo na construção de uma sonoridade particular, no intuito de desenvolver uma identidade sonora como base para a identidade de uma nação/sociedade. A apropriação de elementos imanentes ao imaginário brasileiro, ativados pela saudade, é fundamental na representatividade de elementos culturais refletidos nos seus processos composicionais. Do mesmo modo, a (re-)apropriação de conceitos socioculturais estabelecidos por uma corrente nacionalista, especialmente os participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, pode estar na dimensão das rememorações saudosas, e no desejo de

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retomar o processo de identificação de um povo; neste caso, brasileiro. Para isso é preciso ir às raízes. Desta maneira, a saudade, presente no imaginário e no ser brasileiro, é parte substancial; a essência que embebida pela dialética da multiplicidade brasileira não pode ser dissociada do todo. Quando falamos que Villa-Lobos procurou estabelecer um território singular relacionado a uma sonoridade ímpar e essencialmente brasileira, estamos falando do desejo de criar algo seu, mas, ao mesmo tempo, universal. Esse desejo presente na apropriação de elementos culturais e folclóricos traduz-se como o desejo de reconstruir uma nação sonora, uma identidade. Essas rememorações da saudade de outrora, de representar uma diversidade de miscigenação, estão enraizadas numa coletividade saudosa como elemento de distinção destes povos; representação das influências africana, portuguesa e indígena, por exemplo. As danças, como elemento cultural, são importantes no processo do nacionalismo brasileiro. Mesmo apontado como “modismo” por Mario de Andrade, este estilo está presente nas páginas da história da música no Brasil. O estilo dança tem, dentre outras funções, a de trazer elementos culturais e populares para o meio musical; seja para a música de concerto ou para a própria música popular. O “dançável” era uma atitude de representação, de resgate das memórias, de trazer o passado ao presente, das raízes, de retratar elementos folclóricos e culturais no desenvolvimento de uma música que poderia ser identificada como brasileira. Não estamos querendo dizer que o retorno ao passado é uma maneira de explicar a cultura de hoje, mas esta ontologia de compartilhar experiências do passado no presente estabelece laços de pertencimento comum a uma determinada cultura, ou seja, é esse processo de reapropriação de elementos histórico-sociais que permite que a arte, especialmente neste caso a música, ecoe, evoque e transforme este passado imagético no saudosismo da alma brasileira. Mario de Andrade (1982) em seu livro Danças Dramáticas do Brasil, fruto de seus estudos etnográficos no norte e nordeste do Brasil entre 1920 e 1940, aponta a dança como manifestação folclórica com elementos de dramaticidade que, dentro de um quadro amplo, está representando as manifestações populares por ele observadas. Há uma intenção de relacionar estas manifestações com manifestações pagãs europeias e o teatro grego antigo, referenciando as danças dramáticas como um espetáculo confluente com a música, movimento e drama. Se olharmos pelo prisma da hibridação da linguagem sonora e visual, podemos dizer que: como toda linguagem, a da dança vem do pensamento. O pensamento, que

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se organiza por meio de signos, é uma maneira de ordenar informações – uma ação. Assim, na dança, a organização dos movimentos se dá de modo semelhante ao que promove o surgimento dos pensamentos: o processo da semiose, cadeia infinita de autogeração sígnica, pois envolve a atualização da tríade signo/objeto/interpretante (GONÇALVES, 2009, p. 47).

Assim, dentro do campo das imagens e metáforas, a construção das danças como signo estético acontece por meio da apropriação de elementos culturais populares (considerando a nacionalização das danças de origem europeias com a valsa, quadrilha, etc.). “A dança desperta qualidades de sentimentos” (GONÇALVES, 2009, p. 77). Portanto, o olhar atento de compositores como Villa-Lobos proporcionou a reapropriação destes elementos, tanto pelo viés popular como folclórico, no sentido de trazer estes elementos representativos de brasilidade para o meio musical. Desta maneira, a dança passa a figurar como elemento representativo e também como meio de expressão. Por outro lado, numa visão mais ampla, a saudade, no universo pluralista brasileiro, lida com duas grandes forças: união e desilusão. A força que uniu diferentes povos no território brasileiro também promoveu a desilusão na imposição forçada de colonização; atitude colonialista onde o colonizado não tem direto a uma língua própria – falas. Este sofrimento desilusivo, anexo ao ser brasileiro, estabelece uma relação direta com as tradições musicais brasileiras, especialmente as tradições afro-brasileiras. As danças, desta forma, foram e continuam sendo um meio de expressão bastante fértil em vários aspectos. Considerando que a dança está fortemente presente nas mais diversas culturas, motivos não faltam para sua execução; rituais, cerimônias, fertilidade, colheita, celebrações, festividades, caça, natureza, e assim por diante. Assim, o uso de ritmos de dança como significado nacional assume forma bastante substancial na música brasileira e sul-americana. O movimento nacionalista brasileiro achou terreno produtivo na apropriação e no uso das danças como consciência nacional. O adjetivo “novo”, como emblema de todas as manifestações, passou pelo crivo do saudosismo dessas raízes no intuito de compor elementos de identificações significativas ao desenvolvimento da “alma brasileira”. Em contrapartida, o movimento de vanguarda buscou este novo na contramão do saudosismo. Isso se concretizou no movimento Música Nova, o que não invalida de maneira nenhuma o movimento modernista como a retomada das raízes nacionais brasileiras. No universo das danças, a relação entre saudade e memória atinge uma valorização afetiva de conteúdo mnemônico, o que retoma os aspectos psicossociais e culturais. Este estado de recordações está presente nas diversas manifestações culturais brasileiras. Por isso que, como forma marcante na construção de nossa biografia, dentro deste contexto de

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memória social, as danças (como manifestação cultural) podem ser vistas como meio para a concretização do discurso memorialista nacional. Como um ato corporal, a dança pode ser fruto de um hábito, algo que pode ser aprendido. Também como um ato incorporado e, metaforicamente, como o musical visível, a sua elaboração no âmbito da música pode significar a formalização de um discurso compositivo em combinação com o gesto, o canto, e assim por diante. Considerando que os aspectos comunais presentes principalmente nas danças de ancestralidade africana podem ser um dispositivo eficaz na transmissão da memória social, música e dança, então, funcionam como dispositivos mnemônicos de preservação desta memória, que no contexto da saudade passam a adquirir um poder de representação e ressignificação de valores e traços socioculturais. Por outro lado, essas falas podem representar formas de saciar o desejo da memória, um resgate histórico e emotivo. Ao fazer uma reconstrução sensível do tempo e da temporalidade, imagens sonoras podem ser apresentadas, metaforicamente, como cartografia de emoções a partir de uma realidade imagética saudosa. Deste modo, a relação entre memória social e saudade se apresenta no sentido de que “o saudosismo tem raramente sido encarado como elemento crucial para a própria articulação social da memória brasileira” (NASCIMENTO; MENANDRO, 2005, p.06). É neste sentido que entendemos que memória está diretamente ligada a processos emotivos e lembranças, e que “o significado é essencial à lembrança e, além disso, (...) é fornecido pela cultura” (STOETZEL, 1976, p.130).

2.2

BRASIL E A OBRA DE VILLA-LOBOS Villa-Lobos dedicou-se prontamente à construção de uma identidade musical. Isso está

presente em suas falas, discursos, e principalmente na sua trajetória de vida. O pensamento voltado para esta missão foi estabelecido em suas andanças e no ímpeto de reinventar um Brasil; o que Darcy Ribeiro (1995) chama de construir o país que nós queremos. Villa-Lobos soube usar esse ímpeto em suas obras, buscando e compreendendo os diversos Brasis e seus regionalismos, dialetos, etc. A sua experiência nas noites do Rio de Janeiro como músico nos lounges dos teatros e cinemas, e como boêmio a conviver com chorões e diversos músicos populares, foram fatores preponderantes na consolidação de um compositor envolvido com os elementos de sua comunidade. Assim, a apropriação em Villa-Lobos (como veremos mais adiante) vai além da

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simples citação de uma melódica ou ritmo de origem popular. O que se ouve é um uso representativo e re-significado, fazendo com que os elementos da música popular assumam novo sentido em sua obra. Isto é um segmento do seu acervo de opções e criações, de escolhas que o conduziram por caminhos diversos, tornando-se parte de sua identidade musical. É neste meio que Villa-Lobos, com seu espírito independente e cercado de influências externas conseguiu juntar diferentes realidades de um país tropical e suas miscigenações. Com personalidade intensa e envolvente, ele fez uma síntese de culturas e universos distintos através de uma obra extraordinariamente numerosa e original. Por outro lado, as possibilidades de romper com ideologias e idealismos impulsionaram seu imaginário que, alicerçado pelo folclore/popular, fundamentou uma percepção mais cinética em relação às técnicas formais até então usadas. São suas formas de reler os estilos e técnicas que, filtrados pela sensibilidade brasileira, refletiram diretamente nos seus processos de escolhas. Villa-Lobos era, efetivamente, tão representativo de tudo o que é essencialmente brasileiro, do autêntico folclore, bem como do espírito e dos anseios do nosso povo, que bastava me aproximar dele quando tinha o coração cheio de saudades, para encontrar, seja em New York ou em Paris, a genuína atmosfera da terra brasileira que ele, sozinho, conseguia recriar (...) o genial talento do compositor e a maestria do regente, mas também o dinamismo e o vigor do homem que soube, no decorrer dos últimos anos de sua fecunda existência, vencer tantos obstáculos que pareciam intransponíveis e afirmar sua esplêndida vitória no cume da mais milagrosa carreira jamais alcançada por um músico brasileiro (LEITE, apud Magdalena Tagliaferro, 1999, p. 135-136).

Esse depoimento de Magdalena Tagliaferro resume bem a relação entre Villa-Lobos e o Brasil. Seu empenho em construir uma nação sonora passa pela transformação dos elementos culturais por ele apropriados em sons. Porém, essa euforia expressiva é parte de sua personalidade musical, formada a partir do seu envolvimento com eventos históricos e suas experiências de vida. Sua relação com o governo Vargas, por exemplo, possibilitou a instituição de um plano de educação musical, bem como de um processo de construção da brasilidade em paralelo à estratégia de Vargas, que era construir uma ideia de nação que abarcasse todo o território nacional. Suas andanças pelo Brasil e períodos no exterior fizeram de Villa-Lobos um cidadão universal com raízes fortemente fixadas em solo brasileiro, segundo suas próprias declarações. Isso além de influenciar suas decisões e processos composicionais, refletiu na construção sonora do um primitivismo presente no imaginário social como estereótipo. Essa

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linguagem imagética contempla os três principais conteúdos socioculturais: o branco, o negro e o indígena. Essa relação permite identificar alguns elementos do seu discurso como folclóricos. Todavia, essas retóricas de representações sociais que se apresentam em Villa-Lobos são como um retrato das atribuições do indivíduo enquanto ser dentro de um coletivo, ou seja, como um ícone da representação sociocultural deste país, Villa-Lobos buscou refletir em suas obras estes indivíduos, personagens, e mitos com os quais teve contato em suas andanças. Todo esse universo de “realidades” está presente e representado em suas obras, com voz ativa nas mais diversas situações musicais villalobianas. Sua linguagem musical passa pelo uso do social, das influências populares e folclóricas, das matrizes culturais, e da predileção pela natureza do Brasil. Suas narrativas musicais embebidas pelo ethos popular/folclórico definem seu personalismo, que são o reflexo dessa natureza do Brasil. Sua postura e estética, que caminharam num sentido mais vanguardista e explosivo, mais moderno, por assim dizer, são frutos do meio ao qual teve de se adaptar. Neste contexto de mudanças emergentes na música, que apontavam para o rompimento do sistema tonal da música ocidental combinado a uma proposta rítmica bastante rica, desembocarão em obras como Choros e as Bachianas Brasileiras. Seguindo este caminho, as danças tiveram um papel importante para Villa-Lobos. Lundus, maxixes, polcas, tangos são algumas das influências que marcaram sua trajetória musical, seja pelo lado folclórico ou popular. Em Villa-Lobos, as danças se apresentam como meio narrativo para seus diversos enredos e dramas musicais; os elementos constitutivos de nossa sociedade estão devidamente representados, e a apropriação passa a figurar nos diversos elementos do tecido musical. Assim, podemos perceber a intensidade de sua personalidade compositiva e a representação mítica num gestual bastante expressivo, rítmico e obstinado em alguns momentos. A dança, enquanto movimento artístico, tem destaque em seu programa de educação musical como um elemento importante na educação; se considerarmos sua afinidade com a música. Talvez fosse a intenção de Villa-Lobos não só criar um bailado tipicamente brasileiro, mas resgatar suas origens (populares ou não) como um símbolo de nacionalidade, pois: a arte da dança elevada é justamente umas das que o Brasil poderia cultivar com superioridade sobre os demais países, porque é notória a beleza plástica da mulher brasileira; a flexibilidade de nossos atletas; o ritmo singular e obstinado da nossa música popular; o amor que possuímos pelos livres

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movimentos físicos diante da nossa incomparável natureza (VILLALOBOS, 1972, p. 85, v.7).

Villa-Lobos, neste apelo ao chefe do governo provisório, externa suas convicções e pensamentos relacionados a uma educação que tem a arte como um componente imprescindível.

2.3

MODERNISMO E OUTROS DIÁLOGOS Um ponto importante quando se fala de modernismo, dentro do contexto da Semana de

Arte Moderna de 1922, é o desafio de construir o nacional, de conciliar a expressão individual e a expressão nacional. Neste sentido, não foi somente a experiência da Semana de Arte Moderna que deu certa projeção para Villa-Lobos, mas a sua estadia em Paris foi fundamental para o desenvolvimento e amadurecimento do seu compor “moderno” e nacional. Villa-Lobos soube desenvolver um ethos vanguardista com características de um modernismo nacionalista. Apesar das músicas apresentadas na Semana de Arte de 1922 terem sido classificadas com um certo ar de impressionismo debussiniano, o ímpeto villalobiano predominou de forma a representar um tipo de “impressionismo tropical” (SALLES, 2009, p. 86). Assim, essa ideia de uma cultura nacional vinculada à valorização das tradições populares e folclóricas transbordou como valores modernistas em criações significativas. Por outro lado, Villa-Lobos também foi influenciado pela linguagem de Wagner e Stravinsky. Essa mistura de elementos e arquétipos presentes em algumas de suas obras representou a transição do vocabulário do compositor para uma expressão mais moderna. Villa-Lobos sabia como ninguém da expectativa do publico parisiense. Por isso que, ao mediar as imagens do mito da floresta e da natureza selvagem do Brasil, conseguiu construir uma sonoridade singular e de grande representatividade. Ao explorar o “exótico”, Villa-Lobos estava mediando as forças entre o seu ímpeto e sua expressividade, relacionadas ao seu sentimento de pertencimento. A conjugação entre o folclórico e o tradicional europeu neste período, fez de VillaLobos um compositor que conhecia e sabia definir o Brasil e o brasileiro. Neste sentido, o estilo antropofágico de Villa-Lobos pode ser entendido como uma linguagem capaz de inserir a construção do nacional dentro dos padrões aceitos na época. Por outro lado, o desejo pelo

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novo em meio às mudanças ocorridas na sociedade durante o Modernismo fez emergir um Brasil com a aspiração do conhecimento de sua cultura enquanto instrumento de conhecimento de si e do outro. Essa busca pela identidade se deu em um caminho híbrido de linguagens. No início do séc. XX as valsas, polcas, mazurcas, conviviam dentro dos salões da elite, assim como nos bailes populares, com canções sertanejas e as diversas manifestações de regionalismos. Esse gosto pelo exótico trouxe à tona o folclore, e com ele novos protagonistas. Foi neste meio que o modernismo brasileiro se fundamentou e encontrou em algumas danças, como a polca, a possibilidade de haver um desenvolvimento de uma cultura musical brasileira como uma “entidade rítmica” (MACHADO, 2010, p. 137). O cruzamento entre o popular e o tradicional musical foi um dos protagonistas no desenvolvimento de uma linguagem musical brasileira, que nas mãos de Villa-Lobos assumiu personalidade forte e predominante. Essa mistura de elementos e influências, considerando as atribuições de intencionalidade à produção musical, foram partes importantes na inventividade villalobiana. Portanto, a construção de um pensamento musical livre passou pelas suas necessidades expressivas. Ao mesmo tempo em que o impulso expressivo de uma personalidade intensa e a influência da estética francesa, por exemplo, se moldaram em suas obras da fase inicial, seu diálogo com o modernismo se deu dentro de uma significação estética. Assim, especialmente suas obras desta primeira fase têm uma linguagem musical adaptada às exigências “estéticas” da música brasileira. Porém, Villa-Lobos já havia desenvolvido uma personalidade musical autêntica e forte, capaz de lidar com seu impulso, fluxo composicional e ideias, um tipo de contraponto com a exuberância da natureza brasileira. Desta forma, a apropriação e uso de elementos populares, folclóricos, e de obras modernas da época, determinaram a expressividade villalobiana em benefício da adaptação de sua energia cinética e seu ímpeto composicional em relação às diversas ações do modernismo. Por outro lado, seu tempo em Paris o tornou mais brasileiro ainda. Ou melhor, VillaLobos em vez de voltar de Paris cheio de Europa, voltou transbordando de Villa-Lobos. Talvez seu tempo na capital francesa o tenha feito mais moderno e mais brasileiro, pois ser moderno para Villa-Lobos era, acima de tudo, ser brasileiro em essência e expressão. Assim, os tentáculos de uma mestiçagem cultural que assolou o território brasileiro no início do séc. XX se destacaram pela associação entre o indivíduo (compositor) e a natureza, a ponto de Villa-Lobos afirmar que sua obra era fruto de uma predestinação, e numerosa em igualdade com a riqueza natural brasileira. Contrapontos como o selvagem x o civilizado,

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urbano x rural, etc. estão presentes em muitas de suas obras, ao mesmo tempo em que essa fusão de contradições – a (i)lógica brasileira – é uma entidade fundamentadora da “alma brasileira” (tudo isso é parte de uma ideologia brasileira que habita o imaginário como o mito das três raças). O “primitivismo” então passa a figurar ações extramusicais, indo à narrativa musical como uma forma de escrita processual dramática que aborda a mistura de estilos e linguagens. Sua intempestividade, rotulada como símbolo do selvagem, rude e primitivo, não está distante do langor da sensibilidade brasileira – a saudade e melancolia tropical – que irá se revelar em algumas de suas obras. O quanto de saudade nostálgica permeia os pizzicatos da Ária das Bachianas Brasileiras No. 5? Ou nas cordas do Prelúdio das Bachianas Brasileiras No. 4, bem como no tratamento melódico dado ao trombone no 4o movimento (Dança Miudinho) desta Bachiana? Esta tropical tristeza, que invade a alma do ser brasileiro como parte da identidade deste povo, está axiomática em parte das obras de Villa-Lobos. Suas danças são um ótimo exemplo, pois estão entremeadas de atitudes que, ligadas à saudade, nos permite um olhar diferenciado sobre sua obra e seus processos.

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UM CAMINHO TEÓRICO O campo da análise musical tem se expandido nas mais diversas direções. Os mais

diversos sistemas analíticos têm sido empregados na tentativa de poder explicar “quase tudo”. Essa dimensão estética da análise musical acaba por muitas vezes esquecendo o fundamental, o próprio processo. Sendo assim, Paulo Costa Lima em seu texto O Campo da Análise Musical e suas Ontologias (2004) aponta para a importância da “conjugação entre sons e ideias” como “núcleo, o lugar onde a verdade se manifesta” (LIMA, 2004, n.p.). Antes de qualquer coisa é importante considerarmos uma visão analítica como uma rede de conexões que interligam as várias direções do fazer musical com a própria experiência musical. Desta maneira, é possível conectar diversas abordagens numa mesma direção. Essa flexibilização demarca uma maior força analítica, abrangendo os diversos diálogos do fenômeno musical. Neste sentido, estamos considerando a pluralidade da música, em especial a música brasileira e suas matrizes. Na tentativa de tecer uma relação entre os conceitos, ideias, atitudes e estratégias composicionais, é que pretendemos desenvolver um arcabouço teórico (analítico) que possa contemplar nossos objetivos; entender melhor os processos, atitudes, e ideologia composicional de Villa-Lobos por outro viés. Uma abordagem ampla, que também contemple a dimensão cultural, poderá nos permitir explorar melhor os mecanismos de composição e expressão, e a identificar caminhos que nos possibilite estruturar uma análise capaz de produzir as interpretações aspiradas.

3.1 3.1.1

A SAUDADE Ontologia, mito e simbolismo Falar da saudade pode ser uma tarefa bastante complexa, especialmente no entorno do

seu significado. As primeiras coisas que nos vêm à mente são falta, perda, nostalgia, uma certa tristeza. Essa complexidade de sentimentos, muitas vezes difícil de descrever na língua portuguesa, pode ser expressa em uma única palavra: saudade. O sentimento de nostalgia, perda, falta, e por vezes melancolia (para alguns povos), é um ícone para o povo português. A história da saudade muitas vezes se funde com a história deste povo, moldando a alma portuguesa; seja em seus fados, poesias, literatura, etc. Neste sentido, foram os portugueses quem mais falaram e continuam falando sobre a saudade.

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Com relação à etimologia da palavra saudade, duas grandes correntes se dividem sobre a origem dela: uma com base no latim solitate ou solidad, e outra no árabe saudah. Por outro lado, a tradução dessa palavra para algumas línguas precisam de mais definições, detalhes que possam expressar tal sentimento. Souvenir ou nostalgie (francês), por exemplo, não traduz a profundidade de suas acepções, pois a saudade não é somente nostalgia e/ou tristeza, como veremos no decorrer do texto. Os primeiros escritos a usarem esta palavra datam do séc. XII. Dom Dinis2 (1261-1325) foi um dos primeiros a usar a palavra soidade relacionada à saudade portuguesa – a perda ou ausência de um amor ou de alguém que partiu em descobertas/aventuras marítimas. Mais tarde, o jurista, gramático e historiador português Duarte Nunes de Leão (1530-1608), em sua obra Origem da Lingoa Portuguesa (1606), pioneiramente assumiu a tarefa de definir e avaliar a palavra suidade/soidade. Ele evidenciou dois aspectos da saudade: positivo e negativo. Por exemplo, o coração (não razão) vs. tristeza; memória que traz prazer vs. sentimento de perda. Certamente este foi o principal motivo temático na música folclórica portuguesa (Fado) que encontrou terreno fértil neste sentido. São inúmeros os que tratam do tema da saudade. Sem dúvida isto é icônico, fundamental para a alma portuguesa (mito). O grande poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) traduziu primorosamente este sentimento em seu poema Mar Português: Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. (PESSOA, 1934, p. 64).

Este efeito saudosista expressa essencialmente o espírito português, possibilitando pensar a saudade como mito cultural e estabelecer relações entre a saudade e o imaginário português. O que podemos notar é uma relação profunda com o mar. Uma vez que a saudade ascende no período das cruzadas e descobertas, essa relação com o mar fica mais evidente, 2

Dom Dinis foi rei e também grande trovador, contribuindo para o desenvolvimento da poesia trovadoresca.

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como notamos neste poema de Pessoa. O mar é o reflexo, o espelho para a projeção representativa da saudade. Por outro lado, Roberta Ferraz (2007) faz um importante levantamento sobre o mito da saudade com base nos estudos do filósofo português Teixeira de Pascoaes (1877-1952). Pascoaes, sem dúvida, foi um dos mais importantes estudiosos a este respeito, e neste sentido afirmou que a saudade é: em sua última e profunda análise, 'o amor carnal espiritualizado pela Dor ou o amor espiritual materializado pelo Desejo; é o casamento do Beijo com a Lágrima; é Vênus e a Virgem Maria numa só Mulher. É a síntese do Céu e da Terra; o ponto onde todas as forças cósmicas se cruzam; o centro do Universo: a alma da Natureza dentro da alma humana e a alma do homem dentro da alma da Natureza'. A 'Saudade' é a personalidade eterna da nossa Raça; a fisionomia característica, o corpo original com que ela há de aparecer entre os outros Povos. (...) A Saudade é a manhã de nevoeiro; a Primavera perpétua, 'a leda e triste madrugada' do soneto de Camões. É um estado de alma latente que amanhã será Consciência e Civilização Lusitana... (FERRAZ apud PASCOAES, 2007, p. 39, grifos do autor).

Podemos salientar os dois pontos abordados por Pascoaes: a concepção de saudade como local e universal. Isso sublinha o mito português, ao mesmo tempo em que admite sua universalidade; o ser humano e sua relação com a natureza e o cosmos numa visão mais poética do homem e o tempo. Este mito português atravessa mares e montanhas e chega ao Brasil. Podemos retratá-lo de três modos: o primeiro é a saudade portuguesa das terras além-mar; o segundo, a saudade africana, saudade da terra mãe África e sua liberdade 3 ; e o terceiro, mas não menos importante, é a saudade indígena, a saudade de viver livremente pelas suas próprias terras. Portanto, saudade é um elemento essencial na construção do discurso – imagem da nação como representação e identidade. É evidente que, apesar da influência portuguesa, neste caso, os aspectos culturais e o viver dos brasileiros – o modo de encarar a vida, a miscigenação, o jeito de viver – influenciaram bastante. Por conseguinte, isso também contribui significativamente para o desenvolvimento do mito e imaginário do povo brasileiro. Este ponto de vista mito-melancólico sempre esteve presente na construção do povo brasileiro como sociedade. Essa visão miscigenada, ou como Gilbert Durand (2002) expressa com o termo “tigrada”, consegue dar conta como metáfora da pluralidade individual e cultural. Assim, como visto anteriormente, a saudade, presente no mito e imaginário do povo 3

De acordo com Freyre (2003), o Banzo, como este sentimento saudosista era conhecido entre os escravos africanos, levou muitos deles a ficarem doentes, podendo até mesmo virem a óbito.

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brasileiro, também se construiu de forma miscigenada, mestiça. Vejamos como o poeta parnasiano brasileiro Olavo Bilac (1865-1918), em seu poema Musica Brasileira, aborda essa influência “tigrada”: Tens, às vezes, o fogo soberano Do amor: encerras na cadência, acesa Em requebros e encantos de impureza, Todo o feitiço do pecado humano. Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza Dos desertos, das matas e do oceano: Bárbara poracé, banzo africano, E soluços de trova portuguesa. És samba e jongo, xiba e fado, cujos Acordes são desejos e orfandades De selvagens, cativos e marujos: E em nostalgias e paixões consistes, Lasciva dor, beijo de três saudades, Flor amorosa de três raças tristes (BILAC, 1940, p. 140)

Interessante notar que ao expressar neste poema sua visão a respeito da música brasileira, Bilac ressalta os aspectos mestiços e a saudade como elemento cultural presente na construção da sociedade e no mito brasileiro. São esses três beijos de saudade (portuguesa, africana e indígena) que, concreta e abstratamente, constituem o povo brasileiro – a formação sociocultural brasileira, onde os aspectos mestiços se estendem a vários setores (psico-socioculturais), colocando a saudade como elemento essencial neste desenvolvimento. Ao mesmo tempo isso ressalta o aspecto nostálgico na formação do povo brasileiro, presente até os dias atuais na memória e imaginário deste. Podemos notar que as influências portuguesa, africana e indígena estão presentes nos mais diversos aspectos do nosso povo, principalmente na formação como sociedade, fortemente fundamentada nestas influências. Isso reforça o mito das três raças tristes, colocando um caráter melancólico/nostálgico como parte deste povo. Todavia, este complexo sentimento seguiu por diversos caminhos. Apesar da dor (tristeza/nostalgia), a esperança parece ter estado presente nesta construção, dando uma nova dose de ânimo (um pouco de otimismo) ao saudosismo, no intuito de fazer crescer o desejo de ter e também de lembrar, em concomitância com a dor; o desejo de liberdade, de mudanças, de algo novo. “Saudade Brasileira! Uma saudade nova, mais alegre que triste, mais imaginação que dor” (ORICO, 1940, p. 44).

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Consequentemente, transpor este complexo misto de sentimentos em poucas palavras pode não ser tão fácil. Osvaldo Orico (1940) em seu livro A Saudade Brasileira mostra bem este misto sentimento quando fala que: Sôdade é uma dô que dá, Mas não é dô de doê; É vontade de alembrá, Com vontade de esquecê. É dô de dente e machuca, Mas onde dói ninguém vê. E a gente pega e cutuca Pra não deixá de doê (ORICO, 1940, p. 12).

Neste breve poema podemos também notar a ambivalência demonstrada por Nunes. Parece que neste sentido há uma relação entre a saudade portuguesa e a brasileira, ao mesmo tempo em que percebemos uma universalização desta. Também podemos perceber que, segundo Orico (1940), a saudade brasileira tem um ar mais otimista, mais alegre (ou menos triste) do que a portuguesa, destacando que é mais imaginação que dor. Isso não significa que o povo brasileiro é mais imaginativo ou mais criativo, mas que a construção do mito brasileiro seguiu por um rumo mais esperançoso. É o desejo de liberdade que o negro sempre almejou, a “melancolia” do índio não tão livre em suas próprias terras e a saudade portuguesa do alémmar. Esse mix de dor e esperança, ao mesmo tempo melancólico, ajudou a compor a “alma brasileira”. É neste sentido que Chaves e Araújo (2014) chamam essa alma mítica imaginária brasileira de alma imaginal, uma vez que este termo aborda simultaneamente aspectos psicológicos, antropológicos e filosóficos. Desta forma, é possível se referir aos “conteúdos arquétipos, míticos que pensamos caracterizar a alma ancestral brasileira na perspectiva hermenêutica-simbólica” (CHAVE e ARAÚJO, 2014, loc 562). É seguindo por este ponto de vista que entendemos a alma brasileira como tigrada, mestiça e plural. Como base nisto, Elza Murata (2009) aponta, segundo os escritos de Gilbert Durand (2002), que o estudo da cultura imaginária e as inter-relações com o mito possibilitam trocas dinâmicas de imagens míticas. Desta forma, Durand aborda as estruturas imaginárias separando as imagens de duas maneiras: regime diurno e regime noturno. O regime diurno é a antítese, ligado à verticalização das imagens; oposição entre ideias ou palavras. O regime noturno é a harmonização, conjunção, eufemismo, a horizontalidade das estruturas místicas e

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sintéticas. “O regime diurno é da antítese, isto ou aquilo; o noturno é da junção, eufemização, do isto e aquilo” (MURATA, 2009, p. 207). Isto se relaciona diretamente com a teoria linguística de Saussure. Segundo Saussure (2006), os elementos linguísticos se relacionam em dois domínios distintos; eixo de seleção (paradigmático) e eixo de combinação (sintagmático) 4 . Sabemos que esse processo de combinação e escolha não se dá se maneira aleatória, e é necessário que o enunciador selecione os termos e os ordene de maneira lógica, cabendo assim obedecer a um padrão definido pelo sistema. Há uma familiaridade entre os pontos de vista de Durand e Saussare. O de Saussare pode não ser aplicado diretamente aos regimes de Durand, porém a lógica é a mesma. O processo de escolha e combinação funciona de igual maneira – isto ou aquilo versus isto e aquilo, conjugando para o sentido do discurso. Isso pode dar além de sentido, linearidade ao imaginário/mito. Desta maneira, entendemos que: o mito é um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas (MURATA, 2009, p. 208).

Esta leitura aplicada ao mito saudade é bastante pertinente. Se pensarmos que a saudade, como abordado aqui é isto ou aquilo e também isto e aquilo, devido a sua complexa dualidade – é dor e prazer; alegria ou tristeza – pode ser vista por estes dois prismas superpostos. Isso nos permite entender e compreender a saudade como mito no discurso identitário brasileiro. Também podemos mencionar a visão de Levi-Strauss (1978) a respeito do mito, pois para ele o mito não pode ser compreendido como uma sucessão contínua. Portanto, “o significado básico do mito não está ligado à sequência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos diferentes da história” (LEVI-STRAUSS, 1978, p. 66). Sua proposta é de ler o mito como uma partitura musical, considerando todas as frases, elementos e camadas da música, onde cada parcela contribui com as partes posteriores da partitura. Ou seja, segundo Lévi-Strauss, para que uma primeira frase musical adquira significado, é preciso considerar que este é uma parcela constitutiva de outros eventos posteriores em cada página da obra musical. Essa simultaneidade permite perceber o mito em sua totalidade, 4

Falaremos melhor sobre isso ao abordar o gesto.

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considerando que essa verticalidade nos permite “perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral (...) é que podemos entender como uma totalidade, e extrair o seu significado” (Ibid., p. 67). O que o autor está demonstrando é que, na escuta musical, para o entendimento de uma sinfonia, por exemplo, é preciso estabelecer uma relação entre os acontecimentos “que antes se escutou com o que se está a escutar, mantendo a consciência da totalidade da música” (Ibid., p. 72).

3.1.2

Memória e representação Dando continuidade, nos cabe perscrutar o campo da memória coletiva brasileira no

intuito de esclarecer a saudade, que no campo mítico pode ser simbolicamente representativa na produção de valores. Segundo Coelho Neto (1864-1934), “a casa da saudade chama-se memória” (2015, s.p.). Esta metáfora, que também abrange aspectos de representação, intercala a saudade presente na memória ao mesmo tempo em que colocar a memória no campo da metáfora. “A memória carrega consigo a dimensão profunda de mitos, lendas e crenças das sociedades humanas, as quais configuram as práticas ordinárias de seus grupos sociais” (ECKERT e ROCHA, 2000, p. 12). Por exemplo, para o compositor Zeca Baleiro, em sua música Brigitte Bardot, uma possível definição é a de que “a saudade é Brigitte Bardot acenando com a mão num filme muito antigo” (2000, s.p.). Isso só reitera Coelho Neto, no sentido de uma interseção entre saudade e memória. Mas em que sentido, então, a saudade/memória são repositórios de crenças, mitos, valores ou imaginário? Apesar de obvio, vale ressaltar novamente que a saudade necessita da memória para que haja uma recordação e/ou lembrança, suscitando este sentimento. É exatamente no campo das crenças e mitos que, como já visto, a memória social é imprescindível como meio de preservação e transmissão destes, bem como na fundamentação da identidade de um determinado grupo de pessoas. Candau (2011) em Memória e Identidade aponta para a identidade como espaço construído coletivamente, socialmente. Uma vez que este espaço se dá diante da interação do sujeito com a coletividade (sociedade), esta identidade, neste caso cultural, se localiza na identificação do sujeito com tais elementos identitários. Esta construção narrativa se dá dentro de um processo de negociação, na medida em que se considera a pluralidade individual dentro da coletividade. Então, podemos pensar a identidade dentro de um panorama social, e que a

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memória é um processo continuamente construído, conferindo “à identidade a sensação de continuidade no tempo” (SOUZA, 2014, p. 112), no sentido formal, moral e psicológico da palavra. Desta maneira, “a memória viabiliza (...) a cristalização de valores e de tradições, que está estritamente ligada ao sentimento de pertencimento, à sensação de unidade e à demarcação de fronteiras individuais e coletivas” (Ibid., p. 112). Assim, a memória é uma realidade dinâmica que intervém no processo de tessitura social, ilustrando elementos de formação cívica e de transformação social. Por ser uma realidade multidimensional, a sua fragmentação e recomposição encontra-se relacionado com os mecanismos de construção e reconstrução identitária dos indivíduos (MENDES, 2012, p. 60)

Neste contexto, a colocação de Coelho Neto é bastante pertinente. Porém, ao abordar o termo casa, podemos levantar uma breve questão: uma casa tem cômodos, aposentos, sala, e assim por diante. Então, neste aspecto a saudade guarda em si diferentes e diversos elementos, trazendo consigo essa complexidade. Por outro lado, cada cômodo desta “casa” pode guardar (ou transmitir) diferentes aspectos. Onde é que guardamos cada coisa? Em diferentes cômodos ou até mesmo em diferentes partes dentro destes cômodos? Como se dá esse processo de escolhas e armazenamento?5 Estes aspectos metafóricos nos remetem, mais uma vez, à citação anterior de Eckert e Rocha (2000). Estamos exatamente na dimensão profunda do mito e crenças de uma sociedade. Compreendemos e reforçamos o poder simbólico e representativo da memória/saudade. Isso inclui pensar a sociedade como um repositório de crenças, mitos, valores e do imaginário, concretamente presente na memória social de um povo, no nosso caso, sendo suscitada pela saudade. Admitindo a pluralidade cultural brasileira, este “território plural de existência” (ECKERT e ROCHA, 2000, p. 14) serve de lugar comum para um conjunto de indivíduos ou grupo, onde se reinventa, recria-se, imagina-se ou até apropria-se do imaginário cultural, representativo e simbólico como forma de se eternizar no tempo. Por exemplo, a representação mítica da floresta amazônica em sua imensa exuberância, eternamente presente e representada no imaginário de todo indivíduo brasileiro como algo gigante, belo e exuberante – mito e representação. “Habitar o espaço da memória é conviver com memórias coletivas, individuais e sociais negociadas, e não, simplesmente, domesticar um território 5

Não pretendemos um estudo cognitivo/psicológico da memória, mas no decorrer deste trabalho abordaremos estas questões, uma vez que esta última questão já foi, em parte, respondida.

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vazio e opaco, lugar de reativação de tradições perdidas ou da nostalgia do passado” (ECKERT e ROCHA, 2000, p. 14). Pode-se imaginar uma floresta assim? O mito no entorno da floresta suscita os mais diversos pensamentos e memórias, e por que não dizer saudade da floresta, da natureza perdida? Este manancial provoca, ou melhor, traz à tona os mais diversos mitos do folclore brasileiro. Diversas lendas e figuras supostamente vivem nas matas e florestas brasileiras, em especial na amazônica, pela sua gigantesca dimensão. Foucault (2005) diz que a “representação governa o modo de ser da linguagem, os indivíduos, natureza e da própria necessidade. A análise da representação, desta maneira, tem um valor determinante para todos os domínios empíricos”6 (FOUCAULT, 2005, p. 227). Assim, entendemos que a representação/significação aqui passa pelo processo da metáfora, e a memória, por sua vez, como metáfora da saudade – metáfora e memória; narrativa e discurso. Por conseguinte, a representação/simbolismo transpassa, principalmente no contexto musical, pelo processo de apropriação. Devemos considerar que todo processo de apropriação passa pelo processo de reinvenção. Não é somente o uso do material “original”, mas envolve o desenvolvimento e uso deste de forma pessoal, representativa, “reinventado-o”. São as estruturas imagéticas e de como estas se organizam em nossas mentes de forma abstrata; os esquemas de imagens (SASLAW, 1996). Para isso é necessário uma imersão cultural, o que de uma forma ou de outra também pode ser considerado um desafio antropofágico



civilizado x selvagem. Este processo dinâmico e transformador proposto por Oswald de Andrade significa, metaforicamente, deglutir criticamente o outro – marco do modernismo no Brasil. O ato de criar e recriar um discurso tipicamente brasileiro foi pronta e eficazmente usado e desenvolvido por Villa-Lobos. Neste caso, isto acaba por se tornar parte da sua linguagem e expressão. O folclore e seus aspectos são muito presentes e, muitas vezes, concreto em muitas de suas obras.

3.1.3

Saudade e seus lugares O que estamos fazendo na primeira parte deste estudo é estabelecendo diferenças e

territórios. O local é fundamental para entendermos a saudade pelo viés do Brasil. A construção temporal, por exemplo, levando em conta a memória, serve de território de 6

Representation governs the mode of being of language, individuals, nature, and need itself. The analysis of representation therefore has a determining value for all the empirical domains.

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preservação, de eternidade para a saudade. Ou seja, a saudade tem mecanismos de trazer ao presente o passado. A saudosa lembrança de alguém ou de uma determinada situação pode nos fazer reviver, ou em alguns casos, dar continuidade ao evento desta lembrança, uma vez fomentada pela saudade. É possível, especialmente no caso brasileiro, que a saudade seja o mecanismo de perpetuação de um acontecimento ou evento. Ou melhor, é possível querer estar numa eterna situação antes mesmo que ela acabe, sendo assim uma espécie de saudade prematura de algo que ainda está por vir. Essa “saudade do futuro” tem uma ligação afetiva anexa ao momento, exatamente como se estabeleceu no Brasil. Não queremos dizer que seja um aspecto unicamente brasileiro, mas exemplifica bem o processo de enraizamento no ser do brasileiro. Isso nos permite pensar a saudade como sentimento, afeto anexo ao modo de ser brasileiro; mais alegre que triste, mais otimista no ponto de vista de Orico. É essa palavra impronunciada, capaz de trazer à tona um suspiro, um desejo, uma perda, um destino, um amor, uma lembrança que, mesmo não seguindo um caminho de volta, perpetua essa dormência de um passado presente apesar da ausência. Esta projeção temporal diferente da portuguesa é um dos aspectos diversos da saudade brasileira. Tanto saudade como saudades, esta arte da lembrança capaz de abarcar diferentes camadas semânticas, traz consigo uma fugacidade, que na percepção brasileira carrega também uma carga significativa com pretensões de eternidade. Mas essa voz interior da saudade não é uma memória jurídica ou politica, da qual supomos ter controle – racional, progressista e irreversível –, mas uma memória encarnada e personalizada. Memória que revela nossa desconfiança nessa história destinada a trazer progresso e justiça social, porque nossa experiência mais profunda com o tempo coletivo indica retornos, reversões e recursividades cíclicas que nos obrigam a assistir ao mesmo filme muitas vezes. Como se fosse impossível exorcizarmos fantasmas do passado” (DAMATTA, cap.1, 30).

Talvez este seja um breve resumo de como a saudade caminhou no ser brasileiro, territorializando diferenças culturais e sociais. Por outro lado, “a saudade brasileira (...) está inscrita numa dinâmica entre a união e a desilusão, a unidade tanto desejada e a multiplicidade tão dolorosa sentida até no corpo” (DE JESUS, 2015 apud BRAZ, 2005, loc. 163, tradução do autor). Este dinamismo está presente principalmente nestas relações com o outro e os múltiplos lugares. Porém, essa diferenciação de experimentação temporal de outras modalidades culturais são uma forma de demarcar o território de uma “consciência reflexiva do tempo” (DE JESUS, 2015 apud BRAZ, 2005, loc. 200). Este modo de se relacionar com o

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espaço, tempo e o outro é o que determina a identidade e particularidades de um determinado povo e sua cultura que, anexado ao seu significado e a relação intrínseca dolorosa, são manifestações pertinentes ao entendimento de uma saudade pelo viés brasileiro. Roberto DaMatta (1993) também enfatiza o duplo conceito da experiência universal comum a todas as sociedade e da especificidade de uma determinada cultura. Assim, a saudade como categoria social se expressa no tempo, mas por dentro deste. Este diálogo temporal, capaz de evocar pedaços específicos de tempo, aqui colocado como elemento comunal, “como expressão de temporalidade, deixa de ser um veículo neutro e racional para ser ela própria a realidade da ideia que exprime” (DAMATTA, 1993, cap. 1, 25). Por outro lado, DaMatta também coloca que “a saudade é também sujeito que fala, tem vida e autonomia, numa demonstração nítida de que é uma categoria que vem da sociedade para dentro de cada um de nós. Categoria que deseja ser, estar e deter o tempo” (DAMATTA, 1993, cap.1, 28). É com base nesta abordagem que pretendemos estabelecer algumas conexões com outras teorias a fim de coadunar os diversos e possíveis caminhos e territórios/locais da saudade. Joaquim de Carvalho (1998) aponta três possíveis respostas para os questionamentos de uma problematização da saudade: expressão, sentimento e fenômeno. Mesmo não estando no mesmo contexto de Carvalho, consideramos estes pontos como ponto de partida para fundamentar nossa problemática em torno da saudade; onde esta pode ativar ou ser ativada pelas diferentes teorias e abordagens que iremos adotar. Faremos uma primeira abordagem geral e, por conseguinte, aprofundaremos mais em cada ponto na medida em que procedermos com as devidas exposições teóricas no decorrer deste trabalho. Se observarmos as palavras expressão, sentimento e fenômeno, no sentido literal destas, já temos um bom assunto a ser desenvolvido. A primeira destas, não somente como a expressão da palavra saudade, como aborda Carvalho, pode ser vista como a expressão de um povo, ou as diversas formas de (ou para) expressar a saudade. Da mesma forma pode ser a expressão de um sentimento, caráter, gestual, etc. Também pode ser expressa de distintas maneiras e por distintos povos. Isso pode estar ligado à identidade do sujeito; seja como indivíduo ou o coletivo, a sociedade. A forma como o brasileiro, por exemplo, expressa sua cultura, alegria, sua forma de viver (the way of life), é parte significante do traço identitário, como já foi evidenciado anteriormente. Enquanto sentimento, a saudade parece que “toca mais aos portugueses que a outra nação do mundo” (CARVALHO, 1998, p. 69). Melancolia feliz, como aponta Lourenço,

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enigma de um sentimento de existência ao ponto de ser mitificado pelos portugueses. É um sentimento que se manifesta no sentido, ou seja, o sentido está na própria manifestação. Como fenômeno essencialmente humano, a saudade se apresenta em sua complexa totalidade. Seja filosófico, social, ou histórico, o problema da saudade pode se alocar nos mais diversos lugares desde seu início – sua existência antes mesmo de tomarmos consciência de sua presença. Segundo Tarasti (2012), em sua Semiótica Existencial (a qual iremos abordar mais adiante), o indivíduo primeiramente existe, depois toma consciência de sua existência numa dimensão mais consciente. Neste sentido, como um fenômeno por completo, sua existência e essência até o campo filosófico, a saudade se apresenta como lugar de fenômeno, existencial, como lugar que nos constituiu e constitui como cultura. Partindo deste principio, a expressão se constitui de traços identitários; lugar de expressão. O sentimento como emoção, como intenção, fruto de uma existência ainda inconsciente, neste lugar de intenção, de haver, se assemelha ao concerto em Levi-Strauss, o existir corpóreo. Guimarães Rosa diz que “a saudade é ser, depois de ter” (ROSA, 1983, p. 68). Com isso, notamos que os lugares se interconectam permitindo uma fluidez (flexibilidade) compatível com a Semiótica Existencial. Assim, a saudade e suas falas nos possibilitam agregar ao lugar de fala às práticas sociais, cultura, como estímulo que permite ao compositor um saber consciente relacionado à emoção, intenção, como exemplo, de normas – o uso de atitudes composicionais ligados à emoção da saudade, como, por exemplo, o desejo de uma recomposição sonora do Brasil e seus diversos aspectos. Este quatro universos (lugares – intenção, expressão, fala e fenômeno) e suas conexões acabam por transitarem como atitudes, também dentro de uma lógica (ou ilógica) brasileira. Isso aliado com o gesto, às práticas do processo composicional e à semiótica existencial, nos possibilita quatro conglomerados que se manifestam como pequenos universos capazes de estanciar as arestas desta problemática da saudade aqui proposta. Ainda em relação às atitudes composicionais e emoção, dentro deste contexto, vale ressaltar que quando falamos de emoção e música não estamos querendo uma generalização ou universalização deste ponto. O que estamos abordando é algo nosso, que nos pertence e, neste caso, será transformado em arte. O que primeiramente move, o que serve de movimento inicial para uma composição (ímpeto), sai (assim como também caminha no sentido) da experiência de vida (o que somos), passando pelo crivo da experiência cultural (o que sabemos) que irá consequentemente se transformar no produto artístico final; o que podemos chamar de símbolo final do processo de

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combinação (aqui já estamos dentro da semiótica propriamente dita). Isso permite que fundamentemos estas quatro arestas como lugares, aqui estabelecidos, da saudade. Com base no próprio discurso villalobiano indicaremos uma relação mais ampla das atitudes composicionais, as quais especificaremos e aprofundaremos no decorrer deste trabalho. Em uma superposição com as modalidades greimasianas7, o ímpeto, como atitude, é o querer compor, o querer desenvolver, é o gesto no sentido de mover a obra a partir de um ponto, de materiais, ideias, e assim por diante. É a vontade que de alguma maneira vem da experiência do que somos (o poder). Como atitude, o poder fazer algo com base em nossas experiências nos coloca no campo das realizações. É o “como posso fazer”. Para isso devemos estabelecer parâmetros, filtros culturais, o crivo do que sabemos, o saber, a experiência cultural. Por fim, a atitude de transformação do produto artístico final, o dever, o símbolo do processo de mistura. Viajei muito. Muitíssimo. Andei por todos os rincões de minha terra fascinante. Escutei os tambores dos índios nas noites cheias de mistério. Vivi com aborígines, em regiões que quase escapam às cartas geográficas. Andei em canoas primitivas. Conheci o desconhecido do Amazonas, quando fiz parte de uma expedição científica. Naufraguei várias vezes e, sempre, salvei meus instrumentos musicais. (RIBEIRO apud VILLA-LOBOS, 1987, p. 22).

Este ímpeto de querer buscar, de conhecer a própria terra e raízes, é o cerne do querer compor algo único, seu, o desejo de recompor o Brasil sonoro. Neste lugar de intenção, o ímpeto se apresenta como atitude de querer, de buscar, a intenção de desvendar o até então desconhecido. É o motivar, o movimento impulsivo, arrebatador, que move o querer/ímpeto composicional, manifestado na atitude inconsciente da saudade, antes desta se tornar consciente ou concreta de alguma maneira; o que move o fazer, o corpóreo no sentido de se tornar parte de nós como parte do ser. Isso também está relacionado com as escolhas, de ser causa; como os procedimentos a serem tomados. Isto inclui as mudanças destes procedimentos até que rumo a obra deva seguir, com base no próprio material usado. Por outro lado, o ímpeto criativo de Villa-Lobos já demonstra uma liberdade dos cânones tradicionalmente europeus, servindo de peça fundamental para a consolidação do seu estilo. Em contrapartida, essa ideia de ímpeto já dentro de uma abordagem semiótica está intimamente conectada ao ponto de vista de Roger Reynolds (2002). Com base na abordagem de Reynolds, Daniel Mendes (2013) faz uma síntese apontando o ímpeto como:

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Lituano de nascença, Algirdas Julien Greimas (1917-1992) é um dos fundadores da escola de semiótica de Paris. Greimas contribui significativamente para os estudos e desenvolvimento da semiótica, principalmente no que diz respeito à semiótica do discurso.

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um termo referente à forma de organização das ferramentas subjetivas (relacionadas à intenção expressiva) que serão utilizadas por meio dos recursos intelectuais. É a expressão que representa o campo da composição que opera na dimensionalidade (aspectos relativos ao intelecto) e na profundidade (elementos relacionados à emoção e intuição) da música, na organização da coerência do todo e na integridade dos detalhes (MENDES, 2013, p. 02).

Assim, neste contexto, a saudade pertence à nossa experiência de vida, ou seja, não pode ser considerada um ideal ou algo a realizar. Como atitude, este pertencimento é análogo à identidade; o querer ter, querer poder, em termos greimasianos. O pertencimento é parte da formação identitária do indivíduo como parte comum de uma coletividade. Isso pode ser de suma relevância no destaque de aspectos socioculturais e raciais. É o ego que quer ter o poder, ter o reconhecimento. Essa dialética “provém da vontade mediadora do eu e do que é meu. Essa relação voluntariosa é necessitada pela resistência substancial de cada momento da realidade e insinua-se na razão compreensiva, elemento de apropriação indispensável ao conhecimento” (BOTELHO, 1990, p. 136). Neste lugar de identidade/expressão, Villa-Lobos diz: Sou brasileiro e bem brasileiro. A minha obra musical é consequência da predestinação. Se ela é em grande quantidade, é fruto de uma terra extensa, generosa e quente. Sou todo um reflexo de nosso povo e de nossa terra, que conheço de ponta a ponta, e que transbordam em minha obra, por isso mesmo projetada e aplaudida em todo o mundo, como se fora o coral gigantesco de todas as vozes que arregimentei pelo Brasil. Como se fora o canto das iaras, dos sacis, dos nossos índios e ‘Cunhatãs’, de todo o lendário e de todas as lembranças da infância saudosa, desdobrada nas cordas daquela violinha de criança do tempo das cirandinhas (VILLA-LOBOS, 1969, p. 107, vol. 03).

Essa expressão de pertencimento, cunhada a partir de toda uma consequência de vida, é que de certa maneira direcionará como base do caminho para o saber; a experiência cultural. Essa busca pelo saber intencional, consciente, serve de estímulo para o compositor. Esse saber consciente está presente no discurso de Villa-Lobos quando ele fala: Não escrevo dissonante para ser moderno. De maneira nenhuma. O que escrevo é consequência cósmica dos estudos que fiz, da síntese a que cheguei para espelhar uma natureza como a do Brasil. Quando procurei formar a minha cultura, guiado pelo meu próprio instinto e tirocínio, verifiquei que só poderia chegar a uma conclusão de saber consciente, pesquisando, estudando obras que, à primeira vista, nada tinham de musicais. Assim, o meu primeiro livro foi o mapa do Brasil, o Brasil que eu palmilhei, cidade por cidade, estado por estado, floresta por floresta,

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perscrutando a alma de uma terra. Depois, o caráter dos homens dessa terra. Depois, as maravilhas naturais dessa terra. Prossegui, confrontando esses meus estudos com obras estrangeiras, e procurei um ponto de apoio para firmar o personalismo e a inalterabilidade das minhas ideias (VILLALOBOS, 1966, p. 94, vol. 02).

Neste lugar de fala, as práticas sociais como procura do saber consciente, estão relacionadas com a experiência cultural que serve de estímulo para o compositor. Ao mesmo tempo são estas práticas que alicerçam o seu discurso (dimensão dos materiais e do objeto composicional). É nesta dimensão que entendemos que há uma troca simbólica entre enunciador e enunciado, não que não haja nas outras, mas aqui fica evidente quando o discurso está em primeiro plano. Podemos dizer que é a dimensão da prática do objeto composicional que vem do ímpeto e da expressão para a recomposição sonora do Brasil. Já o fenômeno da saudade, enquanto lugar que nos constituiu e constitui como cultura, determina o lugar de existência/fenômeno. E como fenômeno que abarca todo este complexo da saudade (lugar de constituição, de existência), todos os elementos estão presentes. Não que não seja uma coisa única, mas este traz traços dos demais lugares a fim de existir como um todo. Os demais, por sua vez, também trazem traços de um ou mais lugares, afinal a saudade é universo complexo e que dentro deste modelo há uma comunicação entre todos os elementos para a existência da saudade em todas as suas instâncias. Villa-Lobos declara: Empreguei a música folclórica para formar a minha personalidade musical, mas não tenho a pretensão de trabalhar com o folclore como um especialista no gênero. Assimilei simplesmente a música folclórica, forjando para mim um estilo próprio e espero que, assim, essa música constitua a melhor parte da minha obra (LACOMBE apud VILLA-LOBOS, 2001, p. 68).

Villa-Lobos está demonstrando como o extramusical influencia o seu intramusical. Ao mesmo tempo são diversos aspectos reunidos em um todo. Assim, da mesma forma quando ele diz que “quem nasceu no Brasil e formou sua consciência no âmago deste país, não pode, embora querendo, imitar o caráter e o destino de outros países, apesar de ser a cultura básica transportada do estrangeiro” (VILLA-LOBOS, 1969, p. 99, vol. 04), ele está retratando aspectos de miscigenação e influência cultural, bem como aspectos identitários e de ímpeto. Villa-Lobos está reforçando que as ferramentas forjadas dentro de uma experiência cultural acabam se apresentando como o resultado artístico final, como uma junção de todos os elementos.

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Assim, apesar de se comportarem de maneiras distintas, estes pontos não estão longe ou totalmente separados uns dos outros. Parte de um ponto pode estar presente em outro(s), o que termina por ser uma interseção, uma espécie de fusão que abarca a saudade como um todo. Isso vai além da corrente Melting Pot, mas de convivência em conjunto como um só. Isto nos coloca novamente no campo das três principais saudades como elementos que nos formaram, nos constituíram e constituem. Por isso, desejamos apresentar um diferente ponto de vista a respeito da miscigenação cultural brasileira, por considera-la relevante, uma vez que Villa-Lobos tem uma linguagem musical não sistemática que está ligada à sua personalidade (impulso expressivo e experiência cultural). De acordo com Paulo Costa Lima (2011b), nós devemos observar estas três principais influências da cultura brasileira pelo viés de três diferentes galáxias. De uma maneira prática, o ambiente cultural brasileiro é uma fusão dessas galáxias, mas não no sentido de derreter todas numa única “massa” ou na luta do poder. Isto está no fato de existir uma relação aparentemente harmônica entre elas dentro do mesmo universo. Essa visão, como demonstrada, dentro do contexto musical é uma espécie de convivência baseada em concessões. É neste “caleidoscópio de encontros e desencontros, de pequenas e grandes colisões” (LIMA, 2011b, s.p.) que acontecem “as tensões pela ocupação do mesmo espaço – a gradual emergência de algo distinto, talvez uma espécie de síntese que o discurso sobre o nacional busca captar de forma sistemática a partir do século XIX” (LIMA, 2011b, s.p.). Este desafio de administrar essas forças e a disputa por espaço serve para apontar como essas influências nos construíram como sociedade. Assim, essa transformação em algo nosso “ocorre aqui, não é algo externo” (LIMA, 2011a, s.p.). Este viés nos coloca numa posição de relações de poder e conflitos internos, nos permitindo uma representação do coletivo como construção de nossa sociedade. Dentro dessa percepção, os “empuxos gravitacionais” (LIMA, 2011b) atuam de forma simbólica na disputa por espaço. Assim, Lima desmistifica a atuação africana em nossa sociedade, uma vez que “a presença cultural africana nos constituiu como sociedade, não é algo externo” (LIMA, 2011b, s.p.). Por outro lado, essas imagens de galáxias nos fazem imaginar como foi dada essa disputa de poder. Mesmo este modelo não parecendo ser o mais perfeito, ele ilustra bem essas influências. Sabemos que uma das galáxias (presença portuguesa) detinha o poder, e esta situação de domínio e escravização (colonização/colonizador) se deu de modo a querer eliminar as outras sociedades (colonizado). É dentro desse ambiente amplamente

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diversificado e impregnado de construções simbólicas que nossa sociedade, mesmo que periférica, se construiu. Ser periferia significou para nós uma incompletude radical, o desejo projetado para fora, focado na satisfação desse outro europeu. Paradoxalmente, esse estado de alienação também vai reforçar o polo ético da lógica do coletivo - a percepção de que não poderia haver construção ética sem o somatório de interesses dos de baixo (esse ainda o grande tema da nossa vida política) (LIMA, 2011b, s.p., grifo nosso).

É neste contexto de forças, poder e empuxos que devemos entender que toda a herança cultural afro-ibero-indígena nos determinou como nação, ou imagem de uma nação. Para tanto, não devemos pensar a música como uma arte dissociada das outras. Neste caso, a ascensão da música brasileira na virada do séc. XX está de alguma forma conectada às danças, que irão sustentar as matrizes musicais do Brasil. Neste sentido, é possível propor um arquétipo brasileiro levando-as em consideração.

3.2

DO GESTO MUSICAL As questões envolvendo música e gesto não são novas. Já há algumas décadas vem se

discutindo a respeito do gesto musical. No entanto, este crescente interesse tem sido abordado de distintas maneiras (LIDOV, 1987; HATTEN, 2004; SOUZA, 2004, 2009; GRITTEN, 2006; IAZZETTA, 2007; KÜHL, 2011; ZBIKOWSKI 2011). Mas, primeiramente, independente do contexto, precisamos entender que o gesto musical não é uma fórmula ou uma “unidade fechada” que possa ser aplicada. O gesto faz parte da atitude/processo composicional, assim como do significado musical. Desta maneira, o termo “gesto” pode ter muitos significados. É necessária uma breve explanação sobre as principais abordagens, no intuito de esclarecer e estabelecer o gesto dentro do nosso arcabouço teórico. O gesto está sempre relacionado com movimento. Por isso, definições genéricas estão sempre associadas ao gesto físico, tanto na música como na dança, ou estão atreladas a alguma função formal na música como gesto de fechamento e abertura (CHAPLIN, 1998), por exemplo. A abordagem de Lawrence Zbikowski (2011) sobre gesto foi desenvolvida com base na metáfora e na teoria da música: ao comparar o gesto físico acompanhado pelo discurso com a gramática musical, Zbikowski está contribuindo para o desenvolvimento de uma gramática da significação musical. Este aspecto indexador ao gesto será discutido um

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pouco mais no decorrer deste texto. Já a abordagem de Robert Hatten (2004) propõe o gesto musical como sendo “uma manifestação de uma capacidade evolutiva refinada de interpretar delineamentos energéticos8 através do tempo”9 (HATTEN, 2004, p. 01). Ao tratarmos de energético/energia e delineamento/forma, estamos lidando com forças e fluxo, direção e intenção. É bastante evidente que a teoria de Hatten está envolvida na teoria de Steve Larson a respeito das forças musicais (LARSON, 2012). Certamente que as duas abordagens dialogam enfaticamente, especialmente no que diz respeito às “forças ambientais virtuais”10 (HATTEN, 2004, p. 115). Larson desenvolve seu trabalho relativo ao movimento no espaço e das forças assim atuantes; gravidade, magnetismo e inércia. Essa analogia às forças físicas nos permite entender o movimento como relações temporais, ao mesmo tempo em que penetra no campo gestual como forças atuantes na condução (também no sentido de entender) dessas relações de movimento temporais. Estes três perfis, relacionando o gesto com as “forças musicais” e considerando um trecho de uma melodia como um gesto, permite o cruzamento destas duas visões (gesto e contorno melódico), nos possibilitando estabelecer uma visão analítica mais ampla do que chamaremos de conflito de forças internas e suas relações. Isso está diretamente relacionado à semiótica existencial, sobre a qual trataremos mais adiante. Desta maneira, segundo o próprio Hatten, o gesto envolve a fusão de duas gestalts; imagética e temporal (HATTEN, 2004). O cruzamento com os elementos musicais nos permite entender como estes vetores imediatamente emergem da percepção cognitiva, estabelecendo uma relação com a linguagem e representação. Esta relação entre imagética e linguística (gestual e simbólico), são a base da teoria de McNeill (1992, 2005); growth point11. Esta teoria, com base na psicologia e linguística, postula o gesto (movimentos espontâneos ou não) intrinsicamente ligado à fala ou discurso, pois para ele há um ponto onde o pensamento começa e no decorrer do seu desenvolvimento (continuidade), dentro de um contexto, começa um movimento específico; momento de formação do growth point. McNeill está reforçando com isso a importância da intermodalidade a nível cognitivo, e isso como

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Energetic shaping. O termo “delineamento” é sugerido por Dudeque em seu artigo “Gestos Musicais no 1o. Movimento do Trio para Cordas (1945) de Villa-Lobos”, e nos parece, neste contexto, o termo mais apropriado. 9 One manifestation of an evolutionarily refined capacity to interpret significant energetic shaping through time. 10 virtual environmental forces. 11 O termo Growth point é derivado do uso pelo governo do Zimbabwe para determinar uma pequena vila ou cidade, onde estes “pontos de crescimentos” são uma espécie de “capital” comunal provida pelo governo para o desenvolvimento destas vilas. Uma espécie de migração rural. Desta forma preferimos manter o termo em inglês para que não se tenha um entendimento errôneo na sua concepção e contexto.

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unidade nos permite a comunicação. Para McNeill, não há como separar a imagem da ação (simbolismo e gesto, pensamento e movimento). Assim, em McNeill, no discurso, o gesto está indissociável, o que lhe confere uma carga simbólica e semiótica bastante expressiva. Neste sentido, então, entendemos que a definição de gesto desenvolvida por Hatten (2004) é uma “definição deveras inclusiva, no sentido de que algo pode ser interpretado como gesto ‘sendo real ou implicado, intencional ou involuntário’, desde que possa ser interpretado como tal” (BERTISSOLO, 2013, p. 27-28). Já a abordagem de Ole Kühl (2011) nos mostra o gesto musical diretamente conectado com a “percepção gestáltica, movimento motor e imagens mentais”12 (KÜHL, 2011, p. 125). Como resultado, estas abordagens, até então, nos coloca numa condição de entender o gesto também como agente de direcionalidade. No contexto musical, o gesto é um condutor13 para a expressão do compositor. Assim, concluímos que gesto é mais que movimento; é “um movimento que pode expressar algo”14 (IAZZETTA, 1997, p. 03). Por este viés, parece pertinente a abordagem feita por Berthold Brecht, que costumava ensinar aos seus atores e alunos que gestus é mais do que palavras ou movimento físico; é uma atitude (HENROTTE, 1992). No campo da composição o gesto pode ser entendido como uma forte atitude de manipulação, não somente considerando elementos puramente musicais, mas também a forma, temporalidade, continuidade, narratividade, significação, comunicação, etc. Assim, podemos também abordar o gesto como um meio de esclarecer e entender a atitude composicional através da narrativa musical, expandindo assim as fronteiras de seus significados. Visto por este prisma, o gesto é uma ferramenta muito útil no intuito de correlacionar a atitude composicional e a experiência cultural. Se pensarmos o gesto musical como organização sonora, seja em grupos ou sequências (levando em consideração pequenos trechos e interrupções), dentro de uma interpretação cognitiva mais elevada, podemos afirmar que este conduz à narrativa musical. Desta maneira, segundo Wisahrt (1996), podemos observar que: a característica essencial dessa comunicação musical direta é o que devo descrever como gesto musical. Em um sentido, seria mais lógico deixar de lado o adjetivo de qualificação musical, assim o conceito de gesto tem muito mais aplicação universal, tanto para outras formas de arte quanto à experiência humana em geral. (...) Gesto é essencialmente uma articulação 12

Gestalt perception, motor movement and mental imagery. Aqui condutor pode ser entendido como um meio de expressão, o agente para tal finalidade. 14 A movement which can express something. 13

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do contínuo. É, portanto, de especial relevância para qualquer forma artística ou de abordagem de forma artística que tenta lidar com o contínuo 15 (WISHART, 1996, p. 17).

Considerando a ideia de que o gesto musical é “essencialmente uma articulação do contínuo” (WISHART, 1996, p. 17) e de que “o significado musical é fluido”16 (KÜHL, 2011, p. 13), nos parece bastante pertinente fazer uma interseção entre gesto, linguística e semiótica dentro da linearidade da música, desta forma apontando o gesto musical como importante evento na narrativa musical. Primeiramente devemos desatrelar a ideia de que o gesto está sempre relacionado com motivo ou temas convencionais. O gesto pode ser temático, mas também pode abranger qualquer elemento musical (HATTEN, 2004). Uma vez que mais de um elemento está envolvido, o gesto promove a continuidade destes, como visto em Wishart e Hatten. Estes eventos têm assim um significado emergente. Seguindo nesta linha de pensamento, um gesto (físico) acompanhado por uma fala (discurso), tem um significado relevante ligado à linguagem. Por exemplo, ao falar “as chaves estão ali” seguido de um gesto apontando na direção do objeto em questão, o gesto traz uma informação crucial para a comunicação. Na música, isso pode não ser totalmente verdade, mas se pensarmos no gesto musical como complemento/comunicador das ideias de um trecho em evidência dentro do discurso musical, essa pequena representação reforça a ideia de Zbikowski de que: ao mesmo tempo que é geralmente reconhecido que os gestos que acompanham o discurso não tem uma gramática, eu [o autor] gostaria de propor que os análogos sonoros são básicos para a gramática musical. A partir dessa perspectiva, então, a noção de um gesto musical não é uma metáfora, mas uma reflexão dos materiais essenciais de expressão musical17 (ZBIKOWSKI, 2011, p. 84).

Seguindo neste mesmo sentido, através de uma leitura semiótica, o gesto musical pode ser “um meio de dar sentido à música através da transformação do fluxo auditivo de blocos

15

The essential feature of this direct musical communion is what I shall describe as musical gesture. In a sense it would be more logical to drop the qualifying adjective ‘musical’ as the concept of gesture has much more universal application both to other art-forms and to human experience in general. (...) Gesture is essentially an articulation of continuum. It is therefore of special relevance to any art-form or approach to art-form which attempts to deal to continuum. 16 Musical meaning is fluid. 17 While it is generally recognized that the gestures that accompany speech do not have a grammar, I would like to propose that sonic analogues are basic to musical grammar. From this perspective, then, the notion of a musical gesture is not a metaphorical one but a reflection of the essential materials of musical expression.

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interpretáveis” 18 (KÜHL, 2011, p. 124), ao mesmo tempo que se torna agente para entendermos a música como sistema semiótico. Assim, podemos identificar o gesto inclusive nas menores partes/amostras da música, até porque estas partes, amostras, blocos, etc., são parte de uma sequência ou grupo, e também atuam como papel do pensamento composicional. Esse “fluxo auditivo” nos permite entender o gesto como protagonista na forma e na narrativa musical. Na linguística, segundo Saussure, os elementos linguísticos se relacionam em dois domínios distintos: eixo de seleção (paradigmático) e eixo de combinação (sintagmático) (ver Figura 1). Figura 1 - Eixos – Sintagma e Paradigma

Nesta visão a respeito da combinação de signos por parte de Saussure, a escolha não se dá de maneira aleatória ou desordenada. É necessário que o enunciador selecione os termos e os ordene de maneira lógica, cabendo assim obedecer a um padrão definido pelo sistema. Desta maneira, “embora uma palavra seja um signo, nem todo signo é uma palavra” (PIETROFORTE, 2004, p. 89-90), a escolha sucessiva de elementos, dispostos de forma linear, dão sentido à combinação entre os signos. No campo musical, essa relação entre a língua (fala) e música está estabelecida cognitivamente como processo. Segundo Daniel Chua (1999), a partir do instante em que usamos palavras (elementos linguísticos) para expressar19, definir, analisar trechos ou até mesmo obras musicais no seu todo, estamos conduzindo a música ao campo/nível de linguagem, onde palavra/texto (linguagem) expressa o inexprimível. Posto isto, se fizermos um analogia com base na análise musical, podemos entender que determinadas atitudes composicionais evidenciam o gesto musical como agente indexador. Por exemplo, ao falarmos do gesto físico no processo de comunicação, o gesto musical também pode abrigar essa “carga crucial” dentro de uma obra. Este pode ser usado como

18 19

Is a way of making sense of music, through the transformation of the auditory stream to interpretable chunks. Também no sentido de explicar o inexplicável.

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complemento (determinante) de material ou trecho musical, de maneira a dar sentido à música, seja por transformação do fluxo ou da continuidade do material em evidência. O compositor pode usar deste elemento no enredo do seu drama musical, conseguindo assim um sentido e uma linearidade narrativa do seu discurso, tanto tecnicamente como subjetivamente, dando à obra um subsídio concreto no que diz respeito à interpretação narrativa. Fica evidente a intenção do compositor na obra. Antes de darmos continuidade, julgamos crucial e enriquecedora a provocação proposta por Brun (1986) quando ele diz que “linguagem não é para ser entendida (compreendida), mas para tornar entendível aquilo que não é linguagem e nem entendível” (BRUN, 1986, p. 05). Essa provocação, juntamente com o pensamento de Chua (1999) através do referencial teórico dissertado até o momento, pode trazer uma nova visão sobre gestos musicais. Esta abordagem envolve uma noção ampla do gesto musical capaz de abarcar uma definição mais abrangente sobre o assunto. Assim, discutir os aspectos expressivos do gesto é inerente à estrutura da música. Pretendemos assim, contribuir para ampliar o foco tradicional (corpo e mente) para um foco ampliado do corpo musical. Já Greimas (1987) aponta para uma distinção entre os elementos naturais e culturais em um sistema semiótico através de um sistema gestual. Para ele o gesto é a “substância” do movimento do corpo. Entendemos que “a transposição do gesto para o mundo significante exige a mediação de figuras — estáticas e dinâmicas” (SOUZA, 2004, p. 74). É neste intento que, não distante do contexto musical, o sentido gestual está na percepção de direcionalidade, ou seja, na ideia de intenção. Deste modo o gesto natural – um fenômeno natural, como um movimento motor – está baseado no movimento físico; aprender, desenvolver e transmiti-lo é um fenômeno sociocultural. Desta maneira, a transformação do gesto natural em gesto cultural pode nos fornecer diferentes tipologias de cultura – tipologia de gesticulação socializada, principalmente quando se quer explorar uma cultura e/ou compositor específico. De acordo com Greimas, o conceito da palavra “significado” é entendido como referência ou direção – referência como código de expressão e de conteúdo, e este último como intencionalidade. Para ele a intencionalidade estabelece uma relação entre “o percurso abrangido e seu ponto de chegada”20 (GREIMAS, 1987, p.27). Isto pode perfeitamente ser aplicado ao contexto musical, envolvendo a intenção do compositor e o pensamento composicional. Portanto, é possível dentro do campo analítico compreender o gesto como um elemento direcional da intenção do compositor através da sua experiência cultural, ou seja,

20

The itinerary covered and its end point.

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uma construção temporal de direcionalidade. Ainda no campo da análise, isso pode ser considerado como parte da estratégia composicional. E como tal, a segmentação do contínuo através do gestual gera a intencionalidade e direcionalidade dentro do campo da significação/comunicação. Sendo assim, essa construção de temporalidade manipulada através do contínuo pode ser modalizada. Isso permite ao gesto transmitir e carregar significado, e o gesto semântico pode dentro das categorias modais criar um senso de efeitos específicos no discurso musical. Essas modalidades atuarão no valor do objeto no sentido em que “isso repercute na existência modal do sujeito” (FIORIN, 2007, p. 04). Além disso, compreender que o valor aplicado a um objeto/signo está em seu valor representativo e igualmente em sua relação com outros objetos/signos, pode fornecer uma rede das conexões em uma obra musical. Estas conexões, com base nos valores aplicados a um signo, brindam com coerência e direcionalidade o fluxo musical. Desse modo, o gesto como um signo pode ser relevante às estruturas da produção de valores, tornando mais fácil compreender como os valores representativos são ou foram usados por compositores. Desta maneira, a atitude compositiva reflete representações da experiência sociocultural no discurso, apresentando-se, inclusive, com valores representativos que parecem ser fragmentados. Todavia, destas manipulações e segmentações estratégicas do contínuo emerge a noção da intencionalidade, ampliando o caráter significativo do sintagma gestual, que com base nos conceitos semióticos das modalidades, estas ideias aparentemente fragmentadas se apresentam como elementos da narrativa atrelados à forma da música e à produção de valores. E como produção de valores, o gesto musical pode ser significativo no processo de identificar/entender a identidade do compositor agregada da ideologia e atitudes, produzindo valores que são fundamentais na determinação de modalidades do discurso. Souza (2004) faz um importante, e talvez pioneiro, estudo em língua portuguesa propondo uma definição do que é gesto musical com base na ação e significação. Sem dúvidas este nos parece ser uma das mais importantes contribuições a respeito do gesto musical em língua pátria. Neste estudo, Souza apresenta uma importante conclusão de Greimas a respeito da comunicação gestual quando diz que: ao constituírem códigos de comunicação de conteúdos míticos, as formas gestuais se distanciam da comunicação linguística e readquirem uma nova consistência, graças à aparição do princípio de organização funcional e narrativa que rege todos os discursos, sejam eles da ordem do fazer ou do dizer (SOUZA, 2004 apud GREIMAS, 1968, p. 80, tradução do autor).

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Portanto, mesmo considerando que as unidades gestuais podem não constituir um sistema de significação, como o sistema linguístico é, o que determina a identidade de um objeto é o seu valor e sua relação de oposição mantida com outros objetos. De acordo com Greimas o gesto é incorporado no processo de comunicação e transformado em códigos autônomos. Consequentemente, ele readquire conteúdos míticos estabelecendo uma "organização que controla o discurso musical, a partir da compreensão da música como comunicação mítica" (SOUZA, 2004, p. 81). Assim, como vem sendo proposto, o gesto assume um papel crucial na narrativa musical. Este pode, por sua vez, fazer parte de uma rede de conexões que possibilitam interligar o campo de escolhas (no qual iremos nos aprofundar um pouco mais no decorrer do texto). Deste modo, mesmo assumindo que o gesto é mais um fazer do que dizer, seu poder semântico contribui significativamente para a consolidação da forma, por exemplo, ou como agente indexador de significado, conectando partes ou segmentos de uma obra musical. 3.2.1

Gesto e ritmo Um ponto importante quando estamos lidando com música brasileira é considerar o

elemento rítmico como preponderante na sua construção. Certamente, quanto à música, podemos afirmar que são estruturas arquitetadas sobre o tempo. Neste sentido, considerar os fatores e elementos rítmicos presentes no gestual é essencial, especialmente quando se trata de uma análise das danças orquestrais de Villa-Lobos. Não há muita literatura especificamente voltada para uma análise baseada no gesto rítmico. Wye Allanbrook (1983) é uma das poucas que “explora como as associações de domínio cruzado de música e dança estão presentes na obra de Mozart e como estas associações nos ajudam a compreender suas composições”21 (TEAGUE, 2013, p. 03). Sua análise do gesto rítmico em Le nozze di Figaro & Don Giovane, destaca o movimento do corpo, postura e gesto, dando mais enfoque ao ritmo. Como seguidora do Leonard Ratner, seus estudos avançam no sentido de como as danças são usadas como tópicas em Mozart, permitindo alcançar caracterizações mais ricas. “Além disso, gestos culturais, como danças ou

21

Explores how cross-domain associations of music and dance are present in Mozart’s works and how those associations aid our understanding of his compositions.

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ritmos de marcha estilizados (ALLANBROOK, 1983), podem contribuir para uma síntese de alto nível como tópicas”22 (HATTEN, 2004, p. 94). Entendemos que o ritmo e o gesto, como abordado por Allanbrook, fomenta a ideia das tópicas nas danças em Le nozze di Figaro & Don Giovanni de Mozart. Assim, é possível notar que o caráter de tópica dado por Mozart amplia o poder comunicativo e simbólico da dança ao contexto sociocultural dos personagens em questão. Sabemos que na época de Mozart as danças eram usadas nas celebrações e recreações por parte das classes socialmente mais ricas, o que permitia uma conexão ativa e dinâmica com as tópicas neste contexto representadas na sua essência. Hočevar ressalta os estudos de David Mosley (1990) a respeito do conceito de gesto significante e simbólico, que pode ser identificado linguisticamente. “Gesto nesta teoria é considerado como uma dimensão significante na música em si, e está relacionado com significados poéticos (semes), como se manifestam numa música”23 (HOČEVAR, 2003, p. 154). Mesmo parecendo ser uma visão um tanto reducionista, ela permite identificar gestos e signos, ao mesmo tempo em que gestos, neste caso rítmicos, se tornam signos. Toda música traz implícito uma ordenação temporal. Podemos dizer que a música está arquitetada sob o tempo, ou seja, são estruturas arquitetadas temporalmente. Essa ordem “lógica” de uma sequência de “agoras” pode ser interpretada como uma ordenação de durações (e sequências) e silêncios, de maneira a imprimir um movimento e assim nos permitir uma conexão com a linearidade do contínuo. O modo como percebemos o ritmo, cognitivamente falando, é um ciclo mental baseado na experiência, ou seja, memória. A música necessita do tempo, porém sua existência independe da temporalidade. A temporalidade da música no espaço funciona de modo abstrato, ao qual podemos chamar de tempo real. A existência do tempo no fluxo musical é pertinente à própria música. Em outras palavras, essa temporalidade abstrata está conectada ao fluxo e a outros aspectos do tecido musical, como a textura, por exemplo, apontado por Cooper e Meyer (1960) em The Rhythmic Structure of Music. Eles demonstram como o ritmo dentro da estrutura musical pode influenciar os aspectos texturais em uma obra. Dentro de suas análises, podemos notar um entendimento das estruturas rítmicas que se complementam, de modo a fundamentar aspectos verticais de uma obra e esclarecer o ritmo dentro dos níveis arquitetônicos do ritmo texturalmente (COOPER e MEYER, 1960). 22

In addition, cultural gestures, such as stylized dance or march rhythms (Allanbrook 1983), may contribute to higher-level syntheses such as topics. 23 Gesture in this theory is considered as a signifying dimension in the music itself, and are related to poetic meanings (semes) as they manifest in song.

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Essas construções temporais no contexto brasileiro guardam, em muitos casos, aspectos de comunalidade (influência africana), principalmente através das estratégias de repetição, acentos, simetrias e assimetrias. Este infinito de possibilidades vai além de colcheias, semicolcheias, etc. Essa comunalidade presente em diversos estilos e músicas, além de retratar a participação na música de forma concreta – performance e dança, dentre outros – demonstra também uma rítmica não linearidade presente na música afro-brasileira. Por um lado, a noção de coerência na música força a existência de uma ambiguidade entre a temporalidade linear e não linear. Em Villa-Lobos, por exemplo, a ênfase nos aspectos rítmicos, parte de sua personalidade, pode ser evidenciado como um ponto forte e preponderante no seu compor. Por outro lado, ao mesmo tempo em que há uma linearidade no fluxo musical, essa tentativa de transgressão rítmica chama a atenção do ouvinte, que ao mesmo tempo é atraído por outros elementos, como uma harmonia que foge desta “lógica”. Essas estratégias de criação por parte de Villa-Lobos estão refletidas no seu lado mais corpóreo, mais primal, e serve de convite ao ouvinte para o protagonismo, ou seja, para se sentir inserido nesta realidade musical, seja ela simbólica ou representativa. A provocação do corpo, convidando-o a protagonizar um drama musical, permanece forte, principalmente nas músicas de raízes africanas. Estes elementos, dentro do gestual, trazem à tona esse âmbito comunal como parte de uma tópica africana. Portanto, o ritmo inequívoco e determinante na música brasileira é um dos elementos essenciais para uma abordagem gestual brasileira. Essa ideia de ritmo e gesto está presente no processo de construção das estratégias composicionais de muitos compositores brasileiros, principalmente em Villa-Lobos, no que se refere ao desenvolvimento de uma música caracteristicamente brasileira. O ritmo em Villa-Lobos, dentro de sua construção gestual, é um ponto base na sua ideologia composicional. O gesto rítmico, muitas vezes como extensão do contínuo, como já visto, pode estabelecer relações com eventos e/ou outros elementos musicais. Mesmo esta colocação parecendo ser muito obvia, essas relações numa visão semiótica permitem estabelecer uma relação comunicativa e simbólica entre os distintos elementos envolvidos nos gestos em questão. O que estamos querendo dizer é que para identificar signos culturais-musicais na música orquestral brasileira, é necessário o uso de elementos específicos desta cultura. Isso permite identificar estratégias e mecanismos de expressão do processo composicional, evidenciando as tópicas como fator preponderante no gesto de um modo geral. Neste ponto, podemos concordar com Rodolfo Coelho de Souza quando ele afirma que “a noção de

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identidade perseguida por Villa-Lobos não seria uma essência a ser descoberta, mas a construção de um sentido” (SOUZA, 2010, p. 196). A respeito do ritmo e sua dimensão temporal, “para Bergson, tempo é duração, ou seja, o movimento constante e contínuo de mudanças essenciais. Não há a imobilidade; por trás do movimento há somente movimento, ou seja, por trás das coisas que mudam há uma essência que é, ela própria, movimento, também” (ROSSETTI; ZANGHERI, 2011, p. 08). Esse nexo entre movimento e temporalidade firma uma realidade multidimensional. Desta maneira, consideramos o gesto rítmico, muitas vezes, como não linear, estreitando a relação entre gestualidade e estrutura narrativa. Este contínuo multidimensional, bastante dinâmico, aponta na direção processual das estratégias de intenção. Ou seja, há aqui uma evidente demonstração, também, de intencionalidade por parte do compositor. Podemos abordar, assim, o gesto rítmico dentro de uma estratégia de direcionalidade e narrativa, assumindo aspectos simbólicos e representativos. Segundo Hatten (1994), os estudos do gesto demostram a existência das tópicas, sublinhando relações significativas, expressivas, de gênero e estilo. Isso estreita ainda mais as conexões narrativas e discursivas, trazendo elementos extramusicais ou de significados préestabelecidos para o compor musical. Esse processo de significado emergente é definido como troping (HATTEN, 2004).

3.3

TÓPICAS: DO GESTO À SAUDADE A teórica das tópicas foi inicialmente apresentada por Leonard Ratner (1980) em seu

livro Classic Music, onde apresenta sua teoria falando a respeito de uma enciclopédia de valores característicos; figuras retóricas presentes no discurso musical. Assim, Ratner toma como base elementos socioculturais capazes de evocar a memória dentro de um senso comum. Como ferramenta, as tópicas nos permite a compreensão estrutural do discurso musical. Sua primeira abordagem (relacionada aos tipos) é com relação às danças, que mais tarde é amplificada por Allanbrook, associando as danças com eventos e classes sociais no contexto de Mozart. Por outro lado, uma visão relacionada a tipos e estilos podem levar a tentativas de desenvolver uma espécie de dicionário ou bula das tópicas. Portanto, manter um laço estreito e crítico dentro da semiótica pode fomentar uma visão mais focada com o significado e a representatividade no discurso musical.

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Sabemos que a aplicabilidade desta teoria se deu inicialmente no repertório da música do período clássico, se estendendo também à música romântica. Mas isso não quer dizer que não possamos adentrar em outros períodos da história da música. “A significação é social”. (...) Assim, “as tópicas podem ser observadas ao longo de um extenso período da nossa história musical”24 (MONELLE, 2006, p. 06). Levando em consideração a figuração retórica existente nas tópicas, entendê-las implica em tomar a música como discurso e assumir o interesse comunicativo do compositor. (...) Tópicas são figurações musicais forjadas no seio da cultura, construídas por meio de complexos processos históricos e culturais de natureza transregional e transnacional. Mais do que clichês ou maneirismos, as tópicas são elementos estruturais (motivos, variações, texturas, ornamentos, etc.) que portam significados e que constituem o texto musical (PIEDADE, 2009, p. 127).

Porém, como já foi dito, considerar as tópicas como algo rotulável, no sentido estrito da palavra, deixa de fora as possibilidades de reconstruções ou recriações, neste caso, na música brasileira. As tópicas podem exercer um sentido muito mais amplo do que se possa imaginar. Rotular estabelecendo regras estritas acabam por abandonar e restringir uma gama de aspectos e figurações específicas. Se pensarmos que tanto Villa-Lobos quanto sua obra são em parte o reflexo da diversidade existente no Brasil, considerar uma tópica muito ampla, sem se permitir os desdobramentos desta, deixaria de fora aspectos diversos e específicos do seu compor. Creio que a excessividade semântica é um traço da linguagem musical de Villa-Lobos, ele mesmo um artista múltiplo em vários sentidos: meteórico, ‘vulcânico’, político, mesclando o vasto talento natural e a bruteza de um gênio dos trópicos: simultaneamente bruto e puro (PIEDADE, 2009, p. 134).

Esta afirmação direciona para o uso de tópicas de forma “móvel”, privilegiando pontos específicos e diversos, especialmente se tratando da obra de Villa-Lobos. Isso significa desmembrar elementos intrínsecos nas tópicas. Por exemplo, a tópica ostinato no contexto brasileiro (ou mesmo fora dele) é muito amplo. Pelo viés africano, este elemento de comunalidade pode estar fazendo menção ao ritualesco, que por sua vez também é bastante amplo: ritual religioso, político, esportivo, musical, etc. Portanto, o uso de categorias móveis dentro das tópicas destacam elementos mais específicos, como a tópica tamborim, originalmente usada por Paulo Salles (2015), que dentro do universo ostinato remete 24

Signification is social. (…) Topics can be observed over a wide span of our musical history.

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especificamente ao uso do ritmo característico do tamborim no samba. Isso se assemelha ao uso da tópica cavalo dentro do universo da tópica caça, por exemplo (MONELLE, 2006). Deste modo, em concordância com Kofi Agawu, não acreditamos que o método lexical é a melhor das opções, pois tópicas continuam e continuarão a permear de forma quase infinita as análises musicais. Assim, “seria imprudente procurar pelo genoma de tal agregado global”, pois (...) “o significado de tópicas é primariamente contextual, dinâmico e processual; por esta razão devemos nos abster de atribuir significado fixo às tópicas” 25 (MONELLE, 2006, p. 07– 09). Por outro lado, essas categorias móveis não seriam subcategorias ou subtópicas? De um modo geral a resposta é sim, no sentido de que funcionam como categorias adjacentes, porém não é o seu real comportamento e funcionalidade. Como unidades móveis elas se comportam como figuras dinâmicas. É notório que as tópicas vão muito mais além do que estabelecer um vínculo intra e extramusical dentro de regras duras; uma espécie de dicionário. Estas figuras dinâmicas são, nos termos de Agawu (1991), o intermeio que nos permite inter-relacionar elementos interoceptivos e exteroceptivos, ou seja, a relação e interação entre signos tópicas e signos estruturais. Fazendo então um paralelo com os estudos do gesto musical, semioticamente falando, novas possibilidades importantes no campo da significação vão se abrindo, assim como no drama musical. “A noção de gesto dá conta de muitas funções no caminho do aprendizado do compor. O gesto musical se impõe muito facilmente como noção intuitiva, parece ser entendido de forma direta como unidade de significação” (LIMA, 2014, p. 249). No campo dos signos, significação, significado e discurso, entendemos que essa fluidez existente entre as tópicas e o gesto nos permite que a saudade, como já foi colocado, sirva de base expressiva no fomento de um conceito significativo no entorno da tópica para este trabalho. Pensar uma “tópica da saudade”, onde o gesto seja um ponto necessário para a interligação das atitudes composicionais com a emoção (a saudade), abre uma perspectiva no esclarecimento

da

materialização

dessas

atitudes,

apontando

para

os

processos

composicionais que sustentam a música de Villa-Lobos. Neste sentido, propomos o gesto musical como sendo a manipulação do contínuo dentro de um evento sonoro capaz de articular e conectar partes ou ideias musicais, dando sentido e intencionalidade à musica, ao mesmo tempo em que, como signo, atua representativamente, podendo assim ser modalizado. 25

It would be rash to seek the genome of such a global aggregate. (...) The meaning of topics is primarily contextual, dynamic, and processual; for this reason we should refrain from assigning fixed signification to topics.

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Como o gesto musical segue uma lógica objetiva, ou seja, há um ponto de partida e chegada, o domínio deste o torna uma importante ferramenta compositiva. Neste sentido, entendemos que o gestual na música pode contribuir de forma significativa tanto como subsídio semântico mais estável, ou porque não dizer concreto, para a narratividade musical, como um ponto importante entre o discurso sobre música e na música. Assim, o gesto pode ser um ponto de aproximação entre o subjetivo e o objetivo na narrativa musical, entre o ponto de partida e chegada, estreitando as relações narrativas do discurso com o fazer musical. Desta forma, as atitudes anteriormente mencionadas, em sobreposição às modalidades greimazianas, são partes dos universos que abrigarão a dimensão das tópicas e do gestual; estando estes entrelaçados ou não. Rodeados pela saudade, que transpassa as quatro arestas deste quadrado (particionada e ao mesmo tempo interconectada em todas as pontas), estes pequenos conglomerados que estamos montando, são habitados pelas diversas dimensões teóricas aqui abordadas. Estes são os alicerces desta busca por essas atitudes fundamentadas na saudade que apontam para os processos composicionais villalobianos, como já supracitado.

3.4

A SEMIÓTICA EXISTENCIAL Os estudos sobre semiótica têm crescido nas últimas décadas. Por outro lado, nada de

“novo” tem sido desenvolvido. Neste sentido, a semiótica existencial é uma das mais importantes e significativas abordagens sobre semiótica nos últimos dezesseis anos. É uma nova escola com base na filosofia franco-alemã e semiótica em geral. Considerando que a semiótica (igualmente na música) pode abraçar uma ampla gama de abordagens, a semiótica existencial abriu um novo paradigma nos estudos analíticos da significação e comunicação. “A semiótica está em fluxo”26 (TARASTI, 2012, p. 71). Estudar o signo em movimento e em fluxo promove fundamentos para entender a vida do signo a partir de dentro, de como os signos se tornam signos. Assim, à luz da semiótica existencial pretendemos alcançar novos horizontes no intuito de demonstrar as atitudes, processos e o gestual, especialmente quando tratamos da ideologia compositiva e experiência cultural. Para tal intento, pretendemos mostrar a semiótica existencial como uma teoria deveras inclusiva e abrangente no sentido analítico musical, especialmente no âmbito da música pelo

26

Semiotics is in flux.

59

viés da significação, comunicação, narrativa e discurso. A interseção com as modalidades de Greimas e com os processos demonstrados pode permitir um caminho diferente para a análise musical, principalmente quando se pretende tal análise fundamentada na experiência cultural. Isto pode dar lugar a uma distinta visão do desenvolvimento do processo composicional a partir do processo pedagógico/metodológico da composição e, ao mesmo tempo, abrir caminhos para uma análise semiótica processual de obras brasileiras (ou não), no intuito de desvendar a ideologia composicional de determinado compositor. A semiótica existencial (SE), a qual vem sendo desenvolvida desde 2000 (ano do lançamento do livro Existential Semioitcs) pelo professor Eero Tarasti, não pretende desconsiderar ideias as prévias sobre semiótica. Ao contrário, essa visão “clássica” permanece válida, claro, mas dentro dos limites de uma nova e mais abrangente teoria. Ela também não pretende ser o retorno ao existencialismo, mas uma releitura dos fundamentos da semiótica à luz de determinados filósofos. Com uma base bastante filosófica, e seguindo os passos de Kant, Hegel, Kierkegaard, Jaspers, Heidegger, Arendt e Sartre, sem esquecer os clássicos Saussure e Greimas, bem como o estruturalismo e pós-estruturalismo, a SE nos leva às fronteiras da semiótica, chegando às margens de uma abordagem fenomenológica e hermenêutica. O próprio Tarasti (2009) denomina sua teoria de uma neosemiótica por ser “algo novo, na medida em que pretende representar o pensamento do século XXI e, como uma filosofia do nosso tempo, se envolve com desafios da presente era” 27 (TARASTI, 2009, p. 1755). Sua teoria oferece uma nova perspectiva do sujeito e subjetividade, abrindo diversas possibilidades para sua aplicação. Há, deste modo, uma nova noção em torno da transcendência, Dasein 28 , modalidades, valores, Moi e Soi, e assim por diante (TARASTI, 2012). Em suma, o principal foco desta teoria é: como os signos tornam-se signos e, principalmente, como eles são precedidos por aquilo que eu [o autor] chamo de “pré-signos”, ou seja, virtual, entidades transcendentais. Na forma mais abstrata estes pré-signos são valores axiológicos, entidades; na forma mais concreta, eles são “ideias” que, digamos, um artista pode ter, antes de serem actualizadas, transformadas ou transcritas para o que eu [o autor] chamo de “signos atuantes”. Além disso, quando os signos atuantes são executados ou 27

Something new, in that it purports to represent 21st-century thought and, as a philosophy of our time, engages with challenges of the present era. 28 Dasein que dizer literalmente “ser/estar-ali”. Tarasti opta por manter o termo alemão Dasein, cuja concepção é emprestada da filosofia alemã (especialmente de Heidegger e Jaspers) sem tradução, por seu significado ser bastante sutil. Para permanecer fiel à abordagem filosófica “original”, também mantivemos o termo sem tradução para o português.

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recebidos pela comunidade em que os signos são transmitidos, tornam-se “pós-signos”, ou seja, eles são notados e exercem o seu impacto “real” sobre os destinatários29 (TARASTI, 2009, p. 1756, grifo do autor).

Este esquema teórico está baseado em duas categorias de natureza ontológica: Dasein e Transcendência. Dasein, em poucas palavras, “é simplesmente o mundo no qual nós, como sujeitos/indivíduos, vivemos rodeados por outros sujeitos/indivíduos e objetos, com os quais tentamos entrar em acordo”30 (TARASTI, 2009, p. 1756). O movimento do Dasein na transcendência se dá de duas maneiras. Primeiramente com a negação, e depois a afirmação (plenitude). O indivíduo, habitando o Dasein, primeiramente se sente insatisfeito, deficiente de alguma maneira, então ele nega – negação. Ele(a) percebe sua “insignificância” no sentido existencial (Hegeliano). Este vazio o(a) força a buscar por algo mais, satisfação – afirmação. No modelo do Dasein (Figura 2) isso pode ser chamado de movimento existencial no Dasein (x) (TARASTI, 2015). Nos termos de Sartre31, o ser se torna mais consciente de si mesmo através de um ato de negação. Figura 2 - modelo do Dasein - semiótica existencial (Tarasti)

Podemos notar que este modelo difere do modelo de Greimas (quadro semiótico, que veremos mais adiante). Primeiramente em forma, usando círculos, setas e linhas curvas, e design. Isso indica exatamente a intenção do Tarasti, que é ter uma teoria que trate do signo em movimento, pois este modelo já dá indícios, como podemos notar, da consideração deste movimento. Da mesma maneira, devemos evidenciar que este modelo não é estático, pelo 29

How signs become signs and, particularly, how they are preceded by what I call “presigns”, i.e., virtual, transcendental entities. In the most abstract form these presigns are values, axiological entities; in more concrete form, they are “ideas” which, say, an artist may have, prior to their being actualized, transformed, or transcribed into what I call “actsigns”. Moreover, when actsigns are performed or received by the community in which signs are conveyed, they become “post-signs”; i.e., they are realized and exercise their “real” impact upon the destinatees. 30 Is simply the world in which we as subjects live, surrounded by other subjects and objects with which we try to come to terms. 31 Jean Paul Sartre (1905-1980) foi um filósofo francês e cuidadoso pesquisado a respeito dos trabalhos de Hegel e Kierkegaard.

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contrário, ele é dinâmico. O movimento indicado não acontece somente num sentido, o sujeito pode ir e voltar, ou seja, acessar, mesmo que através da memória, o Dasein anterior. Esse aspecto também difere do modelo proposto por Greimas. Sabemos que a semiótica lida com dois principais campos essenciais; significação e comunicação (TARASTI, 2000; 2012). Seguindo dentro do campo da significação, na tentativa de definir transcendência, podemos dizer que “é qualquer coisa que está ausente, mas presente em nossas mentes”32 (TARASTI, 2009, 1757), ou seja, é algo ausente, porém podemos pensar ou discutir sobre. Assim como no modelo do diálogo de Saussure, o espaço entre os dois indivíduos não está vazio, mas sim repleto do que Greimas chama de modalidades, no campo da comunicação, “na teoria da semiótica eu [o autor] diferencio a linguística tradicional e as modalidades lógicas, no que se refere à vida no Dasein das modalidades, o que retrata a comunicação entre Dasein e transcendência”33 (TARASTI, 2009, p. 1757). Diferentemente de Heidegger, na semiótica existencial o Dasein não é somente o meu ser/minha existência, mas abrange também outros indivíduos e objetos. Desta forma, novas categorias de signos emergem do tráfego entre Dasein e transcendência. Com base na moderna abordagem das categorias hegelianas apresentadas por Fontanille34 na distinção entre Moi (M; eu) e Soi (S; a sociedade), podemos dizer que “o ‘si mesmo’ (Soi) funciona como uma espécie de memória do corpo (Moi); ele dá forma aos traços de tensão e necessidades que tenham apresentado ou foram inseridas no corpóreo ‘Eu’ (Moi)”35 (TARASTI, 2012a, p. 17). Numa visão ampla, esta distinção entre o ser individual e social, segundo Fontanille, é o que fundamenta o corpo humano (soma), com base num sentido fenomenológico totalmente novo (séma). Desta maneira, na SE, à luz de Fontanille, o ser-em-e-para-si de Hegel se torna ser-eme-para-mim. Diferente do espírito hegeliano da coletividade, o “outro” está presente aqui, como supramencionado, daí temos o encontro com o “você” (o outro), que se traduz em serem-e-para-você. Esse cunho social permite a emergência de valores abstratos e virtuais dos

32

Is anything that is absent, but present in our minds. In the theory of existential semiotics I distinguish traditional linguistic and logical modalities, which concern life in Dasein, from metamodalities, which portray communication between Dasein and transcendence. 34 O semiólogo francês Jacques Fontanille (n.1948) é um dos principais expoentes da escola de semiótica de Paris. Dentre suas principais obras estão Sémiotique du discours (2003) e Soma et Sema: Figures du corps (2004). Embora sua abordagem esteja voltada para a semiótica corpórea, do corpo, em Soma et Sema: Figures du corps, ele apresenta uma visão “atualizada” das categorias de Moi e Soi. É com base nesta distinção entre Moi e Soi de Fontanille que Tarasti se baseia em sua abordagem. 35 The self (Soi) functions as a kind of memory of the body (Moi); it gives form to the traces of tensions and needs that have lodged or been inserted in the fleshly “Me” (Moi). 33

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signos que ainda não se tornaram “concretos”. Nos termos do princípio de Ich-Ton 36 de Uexküll, o que determina a identidade e individualidade de um organismo, nos podemos distingui-lo em aspectos: Moi e Soi. Em “eu” o sujeito aparece como tal, como um pacote de sensações; no “si mesmo” o sujeito aparece como observado pelos outros, como determinado socialmente. Estes constituem os aspectos existenciais e sociais do sujeito, ou melhor, seus lados individuais e comunais 37 (TARASTI, 2015, p. 24).

Sartre demonstra que quando o indivíduo se torna observador de si mesmo, ele está mudando sua atenção para ser-para-si. Assim, ele está colocando em voga a relação de contraposição entre o em-si e o para-si; o ser do fenômeno versus o ser da consciência. Quando Heidegger (2001) afirma que a essência do Dasein é sua existência, ele está reforçando a capacidade de ser. Seguindo seus passos, Sartre afirma que “a existência precede e condiciona a essência”, estabelecendo que “somente pelo fato de ter consciência dos motivos que solicitam minha ação, tais motivos já constituem objetos transcendentes para minha consciência” (SARTRE, 1997, p. 543). Com base nisto, vejamos como fica o esquema do Moi/Soi aplicado ao quadrado semiótico de Greimas: Figura 3 - Quadrado Semiótica de Greimas x Moi/Soi 3a) Quadrado Semiótico de Greimas

36

Ich-Ton (Me-Tone) é um conceito do biólogo Jakob Uexküll que significa o filtro pelo qual um organismo aceita ou rejeita sinais de seu ambiente. Essa metáfora se refere à partitura dentro do organismo interpretada por estímulos externos. Assim, cada compositor ou músico tem seu próprio ‘Ich-Ton/Me-Tone’, determinando um estilo. 37 In terms of Uexküll’s principle of Ich-Ton, which determines the identity and individuality of an organism, we can distinguish in it two aspects: Moi and Soi. In “me” the subject appears as such, as a bundle of sensations; in the “self” the subject appears as observed by others, as socially determined. These constitute the existential and social aspects of the subject, or rather, its individual and communal sides.

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3b) Moi/Soi (Tarasti)

Tarasti melhorou o modelo através da indicação dos quatro casos do Ser no quadrado semiótico (M1,S4; M2,S3; M3,S2; M4,S1). Baseado no Dasein, uma nova teoria da mente humana está presente nos princípios do Moi/Soi, desdobrados nos quatro modos do ser: corpo, pessoa, práticas sociais e valores. Com isso Tarasti propõem o seu Z-model (Figura 4), combinando estas esferas dos Moi(s) e Soi(s) (individual e coletivo, corpo e forma). Resumidamente, seria não somente o movimento do espírito coletivo de Hegel, mas o movimento e comunicação entre eles (Moi e Soi) na “transformação do um ego corpóreo caótico na sua identidade”38 (TARASTI, 2015, p. 25). É exatamente na tensão dialética entre Moi e Soi, com base nas modalidades greimasiana do sujeito, que podemos entender o Zmodel (Zemic model) e o processo de comunicação/transformação entre os Moi(s) e Soi(s). Figura 4 - Z-model (Tarasti)

Estes aspectos relativos ao Moi (M) e Soi (S) representam os dois lados de nossa subjetividade. “O social tem impacto e poder sobre nós somente porque foi internalizado em 38

Transformation of a chaotic corporeal ego into its identity.

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nossas mentes. Desta maneira, o Soi pode se impor em nosso Moi”39 (TARASTI, 2012, p. 136). Nesse modelo taxinômico do ser, com base nas tensões entre Moi e Soi, a gradual socialização e materialização dos nossos egos, cada vez mais sublimados, segue até que possa representar os aspectos intelectuais e espirituais de nossa sociedade. Ou seja, é o processo de desenvolvimento do ser corpóreo ao ser intelectual/espiritual. Dentro desse processo, também devemos considerar que “nossos atos mais físicos do M1 também contém pequenos traços do Soi, bem como nas categorias mais abstratas de nossa existência social também existem pequenos vestígios do nosso ego físico”40 (TARASTI, 2012a, p. 137). Temos então que (1) M1=S4, (2) M2=S3, (3) S2=M3 e (4) S1=M4. Desta forma, em todo texto musical, discurso ou expressão, temos estes quatro aspectos: (1) material físico concreto surgindo como gestos musicais e desejos musicais, formações ondulantes mais ou menos caóticas da energia cinética da música. (2) Pessoas ou “atores” musicais, as quais são as mais estáveis entidades antropomórficas, como temas e motivos musicais; estes têm perfis bem definidos e constituem unidades da narração musical. (3) Na música temos normas sociais, manifestando-se em (a) figuras retóricas, (b) tópicas, ou seja, características de estilo internalizado a partir dos campos sociais musicais ou não, e (c) os gêneros, as estruturas sociais necessárias para a comunicação musical. (4) Cada unidade musical tem um aspecto estético de conteúdo, sendo os valores ou ideias que a música transmite ou significa”41 (TARASTI, 2012a, p. 137-138).

A modalidade mais importante do Moi é o querer. Porém, devemos entender que querer não quer dizer somente “querer fazer” ou “não querer fazer”, mas também “querer ser” ou “não querer ser”. Em seguida temos a categoria de energia, capacidade, poder. Saber tem uma relação com a memória do Moi, uma espécie de eu interior. Interessante notar que num sentido bergsoniano há uma relação do conhecimento com o fazer e poder. É através deste que a composição pode emitir informações em si, e a partir desta memória, a obra pode retomar suas formas, conhecimento e poder. O Moi tem suas próprias necessidades internas e uma certa autonomia, não se permitindo dobrar sob as forças impostas pelo Soi. 39

The social has impact on and power over us only because it has been internalized in our minds. In this way, the Soi can impose itself on our Moi. 40 Our most physical acts of M1 also contain a tiny trace of the Soi, just as in the most abstract categories of our social existence there also exists a small hint of our physical ego. 41 In every musical text, discourse or expression, we have these four aspects: (1) Concrete physical material appearing as musical gestures and musical desires, more or less chaotic wave-like formations of the kinetic energy of music. (2) Musical “actors” or persons, which are the more stable anthropomorphic entities, like musical motifs and themes; these have clear-cut profiles and constitute units of musical narration. (3) In music we have social norms, manifesting in (a) rhetorical figures, (b) topics, i.e. style features internalized from musical or nonmusical social fields, and (c) genres, the social frameworks necessary for musical communication. (4) Every musical unit has an aesthetic aspect of content, being the values or ideas which the music conveys or signifies.

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No caso do Soi, a principal categoria é o dever, que assume as estruturas comunicativas; estilos, gênero, etc. Quando um compositor coloca um título em sua obra, ela tem o dever de ser, o compromisso em dever ser. É no saber que se dá o conhecimento do ingresso de elementos no Dasein, ou seja, a transcendência na obra. O poder, terceira categoria do Soi, se relaciona com a adoção de técnicas e/ou recursos, os quais o dever e o saber poderão alcançar. Por último, temos o querer, que se expressa quando “um compositor fala de sua comunidade e, em seguida, permite seu Soi se exprimir”42 (TARASTI, 2012c, p. 51). Colocando os questionamentos relacionados do Ser ao Fazer, Moi representa os casos individuais e o Soi o coletivo. Assim, como a SE busca imaginar e retratar a vida dos signos a partir de dentro, podemos colocar que S1 é a voz da sociedade, suas ideologias, axiologias, mitos, e assim por diante. Já no S2 “aqui, as normas e princípios estão deslocados em leis manifestas, regras e instituições. (...) Isso é o mesmo que a noção de Habitus de Bourdieu”43 (TARASTI, 2012b, p. 331). S3 dimensiona, como questionamento, até que ponto as propriedades e características pessoais podem servir à sociedade. S4 questiona até que ponto a sociedade pode adentrar o comportamento de um indivíduo. No campo do indivíduo, em M1, o indivíduo se questiona a respeito de sua existência. “Quem sou eu”? “Eu acordo pela manhã, eu respiro, não sinto nenhuma dor, eu existo, isso é maravilhoso”44 (TARASTI, 2012b, p. 330). M2 se relaciona com a personalidade, como o indivíduo pode desenvolver sua personalidade e identidade. É a ideia de personalidade de Snellman45. M3, “como posso conseguir um emprego, posição, um papel em uma instituição social que corresponda à minha personalidade, habilidades e inclinações?”46 (TARASTI, 2012b, p. 330) Também se relaciona com os anseios de aceitação pela comunidade e de ter sucesso. M4 relaciona um questionamento à aceitação das normas impostas pela comunidade. Isso apresenta a realização do Moi e Soi por duas direções opostas do Dasein, onde os questionamentos se apresentam ligados à direção deste movimento, relacionado com os objetivos e direcionamentos deste. Assim, fica claro que há um processo dinâmico e comunicativo entre estas quatro dimensões. Da mesma maneira, devemos estabelecer que, por ser um processo dinâmico, essa

42

Comme lorsqu'un compositeur parle au nom de sa communauté et laisse alors son 'Soi' s'exprimer. Here, the norms and principles are shifted into manifest laws, rules, and institutions. (…) This is the same as Bourdieu’s notion of habitus. 44 I wake up in the morning, I breathe, I do not feel in any pain, I exist, this is wonderful. 45 Johan Vilhelm Snellman (1806-1881), estadista e filósofo cujo os pensamentos e ideias vanguardistas ajudaram a reforçar de uma ideologia finlandesa. 46 How I can obtain a job, position, role in a social institute that would correspond to my personality, skills, and inclinations? 43

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comunicação pode transpor etapas, ou seja, pode haver em determinados casos a passagem de uma dimensão a outra pulando alguma(s). Por exemplo, em alguns estudos sobre performance, o processo pode ir de M1 a S1 sem passar pelos demais. Podemos notar que na semiótica existencial a teoria das modalidades de Greimas é um ponto importante, e assume um novo direcionamento. Por serem as modalidades conceitos processuais, são dinâmicos por natureza. E como tais, podemos intersecionar com o processo composicional, que é igualmente dinâmico.

3.4.1

A semiótica existencial e processo composicional O compositor Lindembergue Cardoso 47 , segundo Lima (2011a) em seu artigo O

problema, o sistema e a mão na massa, deixou em suas anotações sobre o ensino de composição na Universidade Federal da Bahia algumas notas sobre o seu processo de ensino da composição musical. Entendemos que para desvendar e entender os processos de ensino e do compor não é possível sem que se enfrente: o desafio de entender o pensamento composicional que acompanha esse ensino, tanto do ponto de vista da especificidade – das estratégias musicais propriamente ditas – como do ponto de vista da abrangência, das relações com as múltiplas esferas de pensamento da contemporaneidade, ou seja, com a própria vida (LIMA, 2011a, s.p., grifo do autor).

Cardoso deixa em suas anotações (planejamento) a proposta de colocar o aluno de composição diante do campo de escolhas: “Compor o que, com o que, para que, e por que?”. O próprio Cardoso denomina este processo de “em outras palavras: Meter a mão na massa” (LIMA, 2011a, s.p.). Da mesma maneira podemos ver isso como opções que um compositor tem durante seu processo composicional. Entender isso como processo nos levanta algumas questões com relação a estes quatro pontos, ao mesmo tempo em que estes pontos já são questionamentos em si. Lima (2011a) aponta que para isso, devemos atentar para quatro campos ligados aos quatro pontos. “Compor o que?” – isso nos coloca no campo do fazer, o processo criativo e do que poderia ser composição, o fazer sentido. “Compor com o que?” – este é o campo material, do material composicional, os caminhos da composição, a direção dos materiais, ou seja, o 47

Abrir nota sobre Lindembergue Cardoso.

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campo dos “como”. “Compor para que?” – o campo das dimensões, do uso dos materiais e objetos composicionais. “Compor por quê?”- este campo das indefinições é ao mesmo tempo o campo das respostas e questionamentos (caminhos para ideologia composicional) (LIMA, 2011a). Este tratamento pragmático nos permite interseccionar este processo como modalização do processo composicional a partir do ponto de vista de Cardoso, além de nos parecer bastante significativo, principalmente pela sua universalidade com relação à modalização do compor e suas possibilidades analíticas sobre as estratégias, processos e ideologia de um compositor e/ou obras, especialmente no que tange às obras e compositores brasileiros através da experiência cultural. Este processo exemplifica os caminhos composicionais (“com o que” - “como”) baseado no processo criativo (“o que”), nas dimensões (“para que”) e indefinições/ questionamentos (“por que?”). O que propomos é a interseção através do Z-model do Tarasti da seguinte forma (Figura 5): Figura 5 - Z-model e processo composicional

A superposição com a SE, desta maneira, pode nos fornecer ferramentas e meios para demonstrar atitudes e processos. Modalizar o processo composicional a partir da abordagem de Cardoso pode ser o meio de entender a produção de valores, ou seja, os signos produzidos como significado e comunicação. É através da ajuda das modalidades que os valores vêm a se concretizar (TARAST, 2015). Através do diagrama (abaixo) proposto pelo Tarasti, podemos notar o caminho de como estes valores se tornam signos: valores =======> modalidades =======> signos Devemos considerar que na SE, os valores são transcendentais, e não se tornam “concretos” sem a ação/intervenção do sujeito. Eles existem ou são produzidos independentemente da necessidade da crença de alguém. Tarasti defende:

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a ideia de que valores podem ser ideias transcendentais ao lado de outros valores que existem fora do Dasein. No entanto, em alguns casos e em determinadas circunstâncias, eles começam a exercer sua influência no Dasein, quando algum sujeito vivendo nele – individual ou coletivo – sente este valor como seu48 (TARASTI, 2012b, p. 321).

É possível ao sujeito perceber estes valores como signos. Por isso que a modalização é uma etapa indispensável para a compatibilização dos valores e signos. Por conseguinte, no contexto musical, o movimento de “transformação” de valores em signos por meio do processo/atitude composicional deve seguir o pensamento de que “uma ideia abstrata é condensada e cristaliza-se no final em um signo”49 (TARASTI, 2012, p. 320). A produção de valores pode ser significativa no processo de desvendar a identidade de um compositor “impregnado” de ideologia e atitudes. Do mesmo modo, os valores produzidos são fundamentais na determinação das modalidades do discurso. Tudo indica que as modalidades se portam da seguinte maneira: 1. querer (vouloir): eu quero conectar o valor x ao significado da ação x. Se o sujeito não quiser isso, esse valor não poderá se manifestar. (...) 2. saber (savoir): Eu sei que o valor x existe; sem esse conhecimento não posso sequer querer concretizá-lo no meu valor atuante. (...) 3. poder (pouvoir): estou apto a conectar um valor x a uma ação x – por exemplo, eu quero ajudar pessoas doentes, mas para fazer algo preciso me especializar em medicina; eu quero ajudar os pobres, mas ao menos que eu possa lhes oferecer uma moradia, não posso ajudá-los. (...) 4. dever (devoir): dever significa a interiorização dos valores50 (TARASTI, 2012b, p. 322-323, grifo nosso).

Neste ponto, não podemos deixar de falar a respeito do processo de apropriação nos valores e sua produção. Talvez não possamos apontar a proposta de Cardoso como exatamente uma produção de valores no sentido estrito da palavra, ou melhor, à primeira vista isso pode não estar bem claro. Mas o fato é que o processo composicional está abarcado por escolhas nas mais diversas etapas deste processo. Sabemos que o processo de apropriação passa pelo processo de reinvenção (discutiremos este ponto um pouco mais no decorrer deste trabalho), mas podemos ressaltar 48

The idea that values could be transcendental ideas in the side of other values that exist out-side the Dasein. However, in some cases and under certain circumstances, they start to exercise their influence within the Dasein, when some living subject therein – individual or collective – feels such a value as his own. 49 Some abstract idea is condensed and crystallizes at the end into a sign. 50 1. want (vouloir): I want to connect value x to the signified of act x. If subject would not want it, this value could not manifest. (...) 2. know (savoir): I know that value x exists; without such knowledge I cannot even want to concretize it in my value act. (...) 3. can (pouvoir): I am able to connect a value x to an act x—for example, I want to help sick people but to do something I have to master medicine; I want to help the poor, but unless I am able to provide a property, then I cannot do it. (...) 4) must (devoir): must means the internalization of values.

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que em Villa-Lobos os processos de apropriação de elementos populares, folclóricos, eruditos, e assim por diante, passam pelo uso (em termos de apropriação) deste “material” de maneira que, no final, este se cristaliza no processo se apresentando como parte da estética ou identidade do compositor. Ou seja, ele se apropria destes códigos de modo que estes aparecem, mesmo que abstratamente, como originalmente seus. No caso de Villa-Lobos, o processo de apropriação passa por diferentes aspectos. Ele vai além e estabelece relações com o desenho dramático da obra, orquestração, texturas, etc., os quais têm uma relação meticulosa com o desmontar para montar um algo novo, “original”, no sentido de possessão, transformação, apropriação. Em “Villa-Lobos, o Soi popular se transformou em seu próprio Moi composicional, na sua própria identidade musical” 51 (TARASTI, 2012c, p. 56). Segundo Sulkunen e Torronen (1997) a produção de valores, com base no discurso, passa primeiramente pelas representações da realidade social. Isso é bastante visível no que diz respeito à produção musical de Villa-Lobos. Considerando que, de um modo geral, na semiótica existencial “o indivíduo não está isolado do seu ambiente social”52 (MACDONEL, 2011, p. 03), a representatividade e relação de Villa-Lobos com as diversas realidades existentes no Brasil são um traço peculiar em várias de suas obras. Essa representatividade vai pelo campo de escolhas, e pode assumir um ímpeto criador com base nas modalidades anteriormente propostas. Sabemos da importância no processo dos “o que, como, para que e por que”, porém, como indicador de estratégias, assumimos que a produção de valores também está nas escolhas de Villa-Lobos. Isto está representado na interseção das modalidades53, como veremos mais adiante (Figura 6). Por outro lado, a semiose acontece verticalmente e horizontalmente. Sobrepondo-o aos eixos paradigmáticos e sintagmáticas de Saussure, o eixo vertical deve fornecer o “cumprimento das ideias da transcendência”54 (TARASTI, 2012, 326) - campo das escolhas – “o que”, processo criativo; e “com o que”, caminhos composicionais. No sentido horizontal, o processo de comunicação se modaliza e “sintagmatiza”, ao mesmo tempo, através da temporalidade – “para que”, dimensões e uso do objeto composicional; “por que?”, indefinições e respostas. Assim, a sucessiva linearidade da escolha de elementos faz sentido para uma combinação entre os signos. Portanto, modalizar essa construção temporal manipulada através do contínuo, permite, 51

Villa-Lobos, le Soi populaire est transformé en son propre Moi compositionnel, en sa propre identité musicale. (…) the subject is not isolated from his social environment. 53 Modalidades estas que estão relacionadas aos M1, M2, S2 e S1. 54 Fulfillment of ideas of transcendence. 52

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por exemplo, ao gesto carregar e transmitir significado e gesto semântico na categoria modal, criando efeitos de senso particular no discurso musical. Essas modalidades atuam no valor do objeto no sentido de “afetar a existência modal do sujeito” (FIORIN, 2007, 04). Além disso, entender que o valor aplicado a um objeto/signo está em seu respectivo valor e também na sua relação com os demais objetos, pode prover uma rede de conexões em uma obra musical. Essas conexões, baseadas nos valores aplicados a um signo, determina coerência e direcionalidade ao fluxo musical. A representação do transcendental na semiótica existencial acontece quando a natureza transcendental de ambos os movimentos atuam como comunicação e significação. Em outras palavras, os aspectos horizontais e verticais da música, divididos em níveis distintos, podem revelar alguns aspectos do processo composicional. Levando em consideração que na música “o som” acontece exatamente pela simultaneidade dos elementos musicais, o tecido musical é quem representa o resultado do processo de comunicação entre os diferentes vértices do Zmodel. Outro aspecto importante a ser considerado é a interseção no processo de comunicação entre os distintos Moi(s) e Soi(s). Podemos assim dizer que essa interseção representa de alguma maneira, dentro do processo composicional, a ideologia composicional. Figura 6 - interseção/comunicação entre Moi(s) e Soi(s)

Esta nos parece uma das formas de estabelecer e entender o pensamento, estratégias e processos composicionais como ideologia de um compositor através da SE. Podemos assim, por exemplo, entender melhor um determinado compositor ou período no sentido de desvendar alguns aspectos do seu processo composicional, especialmente se o objetivo é explorar os mecanismos de expressão e composição. A aplicação desta abordagem pode nos permitir identificar sinais culturais-musicais em obras musicais, retratando a construção e representação de elementos representativos e significados através da experiência cultural.

71

3.4.2

O gesto existencial O Moi e Soi estão conectados por uma espécie de “ponte”, e ao mesmo tempo não estão

separados do todo (TARASTI, 2015). Uma das maneiras de como esses conceitos se cristalizam é através do gesto (de modo geral) e do gênero. “O encontro do Eu e a Sociedade, Moi e Soi, acontece como conjunção, quer se misturando ou divergindo, entre gesto e gênero”55 (TARASTI, 2015, p. 34). De um modo geral, temos como energia cinética, entonações, o gesto no M1. No M2 este se torna mais intencional, o ego toma conhecimento de sua identidade, se desenvolve via hábitos. No S2, o gesto, como normas, valores e ideias, assume sua “forma” mais potencialmente atuante como tópicas. E finalmente, no S1, está transfigurado o principio estético. Portanto, o gesto como parte integrante do discurso musical e da linguagem (poder comunicativo), passa a representar no nível deste sistema uma produção dinâmica de modalidades. Assim, à medida que o gesto vai gradualmente tendo contato com as normas, o social, tópicas, tende a se transformar em sintaxe. Porém, há em algum momento na criação musical o gesto (generalizado) em seu estado mais puro? Este questionamento pertinente apontado por Tarasti não pode ser respondido tão facilmente. O que pode ser abordado nesse sentido recai em outro questionamento: Será que uma sonata já existe antes de ser escrita (passada para o papel) na mente do compositor? Talvez pelo viés dos pré-signos que irão se tornar signos atuantes e pós-signos posteriormente, possamos seguir no sentido de que o gesto como energia cinética está no campo do Moi (ser-em-e-para-mim), e como noção, à medida que se torna intencional – tendência de movimento – ao passar para a dimensão do Soi (ser-em-e-para-si). Podemos concluir, então, que o gesto aparece tanto verticalmente (Moi) como horizontalmente (Soi), como já demonstrado anteriormente. Energia está articulada como modalidades, em ambos nós e por nós. Extensão, por outro lado, manifesta-se nos princípios de ator-tempo-espaço. (...) O que é novo aqui, no entanto, é que o limiar transcendental de Kant agora ocorre entre o Moi e o Soi. (...) Os gestos podem ser tanto uma expressão do Moi como também serem codificados em temas sociais que se manifestam no Soi (este é o núcleo da teoria dos gestos musicais). Essas articulações formam o Ich-Ton particular de um compositor e/ou trabalho, e elas controlam as relações do trabalho com a realidade a sua volta. O Ich-Ton filtra os sinais os quais o trabalho permite ou rejeita. O Ich55

The encounter of Me and Society, Moi and Soi, takes place as the conjunction, either blending together or conflicting, between gesture and genre.

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Ton, deste modo, “modaliza” todos os elementos intrusos 56 (TARASTI, 2012a, p. 18, grifo do autor).

Estes distintos aspectos entre Moi e Soi estão envolvidos numa análise existencial de uma obra musical, apontado por Tarasti como a revelação das estruturas de significação, tendo como background as estruturas de comunicação (TARASTI, 2012b). Porém, numa análise transcendental, “o Ich-Ton é examinado em relação a uma ideia transcendental e valores, o que para um sujeito (compositor) são potencialidades virtuais, realizadas ou não”57. Com base nas noções de Dasein e transcendência, “o Ich-Ton aparece através das categorias kantianas do sujeito (o ator) tempo-espaço sempre que alguma ideia transcendental é ‘filtrada’ no Dasein”58 (TARASTI, 2012b, p. 15-16, grifo do autor). O gesto musical, à luz da SE, tem seus aspectos significativos e comunicativos reforçados. Essa interseção e/ou superposição nos conduz no sentido de que, como processo dinâmico, o gesto dentro do processo estratégico de um compositor adquire status de signo, transmitindo e comunicando, ou seja, movimento e intenção (ação). Portanto, respaldado pelas modalidades, o que permite sua interlocução com o signo, o gesto adquire capacidade imagética na construção de imagens e paisagens (sonoras). Este último poderá ser melhor entendido nos tópicos a seguir.

3.4.3

Villa-Lobos e a semiótica existencial. Como supracitado, “à luz da semiótica existencial o sujeito/indivíduo não está isolado

do seu ambiente social”59 (MACDONEL, 2011, p. 03). Nesse contexto, o modelo semiótico existencial de Tarasti (ver Figura 4) aborda quatro importantes modalidades dentro de quatro dimensões da individualidade do sujeito; Moi1, Moi2, Soi2 e Soi1. 56

Energy is articulated as modalities, both in us and for us. Extension, on the other hand, manifests in the principles of actor-time-space. (...) What is new here, however, is that the transcendental threshold of Kant now occurs between the Moi and the Soi. (...) The gestures can be either an expression of the Moi, or they can be coded into social topics that manifest the Soi (this is the core of the theory of musical gestures).These articulations form the particular Ich-Ton of a composer and/or work, and they control the work’s relations with its surrounding reality. The Ich-Ton filters the signs which the work either allows in or rejects. The Ich-Ton likewise “modalizes” all of the intruding elements. 57 The Ich-Ton is examined in relation to a transcendental idea and values, which for a subject (composer) are virtual potentialities, either fulfilled or unfulfilled. 58 In this new framework of existential semiotics, and its fundamental notions of Dasein and transcendence, we give it a Kantian interpretation, such that the Ich-Ton appears through Kantian categories of subject (actor) timespace, whenever some transcendental idea is "filtered into Dasein. 59 Under the light of existential semiotics, the subject is not isolated from his social environment neither from her relationships with others; and, signs and meanings are thought of as created by the subject’s individuality.

73

Um dos principais pontos é o movimento do corpóreo em direção a uma personalidade mais estável. Assim, a SE está focada em conceber o signo em constante movimento entre a transcendência e Dasein. Dependendo da distância destes do Dasein, novos tipos de signos são produzidos; pré-signos, ideias ou valores ainda não concretizados (virtual); signos atuantes, manifestação do signo (atuante); pós-signo, impactante na audiência, destinatário (percebido). Em termos cognitivos seria a virtualização, atuação e percepção. Parece-nos que há uma conexão com a lógica de Pierce (primeiridade, secundidade e terceiridade), apesar de estar relacionado com Greimas. Assim, na SE, os “valores são transcendentais, mas tornam-se signos via atividades do sujeito”60 (TARASTI, 2015, p. 10). Desta maneira, sem a ajuda das modalidades, estes valores nunca se tornariam concretos, por assim dizer. Por isso, a modalização do processo composicional, com base nas ideais de Cardoso anteriormente mencionados, são o meio de tornar concreto os valores composicionais desta abordagem, assim como as modalidades greimasianas. Se aplicarmos este modelo em Villa-Lobos, temos a seguinte demonstração: Moi1) suas experiências cinéticas e rítmica corporal primária, fenômenos, elementos, suas entidades rítmicas básicas, o gestual primário; Moi2) todos os ritmos primários e gestos desenvolvidos em suas maneiras e hábitos pessoais, típicas figuras rítmicas villalobianas – o temperamento e gestos rítmicos (ou não) característicos de Villa-Lobos; Soi2) gêneros, tópicas, etc., gesto como tópicas e; Soi1) o gesto ou o impulso rítmico sublimado, elevado e transfigurado em um princípio estético61, por exemplo, o ritmo como um dos elementos da estética villalobiana. Em algumas obras de Villa-Lobos, como os Choros e algumas de suas danças, nós podemos encontrar o uso da música folclórica de modo mais estilizado, uma espécie de releitura (ou seja, uma transição do folclórico e a música erudita). Esta estilização, em algum sentido, pode estar representada em todas as dimensões da SE. Porém, dentro de uma visão mais estrita, essa passagem do “figurativo” para o “concreto” pode estar na transição do M1 para o S1 sem passar pelos M2 e S2. Mas admitindo que sempre há traços do Soi no Moi, essa transformação, de alguma maneira, traz traços ou aspectos do M2 e S2. Um exemplo disso é que no S2 temos representado a experiência rítmica social de Villa-Lobos, neste caso, nas danças brasileiras. O que isso representa então em Villa-Lobos? Sabemos que ele foi um compositor de singular expressão, com personalidade ímpar e forte. Assim, o Moi se destaca nas mais 60

Values are transcendental but become signs via the activities of the subject. Com relação e este “principio estético” iremos explicar melhor e abordar no decorrer do texto. Pretendemos fazer um link com base em algumas abordagens a serem desenvolvidas mais adiante.

61

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diversas formas de expressão. Segundo Tarasti, é possível reconhecer o Ich-Ton de VillaLobos nos diversos períodos estilísticos de sua vida, adaptando o Soi da música brasileira às exigências de uma música dominante europeia, especialmente o impressionismo francês (TARASTI, 2012c). Dentro deste Soi francês já ecoava a voz do seu autêntico Moi, retratado por diferentes texturas e representações; como a de uma floresta tropical. Isso demonstra uma conexão do seu fluxo musical com as ideias e estratégias composicionais. Não podemos também deixar de fazer referência à floresta no contexto villalobiano. Villa-Lobos sempre foi uma figura muito controversa e costumava contar e criar diversas histórias de possíveis aventuras. Neste contexto, entendemos que a sua visão de floresta e do índio podem vir a ser representações de suas ideias e expectativas no seu discurso musical. Entretanto, o músico e pesquisador Eduardo Dias62 em suas pesquisas, aponta evidências reais da estadia de Villa-Lobos na Amazônia em diferentes períodos entre 1911 e 1913, quando ainda anônimo no meio musical, acompanhou pequenas companhias de óperas, como a companhia portuguesa de Luís Moreira. Isso traz fortes evidências de que a relação de VillaLobos com esta região vai além dos seus relatos espetaculares. É possível sim que VillaLobos nunca tenha pisado em solo selvagem, porém há de se convir que a possibilidade dele ter tido contato com índios naquela época realmente exista. Não estamos afirmando com isso que Villa-Lobos não tenha usado uma forma estilizada (ou não) de representação do índio, mas sua visão e empenho em representar estes importantes componentes (o índio e a floresta) no seu discurso, de maneira a utilizar elementos presentes no imaginário coletivo juntamente com suas ideias musicais, nos parece ter sido uma estratégia bem sucedida. Villa-Lobos esteve em diferentes lugares do Brasil e do mundo. Seus períodos na França lhe submeteram a um diferente Soi, que aliado a seu Moi, já um tanto definido, retratou a ligação de um Soi modernista europeu a seu Moi. Para Villa-Lobos, mais que “aprender” com essa experiência, o importante era divulgar “Moi”. Seus trabalhos e convivência com a Semana de Arte Moderna de 1922 (este Soi já exige uma linguagem musical adaptada a tais exigências) lhe possibilitaram ampliar seu lado subversivo, um tanto irônico, e até mesmo surreal, o que fundamenta de alguma maneira seu principal Moi, muitas vezes chamado de primitivo (sua energia cinética), porém, parte de sua personalidade. Essa fusão de diferentes Sois (parisienses, brasileiros...) aliado a seu Moi, refletiu no seu processo composicional de alguma maneira. Podemos dizer que seu “compor modernista” 62

Pesquisa com data de dezembro de 2013. Porém, nos parece que até o presente momento a pesquisa continua em andamento, mas pode ser consultada via relato do próprio pesquisador em https://youtu.be/SwmXZoqBb2Y.

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adicionado ao Soi nacionalista brasileiro do governo Vargas desenhou parte do seu Moi, não somente no sentido de negação, rude, mas também na saudade dos trópicos, das florestas, na melancolia da sensibilidade brasileira que figura em algumas de suas Bachianas e na Floresta do Amazonas, por exemplo. Villa-Lobos também teve contato com chorões da noite boêmia do Rio de Janeiro. Isso é um importante fator a ser considerado, assim como o folclore, já abordado. Considerando que o processo de apropriação em Villa-Lobos está além do simples uso de melodias e citações, o Soi da música popular brasileira adquire um caminho próprio. Este processo de apropriação permite ao seu Moi primário se expressar, tornando evidente uma identidade musical. Fica claro assim sua libertação de uma estética mais dura, mais firme, no que diz respeito aos estilos mais conservadores. Em Choros, por exemplo, apesar do nome, não há uma conexão estrita com o choro popular em meio erudito, mas era o seu compor ideológico com base num Brasil popular, ou até mesmo antigo no sentido nostálgico da palavra. Isso representa um retorno ao Brasil de outrora impregnado de sensualidade e saudosismo, refletindo nos seus coloridos orquestrais e escolhas composicionais. Assim, em seu processo de apropriação, o Soi popular/folclórico toma parte do seu Moi; sua identidade musical. Apesar do Soi em algumas de suas obras não estar estritamente ligado às regras ou técnicas de determinado estilo, isso toma parte de sua estética, abrindo uma possibilidade de caminhos para o então modernismo brasileiro. Essas “novas” possibilidades de romper com idealismos e ideologias incrementam seu imaginário que, com as influências de algumas danças, fundamentarão um Moi mais corpóreo, mais cinético em relação às técnicas formais até então usadas. Essa releitura de estilos e técnicas transpassa pela nostalgia, melancolia e a saudade. Seguindo os passos de Tarasti, podemos dizer que o estilo e música de Bach em VillaLobos se manifestam com um “transcendentalismo” musical, como um processo pelo qual Villa-Lobos expressa-se (Moi) dentro de um aparente estilo pré-definido (Soi). Se tivermos em mente o principal movimento do Z-Model – desenvolvimento do corpóreo a uma consciência, uma personalidade mais estável –, assim que o Moi encontra o Soi (em seu mundo social), valores e ideias, mesmo que abstratos, emergem no intuito de se concretizarem no sentido prático. Para isso, o movimento pode se dar no sentido Moi-Soi ou Soi-Moi. Considerando que as extremidades do quadrado semiótico são formadas pelo que o Tarasti chama de pré-signos circundado pela semiose, para que estes se concretizem em signos atuantes, é necessário passar pela transcendência. A evolução do corpóreo em se tornar um signo para si, e o impacto de um ego mais estável, estão diretamente ligado aos valores

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transcendentais que permitem, em termos de actualização, que este se torne um signo para os outros. Para resumir isso, podemos imaginar um gesto musical baseado no Moi, o que pode ser um efeito ou técnica estilística em contraponto com o gênero, por exemplo, não obstando adaptações pelo Moi do compositor. Tarasti aponta para um importante ponto sobre o processo de transição do M1 para M2 e para S1 feito por Mario de Andrade em Ensaio sobre a música brasileira, quando o autor apresenta a ideia de que um brasileiro não tem caráter especifico. Essa leitura da identidade brasileira não se refere ao lado moral ou intelectual, mas a uma individualidade psíquica manifestada através do vestuário, língua, emoções, história, etc. Isso talvez por não haver um personagem especifico relativo ao brasileiro, uma consciência tradicional, graças à miscigenação presente em nós como nação e sociedade. Outro importante ponto pode ser visto quando Tarasti afirma que Graça Aranha havia estudado por outro viés os aspectos do Moi/Soi brasileiro. Neste sentido, Aranha já havia atentado para a expressão e encantamento pelo “fabuloso espírito tropical” por parte de VillaLobos. Portanto, o espírito transgressor de negação de Villa-Lobos está na sensualidade, nostalgia e saudade, onde o Soi em sua totalidade é determinante da sensibilidade brasileira63.

3.4.4

Representação e saudade No processo de apropriação, tratado a partir do campo da significação e metáfora, os

valores representativos (lendas, mitos, etc.) e estruturas imagéticas convergem para a interseção entre composição e experiência cultural. Ao mesmo tempo, isso representa um desafio na imersão cultural; por exemplo, uma experiência de memória. Neste sentido, a metáfora é um elemento presente e relevante em nossas memórias. “A memória é sempre uma reinvenção da experiência” (JARRA, 2013, p. 61). Voltando a Foucault mais uma vez, ele afirma que a “representação governa o modo de ser da linguagem, indivíduos, natureza e de suas necessidades. A análise da representação, por sua vez, tem um valor determinante para todos os domínios empíricos”64 (Foucault, 2005, p. 208). Considerando que a música pode ser um meio para representação, os valores representativos são incorporados na ideologia, atitudes ou nas relações de poder exteriores à 63

O próprio Tarasti estabelece, com base nos estudos de Lévi-Strauss, que essa tristeza dos trópicos, essa nostalgia característica do povo ibero brasileiro, pode ser, neste contexto, vista como sensibilidade brasileira. 64 Representation governs the mode of being of language, individuals, nature, and need itself. The analysis of representation therefore has a determining value for all the empirical domains.

77

música (SULKUNEN e TORRONEN, 1997). Portanto, no domínio da representação (seja ela social, cultural, linguística, emocional, etc.), a saudade pode ser vista como metáfora (memória) na música. De qualquer maneira, a representação simbólica na música como expressão, memória e imagem, está baseada no imaginário cultural, seguindo o processo de apropriação como processo de reinvenção fundamentado na imersão cultural. Estes processos estão alicerçados nas estruturas imagéticas (esquemas), os quais “organizam nossas representações mentais a um nível mais geral e abstrato”65 (SASLAW, 1996, p. 218). Portanto, a imersão cultural é uma espécie de desafio antropofágico, no sentido de “transcrição” de meios, apoiada na apropriação. Isso de alguma maneira representa a negação/afirmação de um modo geral; civilizado vs. selvagem, por exemplo. A apropriação neste sentido se apresenta como valores representativos, lendas, mitos, imagens, imagética, paisagens, e assim por diante. Já na música esses valores passam pelo processo de reconstrução de conceitos e atitudes filosóficas, transpassando o desenho dramático, orquestração, gestual, processo composicional, etc. Snyder (2000), em sua abordagem relacionada ao movimento com base no campo das metáforas, diz que os esquemas imagéticos servem como uma espécie de ponte entre experiência e articulação. É neste transito entre articulação e experiência que a transcendência e memória podem ser articuladas na saudade. Essas conexões, com base na experiência, neste caso cultural, nos permite, segundo Snyder, entender a música e seu fazer. Assim, segundo Snyder, os esquemas imagéticos podem ser usados tanto representativamente como metaforicamente para expressar (outras) ideias, tanto literais como abstratas. Isso pode, dentro do campo da saudade/memória, ser articulado como signo ou elemento causador no processo composicional. Em outras palavras, os esquemas imagéticos articulados na saudade podem fomentar conexões articuladas e/ou expressivas no processo criativo. Posto isto, a ausência (o que está somente presente em nossa memória) por sua vez, pode, metaforicamente, estar articulada na saudade. É neste sentido que entendemos que a metáfora atuante na ausência pode dinamicamente estar conectada à saudade, não somente influindo como lembrança (memória), mas principalmente no processo imaginativo/criativo. Assim, a saudade, no campo da representação, é um elemento essencial na construção do discurso, como por exemplo, a imagem da nação como representação e identidade de diferentes maneiras.

65

Organize our mental representations at a level more general and abstract.

78

Ao considerarmos, neste amplo contexto, as modalidades de Greimas, um dos mais importantes caminhos pelos quais a música “significa”, são bastante apropriadas “para descrever realidades musicais”66 (TARASTI, 2010, p. 73). Um ponto importante é o seu aspecto dinâmico; conceito processual (TARASTI, 2010). Portanto, no processo composicional, a presença das modalidades pode ser bastante relevante para o entendimento das representações simbólicas. Ou seja, este pode ser um caminho relevante no intuito de retratar o pensamento composicional de diferentes maneiras. No que diz respeito às modalidades retratarem o que acontece no Dasein, pretendemos aplicar a saudade ao movimento da transcendência (ver Figura 2). A negação, primeiro ato na transcendência, pode ser relacionada à articulação dos aspectos “negativos” da saudade; tristeza, dor, etc. Da mesma maneira, a afirmação, segundo ato da transcendência, está relacionada aos aspectos “positivos”; o prazer da doce lembrança, o saudosismo benevolente, etc. Levando em consideração que “o transcendente é algo que na realidade está ausente, mas presente em nossas mentes”67 (TARASTI, 2015, p. 06), a saudade como objeto articulado na memória (ausente), neste caso, reside na transcendência. Essa ideia de movimento e articulação da saudade, mesmo que representativamente ou simbolicamente, pode ser retratada no gestual da música, ou como signo representativo no gestual dentro do processo composicional. Neste sentido, o gesto se apresenta nos aspectos verticais e horizontais da música; textura, orquestração, aspectos harmônicos, melodias e assim por diante. Assim, o movimento gestual pode ser um viés a considerar a saudade no movimento

da

transcendência.

Isso

pode

transmitir

uma

poderosa

carga

de

significação/representação ao gesto, assim como criar um “ambiente virtual” (paisagem) como parte relevante ao discurso musical. A saudade como um elemento na construção de uma atitude está presente na transcendência. Ou seja, este é um universo que nos rodeia, não fisicamente, mas presente em nossas mentes. Essa ideia de movimento (negação-afirmação) pode ser retratada na atitude gestual do compositor, ampliando nosso “armazém” de ferramentas necessárias para entender as atitudes ideológico-composicionais, bem como o processo de experiência cultural. Como mencionado anteriormente, Graça Aranha já havia demonstrado que o Soi/Moi brasileiro em Villa-Lobos já se apresentava com o “encantamento e expressão sincera do ‘nosso espírito

66 67

To describe musical realities. The transcendent is anything that is absent in actuality, but present in our minds.

79

neste mundo tropical fabuloso’ – que para ela sempre foi caracterizado por uma certa tristeza”68 (TARASTI 2012c, p. 62, grifo do autor). Podemos então dizer que, ao ouvirmos Villa-Lobos em algumas de suas obras (em especial algumas de suas danças), é possível notar que não estamos longe dos trópicos e tampouco de seus mitos, assim como da representação nas suas mais diversas obras, da grandiosidade e exuberância do Brasil transformadas em elementos musicais.

3.4.5

Lugares da Saudade Retomando a discussão no entorno da territorialização da saudade (3.1.3), o dinamismo

presente nas relações dos múltiplos lugares da saudade e a superposição e entrelaçamento com a SE são essenciais para demarcarmos limites e ampliarmos a abordagem sobre esta problemática. Como o objetivo de relacionar as atitudes (anteriormente vistas) que se conectam à emoção da saudade (ou lugares), temos: Lugar de Intenção – Ímpeto; Lugar de Expressão/Identidade – Pertencimento; Lugar de Fala – Estímulo; Lugar de Fenômeno – Fenômeno. Em superposição aos demais pontos abordados pela lente da SE chegamos ao seguinte resultado (Figura 7): Figura 7 – Z-model

Como atitudes que se conectam à emoção da saudade, o ímpeto, como intenção, está presente no campo do fazer, do processo criativo e do que poderia ser a composição. Neste sentido, o querer (como desejo) se aplica ao desejo de Villa-Lobos em recompor o Brasil sonoro e seus aspectos; a floresta, por exemplo. Desta maneira, o imaginário sonoro como 68

L'enchantement et expression sincère de «notre esprit dans ce fabuleux monde tropical» - qui pour lui a toujours été caractérisé par une certaine tristesse.

80

componente criativo atua como representação da intenção ou das intenções. Este ímpeto discursivo é fundamental para delinearmos o processo de construção da identidade de VillaLobos. Neste espaço do fazer, dos motivos/realizações: o reconhecimento de que composição implica em criação de mundos. Heidegger (1977) diz algo bastante esclarecedor sobre o assunto: ‘ser obra quer dizer: instalar um mundo’. E lembra que mundo não é a simples reunião das coisas existentes, contáveis ou incontáveis. ‘O mundo mundifica: é o inobjetal a que estamos submetidos’ como trajetória humana (LIMA, 2012, p. 26, tradução do autor).

A saudade como ser causa de (o desejo de criar/instalar um mundo) passa pelo campo do existir na concretização de realidades. Ou seja, o desejo de Villa-Lobos em (re)compor um Brasil acaba por ser uma atitude representativa de saudade como intenção da construção de suas realidades sonoras. Estas paisagens em Villa-Lobos são extremamente representativas, mas muito pouco (ou nada) simbólicas no sentido de que o processo de apropriação em VillaLobos se dá de maneira a concretizar essas realidades através de uma atitude (neste caso, de ímpeto criativo, tanto no sentido criacionista, de realizar, como no campo da criatividade). É o Moi se expressando através do Soi. Seguindo, temos o pertencimento, lugar de expressão. Neste campo de material, do uso e dos caminhos composicionais, a composição é vista como algo nosso, algo que vivemos, nos tornamos. “O compor como construção de pertencimento” (LIMA, 2012, p. 26) e viceversa, evoca uma relação de sujeito e objeto, o que significa que o pertencimento é a razão composicional. Esse pertencer fundamentado pelo saudosismo, num contexto identitário, favorece a geração de narrativas com base na aproximação do local/cultural. Esta atitude é fundamental na construção de territórios, que ativada pela saudade, permite o cruzamento do intra com o extra musical como estratégia para a materialização de realidades externas fomentadas pelo sentimento da saudade. A saudade é algo pertencente à nossa experiência de vida, de nós como ser; é a consciência de uma realidade a ser “materializada” (o campo dos “como”). Porém, a dialética no “pertencer” provém da vontade mediadora do eu e do que é meu. Isso está fortemente presente na preocupação (atitude) de Villa-Lobos em expressar a realidade de seu povo como construção de pertencimento. O estímulo – lugar de fala – é a busca pelo saber consciente, que pode estar relacionado com a emoção da saudade. São essas práticas sociais e culturais que passam pelo crivo da experiência cultural; é a busca pelo saber intencional e consciente, narrativas expressão, o que serve de estímulo para o compositor, passando pela apropriação como espaço para mediação

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cultural. São os locais, os aspectos extramusicais, a representação de pontos/retratos. É o estímulo estético ecoando nas abstrações pictóricas das lembranças da saudade. Esta atitude representativa pode transparecer nas tópicas, por exemplo, ou na construção de camadas texturais que favorecem a compleição do dançável como uma atitude positiva, considerando o complexo teórico da saudade. O fenômeno como lugar de existência (na sua totalidade), de permanência, se apresenta como lugar que nos constituiu e constitui como cultura. No fenômeno, como o complexo da saudade, o querer é um querer ainda não consciente. A saudade é um traço inopinadamente nosso, que pertence à nossa experiência de vida (poder), passando pelo crivo da experiência cultural (saber), e que será transformada em um símbolo final: o produto artístico (dever). É exatamente considerando os elementos singulares à cultura brasileira, principalmente como modalidade de lidar com a experiência de temporalidade, que o fenômeno da saudade adquire um movimento dinâmico. É essa consciência reflexiva do tempo e a relação do indivíduo com o outro que promovem este dinamismo. Nesta dimensão temporal, onde a presença de imagens (imaginário) está presente, podemos distinguir alguns significados representativos na relação entre a música e a saudade. Este talvez seja o caminho para o lugar onde se dá a sobrevivência (e/ou preservação) de certas imagens/mitos. Isso, sem dúvida, evita a circunscrição da ideia de uma saudade unicamente universal e fixa. O movimento do Dasein na transcendência – negação e afirmação – pode estar ligado ao complexo/fenômeno da saudade, onde a transcendência é algo ausente, mas presente em nossas mentes (ou memórias). A saudade, como signo, reside na transcendência como ausência. Isso pode conceder um poder significativo/representativo ainda mais expressivo à saudade e suas ferramentas (gesto, por exemplo) na criação de um ambiente virtual como parte relevante do discurso musical. Se retomarmos a definição de Ich-Ton, esta proposta de retornar o seu uso no contexto musical parte de Tarasti como uma forma de identificar características de um determinado compositor ou obra. “Neste novo quadro da semiótica existencial e suas noções fundamentais do Dasein e transcendência, damos uma interpretação kantiana, de modo que o Ich-Ton aparece através das categorias kantianas do sujeito (ator)-tempo-espaço sempre que uma ideia é filtrada no Dasein”69 (TARASTI, 2015, p. 15-16). Então, levando em conta a pertinência desta abordagem relacionada com a territorialidade da saudade e seus lugares, se pensarmos 69

In this new framework of existential semiotics, and its fundamental notions of Dasein and transcendence, we give it a Kantian interpretation, such that the Ich-Ton appears through Kantian categories of subject (actor)-timespace, whenever some transcendental idea is filtered into Dasein.

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nestes pontos aplicados ao output de Villa-Lobos, ou melhor, conectando estes com esta teoria, temos os filtros necessários para serem aplicados ao output de Villa-Lobos. Isso serve como uma espécie de dispositivo que filtra determinados elementos e aspectos dos processos villalobianos, no intuito de evidenciar estas atitudes em demonstração destes processos composicionais que sustentam sua música. Nos termos do princípio do Ich-Ton de Uexküll, que determina a identidade e individualidade de um organismo, podemos distinguir nele dois aspectos: Moi e Soi. No ‘eu’ o sujeito aparece como tal, como um conjunto de sensações; no ‘em-si (ego)’ o sujeito aparece como observado do outros, como socialmente determinado. Estes constituem os aspectos existenciais e sociais do sujeito, ou melhor, seus lados individuais e comunais 70 (TARASTI, 2015, p. 24).

Esta visão aponta, ao mesmo tempo, para as categorias do ser a partir de novos aspectos providos por Kant e Hegel. Isso é importante quando abordamos os aspectos filosóficos existentes na SE ao tratarmos a transformação do ser-em-e-para-si em ser-em-e-para-mim. Este modelo determina que o princípio do Ich-Ton sirva de filtro entre o Dasein musical e a sua transcendência. Ou seja, signos (tanto os eixo-signos que rodeiam como os que fazem parte do armazém de entonações) que transitam na transcendência (aqui como paisagem musical, ambiente cultural musical) e que são aceitos através do Ich-Ton, permitem sua entrada no organismo musical. Isso nos permite uma dimensão dinâmica mais processual no entendimento dos processos (neste caso, composicionais) através das atitudes da (e interseccionada pela) emoção da saudade. Em resumo, estes quatro conglomerados existentes nas extremidades do Z-model formam camadas processuais capazes de atuarem como filtros, e que ajudarão na demonstração dos nossos objetivos através de uma análise baseada neste arcabouço teórico.

70

In terms of Uexküll’s principle of Ich-Ton, which determines the identity and individuality of an organism, we can distinguish in it two aspects: Moi and Soi. In “me” the subject appears as such, as a bundle of sensations; in the “self” the subject appears as observed by others, as socially determined. These constitute the existential and social aspects of the subject, or rather, its individual and communal sides.

4

MODALIDADES NAS DANÇAS: ATITUDES E PROCESSOS As danças são um componente essencial da cultura e do folclore brasileiro. As

influências africana, indígena e europeia levam a adoção das danças por parte de diversos compositores como fonte material na construção da música brasileira, neste caso, de concerto. Tanto os movimentos como as expressões das danças inspiraram muitos compositores por diferentes caminhos. O gesto, atuando como signo na ação corporal, foi uma fonte abundante de material composicional. A gestualização afro-brasileira, bastante presente no folclore, provavelmente foi um dos aspectos mais explorados. O uso de elementos folclóricos na música tem sido apontado como um dos principais fatores da música nacionalista brasileira. Da mesma maneira, o uso do gesto nesta música fomenta o simbolismo e a narrativa musical. Todo processo analítico caminha no sentido de examinar e muitas vezes esmiuçar determinado objeto a ser analisado. Posto isso, devemos atentar que o pensar a música é uma maneira de evocá-la à memória; tanto trazer à superfície como aprofundar-se em determinados detalhes e dimensões características à música. Neste sentido, o processo de “de-composição” de uma obra se justifica pelo “de-compor” para “re-compor”, ou seja, é o “desmontar para montar” (FERRAZ, 2014, p. 191). Isso amplia o leque de possibilidades e experimentações, especialmente se tratando de Villa-Lobos e suas danças. Assim, entendemos que aplicando a Villa-Lobos, este processo considera que “a noção de identidade perseguida por Villa-Lobos não seria uma essência a ser descoberta, mas a construção de um sentido” (SOUZA, 2010, p. 196). Ou seja, a desconstrução no sentido de (re)construir um sentido. Como base no quadro teórico exposto, devemos considerar que no processo analítico, como apontado por Ferraz (2014), as “ferramentas nascem de problemas que a própria música propõe a quem escuta. E vale lembrar que uma música suscita problemas diferentes para diferentes ouvintes. E que uma música suscita problemas diferentes para um mesmo ouvinte em momentos diferentes” (FERRAZ, 2014, p. 191). É neste universo que entendemos que as danças brasileiras, no período conhecido como nacionalista, corroboram na busca pela “alma brasileira”. As danças são significativas na construção, desenvolvimento, e na formação musical brasileira. Devido à dimensão de algumas obras, iremos nos deter nos recortes baseados na identificação dos pontos propostos em cada tópico. Sabemos que a obra de Villa-Lobos muitas vezes exige uma visão mais macro como um todo, mas pretendemos apontar pontos

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específicos no todo de cada obra. Mostraremos a seguir uma visão particionada como uma espécie de refinamento de atitudes e processo.

4.1

REPERTÓRIO ABORDADO O repertório a ser abordado nesta pesquisa abrange as principais danças e movimento

com nome de danças, em ambiente orquestral durante praticamente todas as fases da vida musical de Villa-Lobos. Desde as Danças Características Africanas até A Floresta do Amazonas, passando pelas Bachianas. No todo temos as seguintes obras: Danças Características Africanas (1914-1916); Amazonas (1917) – Dança ao Encantamento da Floresta e A Dança Sensual da Jovem Índia; Dança Frenética (1919); Dança dos Mosquitos (1922); Bachianas No. 2 (1930) – Dança (Lembrança do Sertão); Bachianas No. 4 (1930) – Dança (Miudinho); Floresta do Amazonas (1958) – Dança dos Índios, Dança da Natureza e Dança Guerreira. As Danças Características Africanas71 foram compostas entre os anos de 1914 e 1916, em três movimentos (Farrapós, Kankukus e Kankikis). De acordo com o próprio Villa-Lobos, o material usado nesta obra foi colhido por ele junto a uma comunidade que vivia, na época, no estado de Mato Grosso72, formada pelos descendentes de índios e de escravos africanos – os Karipunas. Inicialmente ela foi composta para piano e fez parte do repertório da Semana de Arte Moderna de 1922, mas executada em versão para octeto. As Danças Características Africanas são umas das primeiras obras de Villa-Lobos a terem uma voz ativa, própria, fortemente caracterizada pelo hibridismo. Ao mesmo tempo em que se alicerça numa rítmica sincopada, sua expressão com base impressionismo francês é notada nas suspensões tonais. Essa gramática, como aponta José Miguel Wisnik (1983), está baseada na dualidade deste léxico. Mas neste caso, direcionaremos para a dualidade Moi/Soi, onde em alguns momentos essa disputa de força se mostra como parte das características composicionais aqui almejadas. O poema sinfônico Amazonas, oficialmente datado de 1917, foi composto baseado num conto indígena de seu pai, Raul Villa-Lobos. Nesta obra, Villa-Lobos consegue um alto grau

71

Inicialmente está obra foi intitulada por Villa-Lobos de Danças Indígenas, mais tarde modificando para Danças Características Africanas. 72 Os Karipunas, atualmente estabelecidos no estado de Rondônia, segundo dados da Funai, vivam no estado de Mato Grosso, considerando que à época de Villa-Lobos o estado de Rondônia ainda não existia.

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de representatividade sonora deste conto. As ilustrações e imagens produzidas através de sua narrativa são bastante eloquentes. Apesar de não ter nenhuma melodia estritamente folclórica, Amazonas, que também apresenta traços do impressionismo francês de Debussy, está construída sob a temática nacional voltada para o índio. Inspirada neste conto de caráter mítico, a obra consegue mediar um Moi primário villalobiano com um Soi modernista, o que não furta a possibilidade de momentos de elasticidade polifônica com graus de nostalgia e extrema beleza. “O poema é todo ele uma gênese musical” (ANDRADE, 2013, loc. 24/35). Assim, segundo Piedade (1987), os elementos naturais atuam como mensagens arquetípicas a favor da mítica e da imagética da Índia Amazonas neste habitat mítico produzindo por Villa-Lobos. No libreto (programa) de autoria de Raul Villa-Lobos consta o seguinte texto: Uma linda virgem e moça consagrada pelos Deuses das florestas amazônicas, costumava saudar a aurora, banhando-se nas águas do Amazonas, o rio marajoara, o qual às vezes ainda mostrava os efeitos de sua cólera contra as filhas da Atlântica, mas que em homenagem a beleza delas, de vez em quando também, acalmava as ondas de sua própria corrente eterna. A moça selvagem diverte-se alegremente, ora invocando o sol com gestos rituais, ora contornando o corpo divino em gestos graciosos para que seu corpo possa inteiramente ser contemplado pela luz do astro rei, ou se refletir na ondulante superfície do rio. E quanto mais vê sua sombra desenhar na tela dolente e fria aos traços de sua beleza, tal como ninguém a idealizara, mais ela se orgulha de si mesma, numa sensualidade brutal. Enquanto a virgem cisma, o Deus dos ventos tropicais a perfuma com seu sopro caricioso e amoroso, mas a moça, desprezando essas implorações de amor, dança entregando-se loucamente a seus prazeres como uma criança ingênua. Indignado de tanto desprezo, o ciumento Deus dos ventos, leva o perfume casto da filha dos marajós até as regiões profanas dos monstros. Uns desses monstros sente a moça, e na ansiedade de possuí-la, tudo destruindo ao passar, avança e sem ser percebido, aproxima-se da índia. Impulsionado pela força dos instintos, que a natureza depositou nos seres vivos, ele vai realizar o capricho incontrastável do imã invisível. A pequena distância da virgem, o monstro para de caminhar e principia rastejando. Já de perto ele contempla a moça, extasiado e a deseja, sem ser percebido por ela, o monstro procura esconder-se, porém sua imagem é refletida pela luz do sol sobre a mancha cinzenta da sombra da índia, é então que vendo sua própria imagem transformada, cheia de terror e sem destino, a virgem consagrada, seguida pelo monstro, precipita-se no abismo do seu próprio desejo (PEREIRA, 2003, p. 117-118).

Dança Frenética, como o próprio nome sugere, apresenta uma essência viva e movimentada, não apenas representando uma dança em movimentos frenéticos, mas a dança (música) com seus aspectos frenéticos. Este peça foi alvo de algumas críticas duras por parte

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de Guanabarino, quando disse que “a música é para ser tocada por músicos epiléticos e ouvida por uma plateia de paranoicos”73 (APPLEBY, 2002, p. 27). Podemos imaginar o choque das primeiras apresentações, o que pôde coadjuvar para que esta peça, de clara narrativa e elementos arquétipos, ainda seja uma obra pouco revista ou revisitada. Por outro lado, Dança Frenética, que começa com um gesto rompante de aumento de densidade, dinâmica e ritmo, permanece num fluxo de continuidade, como se Villa-Lobos despejasse uma corrente frenética de eventos e situações musicais, não deixando de contemplar uma rica narrativa com elementos e personagens da cultura brasileira. A Dança dos Mosquitos apresenta um pouco do lado irônico de Villa-Lobos. Ao retratar com efeitos harmônicos e orquestrais o voo dos mosquitos, o compositor consegue uma representatividade narrativa em equilíbrio com o conflito Moi x Soi, demonstrando uma faceta que pode ser evidenciada como “impressionismo tropical” (SALLES, 2009, p. 86), assim como em Amazonas. Apesar da sugestão metafórica do título, esta obra representa mais do que a simples representação sonora do mosquito, permitindo a construção de territórios de escuta com ambientes complexos e sonoramente constituído de camadas, com base em técnicas orquestrais que dão suporte à representatividade da obra. As Bachianas Brasileira No. 2, 4 e 7 - Lembrança do Sertão, Miudinho e Giga (Quadrilha Caipira), são parte de uma serie de 9 suítes compostas para diversas formações instrumentais e vocais. De um modo geral, as Bachianas representam uma fusão entre a música folclórica/popular brasileira e a música de Bach. Lembrança do Sertão é uma peça com características de representatividade do sertanejo, com elementos musicais fortemente ligados à realidade agreste, do campo. Não faltam componentes populares e folclóricos, que apropriados por Villa-Lobos, transparecem através de uma música pujante e com alguns traços de nostalgia. Miudinho, por sua vez, bastante ritmada, com passagens virtuosísticas, faz uma alusão bastante animada à dança, de origem folclórica-popular, miudinho. Com seus staccatos e um fluxo rítmico intenso, não é difícil entendermos a intenção de Villa-Lobos com relação ao caráter representativo dessa peça. Com temática de influência popular, este quarto movimento da Bachiana No. 4 foi dedicado à amiga e pianista brasileira Antonietta Rudge. No segundo movimento da Bachiana No. 7, Giga (Quadrilha Caipira), há ao mesmo tempo uma referência à suíte barroca (Giga) e ao universo popular folclórico brasileiro

73

The music is to be performed by epileptic musicians, and heard by paranoid audiences.

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(quadrilha caipira). Villa-Lobos consegue demonstrar a força atrativa destas duas músicas (Bach e Caipira) na sua expressividade composicional. Floresta do Amazonas (1958) foi comissionada para ser a trilha do filme Green Mansions. Mesmo frustrado pelas mudanças e adaptações feitas, Villa-Lobos decidiu fazer suas próprias mudanças, o que resultou em uma obra de grandes proporções. Com base no mito e na natureza da Amazônia, esta obra alcança grandes proporções sonoras com uma atmosfera aparentemente inspirada na obra do escritor Henry W. Houston. Para tal feito, os recursos orquestrais são usados como evocação de sons da natureza; sons de pássaros, rios, ventos, etc. Esta obra, uma de suas últimas composições, representa sua maturidade, domínio da arte da orquestração e seus intrincados efeitos e recursos, bem como uma narrativa clara, de modo “despojado, criador, romântico, escrevendo o que lhe vinha à alma para retratar o Brasil, o seu amado Brasil” (DUARTE, 2010, p. 11). Portanto, entendemos que as danças representaram e ainda podem representar, mesmo em um contexto bastante diferente do período abordado, aspectos que evidenciam elementos capazes de reforçar o discurso e narrativa musical brasileira em sua diversidade. Construir o dançável pode ser, ainda hoje, uma possível abordagem no resgate de elementos culturais que avigorem, no nosso caso brasileiro, esse misturismo, por exemplo, presente na lógica (ilógica) brasileira. De certa forma, a dança é muito favorável à incorporação do folclore na música de concerto. Neste sentido, devemos levar em conta o gestual das danças, as representações desta no contexto sociocultural, bem como os vários elementos musicais presente nos diversos rituais que abrangem a dança em si; religioso, divertimento, etc. Talvez esta tenha sido uma das mais importantes abordagens no intuito de trazer para a música elementos culturais locais. Também representa uma forma de inserir o indivíduo como parte presente da cultura. Seria uma forma de representação desses indivíduos na música, mesmo que simbolicamente. Foram muitas as danças - coco, jongo, lundu, maracatú, samba, dentre tantas outras – e suas possibilidades de transfigurações em músicas de concerto. Portanto, levando em conta aspectos signatários presentes na música de concerto brasileira, há de se considerar aspectos do sentimento, ação e pensamento, como proposto por Martinez (2006). Talvez este seja um dos caminhos para as questões a respeito da identificação de uma obra como brasileira. As danças como signos gestuais afro-indígena-europeu, seus instrumentos, ritmos, movimentos, bem como nas dinamogenias musicais, podem ser significativas para o resgate de músicas ancestrais. É esse pensar memorável que coloca a dança como importante

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elemento de identidade cultural dentro de uma pluralidade; corpo e ancestralidade, música, ritmo e folclore. Assim, as danças assumem importância significativa também “enquanto manifestações de arte, memória, criação e principalmente como foco de identidade brasileira” (FOGANHOLI, 2012, p. 90). Podemos então inferir que as danças no contexto brasileiro “podiam representar uma espécie de Moi, um estilo de corpo às regras estritas da música erudita lecionada (...), mesmo que o Moi estivesse transformado em Soi em seu (de VillaLobos) estilo”74 (TARASTI, 2012c, p. 55). A essa vivência de Villa-Lobos com a natureza, as diversas realidades e personalidades neste imenso país que é o Brasil, assim como suas experiência no exterior, podemos atribuir: uma imensa saudade-nostalgia no tempo de origem. Na peregrinação brasileira foi ela, a saudade, o mais agudo e o mais grave sentimento: Imagem do Ausente. A Imagem surgiu no sonhador e fugiu através do sonho. O drama do coração sofre uma coisa que poderia ter sido e não foi. Todavia a ausência é a garantia da Imagem primeira. O Sentimento de Saudade torna-se uma Imagem deformada e recriada em outra Imagem. O sentimento é aí uma força vivaz do interior da Matéria de base (PIEDADE, 1987, p. 124).

Além da imagem (como já foi demonstrado) da saudade como perda, o ausente do ser presente deve ser considerado, especialmente se tratando de Villa-Lobos. Ele, sem dúvida, invadido por este sentimento, construiu um grande número de obras, onde como compositor experimentou “uma comunicação de imagens sonoras (...), um produto da imaginação que encontrou através do sentimento, o poder, a força imaginante” (Ibid., p. 124-125).

4.2

QUERER: VILLA-LOBOS E O BRASIL SONORO Neste lugar de intenção, o querer, associado ao “compor o que” e “ímpeto” (ver Z-

Model Figura 7, p. 79), se adicionarmos a abordagem antropológica de Durand75, teremos a saudade como isso e aquilo. Ou seja, considerando o dualismo modernista, tratando-se do desejo, do querer, que também pode assumir o não querer, onde isso e aquilo dá lugar (em Villa-Lobos) ao Moi se expressar através do Soi – recompor o Brasil (sonoro) como o desejo

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Pouvaient représenter une espèce de 'Moi', un style plus corporel que les règles sévères de la musique érudite enseignée (...), même ce Moi fut transformé en Soi dans son style. 75 Regime diurno - a antítese, isto ou aquilo - e noturno - a junção, isto e aquilo.

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de desenvolver uma linguagem própria, assim como desenhar um Brasil pelas suas lentes com base numa estética, é bastante pertinente. Também podemos apontar para o dualismo presente neste período, onde o modernismo se preocupava em não consentir um sentimentalismo exacerbado, ao mesmo tempo em que procurava abstrair a falta de vida e do sentimento. Essa aparente ilógica de isso e aquilo pode ser retratada na dualidade harmônica-ritmo das Danças Características Africanas, por exemplo, bem como na já apontada dualidade Moi/Soi. Arminda Villa-Lobos afirma que “ele (Villa-Lobos) estava interessado em mostrar o Brasil sonoro através da música dele” (2004, s.p.). Da mesma forma, ela coloca que “se a gente olhar mesmo para a obra inicial dele, já há um retrato do Brasil ali” (Ibid.). Essa construção de um retrato do Brasil com base na sua história, sua experiência, seu desejo, que perpassa pela sensibilidade brasileira, nos possibilita evidenciar a atitude de recompor um Brasil sonoro e seus diversos elementos. Isso fica evidente quando ele diz: “escrevo música obedecendo a um imperioso mandato interior. E escrevo música brasileira porque me sinto possuído pela vida do Brasil, seus cantos, seus filhos e seus sonhos, suas esperanças, e suas realizações” (NEVES apud VILLA-LOBOS, 1977, p. 15, grifo nosso). Ficam evidentes alguns elementos que ressaltam o ímpeto de Villa-Lobos em retratar o Brasil em sua ampla diversidade, abarcando sentimentos, realidades, emoções, culturas, e assim por diante. Considerando a saudade como um sentimento/emoção pertencente à essência brasileira, o ímpeto intencionado por este sentimento se faz presente nos elementos constitutivos desse desejo villalobiano. Ao construir suas realidades musicais, Villa-Lobos está exacerbando sua paixão e sentimentalidade por esta pátria. “Se ela (a sua obra) é em grande quantidade, é fruto de uma terra extensa, generosa e quente” (NEVES apud VILLALOBOS, 1977, p. 15), afirma Villa-Lobos. Se atentarmos para este primeiro exemplo, podemos notar o uso da escala de tons inteiros em contrapartida a um ritmo constante, obstinado e sedutor em vários momentos de Danças Características Africanas. Ao mesmo tempo em que funciona como dualidade entre Soi e Moi – postergar resoluções harmônicas, tirando a atenção do ritmo –, isso é um exemplo da personalidade musical de Villa-Lobos em trazer elementos representativos para sua música no intuito de desenvolver uma linguagem característica que se apresenta como uma negação clara em conjunção com a expectativa de continuidade, forçando uma nova sonoridade harmônica – a expressão do seu Moi através do Soi.

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Exemplo 1: Danças Características Africanas 1.Mov. Comp. 75-78 (redução).

Dentro de uma espacialidade com tendências atonais e traços de modernismo, agregado a uma linguagem com fins de retratar um determinado aspecto cultural, neste caso as danças de uma comunidade Karipuna, este gesto em três planos aparentes demonstra além de uma quebra de expectativa tonal, um equilíbrio entre as forças do Soi e Moi. Neste contexto, é possível notar aspectos de comunalidade e de indicialidade relacionada a uma realidade existente no Brasil. Ao mesmo tempo, este gesto aponta para outros momentos de igual valoração, trazendo esta rede de conexões narrativas através da interoceptividade. No exemplo a seguir (Exemplo 2) podemos notar ainda a continuidade deste gesto de direcionalidade e comunicabilidade, a transgressão característica dessa dualidade, a intenção de trazer elementos para a construção do dançável como simbolismo e a representação de um ambiente local (neste caso o elemento africano como constituinte de uma realidade brasileira). Ao mesmo tempo, essa quebra de fluxo no compasso 104 dá um equilíbrio ao conflito de forças internas contribuindo para um gesto comunicativo-narrativo, destacando a coerência processual no campo das escolhas de Villa-Lobos. Já o ostinato obstinado pode ser considerado como representação do compasso de dança, e este ritmo vigoroso, como apontado por Mariz (1989), expressa eficientemente a nostalgia e inquietude deste povo afrobrasileiro.

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Exemplo 2: Danças Características Africanas 1.Mov. Comp. 102-105 (redução).

Essas interrupções de fluxo, presente em todos os três movimentos, por sua vez, são elementos de uma alteração discursiva. Esta construção de uma narrativa evidenciando uma sensibilidade brasileira, considerando os elementos constitutivos deste misturismo brasileiro, destaca um gesto de camadas superpostas, favorecendo o entendimento de um processo baseado numa construção textural de “colorido timbrístico, numa harmonia de atritos que decorre também de uma necessidade mais colorística que propriamente harmônica” (WISNIK, 1983, p. 142). Isso retrata simultaneamente a sensibilidade brasileira e do modernismo no sentido representativo. Assim, os atores sociais adquirem corporeidade no discurso villalobiano como elementos constitutivos da trama em benefício de uma linguagem representativa sonora do Brasil, bem como desta sensibilidade brasileira, aqui representada pelo sentimento da saudade que impulsiona a narratividade desta trama. Muniz Sodré (1988) em seu livro A Verdade Seduzida, apresenta um estudo a respeito da cultura negra no Brasil em diversos âmbitos. Neste estudo ele sugere que o terreiro seria uma forma de guardar, preservar as heranças; uma espécie de resistência à perda desta herança cultural. Talvez, como Muniz aponta, este tenha sido um dos diversos caminhos encontrados pelo povo afro-brasileiro para guardar sua cultura, como uma forma paralela de organização sociocultural. Considerando as mudanças e adaptações sofridas no decorrer dos tempos, talvez possamos pensar nestas misturas e adaptações organizacionais como o que conhecemos hoje por cultura afro-brasileira. Neste sentido, mesmo que num caráter epistêmico, quando remetemos a algo relacionado aos rituais de terreiros, etc., pensamos que esta pode ser uma forma de preservação da herança. Se pensarmos que o ostinato rítmico pode ser um elemento móvel dentro de determinadas tópicas, este caráter ritual de características afro-brasileiras, presente nesta obra através das repetições e variações de sincopas, dentro do contexto das danças, adquire uma

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índole ritual no sentido religioso. Isso então remete a uma herança cultural memorável, impulsionada por um ímpeto de preservação nostálgico. Da mesma forma, podemos notar que através das estratégias de repetição, há um princípio de comunalidade refletido no cuidadoso uso do ritmo e suas variações. Estes traços de comunalidade presente no Moi1 são a personificação cinética e a corporalidade como elementos de um retrato sonoro (Moi x Soi mais elementos exteroceptivos), bem como traços de sua própria personalidade (Moi2). Entendemos que essa intenção do uso de repetições rítmicas faz parte da estratégia de construção de um discurso fundamentado num sotaque brasileiro. O ritmo adquire um alto grau de indicialidade interoceptiva, mas também favorece uma imagem singular relacionada a elementos extramusicais; como signos relacionados ao imaginário deste evento. Se tratarmos isso dentro do contexto das tópicas (africana), podemos destacar que o uso do ritmo com foco no Moi1 passa a se portar com Topoi, o que não deixa de ter valor signatário. Exemplo 3: Danças Características Africanas 1.Mov. Comp. 34-38 (redução).

Ainda nas Danças Africanas, neste próximo exemplo (Exemplo 3), podemos observar um gestual expressivo na superposição de planos, resultando numa ambiência de características fortemente afro-brasileiras; seja, neste contexto, pela superposição rítmica de três contra dois, ou os acentos rítmicos que privilegiam tempos fracos, bem como o senso de

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comunalidade neste obstinado ritmo. A influência popular é o pano de fundo de uma representação exteroceptiva de uma realidade local. Podemos notar um tema principal no segundo pentagrama, onde os trombones prevalecem como elemento timbrístico, que regido pela repetição com pequenas variações de notas e acentos trazem uma sonoridade nostálgica e comunal para este gesto, especialmente no acorde resultante no compasso 37. Mesmo considerando que não exista um intervalo, acorde ou melodia que possa ser considerado como saudosista, neste contexto, podemos notar uma preocupação intencional com a condução de vozes, que remete ao ouvinte a um saudosismo nostálgico referente à troca de modo. Neste sentido é clara a intenção em compor um ambiente sonoro representativo em sua complexidade. Deste modo, o ritmo como elemento impulsionador do fluxo de linearidade através de suas repetições (ostinato) favorece ainda mais ao caráter dançável e ritualístico desta passagem. Podemos também somar um não tão explícito ritmo de três contra dois/quatro com os violinos e oboés, em contraponto com a rítmica deste gesto como um todo. Tudo isso favorecido pela orquestração e textura usadas neste exemplo, nos possibilita notar o enredo da representação de um determinado povo, neste caso os Karipunas do Mato Grosso na época, e suas danças. Isso evidencia, além do ímpeto villalobiano, a aplicabilidade gestual no sentido processual do compor; a construção de texturas, camadas, ritmos, etc. Na obra Floresta do Amazonas este ímpeto se apresenta no desejo de recomposição sonora da floresta, em simultaneidade com os elementos constitutivos do dançável. No exemplo a seguir (Exemplo 4), os dois primeiros compassos podem ser encaixados no que Cazarré (2012) chama de tópica “chamadas”, ou seja, uma chamada para a dança, que pode ser um grito de guerra, tambores para chamar os dançarinos, etc., que aqui está representado pelo alto grau de representatividade presente em nosso imaginário relacionado ao índio. As appoggiaturas com ritmo e acompanhamento simples com a percussão (guizos e chocalhos) trazem fortemente a imagem de uma dança de índios que inicia numa espécie de chamada para a dança. Vale ressaltar que somente o coro masculino está presente neste movimento. Mais um indício do resultado processual derivado do seu processo de escolha que vem do compor o que, que está refletido, obviamente, nas ferramentas usadas para este resultado. Mas o que queremos aqui é ressaltar o ímpeto em criar um ambiente sonoro que retrate uma dança indígena em meio à floresta, talvez de um povo do alto amazonas. O uso de símbolos sonoros como recurso para isso está presente em todo o movimento. É evidente que o ímpeto foi

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impelido pelo desejo em retratar este quadro, que já vem descrito no próprio nome do movimento. Neste gesto inicial, à medida que entram as vozes, notamos a ampliação do âmbito orquestral, como o símbolo de crescendo (
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