Saudades do Novo Mundo

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29/11/2015

Saudades do Novo Mundo ­ Revista de História

Saudades do Novo Mundo Acusado de herege, o exemplar calvinista Jean de Léry descreveu os tupinambás com riqueza de detalhes, do parto ao funeral Alexandre Belmonte 1/5/2013  

Reprodução original na Biblioteca Principal de Rouen, França. http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/saudades­do­novo­mundo

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Saudades do Novo Mundo ­ Revista de História

Ele veio para fabricar sapatos, mas acabou escrevendo um verdadeiro best‐seller do século XVI. Com sua História de uma viagem feita à terra do Brasil, Jean de Léry (1534‐1611) gozou de admirável sucesso, não somente na França, mas também na Suíça e na Alemanha. Em cem anos, a obra teve pelo menos sete edições em francês e algumas em latim.  No século dos Descobrimentos, os relatos de viagens transformaram‐se em verdadeiro gênero literário na Europa. Atraíam a curiosidade dos homens letrados e falavam ao seu desejo de viajar rumo ao desconhecido – coisa difícil de concretizar pelo custo elevado. Jean de Léry conseguiu. Era um jovem de pouco mais de 20 anos quando resolveu juntar‐se a outros adeptos do protestantismo numa missão, em 1556, ao Rio de Janeiro, onde havia sido fundada a colônia francesa no Brasil, a França Antártica. Num terreno repleto de mangues e animais peçonhentos, muitos padeciam de gangrenas nos pés, daí a presença do sapateiro Léry.  Entre seus companheiros de viagem, havia marinheiros experientes, alguns jovens que se dedicariam ao aprendizado da língua dos indígenas,cincomoças(sobre as quais o relato de Léry não dá muitas pistas) e uma governanta, cuja chegada causou “grande admiração aos selvagens do país, os quais (...)jamais haviam visto mulheres vestidas”. O grupo avista a costa brasileira em 26de fevereiro de 1557, após viver uma angustiante experiência de deriva no mar. A despeito da ciência cartográfica que se tinha então, Léry chega a pensar que se encontravam num “exílio sem solução”. Quando finalmente veem terra firme, ele e seus companheiros de viagem dão graças a Deus. Alguns dos franceses que encontrou em terra firme participavam de banquetes canibais – o que ele reprova: há vários anos residindo com os índios, esses europeus teriam se acomodado “à bestialidade dos usos locais”. E ainda superavam os nativos em desumanidade, gabando‐se de terem matado e comido prisioneiros. Também lamentava ver como “se poluíam em toda sorte de impudicícias com as índias”. Léryobservou mulheres parindoeo tratamento dado aos prisioneiros de guerra, viu cenas de canibalismo, descreveu as leis dos indígenas, bem como seus funerais e sepulturas. Também fez outras descrições, comoa de plantas e animais exóticose a danudez dos nativos. Participou, como expectador, de um ritual religioso indígena. Após alguns meses no Brasil, Villegagnon os acusoude heresia e Léry, juntamente com outros franceses, foramacolhidos pelos tupinambás. A viagem de regresso, após mais de um ano em terras tupinambás, seria muito mais dramática do que a de ida. A tripulação carrega consigo lembranças dos indígenas, animais exóticos, pau‐brasil... parece levar uma miniatura do Mundo Novo para mostrar aos seus financiadores, à sua Igreja, ao seu meio. Exceto a madeira do pau‐brasil, nada disso chegaria ao Velho Mundo. Na falta de outros alimentos, macacos e papagaios que já tinham aprendido a falar foram comidos. Quatro meses após a partida, com toda a comida esgotada, dois marinheiros morreram. A tripulação rezava. Léry, claramente contra a idolatria, conta como certos “marinheiros papistas” faziam promessas a São Nicolau – considerado o protetor dos marinheiros – “inclusive a de uma imagem de cera do tamanho de um homem”. Conclui que era como se apelassem a um falso deus: os calvinistas julgavam melhor recorrer diretamente ao Criador. No último capítulo de sua epopeia, há páginas e páginas de uma descrição que mostra como tudo o que era mastigável foi comido: primeiro os víveres e as bolachas, depois os animais, em seguida couro de tapir assado na brasa, por fim os famigerados ratos e ratazanas que, também assolados pela fome, saíam à luz do dia em busca de comida. Os grumetes e os pajens do navio comeram os chavelhos das lanternas e as velas de sebo que encontraram a bordo. Alguns chegaram a comer as solas dos sapatos, ossos velhos e “outras imundícies”. Durante três semanas foram obrigados pelas intempéries a ferrar as velas, navegando em árvore seca (mastro sem velas) e a amarrar o leme, ficando o navio ao http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/saudades­do­novo­mundo

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sabor dos ventos e das ondas. Isso os impedia de pescar. Léry conta como a fome embrutece de tal forma as pessoas que, tirando‐lhes o ânimo, torna‐as ferozes e enraivecidas. Segundo ele, somente o amor a Deus os impedira de se devorarem, pois “mal podíamos falar uns com os outros sem nos agastarmos e, o que era pior (perdoe‐me Deus), sem nos lançarmos olhares denunciadores da nossa disposição antropofágica”. Enfim, já caídos pelo convés, quase sem poderem mover braços e pernas, em 24 de maio de 1558 foi avistada terra firme: não era mais uma miragem, estavam realmente diante das terras baixas da Bretanha. O mestre do navio comunicou que, se a deriva tivesse se prolongado por mais um dia, estava decidido a matar um dentre eles para a alimentação dos demais “sem aviso prévio”. Léry ainda tem bom‐humor para lembrar‐se de que jamais o teriam escolhido, “a menos que quisessem comer apenas pele e ossos”. Tendo encontrado um barco perto da costa, atiraram‐se sobre ele e devoraram o pão preto que ali encontraram. Em contraste com a generosidade dos tupinambás – que dividiam toda sorte de comida com os franceses, inclusive nacos de coxas e braços humanos – Léry conta como um dos “miseráveis” desse barco chegou a cobrar dele dois reales por um pedaço de pão. A publicação do seu relato de viagem aconteceu muitos anos após o retorno à França, embora Léry faça questão de dizer que a obra foi escrita “com tinta de pau‐brasil”. A experiência de rememorar e analisar o passado permite a ele desenvolver sua veia literária, produzindo narrativas exemplares. O homem que escreve está dividido entre sua devoção a Deus e a saudade que sente de outro mundo – a possibilidade de um novo começo, de uma nova história. Sente‐se, enfim, tentado a renunciar à sua própria religião e ao seu meio social para viver esse recomeço. Pois foi entre os selvagens que Léry reconheceu um espírito de que carece a sua França natal: entre eles não há dissimulação nem deslealdade: “lamento muitas vezes não ter ficado entre os selvagens, nos quais, como amplamente demonstrei, observei mais franqueza do que em muitos patrícios nossos com rótulos de cristãos”. Seria caso de se pensar que a primeira edição, 18 anos após o regresso do narrador, marca mesmo a chegada de Léry à França, o fim de uma espécie de transe, o fim de um longo trânsito. As experiências e as memórias de seu autor voltam de terras tupinambás e são apresentados à França em 1578. É uma transição. De um grande entusiasta que fora da religião reformada 20 anos antes, Léry está agora profundamente abalado pelos conflitos entre católicos e protestantes. Consegue ser um calvinista exemplar, mas talvez, para continuar a sê‐lo, precise ainda revisitar muitas vezes sua história entre os tupinambás do Novo Mundo, “gente perdida” de Deus, longe de Cristo, mas também longe da Europa. Embora inconvertíveis à fé em Cristo, os nativos possuem algo que falta aos compatriotas de Léry: a liberdade que permite sempre um recomeço. Léry é conquistado pelos selvagens, carrega sua melodia nos ouvidos e suas cores na retina, e busca escrever e reescrever sobre eles, na tentativa de ainda se sentir “do lado de cá”. Seja por medo, acomodação ou excesso de ocupações, ele não retorna ao Brasil. Mas sua experiência ultrapassa a dimensão pessoal. Publicada, lida e traduzida, rapidamente se irradia por boa parte da Europa a imagem de um Paraíso ou, pelo menos, de uma terra onde tudo era ainda possível. A maior das contribuições que Léry trouxe do Novo Mundo para a Europa foi um “fato” antropológico novo: o outro. http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/saudades­do­novo­mundo

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  Jean de Léry foi testemunha mais uma vez da antropofagia em sua vida. Só que, nesta segunda oportunidade, o ato bárbaro aconteceu na França cristã. Leia mais no site da Revista de História: rhbn.com.br/c/5905   Alexandre Belmonteé professor visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor da dissertação “A construção do outro e do si‐ mesmo: vínculos de identidade e alteridade no relato de Jean de Léry” (Uerj, 2006).   Saiba mais ‐ Bibliografia LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1972. LESTRINGANT, Frank. Le huguenot et le sauvage –L’Amérique et la controverse coloniale en France, au temps des guerres de religion (1555‐ 1589). Paris: Klincksieck, 1990.

   

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