Saúde e seus sentidos possíveis em jogos digitais para o entretenimento

June 15, 2017 | Autor: F. Garcia de Carv... | Categoria: Discourse Analysis, Game studies, Health Communication
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SBC – Proceedings of SBGames 2015 | ISSN: 2179-2259

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Saúde e seus sentidos possíveis em jogos digitais para o entretenimento Flávia G. Carvalho

Marcelo S. de Vasconcellos

Inesita S. de Araujo

Fundação Oswaldo Cruz, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde, Brasil

Resumo A saúde é um tema plural, de interesse geral da população e sua presença não se restringe ao campo das práticas da Saúde, mas permeia produções simbólicas por toda a sociedade. Assim, o tema da saúde não aparece apenas em health games, mas também em jogos de entretenimento, que também são produtos culturais capazes de mediar a produção de sentidos sobre a saúde pelos jogadores. Desta forma, este trabalho, parte de uma pesquisa de mestrado, se propõe a analisar como a conceituação de saúde aparece em jogos digitais de entretenimento. Foram selecionados dois jogos de sucesso de público e crítica: BioShock e Deus Ex: Human Revolution. Ambos são do gênero de “tiro em primeira pessoa” e investidos de narrativas de ficção científica, ricas em questionamentos sobre a interferência da Ciência e Tecnologia no corpo e na saúde. Uma vez que jogos digitais são ao mesmo tempo objetos e processos, optamos pela coleta de dados baseada na autoetnografia do analista-jogador e pela análise de materiais baseada no referencial teórico-metodológico da Análise de Discursos, compreendendo o jogo digital, com todas as suas características próprias, como um texto a ser analisado. A análise se baseia também em uma matriz teórica da conceituação de saúde e uma matriz analítica dos jogos como dispositivo. Concluímos que a saúde pode aparecer de várias maneiras diferentes nos jogos e não se limita à dimensão da linguagem verbal na narrativa ou no mundo do jogo, influenciando mecânicas de jogo e representações da interface do jogador. Palavras-chave: jogos digitais, comunicação e saúde, análise de discursos Contatos: [email protected] [email protected] [email protected]

1. Introdução A saúde é tema de interesse geral da sociedade, não se restringe aos debates internos aos seus campos de conhecimento específicos. Os discursos da Saúde podem ser encontrados na vivência comunitária, na vida doméstica, na escola, em narrativas populares, nos

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cultos religiosos. São muito presentes em mídias, como teledramaturgia, revistas semanais, noticiários, propagandas, blogs e, entre tantas mídias mais, em jogos digitais. Apesar disso, o termo “saúde” é de difícil definição. Seus conceitos são múltiplos e não podem ser cientificamente determinados, sendo produzidos de acordo com diversos contextos. Não há uma ciência que possa determinar o que venha a ser saúde, mas somente contribuir com uma de suas perspectivas [Czeresnia et al. 2013]. Como os sentidos da saúde não são exclusivos do campo da Saúde, diversos outros atores contribuem com suas próprias concepções. Desse modo, o campo da Política, da Educação, o mercado, a indústria, as artes, o marketing e o entretenimento vão produzir e fazer circular seus próprios sentidos sobre a saúde. Assim, este trabalho considera os jogos digitais como mais uma mídia capaz de participar da mediação da produção de sentidos da saúde. Existem hoje muitos jogos com o objetivo primordial de promover a saúde, mas tendem a ser pautados por abordagens instrumentais que não dão conta das complexas relações do tema proposto com a vida dos interlocutores. Os jogos educacionais com este foco teriam um caráter direcionado para atender a objetivos específicos da saúde, fugindo do escopo de interesses ligados a uma maior amplitude e pluralidade dos sentidos da saúde socialmente construídos. Além disto, ainda não se tem conhecimento da existência de jogos educacionais para a saúde que cubram grandes públicos, pois costumam ser materiais concebidos para interlocutores específicos. Entretanto, mesmo em jogos que não foram desenvolvidos especificamente para os objetivos de saúde, a mesma pode estar presente, seja pela referência a temas de grande reverberação na cultura relacionados à saúde, seja pelo uso de representações da saúde do avatar que o jogador controla. Nestes jogos visando o entretenimento, talvez o processo de circulação e apropriação dos sentidos da saúde seja ainda mais efetivo do que naqueles com objetivos educacionais, dado o vasto público que alcançam. Foi este o motivo da decisão de escolher jogos de entretenimento para a formação do corpus de análise.

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Entre os jogos de grande circulação produzidos para grandes públicos, se destacam os jogos classificados como AAA. Na indústria de jogos digitais, AAA é uma classificação informalmente usada para os jogos com maiores investimentos em desenvolvimento e maiores níveis de promoção comercial. Dentro desta classificação foram selecionados dois jogos de tiro em primeira pessoa, com gráficos 3D: BioShock e Deus Ex: Human Revolution. Era importante que os dois jogos selecionados pertencessem a gêneros e formatos relativamente semelhantes, para que fosse possível e coerente proceder uma análise comparativa. Ambos são produtos bastante conhecidos e também bastante elogiados pelos críticos e pelos jogadores no Brasil e no mundo. São também direcionados ao público adulto, que no Brasil correspondia em 2012 a cerca de 60% dos jogadores [Ibope 2012]. O fio condutor das histórias de fundo desses jogos é uma desconfiança com relação à interferência da Ciência e da Tecnologia na vida humana, em narrativas de ficção científica. Podemos afirmar também que as citadas narrativas são mais especificamente posicionadas no subgênero literário cyberpunk, que conta histórias em que o impacto da Tecnologia é visceral no ser humano, invadindo não somente o corpo, mas também a mente, redefinindo a natureza humana [Oliveira 2002]. O cyberpunk também costuma abordar cenários de grandes desigualdades, onde figuram os contrastes entre as esferas das grandes instituições e o submundo marginalizado que existe em proximidade, uma junção entre alta tecnologia e baixa qualidade de vida, de onde saltam questões de saúde. Na verdade, a ficção científica deve ser compreendida não como uma previsão para o futuro, mas como uma metáfora do momento em que foi concebida, refletindo a visão de mundo e as construções simbólicas do presente [Haraway 1994]. Dessa forma, a constituição temática dos dois jogos torna indispensável considerar também a saúde em suas interfaces com a Ciência e Tecnologia. Nessas narrativas, a Ciência e a Tecnologia se amparam em uma atmosfera legitimadora, reforçada por sua usual retórica da racionalidade científica e do progresso natural através de inovações tecnológicas [Luz 1988]. No entanto, em pouco tempo se revela que suas prioridades não incluem o bem comum e são fortemente orientadas para o benefício de uma elite ou de classes específicas. Isto nos lembra que, fora da ficção científica, a complexa rede de financiamento de pesquisa em saúde está subordinada à lógica das desigualdades, com 90% dos recursos mundiais em pesquisa destinados a somente 10% das necessidades de saúde, no fenômeno apelidado de 10/90 Gap [The 10/90 Report on Health Research 2001-2002, 2002]. Essas interfaces nos mostram a relevância do estudo de sentidos da saúde em jogos que carregam narrativas de ficção científica. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é fazer uma análise dos discursos da saúde em suas interfaces com

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a ciência e tecnologia nos jogos digitais para entretenimento, identificando as diversas formas com que esses discursos aparecem no dispositivo discursivo de jogos digitais.

2. Trabalhos relacionados Após uma busca em bases de dados, buscando artigos relacionando comunicação, saúde e jogos digitais, observamos que a maioria dos artigos não se detêm em uma análise do jogo como material comunicacional e se concentram em pesquisas que medem o impacto de jogos em determinados grupos sob determinadas condições. A maioria dos estudos não trata os jogos como mídia de maneira específica, mas os generaliza dentro de uma categoria geral relacionada às tecnologias da informação e à internet. Somente três artigos trataram de jogos digitais como materiais comunicacionais, incluindo alguma discussão sobre o dispositivo de enunciação. O primeiro trata do design e avaliação de um jogo de computador para a promoção de uma dieta saudável para jovens adultos [Peng 2009]. O segundo artigo faz um estudo crítico de material publicitário online que inclui jogos destinados a crianças, usando uma abordagem semiótica que discute as mensagens contraditórias sobre nutrição para a promoção de cereais matinais para crianças [Thonson 2011]. O terceiro artigo faz uma revisão da literatura sobre a presença do tabaco na internet e em jogos digitais, com o intuito de definir linhas de trabalho para o desenvolvimento de mecanismo efetivos de regulação e controle da publicidade nessas mídias. O estudo considera que estas transcenderam o espaço do entretenimento, convertendo-se em meios de comunicação de massa e com alto potencial publicitário [Barrientos-Gutiérrez et al. 2012]. O presente trabalho se diferencia desses três citados pois objetiva enfocar os jogos digitais comercializados para o entretenimento, não os jogos destinados à publicidade de produtos nem os produzidos a partir de objetivos educacionais ou de mudança de comportamento. Outro diferencial é a inclusão de aportes teóricos dos Game Studies, um campo ainda nascente que estuda os jogos levando em consideração suas especificidades enquanto mídia. Fora dos resultados deste levantamento bibliográfico em bases de dados, alguns trabalhos se aproximam mais do corpus ou do referencial teórico e metodológico desta pesquisa. O artigo “Bodies, augmentation and disability in Dead Space and Deus Ex: Human Revolution” [Carr 2013], é um estudo sobre as representações da deficiência física em jogos digitais. Seu problema de pesquisa guarda semelhança com o presente trabalho pois também trata de uma análise de material comunicacional onde o próprio pesquisador se propõe a jogar para proceder com a análise. A autora considera que jogos digitais são

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materiais de grande complexidade de elementos que participam simultaneamente da mediação de sentidos como o hardware, software, cenários, imagens, sons, gênero, mecânicas de jogo e contextos sociais. Com isso, ela reconhece os desafios para a análise e as dificuldades e limitações da metodologia aplicada. Outro artigo da mesma autora trata de análise textual em jogos [Carr 2009], explicando melhor seu referencial teórico e metodológico para uma análise que se divide em estrutura (o jogo como foi desenvolvido), textualidade (o jogo como é jogado e a sua conotação) e a intertextualidade (contextos culturais e associações). Usando especificamente o referencial teórico e metodológico da Análise de Discursos conforme se pretende utilizar neste projeto, foi possível encontrar apenas nossa própria produção, especificamente o paper “Os Discursos de Passage: a análise do discurso aplicada a um jogo digital independente” [Vasconcellos e Araujo 2013]. Outros dois short papers já introduziram questões de pesquisa deste trabalho: “Os sentidos da saúde em BioShock e Deus Ex: Human Revolution” [Carvalho et al. 2014a] fez uma primeira aproximação metodológica para a análise; “Racionalidade científica moderna, razão médica e Cyber-Renaissance em Deus Ex: Human Revolution” [Carvalho et al. 2014b] explorou a relação da direção de arte do jogo com os valores do período do Renascimento e a consolidação filosófica da racionalidade científica moderna.

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Renascença. Seu estudo faz uma importante ponte entre a conceituação da saúde e a Ciência e Tecnologia, quando explora como o pensamento mecanicista invade as maneiras de pensar o mundo e a vida, e como é largamente recebido na formação da razão médica até a contemporaneidade. Kenneth Camargo Jr. [2005] também aborda a racionalidade médica mecanicista e problematiza as conceituações de saúde, levantando a necessidade do debate público sobre o tema [Camargo Jr. 2007]. Junto com Peter Conrad [1992], Camargo Jr. também contribui com as discussões da medicalização e do problema da “saudicização” [Camargo Jr. 2013], quando a saúde deixa de ser algo que nos ajuda a alcançar nossos planos de vida e se torna um objetivo de vida em si. Naomar de Almeida Filho [2011] aborda a saúde como um problema filosófico e científico e apresenta uma divisão do conceito de saúde em cinco dimensões: fenômeno, metáfora, medida, valor e práxis.

3. A Saúde, suas perspectivas e os jogos digitais

Na narrativa dos jogos selecionados, a saúde aparece em sua relação com a Ciência e Tecnologia, tanto como causa quanto efeito de inovações. Para este debate, recorremos ao volume “Ciência e Tecnologia em saúde” do Conass [Brasil 2011], que apresenta um panorama sobre a pesquisa científica em saúde e algumas particularidades do desenvolvimento de tecnologias para a saúde. O campo de trabalho acadêmico intitulado “ciência, tecnologia e sociedade” (CTS) também traz contribuições por seus estudos dos aspectos sociais da Ciência e Tecnologia, englobando tanto os fatores sociais que influenciam as mudanças tecnocientíficas, quanto suas consequências sociais e ambientais [Bazzo et al. 2003].

O contexto conceitual deste trabalho de divide em três blocos: Os Sentidos da Saúde, que reúne autores em torno das maneiras de conceituar saúde e doença e de suas relações com a ciência e tecnologia; Comunicação, Jogos e Saúde, sobre questões de comunicação na saúde e contribuições da Ciência da Comunicação para a análise de jogos; e Os Game Studies, que apresenta os jogos e seu campo de estudos e saberes.

Ciência e Tecnologia também nos remetem à criação e desenvolvimento de instrumentos para o exercício do poder, que, neste trabalho, se centram nas questões do corpo e sua saúde. Michel Foucault [1988] nos remete novamente à questão do mecanicismo apontada por Madel Luz [1988] quando aborda o desenvolvimento do biopoder centrando-se, por um lado, na concepção do corpo como máquina e, por outro, no corpo como espécie biológica.

3.1 Os Sentidos da Saúde

3.2 Comunicação, Jogos e Saúde

Recorremos a uma rede de autores, em parte originários do campo da saúde coletiva, que tratam da conceituação da saúde, buscando incorporar suas reflexões para que iluminem a análise dos jogos.

Foi partindo do entendimento dos jogos digitais de entretenimento como mais uma mídia que participa da mediação da produção de sentidos da saúde que este trabalho analisou os discursos da saúde inscritos no dispositivo de enunciação desses jogos.

Czeresnia et al. [2013] investigam a pluralidade dos sentidos da saúde e da doença, além do caráter histórico e ideológico dos mesmos. Dina Czeresnia [2012], com o legado filosófico de Canguilhem, também traz a categoria “vida” como valor crucial para as questões da saúde, em contraposição aos valores hegemônicos e individualistas. Madel T. Luz [1988] vai a fundo na ideologia hegemônica da racionalidade científica moderna, posicionando suas origens na

O campo da Comunicação traz também importantes contribuições teóricas e metodológicas para a atividade de análise de materiais comunicacionais. Para auxiliar em nossa análise, optamos por nos fundamentar no referencial teórico da Semiologia dos Discursos Sociais e na apropriação de alguns princípios metodológicos da Análise de Discursos.

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Segundo Milton José Pinto [1994], a Semiologia dos Discursos Sociais é uma abordagem teórica que propicia perceber como o processo de imprimir sentidos às coisas do mundo e da vida ocorre socialmente e não no plano exclusivamente individual. O autor contribui com a organização dos princípios teórico-epistemológicos básicos da linha do pensamento semiológico na forma de três postulados: o postulado da semiose infinita, o postulado da heterogeneidade enunciativa e o postulado da economia política do significante. Pinto [1999] contribui também com o princípio metodológico da análise comparativa, afirmando que o sentido surge de diferenças formais e não pode ser abstraído de um item isolado. Eliseo Verón [2004] reforça o princípio da análise comparativa e acrescenta outros conceitos importantes para o planejamento da análise como os conceitos de ideologia x ideológico, discursos x textos, desvio x interdiscursividade e enunciado x enunciação. A noção de condições de produção [Verón 1980] foi de grande importância, por permitir considerar os contextos dos quais os jogos emergem, são produzidos e circulam. Eni Orlandi [2003] reforça uma distinção mais clara entre “discurso” e “texto”, separando “discurso” como conceito teórico-metodológico e “texto” como conceito analítico correspondente. Mas sua maior contribuição foi no estabelecimento como marcas discursivas as formas do silêncio [Orlandi 2007] divididas em silêncio fundador e política do silêncio, dividida em silêncio constitutivo e silêncio local. Sua contribuição se estendeu para outras marcas diferentes do silêncio, como o implícito, dividido em pressuposto e subentendido. Dominique Maingueneau [1997] contribuiu com as marcas discursivas designadas “palavras plenas” e “palavras instrumentais”, a partir das quais pretendemos fazer uma livre adaptação para o uso de “imagens plenas” como marcas textuais. Aplicamos esses conceitos na análise dos jogos considerando a diversidade de materiais significantes que operam simultaneamente no dispositivo discursivo dos jogos digitais. 3.3 Os Game Studies Analisar jogos digitais requer o uso do aporte teórico de seu recente campo de pesquisa acadêmica: os Game Studies. Como pudemos perceber após a revisão da literatura, jogos digitais podem ser confundidos com outras mídias interativas em computadores ou outros dispositivos digitais, por isso se fez necessária uma definição de jogo. Jesper Juul [2011] posiciona os jogos digitais em uma longa história dos jogos desde os primeiros jogos de tabuleiro e propõe uma definição que abarca esta amplitude histórica ao mesmo tempo que leva em conta a especificidade dos jogos digitais. Segundo ele “Jogo é um sistema baseado em regras com resultado variável e quantificável, onde diferentes resultados correspondem a diferentes valores, o jogador exerce esforço para influenciar o resultado, se

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sente emocionalmente envolvido por este, e as consequências desta atividade são negociáveis” [Juul 2011]. Tendo como base a definição de Juul, utilizo ao longo deste trabalho o termo “jogo digital”. O termo “digital” primeiramente diferencia o suporte, sabendo que mais que mero suporte para algo já determinado, a especificidade do funcionamento do computador é constituinte do que vem a ser jogo digital. O que vem a ser “jogo” é um ponto de grande diferenciação em relação a outras mídias, enquanto isso, o funcionamento do que vem a ser “digital” envolve grandes diferenciações entre as características dos jogos digitais e demais tipos de jogos. Segundo Bogost [2007] jogos digitais representam o funcionamento de sistemas reais e imaginários, abrindo um novo domínio no campo da retórica, que ele chama de retórica procedimental, definida como a arte da persuasão através das representações baseadas em regras e interações. Mais do que na linguagem verbal, nas imagens e na animação, o coração da retórica procedimental está baseada no funcionamento do computador: computadores rodam processos, executam cálculos e manipulações simbólicas baseadas em regras. Além disso, a diferença entre os jogos digitais e os demais programas de computador é que os jogos, como artefatos computacionais, são a forma mais prevalente de expressão cultural computacional [Bogost 2007]. Neste sentido, entender jogos digitais não somente como meio de comunicação, mas também como programa de computador, implica em reconhecer neles valores simbólicos. Janet Murray [2003] se torna uma autora importante com seu estudo das novas possibilidades do computador, incluindo aí os jogos digitais, como parte da história da evolução das narrativas. No entanto, Gonzalo Frasca [2003] questiona a subordinação do estudo de jogos à Narratologia, apresentando a Ludologia como um enquadramento mais adequado à especificidade dos jogos. Por sua vez, Jesper Juul [2001] problematiza o enfoque narratológico e faz importantes distinções entre narrativa e jogo, colocando a narrativa como subordinada ao jogo e não o oposto. Vasconcellos [2014], a partir de sua pesquisa sobre possibilidades dos MMORPGs para a saúde, contribui com mais aproximações entre produção de sentidos e jogos com seu modelo de Análise Relacional de MMORPGs: Contextos e Dispositivo (ARM), criado para descrever as relações entre jogadores e jogo. Nos apropriamos somente do polo “Dispositivo de MMORPG”, que será utilizado como matriz analítica dos jogos, já que nosso objetivo se concentrou na análise de dispositivo. O que o “Dispositivo de MMORPG” faz é uma disposição de elementos que compõem um jogo, divididos em quatro grandes categorias, “Textos”, “Sistemas”, “Infraestrutura” e “Meio Ambiente”.

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A ficção científica, como gênero originalmente literário que reúne a ficção em várias mídias, é claramente estruturadora da narrativa dos dois jogos selecionados. Os temas que caracterizam o gênero parecem fazer uma ponte entre as questões das chamadas novas tecnologias da informação e comunicação, a relação com o corpo e as interferências da Ciência e Tecnologia sobre a vida. Para este trabalhos, usamos a discussão de Chris Bateman [2014] sobre o gênero, que faz uma pequena relação da história da ficção científica com o positivismo e a cultura em que foi escrita, além de características do subgênero mais atual, o cyberpunk. O ciborgue é uma figura típica desse universo ficcional, relacionada às intervenções da tecnologia no corpo, e foi definido por Donna Haraway [1994] como criatura simultaneamente animal e máquina. Ela considera a ficção científica como parte da realidade social contemporânea, vindo ao encontro de nossa escolha por considerar uma ficção como fruto do contexto em que foi desenvolvida. Fátima Oliveira [2003], a partir da discussão sobre a ficção científica, aborda como a figura do ciborgue problematiza as fronteiras do que pode ser considerado ser humano e explora melhor o subgênero cyberpunk [Oliveira 2002], comum aos dois jogos selecionados. As temáticas cyberpunk destacadas falam diretamente às narrativas dos jogos, quando apontam para a questão da junção humano-máquina como evolução da espécie, o problema do controle ao se estar conectado, o perigo da concentração do poder nos ricos ou em megacorporações, as alterações no corpo possibilitadas pelas tecnologias biomédicas, e a hipótese de que todos somos ciborgues, a partir do momento que temos nossos corpos e o funcionamento de nossas vidas intimamente – e até ancestralmente – relacionados ao uso de tecnologias.

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ou positivamente como funcionalidades, capacidades, necessidades e demandas. Saúde como metáfora; construção cultural, produção simbólica ou representação ideológica, estruturante da visão de mundo de sociedades concretas. Saúde como medida; avaliação do estado de saúde, indicadores demográficos e epidemiológicos, análogos de risco, competindo com estimadores econométricos de salubridade ou carga de doença. Saúde como valor; nesse caso, tanto na forma de procedimentos, serviços e atos regulados e legitimados, indevidamente apropriados como mercadoria, quanto na de direito social, serviço público ou bem comum, parte da cidadania global contemporânea. Saúde como práxis; conjunto de atos sociais de cuidado e atenção a necessidades e carências de saúde e qualidade de vida, conformadas em campos e subcampos de saberes e práticas institucionalmente regulados, operando em setores de governo e de mercados, em redes sociais e institucionais. [Almeida Filho 2011: 27]

A matriz foi enriquecida com as contribuições dos demais autores citados no tópico 3.1. O objetivo do uso da matriz foi também ajudar a desnaturalizar os conceitos de saúde, organizar categorias e, assim, facilitar a análise. Ela não deve ser vista como um instrumento para análise exaustiva, pois algumas dimensões foram mais exploradas que outras, de acordo com as necessidades que a análise dos jogos apresentou. 4.2 Matriz Analítica

4. Metodologia Este trabalho se deteve na análise de dispositivo discursivo, preocupando-se com o modo como a realidade é constituída dentro dos jogos, em que modelos se baseiam, que discursos convocam e produzem [Araujo 2006], que visões da saúde eles fazem circular. 4.1 Matriz Teórica Tendo em vista a pluralidade de abordagens do conceito de saúde e a incapacidade da eleição de uma definição cientificamente determinada, recorremos a uma matriz teórica que organiza o conceito de saúde em cinco dimensões: 1. Saúde como fenômeno; fato, atributo, função orgânica, estado vital individual ou situação social, definido negativamente como ausência de doenças e incapacidade,

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A matriz analítica foi derivada do Dispositivo do MMORPG, contido no Modelo de Análise Relacional de MMORPGs [Vasconcellos 2014], que descreve o jogo entendendo-o tanto como objeto técnico-midiático quanto como espaço virtual. Os diversos elementos que formam um MMORPG são organizados em quatro grandes categorias com suas respectivas subcategorias: • Texto – ambientação, representação e avatar; • Sistemas – mecânicas de jogo, interface e jogador; • Infraestrutura – base tecnológica e aspectos de mercado; • Meio Ambiente – cultura e população. No modelo original, esta divisão dos elementos que compõem um MMORPG não pretende ser exaustiva e é passível de ser livremente adaptada de acordo com o tipo de análise que se deseja realizar e com as características próprias do corpus. Na adaptação feita para este trabalho, a categoria Infraestrutura influenciou

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somente a escolha dos dois jogos e não fez parte da análise por não estar diretamente relacionada ao objetivo do trabalho. Usamos Meio Ambiente para nos darmos conta da influência para a análise que os contextos em que o analista está imerso podem representar. O maior destaque foi dado ao uso das categorias Texto e Sistemas. Jesper Juul [2011] acrescenta que jogos são em parte ficcionais e em parte reais: enquanto suas regras existem no “mundo real”, são objetivas e obrigatórias, o ambiente e a narrativa do jogo são completamente fictícios. Nesta combinação o aspecto ficcional contextualiza as regras, que de outro modo seriam por demais abstratas, e as regras levam os jogadores a imaginar o mundo ficcional. Assim, Texto é a categoria relacionada às formas de representação e à dimensão ficcional, enquanto Sistemas se relaciona à dimensão real dos jogos. Apesar de parecerem separadas, as duas categorias, na prática, funcionam de forma entrelaçada e interdependente. 4.3 Formação do corpus Jogos digitais são, ao mesmo tempo, objetos e processos. Não podem ser simplesmente lidos, ouvidos ou assistidos, mas sempre devem ser jogados [Aarseth 2001]. Dessa forma, a formação do corpus de análise começou com um trabalho de autoetnografia dos dois jogos, o que significa que jogamos os dois de maneira analítica, fazendo notas de campo e capturas de tela [Ellis et al. 2010], em busca de qualquer elemento que pudesse estar relacionado com a conceituação de saúde. Como o objetivo do trabalho está centrado na análise de dispositivo e não de jogadores, para formar o corpus de análise, jogamos BioShock e Deus Ex: Human Revolution tendo consciência de que nossa percepção não seria igual a de jogadores comuns, mas era a de pesquisadores com objetivos específicos e previamente preparados pelo trabalho de pesquisa e formação das matrizes teórica e analítica. Jogamos os dois do princípio ao fim, sempre tomando notas e capturando telas com imagens ou informações relevantes. Como os dois jogos possibilitavam escolhas diferentes a um jogador, após a conclusão de cada jogo, retornamos a alguns momentos de cada um para mudar certas escolhas e conseguir mais material relevante. No entanto, mantivemos em mente que o resultado do trabalho é somente uma análise possível, feita a partir de percursos de jogo entre infinitas possibilidades de outros percursos. Uma análise é sempre um caso específico de recepção, em que é impossível alcançar a produção da totalidade de sentidos possíveis. Ao final, o material acumulado de cada jogo foi usado para analisar comparativamente discursos que faziam intersecções com a conceituação de saúde. 4.4 Aportes da Análise de Discursos O material obtido foi posteriormente analisado com o auxílio de alguns princípios metodológicos da Análise

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de Discursos. Sua análise foi sucessivamente comparativa, em busca de marcas textuais que apontassem para os sentidos da saúde, ciência e tecnologia, com o auxílio da matriz teórica de conceitos da saúde e da matriz analítica que permite descrever o dispositivo discursivo. Baseamos a análise na observação de marcas que as condições de produção deixam na superfície textual. Este processo permitiu superar a opacidade do texto e encontrar o ideológico do dispositivo. Aqui, “texto” não se restringiu à escrita e foi composto da pluralidade de matérias significantes. “Texto” é o objeto empírico para uma análise [Verón 1980]. Os jogos foram considerados textos compostos de uma pluralidade de matérias significantes, incluindo áudio, imagens, animações, regras, mecânicas de jogo etc. Para este trabalho, fizemos uma opção por algumas marcas que foram apropriadas ao objetivo da análise. Buscamos pelas “imagens plenas”, uma livre adaptação feita a partir do conceito de “palavras plenas” [Maingueneau 1997], como imagens que possuem sentidos que dependem do contexto em que estão inscritas. As formas do silêncio identificadas e exploradas por Eni Orlandi [2007] foram conceitos importantes para se encontrar marcas no texto relacionadas ao silêncio fundador e à política do silêncio, dividida em silêncio constitutivo e silêncio local. Outras marcas consideradas foram as formas implícitas, divididas em pressupostos e subentendidos.

5. Análise BioShock [Irrational-Games 2007] mistura ficção científica e horror, contando uma história que se passa no ano de 1960. É um jogo de tiro em primeira pessoa, onde o jogador desempenha o papel de Jack, que encontra a cidade subaquática fictícia de Rapture após seu avião cair no meio do Oceano Atlântico. A cidade foi projetada e construída durante a década de 40 por Andrew Ryan, um magnata de negócios russoamericano com ideais objetivistas, que pretendia criar uma utopia para a elite da sociedade, de modo a florescer fora do controle governamental. É um lugar cujo principal avanço científico foi a descoberta do Adam, um plasmídeo produzido por lesmas marinhas que permite aqueles que o usam alterar o seu DNA, dando-lhes poderes sobre-humanos, mas que também traz efeitos colaterais graves, como deformidades, loucura e morte. A pesquisa científica nesta cidade se desenvolveu livre de impedimentos éticos e o desenvolvimento e a produção desta nova substância incluíram o uso de crianças órfãs primeiramente como cobaias e depois como hospedeiras da lesma para a produção em massa do Adam. O jogo se passa em um momento em que a cidade está em guerra civil pelo seu controle e a utopia inicial já havia desmoronado.

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Jack tenta encontrar uma maneira de escapar, lutando contra enormes quantidades de inimigos enlouquecidos e obcecados por Adam. Raramente se encontra com alguns humanos sãos e através deles acaba por descobrir fatos sobre o passado de Rapture. O jogador, como Jack, consegue derrotar os inimigos com o uso de várias armas, utilizando os plasmídeos que lhe dão poderes únicos. O jogo inclui elementos de survival horror (horror onde o principal objetivo é sobreviver ao ataque de monstros) e possibilita opções de escolhas morais, como matar ou salvar as pequenas órfãs. Deus Ex: Human Revolution [Eidos Montreal 2011] também é um jogo de tiro em primeira pessoa. O enredo é inspirado na literatura cyberpunk e se passa no ano de 2027, momento em que avanços tecnológicos permitem que várias partes do corpo sejam substituídas ou aprimoradas por dispositivos não mais chamados próteses, mas “aprimoramentos”. O jogador controla Adam Jensen, o chefe de segurança das Indústrias Sarif, uma multinacional de biotecnologia que desenvolve e comercializa tais aprimoramentos. Durante um violento ataque à companhia, Adam é mortalmente ferido e, para salvar sua vida, o dono da corporação ordena que praticamente todos os tipos de aprimoramentos disponíveis sejam implantados em seu corpo sem o seu consentimento. Uma frase constantemente repetida pelo personagem é “Eu nunca pedi por isso”. Voltando à atividade, Adam inicia uma busca pelos responsáveis pelo ataque e se vê envolvido nas questões de um movimento para uma política global para o aprimoramento humano, também chamado transumanismo. Uma característica que merece destaque é que o jogo oferece muitas possibilidades de escolha para o jogador. Entre alguns extremos dessas escolhas estão a possibilidade de usar armas pesadas e aniquilar muitos antagonistas e obstáculos ou, pelo contrário, optar por estratégias furtivas e pelo uso de habilidades sociais e chegar ao fim do jogo evitando matar outros personagens. Diferentes escolhas também acarretam diferentes etapas ou finais para o jogo. Com um enquadramento posicionado na dimensão da saúde como fenômeno, destacamos a potência vital dos avatares. O avatar em BioShock parece quase imortal: mesmo atacado pelas armas mais pesadas, suas medidas de saúde decaem lentamente. Ele é mais resistente que qualquer um de seus inimigos e é o único personagem que pode ser ressuscitado infinitas vezes. A explicação é dada sempre pelas incríveis tecnologias que controlam a conformação do DNA, tornando tecidos vivos um material plástico pronto para ser moldado. Esta potência vital também se relaciona com a dimensão da saúde como valor, pois depende da aquisição de insumos que recarregam o total de saúde.

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Em Deus Ex: Human Revolution, o avatar é muito mais vulnerável a ataques. Apesar do protagonista ser um personagem altamente qualificado e fisicamente aprimorado com as tecnologias mais avançadas que existiam à disposição, sua resistência pareceu só um pouco maior que a de inimigos comuns, e inferior à dos inimigos mais poderosos. Essa vulnerabilidade obrigava o jogador a elaborar estratégias para evitar confrontos mais diretos e violentos e a planejar ataques mais racionais aos inimigos poderosos. Por outro lado, diferente do avatar de BioShock, esse avatar é capaz de regenerar sua saúde independentemente do uso de insumos. O jogador não precisa se preocupar tanto em coletar ou comprar produtos para a saúde para manter seu avatar vivo. Os produtos disponíveis podem ser usados para temporariamente aumentar o total de saúde a ser gasto em confrontos, mas somente como uma opção para a jogabilidade, e não como uma obrigação para se manter jogando. A dimensão da saúde como valor foi percebida pela dependência de insumos para a manutenção da saúde, assim como dos poderes, que também estão relacionados à saúde. A questão do acesso aos produtos e serviços nos dois jogos primeiramente aparece em discursos que colocam a tecnologia como um bem comum a todos, capaz de melhorar a vida de qualquer pessoa. No entanto, esses são os discursos das propagandas ou de pessoas que se beneficiam diretamente do sucesso das tecnologias. Em BioShock, os plasmídeos são largamente vendidos para toda a população, apesar de apresentarem efeitos colaterais devastadores. Eles são o produto de uma rápida e predatória corrida mercadológica. O Adam, de onde se originam os plasmídeos, tem efeitos praticamente mágicos e está presente em todos os produtos para a saúde. O mais espetacular deles são as Vita-Chamber, espalhadas em vários pontos da cidade e capazes de trazer o avatar de volta da morte. No entanto, essa tecnologia que concretiza o sonho humano de imortalidade é voltada somente para atender ao DNA do fundador e pretenso proprietário da cidade. O acesso aos sonhos mais maravilhosos de saúde é restrito à elite mais seleta. Em Deus Ex: Human Revolution, os aprimoramentos possuem uma publicidade que os relacionam aos itens de moda e à realização pessoal. As clínicas que comercializam e implantam os aprimoramentos fazem parte de uma rede multinacional que oferece também serviço de crédito. É nessas clínicas que o jogador encontra à venda um dos itens mais caros do mundo do jogo: kits que ativam aprimoramentos, que possibilitam novos poderes ao avatar e novas formas de jogabilidade para o jogador. Existem tensões sociais pelo lado das pessoas “nãoaprimoradas” que se sentem em desvantagem em um meio repleto de pessoas artificialmente aprimoradas e também pelo lado das aprimoradas, pois passam a ter um gasto constante com a cara medicação que evita a

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rejeição das próteses, além de saberem que em um breve futuro elas estarão obsoletas. Assim, em ambos os jogos os produtos relacionados à saúde são desenvolvidos em uma lógica de corrida mercadológica, como forma de superação das limitações normais e naturais do ser humano. A saúde como medida foi observada principalmente nas medidas de saúde e poder dos avatares. Em BioShock, as medidas funcionam como tanques cheios de líquido que se esvaziam lentamente com o dano, no caso da saúde, ou com o uso, no caso do poder. Esses “tanques” são enchidos novamente com o uso de diferentes insumos que preenchem os níveis de saúde e de poder . Esvaziar o tanque de saúde acarreta na morte do avatar, mesmo que ele possua grandes quantidades de insumos para a saúde acumulados. Essas representações já são bastante naturalizadas entre os jogos e são destinadas à informação e administração pelo jogador. Entretanto, em Deus Ex: Human Revolution, essas representações fazem parte da narrativa, elas representam também a visão do protagonista, depois que passou a ser altamente aprimorado por diversos tipos de dispositivos. Diferente dos “tanques”, as medidas aparecem em forma de um pequeno painel luminoso digital. A medida de saúde é dada em porcentagem e a de poder é representada pelo número de baterias e níveis de carga, semelhantes às representações de sinal de telefone e nível de baterias em telefones celulares atuais. Nos dois jogos as medidas se restringem às capacidades físicas, elas não se relacionam a nenhum equivalente psicológico ou a alguma representação de bem estar ou satisfação. A dimensão da conceituação de saúde como práxis é representada principalmente pelas unidades de saúde que aparecem nos dois jogos e pelo campo de práticas científicas relacionadas à saúde. Em BioShock, o grande Pavilhão Médico é todo voltado para procedimentos estéticos, exceto por una unidade de cremação. Parece que o uso do Adam eliminou a incidência de doenças e consequentemente também a oferta de serviços de saúde. Os efeitos colaterais do Adam eram deformidades, morte e loucura, mas para este último distúrbio não encontramos sinais de tratamentos ou cuidado. A saúde mental parece ter sido ignorada como tratamento para a população, e somente aparece em pesquisas e tecnologias específicas com o intuito de controlar pessoas através de condicionamentos mentais. As clínicas de Deus Ex: Human Revolution no início pareciam unidades procuradas apenas por clientes com o intuito de obter e implantar aprimoramentos, como escolhas pessoais, certamente influenciadas por propagandas e uma cultura do fetiche das próteses, como mais uma opção possibilitada pelas diversas ofertas de mercado. No entanto, mais tarde

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percebemos que essas clínicas são na verdade as únicas unidades de saúde disponíveis nas cidades representadas no jogo, assumindo também o papel de hospitais de emergência. Assim, as práticas institucionais da saúde só aparecem voltadas ao âmbito individual e relacionadas à livre escolha de consumidores. Silenciam as questões da epidemiologia e da saúde coletiva, que têm a cidadania como protagonista. O campo de práticas científicas da história dos dois jogos reproduzem alguns dos mitos da ciência, mas mostrando que são somente discursos ilusórios que ocultam muitas outras motivações. Deus Ex: Human Revolution possui um enredo recheado de conspirações. Primeiramente são defendidos os argumentos de que através da ciência seriam criadas tecnologias revolucionárias com o intuito de melhorar a vida de todas as pessoas, mas em seguida se percebe que os interesses primordiais estão relacionados ao ganho de prestígio para os cientistas e à multiplicação do lucro para os que detêm os meios de produção. A fala de uma cientista ainda reproduz o mito da ciência que avança sempre adiante em busca do conhecimento pelo próprio conhecimento, descolado e desinteressado da complexa rede social que envolve a tecnociência. Os cientistas de BioShock reproduzem menos mitos e mostram desde o início a sua face mais cruel, ignorando o bem social e registrando em seus diários seus interesses puramente individuais sobre sucesso comercial. Desprezam o sofrimento humano considerando vidas somente como material de pesquisa e percebem o valor de seu trabalho somente como maiores possibilidades de lucro. Mas há um mito que merece destaque: a criação do Adam se dá depois de uma descoberta acidental, pela observação desinteressada da natureza. A dimensão da conceituação de saúde como metáfora está relacionada a aspectos culturais. Em Deus Ex: Human Revolution a direção de arte investiu na criação de uma estética inspirada na Renascença italiana, por esse ser o período identificado como o momento em que a humanidade se volta para as descobertas do funcionamento do corpo e o traduz como o funcionamento de uma máquina. A relação com a saúde fica mais explícita pelo uso de imagens históricas relacionadas ao campo da medicina. A metáfora do corpo como máquina se reforça pela concepção dos aprimoramentos como peças de reposição do corpo e na maneira com que o jogador administra as capacidades do avatar, escolhendo que dispositivos ativar em cada oportunidade. As informações de saúde e poder do avatar também participam, reforçando a metáfora mecanicista, justamente por proporcionar medidas precisas. Outro reforço apareceu por meio de um discurso que separava mente e corpo, como de este último fosse somente um veículo facilmente reparável, enquanto a mente não seria tão resistente.

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A metáfora mecanizante de BioShock não se centrava em próteses, mas no DNA como a chave para todas as coisas. Usando o Adam, o DNA podia ser alterado para produzir efeitos físicos fantásticos ou até para reprogramar mentes, produzido pessoas que respondem a condicionamentos ativados por comandos simples ou até a redução de pessoas a autômatos irracionais. A mente é uma máquina programável, como um computador. As telas de administração dos poderes do avatar também reforçam a metáfora da máquina quando mostram os poderes prontos a serem encaixados e desencaixados em painéis metálicos. São painéis de aparência pesada, até enferrujados, movidos por engrenagens. Finalmente, há algo importante que silencia nos dois jogos: a doença como fenômeno natural. Entre as diversas tentativas de conceituação de saúde, a doença aparece como categoria inseparável, a ponto de representar a única categoria cientificamente mesurável do “conceito negativo de saúde”, que se baseia na dupla tautologia da doença como ausência de saúde e saúde como ausência de doença [Camargo Jr. 2007]. No entanto, não encontramos a figura da doença como fenômeno natural nos jogos. O sofrimento que mais se assemelha ao adoecimento é sempre causado pelos efeitos colaterais das tecnologias, de suas características violentamente invasivas.

6. Conclusão A análise nos fez perceber que a conceituação de saúde pode ser encontrada em categorias diferentes do dispositivo de jogos digitais. A categoria “Texto” já se mostrava promissora para resultados, pois engloba a narrativa e todo tipo de representação, formas expressivas bem conhecidas em outras mídias como o cinema e demais formas audiovisuais. Entretanto, percebemos que, de maneira entrelaçada com a categoria “Texto”, elementos da categoria “Sistemas” têm importante papel na produção de sentidos.

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O fato da doença não ser representada nos jogos como fenômeno natural, apesar de ser coerente com o ambiente e todas as demais relações de sentido que pudemos desvelar na análise, abre espaço e instiga a novas analises que possam mostrar se essa é uma tendência contemporânea, decorrente da cultura cibernética, ou uma particularidade dos jogos analisados.

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