Saúde bucal coletiva: um conceito

May 27, 2017 | Autor: Paulo Narvai | Categoria: Dentistry, Public Health, Oral Public Health
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Saúde bucal coletiva: um conceito

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Paulo Capel Narvai

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INTRODUÇÃO A freqüência com que a expressão Saúde Bucal Coletiva (SBC) vem sendo encontrada em publicações científico-técnicas aumentou desde seu aparecimento nos anos 80. Segundo Narvai (1994) “à expressão ‘saúde bucal’ acrescentou-se, durante os anos oitenta, no Brasil, o termo ‘coletiva’. Passou-se a falar, sobretudo no Estado de São Paulo, sob evidente influência do movimento da saúde coletiva, em ‘saúde bucal coletiva’.” Além de aparecer em vários artigos e livros, uma entidade nacional (Associação Brasileira de Saúde Bucal Coletiva) foi criada em 1998 tendo SBC em sua denominação oficial. Um livro clássico da área de odontologia social ganhou nova denominação em 2000: Saúde bucal: odontologia social e preventiva, a conhecida obra de Vítor Gomes Pinto, cuja primeira edição foi lançada em 1989 (Pinto 1989), passou a se denominar Saúde bucal coletiva em sua quarta edição (Pinto 2000).

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Publicado em Odontologia e Sociedade, v.3, n.1/2, p.47-52, 2001. 2 Cirurgião-dentista sanitarista. Doutor em Saúde Pública. Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715 CEP 01246-904 São Paulo SP Tel (11) 3066-7782, E-Mail: [email protected]

Com a difusão do uso, aumentaram também os significados que a expressão SBC vem assumindo. Assim, com tantos conceitos sendo empregados, há risco de tanto quanto as diferentes odontologias (sanitária, preventiva, social, simplificada, comunitária, integral, sistêmica) mencionadas por Narvai (1994), também a SBC tornar-se insuficiente para “constituir-se em significante capaz de produzir conceitos consensuais, aceitos majoritariamente.” A propósito cabe, porém, o alerta de Moysés (1997) citando Habermas, ao considerar que “as ciências são certezas provisórias, lingüisticamente construídas [e que], nas sociedades de massas, a verdade assume a forma de ‘um discurso comunicativamente operante’, cumprindo três premissas: a) enunciados coerentes com a realidade de contextos intersubjetivamente compartilhados; b) a potencialidade dos enunciados para o êxito de projetos sociais nestes contextos; c) sua capacidade de estabelecer efetiva comunicação, ou ‘concepção consensual de verdade’, ou ainda, ‘valorização de um entre vários discursos em interação’.” Neste ensaio pretende-se tão-somente explicitar um conceito — não o conceito — sobre saúde bucal coletiva com o propósito de, reconhecendo a complexidade inerente ao tema, explicitar alguns de seus elementos

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fundamentais. Dada a natureza do problema e o tratamento básico que recebe neste texto, certamente outros estudos e abordagens são necessários ao desenvolvimento do conceito, construindo-o e reconstruindo-o permanentemente. CAMPO DE CONHECIMENTOS E PRÁTICAS Saúde Bucal Coletiva é um campo de conhecimentos e práticas. Pretende-se que tal campo seja parte de um conjunto mais amplo identificado como “Saúde Coletiva” e, a um só tempo, compreenda também o campo da “Odontologia”, incorporando-o e redefinindo-o e, por esta razão, necessariamente transcendendo-o. Tal é o que se pode deduzir das contribuições teóricas de vários pesquisadores que se ocuparam dessa temática, entre outros, BOTAZZO e col. (1988), BOTAZZO e TOMITA (1990), CORDÓN e GARRAFA (1991), NARVAI (1994), CORDÓN (1997), Moysés (1997) e FRAZÃO (1999). SAÚDE BUCAL COLETIVA A Saúde Bucal Coletiva advoga que a “saúde bucal” das populações não resulta apenas da prática odontológica mas de construções sociais operadas de modo consciente pelos homens, em cada situação concreta — aí incluídos os profissionais de saúde e, também (ou até...), os cirurgiões-dentistas. Sendo processo social, cada situação é única, singular, histórica, não passível portanto de replicação ou

reprodução mecânica em qualquer outra situação concreta, uma vez que os elementos e dimensões de cada um desses processos apresentam contradições, geram conflitos e são marcados por negociações e pactos que lhes são próprios, específicos. Do conjunto da produção teórica de BOTAZZO e col. (1988), BOTAZZO e TOMITA (1990), CORDÓN e GARRAFA (1991), NARVAI (1994), CORDÓN (1997) e FRAZÃO (1999), dedicada ao desenvolvimento do referencial teórico da Saúde Bucal Coletiva, depreende-se que, segundo este marco: a) SBC é uma expressão que pretende corresponder a um marco teórico distinto daquele marco classicamente identificado como Odontologia; b) SBC não é sinônimo de odontologia sanitária, odontologia social, odontologia preventiva, odontologia integral ou qualquer outra “odontologia”. Portanto, não se confunde, também, com a especialidade odontológica denominada “odontologia em saúde coletiva”; c) SBC não deve, portanto, confundir-se com “odontologia coletiva”, ou com “ações coletivas” no âmbito odontológico, ou com “ações de saúde na escola” ou, ainda, com uma determinada forma de produção de serviços odontológicos no âmbito do setor público; d) SBC não corresponde a serviços odontológicos estatais — nem se restringe a eles;

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e) SBC não é, também, uma prática odontológica filantrópica, desenvolvida com base no princípio da caridade, cujas ações e serviços destinam-se a consumidores “carentes” ou “pobres”. Não corresponde, também, ao trabalho de voluntários, religiosos, ou promotores sociais, sejam estes desenvolvidos amadoristicamente ou de modo profissional; f) SBC não se confunde, também, com certas tecnologias e/ou referenciais científicos da prática odontológica que se assentam em pressupostos — que rejeita frontalmente — de estratificação social, econômica, cultural e política, entre países e no interior dos países. Tais pressupostos admitem, por exemplo, que para determinados países (ou para determinados cidadãos, num país) são aceitáveis e, portanto, recomendados — dadas suas condições sociais ou econômicas ou culturais ou políticas —, certos procedimentos, ainda que esses procedimentos não sejam aceitáveis e recomendados universalmente; g) SBC refere-se a todos os processos que, nas dimensões social, biológica e psicológica, operam na produção de determinadas condições de saúde bucal, em termos populacionais, incluindo tanto ações no campo da atenção à saúde bucal quanto as ações específicas do campo da assistência odontológica individual; h) SBC é parte inseparável da Saúde Coletiva.

A Saúde Bucal Coletiva pretende, segundo FRAZÃO (1999): “substituir toda forma de tecnicismo e de biologismo presentes nas formulações específicas da área de odontologia social e preventiva, hoje denominada de odontologia em saúde coletiva, realizando a reconstrução teórica de modo articulado e orgânico ao pensamento e a ação da Saúde Coletiva, e reforçando o compromisso histórico desta última com a qualidade de vida na sociedade e com a defesa da cidadania, tanto da ação predatória do capital quanto da ação autoritária do Estado.” [grifos no original]. Em relação às expressões “assistência odontológica” e “atenção à saúde bucal”, mencionadas no item “g”, NARVAI (1994) as conceitua como segue: Assistência odontológica — refere-se ao conjunto de procedimentos clínico-cirúrgicos dirigidos a consumidores individuais, doentes ou não; Atenção à saúde bucal — constituída pelo conjunto de ações que, incluindo a assistência odontológica individual, não se esgota nela, buscando atingir grupos populacionais através de ações de alcance coletivo com o objetivo de manter a saúde bucal. Tais ações podem ser desencadeadas e coordenadas externamente ao próprio setor saúde (geração de empregos, renda, habitação, saneamento, lazer etc.) e mesmo internamente à área odontológica (difusão em massa de informações, ações educativas, controle

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de dieta, controle de placa etc.) [Enquanto] a assistência limita-se ao campo odontológico (...) a atenção à saúde bucal implica atuar, concomitantemente, sobre todos os determinantes do processo saúde-doença bucal [requerendo] a articulação e coordenação de ações multissetoriais, isto é, ações desenvolvidas no conjunto da sociedade.” [grifos no original]. Cabe destacar que, ao abordar os principais problemas com que se defrontam os profissionais de saúde identificados com o marco teórico da SBC, no que respeita à articulação epidemiologia-serviços de saúde, FRAZÃO (1999) enfatiza que: “É necessário considerar que, enquanto nos países industrializados a cárie dentária e as enfermidades periodontais estão diminuindo e os programas de saúde bucal começam a dirigir esforços em direção à população adulta e idosa, nos países em desenvolvimento a prevalência das principais enfermidades bucais e as medidas para enfrentálas variam bastante. [Assim] tanto as áreas que tradicionalmente conformam a Saúde Coletiva, isto é, a epidemiologia, a saúde ambiental e a área de políticas, planejamento e admistração de sistemas e de serviços de saúde, quanto polos/eixos temáticos emergentes, dentre os quais pode-se destacar as ciências sociais em saúde, a promoção da saúde e a vigilância à saúde podem e devem buscar uma inserção cada vez maior dos temas e dos problemas da saúde

bucal coletiva em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão [sintonizando-se] com o que vem ocorrendo mais contemporaneamente nos serviços de saúde. (...) Essas mudanças nas práticas de saúde bucal que vêm ocorrendo no âmbito da reforma sanitária brasileira, são substantivas porque revelam a implementação de ações que transcendem o modelo da clínica, cujo ‘objeto’ da intervenção é o indivíduo, e de modo mais abrangente, se baseiam na programação de ações coletivas intra e extra-setor saúde epidemiologicamente orientadas.” [grifos no original]. SAÚDE COLETIVA Para entender a Saúde Bucal Coletiva como “parte inseparável da Saúde Coletiva” é indispensável caracterizar, ainda que brevemente, a Saúde Coletiva. Para PAIM & ALMEIDA FILHO (1998), esta pode ser compreendida como: “campo científico, onde se produzem saberes e conhecimentos acerca do objeto ‘saúde’ e onde operam distintas disciplinas [as básicas sendo a epidemiologia, o planejamento/administração de saúde e as ciências sociais em saúde] que o contemplam sob vários ângulos; e como âmbito de práticas [transdisciplinar, multiprofissional, interinstitucional e transetorial], onde se realizam ações em diferentes organizações e instituições por diversos agentes (especializados ou não)

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dentro e fora do espaço convencionalmente reconhecido como ‘setor saúde’.” É preciso considerar ainda que, de acordo com Paim (1992): “as ações de saúde de alcance coletivo expressam uma tensão entre Estado e Sociedade, entre liberdades individuais e responsabilidades coletivas, entre interesses privados e públicos. A extensão e profundidade dessas ações depende da dinâmica de cada sociedade, sobretudo diante das articulações que estabelece concretamente com as instâncias econômicas, políticas e ideológicas. Portanto, a saúde coletiva privilegia nos seus modelos ou pautas de ação quatro objetos de intervenção: políticas (formas de distribuição do poder); práticas (mudanças de comportamentos; cultura; instituições; produção de conhecimentos; práticas institucionais, profissionais e relacionais); técnicas (organização e regulação dos recursos e processos produtivos; corpos/ambientes); e instrumentos (meios de produção da intervenção). Desse modo, mais do que qualquer outro movimento ideológico, absorve a produção de conhecimentos inter/transdisciplinares com grande capacidade de ‘interfertilização’, seja para a realização das suas funções essenciais, seja para o exercício das suas funções possíveis e desejáveis (...). [Enquanto âmbito de práticas], a saúde coletiva contempla tanto a ação do Estado quanto o compromisso da sociedade para a

produção de ambientes e populações saudáveis, através de atividades profissionais gerais e especializadas (...) [e] representa um enfoque de práticas que não se submetem, acriticamente, ao modelo de saúde pública institucionalizado nos países centrais, seja enquanto tipo profissional ou modelo de organização de serviços de saúde. A saúde coletiva preocupa-se com a saúde pública enquanto saúde do público, sejam indivíduos, grupos étnicos, gerações, castas, classes sociais, populações. Nada que se refira à saúde do público, por conseguinte, será estranho à saúde coletiva.” A propósito do termo “saúde”, analisando os aspectos envolvidos com os conceitos de saúde e doença, normal e patológico, prevenção e cura, BOTAZZO (2000) assinala que: “Sem dúvida, conhecer é melhor que desconhecer mas precisava que se denominasse adequadamente a que tipo de conhecimento se está referindo. John Snow (1813-1858) nem de longe tinha visto um Vibrio cholerae, e no entanto isso não impediu que resolvesse o surto de cólera em Londres. Mais que um conhecimento biológico, foi o conhecimento que tinha do comportamento social da doença o elemento fundamental nesta história. Isto explicitamente significa que prevenção é categoria que só encontra condição de pleno desenvolvimento se tomada em sua dimensão coletiva, polissêmica que é e altamente complexa como práxis. Isto evidencia a contradição em

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termos da idéia odontológica quanto à ‘prevenção individual no consultório privado’, e nisto podemos nos pôr de acordo: aos problemas que têm óbvia dimensão pública não se pode propor soluções de natureza privada.” [grifos no original]. SERVIÇOS ODONTOLÓGICOS E SAÚDE BUCAL COLETIVA Serviços odontológicos geram postos de trabalho para cirurgiões-dentistas mas existirem não corresponde, necessariamente, a melhores níveis de saúde bucal para a população. A possibilidade de acessar serviços e se beneficiar de cuidados odontológicos têm, entretanto, importante significado. É tranqüilizador para as pessoas saber que quando precisarem terão acesso aos cuidados especializados que necessitam. Este sentimento tem valor por si mesmo. E serviços (e possibilidade de acessá-los) têm importante papel também quando, nas situações em que há dor e sofrimento, as pessoas podem, efetivamente, obter alguma forma de alívio e conforto. Mas para que serviços odontológicos exerçam papel relevante na conquista e manutenção da saúde bucal coletiva é indispensável que as ações desenvolvidas estejam em consonância tanto com o que as pessoas identificam como suas necessidades em saúde bucal quanto com o que os conhecimentos científicos permitem e autorizam fazer em termos de saúde pública. Caso contrário prevalecerão interesses meramente corporativos que se imporão — podendo opor-se — às necessidades das pessoas. Sobre as

relações entre a saúde bucal e o mercado de trabalho odontológico e considerando as características do modelo hegemônico de prática odontológica, CORDÓN (1986), destaca que a odontologia, “como saber (científico e tecnológico) e como prática, não se autodetermina mas é socialmente determinada.” Para o autor, num contexto histórico onde prevalece o modo de produção capitalista os produtores independentes (exercício liberal) vão, gradativamente, perdendo o controle sobre sua produção, com a odontologia transformando-se: “numa atividade do capital, com modificações na própria organização técnica e social do trabalho, reorganizando-se como decorrência do desenvolvimento das forças produtivas e da introdução de capital no próprio setor [abrangendo os segmentos dos medicamentos, equipamentos, materiais, instrumentos e a própria prestação de serviços]. Ao modelo liberal, artesanal e autônomo de trabalho odontológico, realizado em padrões liberais, se observa o surgimento do trabalhador coletivo, em que o cirurgião-dentista aparece como o mentor intelectual de trabalhos cada vez mais parcializados (...) A prática odontológica deixa de ser regida por uma lógica do conhecimento e passa a ser determinada por uma lógica de produção [em que] a oferta e a procura dos serviços odontológicos está medida ou determinada pelo capital e pelo dinheiro, onde o Estado joga um papel importante na reprodução desta situação.” (CORDÓN 1986).

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Ainda na abordagem das questões relacionadas ao mercado de trabalho CORDÓN (1986) identifica alguns “participantes no processo de estruturação do mercado odontológico”, a saber (os respectivos principais interesses desses participantes são sinteticamente apresentados entre parênteses): 1) o complexo industrial da economia (assegurar a manutenção da força de trabalho); 2) as empresas de equipamentos odontológicos (vender seus produtos, ampliando lucros); 3) a indústria dos medicamentos, drogas e materiais (lucrar e influenciar ideologicamente os praticantes); 4) as empresas de atenção médico-odontológica (lucrar no setor privado, disputando também a alocação de recursos públicos); 5) as cooperativas odontológicas de prestação de serviços (embora privilegiem a prática individual proporcionam ampliação do espaço de trabalho a grupos profissionais mais organizados); 6) as cooperativas de materiais odontológicos (formas de resistência visando à diminuição dos custos dos insumos); 7) as faculdades de odontologia (intervêm indiretamente no mercado e, de modo geral, por reforçarem o modelo individualista, sofisticado e curativo-reparador, não têm funcionado como agentes de transformação no interesse da maioria); 8) as entidades de representação odontológica (atuam no interesse corporativo profissional); e, 9) o Estado (responsável pelas medidas coletivas de saúde bucal, produz diretamente serviços e compra serviços privados). Abordando uma suposta “crise da odontologia no Brasil” BOTAZZO (2000) considera necessário abordar em

conjunto tanto aspectos relativos aos recursos humanos quanto os relacionados ao objeto da prática: “Pode-se pensar que esta “crise” [da Odontologia no Brasil] tenha um caráter mercadológico quase exclusivo, pela insistência em correlacionar o número de escolas de odontologia em funcionamento ou o número de cirurgiões-dentistas com a população, e o que venha a ser necessidade de saúde bucal da população, ou ainda pela insistência em correlacionar a formação do cirurgiãodentistas e a realidade do mercado. Não seria difícil, entretanto, desdobrar essa “crise” em seus elementos constituidores e neles localizar sua biopolítica ou a face pública da Odontologia (aspecto pelo qual melhor se entenderia o que tantas vezes foi afirmado como sua ineficácia epidemiológica), as relações da Odontologia com as demais profissões de saúde (e o diálogo permanentemente canhestro que mantém com as ciências sociais) e finalmente a crise do seu modelo pedagógico (que não é outra coisa que a crise permanente da sua clínica e do seu existir sob forma separada) [...] Se a Odontologia fosse uma especialidade médica, isto colocaria de imediato um problema teórico interessante: o número de médicos quase que duplicaria, posto que o número de médicos e dentistas entre nós mais ou menos se equivalem. O que colocaria uma segunda questão interessante: o que haveria de tão fantasticamente perigoso a ser controlado em relação à boca, ao ponto desta parte do corpo

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necessitar de metade dos médicos todos para si, obrigando o resto do corpo a se contentar, desproporcionalmente, com a outra metade médica?” FRAZÃO (1998) propõe que, na perspectiva da saúde coletiva, “a questão das tecnologias em saúde bucal [seja colocada] para além do campo das práticas clínicas ou da assistência individual (...)” questionando “a correspondência que se terminou por estabelecer entre saúde e consumo de serviços médicos [e odontológicos, sendo que este] passou a assumir papel principal quando deveria ser secundário.” O autor, mencionando o trabalho de LEFÉVRE (1996), identifica como “desafio fundamental” para a Saúde Coletiva contemporânea: “o seu papel no processo de construção dialética de fontes alternativas de saber, de instrumentos, materiais e produtos simbólicos que contribuam para fazer refluir o discurso hegemônico, resgatando a saúde-doença como processo social, como fato essencialmente coletivo e de interesse público.” Para BOTAZZO (1994) a saúde bucal coletiva: “deve direcionar-se para o social como o lugar de produção das doenças bucais e aí organizar tecnologias que visem não a ‘cura’ do paciente naquela relação individual-biológica (...) mas sim a diminuição e o controle sobre os processos mórbidos tomados em sua dimensão coletiva.”

FRAZÃO (1998) afirma que: “as tecnologias em saúde bucal coletiva são medidas de alcance individual e coletivo articuladas, por um lado, às iniciativas de ações de postulação de direitos sociais que buscam tornar mais justa a ordem jurídica e social, e por outro, às ações que visam construir as estruturas organizacionais (organismos e instituições de um sistema público de saúde) para a gestão dos recursos e dos instrumentos necessários à sua implementação. [E, também, democratizando] conhecimentos e técnicas em saúde, criando espaço para que a cidadania possa ser exercida no desenvolvimento da relação entre trabalhadores da saúde, tomados como produtores coletivos, e os cidadãos-usuários, na direção da participação popular e do controle social do SUS. [Tais ações seriam distintas] das ações controlistas direcionadas a determinados grupos populacionais pela saúde pública, principalmente no início do século [XX], porque nelas se manifestam o vínculo, a autonomia e a emancipação do paciente. Desse modo, contribuem para fazer refluir o processo de medicalização e mercantilização da saúde, e para a defesa do cidadão da ação predatória do capital e da ação autoritária do Estado.” Entretanto NARVAI (1992) assinala a importância dos aspectos tecnológicos relacionados à organização dos procedimentos de assistência odontológica. Para o autor:

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“Ainda que se reconheçam os limites da assistência odontológica para produzir melhores níveis de saúde bucal no conjunto da população, a ninguém ocorre de, por isso, considerá-la desimportante e portanto não requerendo esforços para o seu desenvolvimento científico-tecnológico. A assistência é imprescindível, pelo menos para alívio imediato do sofrimento e para obtenção de algum conforto. Não obstante parte significativa da assistência odontológica estar restrita à produção de restaurações dentárias, e ainda que se lhe possa questionar a capacidade de, com restaurações, curar a cárie — como vem ocorrendo recentemente a partir das críticas ao assim denominado ‘paradigma cirúrgico-restaurador’ —, julgamos necessário um permanente investimento nos aspectos relacionados à tecnologia da assistência, uma vez que simplesmente não podemos falar em integralidade da prática odontológica se tal prática situar-se, equivocadamente, em apenas um dos polos da dicotomia preventivo-curativo. A organização da assistência vem tendo, felizmente, grande desenvolvimento. O antigo "gabinete dentário" por exemplo é, literalmente, peça de museu. O consultório odontológico não é mais o único local onde o processo de trabalho odontológico pode ser desenvolvido. O aumento da complexidade desse processo de trabalho, ao longo de séculos, levou à inexorável divisão técnica do trabalho a qual implicou mudanças tanto no sujeito quanto no ambiente de trabalho. A imagem de um único

operador ao lado de uma cadeira, realizando procedimentos num ambiente de aproximadamente 10 m2, embora ainda majoritária vem dando lugar, progressivamente, a outros sujeitos trabalhando em outros ambientes.” [grifos no original]. NARVAI (1992) menciona também os desafios tecnológicos e científicos relacionados aos ambientes e processos de trabalho odontológico representados, entre outros, por clínicas modulares, fixas e transportáveis, ambientes sobre rodas, atendimentos domiciliares e, também, ao desenvolvimento de ações coletivas em saúde bucal. No mesmo trabalho o autor aborda a problemática dos sistemas de atendimento em saúde bucal relacionando-os ao objeto da prática, assinalando: “Quem é/deve ser o objeto da prática: a doença ou o doente? Aparentemente banal, a questão encerra armadilhas. À primeira vista, parece natural ser o doente o objeto. Todos já ouvimos, certamente, conselhos do tipo ‘é preciso compreender a pessoa em todas as suas dimensões... precisamos ver o ser humano como um todo e não nos determos apenas no(s) órgão comprometido...’ Mas ao se constatar que a doença está presente não apenas em uma mas em várias, dezenas, milhares de pessoas o que é "natural" ganha outra dimensão. Expressando-se coletivamente, a doença adquire dimensão social e apresenta-se ao sujeito do trabalho odontológico tão importante quanto o doente, tratando-se

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portanto de controlá-la não apenas em um mas em todos os indivíduos. Apenas tratar doentes ou controlar a doença [na população]? Eis a questão. E é preciso respondê-la, segundo a realidade de cada local, levando em conta o preceito constitucional do ‘direito universal à saúde’. (...) Qualquer que seja contudo a forma assumida pela relação sujeito-objeto na prática odontológica, ela sempre define o que poderíamos denominar um sistema de atendimento, caracterizado pelas diferentes formas de organizar a demanda ou fluxo de usuários aos serviços odontológicos (...) Em pesquisa desenvolvida no Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, identificamos, em 1987, quatro tipos básicos de sistemas de atendimento: a) incremental; b) classe escolar; c) entrada livre; e, d) participativo. Posteriormente, chegamos a um quinto tipo básico ao qual denominamos universal.” [grifos no original]. Ao estudar a aplicação dos princípios da universalização, equidade e integralidade, bases do Sistema Único de Saúde brasileiro, OLIVEIRA e col. (1999) mencionam que: “Apesar de ainda não se perceber hoje, no Brasil, um sistema que tenha se estabelecido como hegemônico (como o foi o escolar sespiano), podem ser destacadas algumas tendências que, apesar de ainda não totalmente disseminadas pelo Brasil, chamaram a atenção e se replicaram em

diversos locais. Entres estas tendências destacamse o Sistema de Inversão da Atenção, a atenção precoce em saúde bucal (Odontologia para Bebês) e os modelos estruturados a partir do núcleo familiar (Saúde da Família).” E, sobre a priorização da criança, a qual tem sido “objeto de culto e regulação a partir do final do século XIX”, BOTAZZO (2000) assinala “a recusa das tecnologias odontológicas à população adulta e trabalhadora para quem, historicamente, apenas reservou a mutilação e a prótese.” Sobre isso também se manifestaram os participantes do V EPATESPO (Encontro Paulista de Administradores e Técnicos do Serviço Público Odontológico) e IV Congresso Paulista de Odontologia em Saúde Coletiva (Cubatão, SP, 24 a 27 de maio de 2000), ao expressarem: “a necessidade de superar o modelo odontológico curativo-preventivista dirigido a escolares matriculados nas escolas publicas, incluindo outros grupos populacionais e ações mais complexas. É preciso superar, também, a confusão entre “prioridade” e “exclusividade” que ainda predomina na maioria dos serviços e que exclui das ações desenvolvidas parcelas importantes da população. Ações de saúde bucal devem estar integradas nos diversos programas como, por exemplo, no de saúde do idoso”. (EPATESPO 2000). Reiterando que os conhecimentos científicos disponíveis indicam que a assistência odontológica tem contribuído muito pouco para a melhoria das condições

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de saúde bucal das populações, OLIVEIRA et al. (1999) enfatizam as características “iatrogênico-mutiladora, dentistocêntrica, biologicista, individualista, centrada na técnica e pouco resolutiva” da prática odontológica, propondo que: “os modelos assistenciais em saúde bucal que ora se estruturam no País devem começar a trabalhar exatamente a partir deste ponto: um reordenamento da prática odontológica, com mudanças sensíveis na abordagem do processo saúdedoença bucal. O SUS proporciona uma base filosófica e programática que aponta para esta mudança de concepção. A defesa do SUS como um sistema de saúde para todos os brasileiros é, portanto, a base desta estratégia”. (OLIVEIRA e col. 1999). GARRAFA E MOYSÉS (1996) assinalam a relevância das políticas de saúde “para a maioria da população”, destacando que: “Dada sua ampla inserção social e capilaridade com o concreto da vida das pessoas, o setor saúde deve assumir suas responsabilidades (e suas impotências), pois está claro que ele não conseguirá sozinho alterar estruturalmente a sociedade. Mas pode e deve contribuir para o debate, para a formulação de projetos setoriais e societários, numa agenda intrincada por um processo de lutas complexas, em que o fundamental seja a atenção das maiorias desassistidas.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS A Saúde Bucal Coletiva admite que a “saúde bucal” das populações não resulta apenas da prática odontológica mas de processos sociais complexos dos quais resultam manifestações biológicas (higidez ou lesões) em indivíduos que vivenciam experiências de sanidade e de dor e sofrimento únicas, singulares. Tal concepção impõe à Saúde Bucal Coletiva uma ruptura epistemológica com a Odontologia, cujo marco teórico assenta-se nos aspectos biológicos e individuais — nos quais fundamenta sua prática — desconsiderando em seu fazer essa determinação de “processos sociais complexos”. No modo de produção capitalista tal prática produz o que Narvai (1994) caracterizou como “Odontologia de Mercado”, na qual essa base biológica e individual articula-se à transformação do serviço de saúde em mercadoria, solapando a saúde como bem comum sem valor de troca e impondo aos cuidados de saúde as deformações mercantilistas e éticas sobejamente conhecidas. Assim, romper epistemologicamente implica desenvolver uma práxis que deve romper, dialeticamente, também, com a prática odontológica hegemônica em nosso meio. Tal ruptura requer que o trabalho odontológico seja desenvolvido a partir das necessidades das pessoas (de todas as pessoas) e que, opondo-se à lógica do mercado, rompa portanto com o status quo, caracterizado fundamentalmente pela mercantilização dos serviços e pela manutenção do monopólio do acesso aos recursos (todos os recursos) odontológicos pelas elites.

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Pelas razões expostas, cabe reafirmar com Narvai (1994) que a expressão Saúde Bucal Coletiva “não ocorreu por acaso nem por razões fonéticas.”

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