SAÚDE NO CONTEXTO EDUCACIONAL INDÍGENA: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS DE CIÊNCIAS ADOTADOS EM ESCOLAS MUNICIPAIS INDÍGENAS DE DOURADOS-MS

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SAÚDE NO CONTEXTO EDUCACIONAL INDÍGENA:

ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS DE CIÊNCIAS ADOTADOS EM ESCOLAS MUNICIPAIS INDÍGENAS DE DOURADOS-MS Health in the indigenous educational context: analysis of science textbooks adopted on indigenous schools of Dourados – MS SALUD EN EL CONTEXTO EDUCACIONAL INDÍGENA: ANÁLISIS DE LIBROS DIDÁCTICOS DE CIENCIAS adoptados EN LAS ESCUELAS MUNICIPALES INDÍGENAS DE DOURADOS- MS Regiani Magalhães de Oliveira Yamazaki* [email protected]

Demétrio Delizoicov** [email protected]

REVISTA PEDAGÓGICA

Revista do Programa de Pós-graduação em Educação da Unochapecó | ISSN 1984-1566 Universidade Comunitária da Região de Chapecó | Chapecó-SC, Brasil Como referenciar este artigo: yamazaki, R. M.; DELIZOICOV, D. Saúde no contexto educacional indígena: análise de livros didáticos de ciências adotados em escolas municipais indígenas de Dourados-ms. Revista Pedagógica, Chapecó, v. 17, n. 34, p. 208-221, jan/abr.2015.

RESUMO: O objetivo desta pesquisa é identificar as concepções de saúde e doença presentes em livros didáticos adotados pelos professores de escolas indígenas do município de Dourados, no Estado de Mato Grosso do Sul. Neste trabalho, foram analisadas duas obras – “Projeto Radix: Ciências” e “Ciências Naturais: aprendendo com o cotidiano” – utilizadas no 7º ano do Ensino Fundamental. Por meio das análises, identificamos que a concepção de doença é compreendida como uma visão que se reduz a uma relação de causa e efeito entre o corpo humano e o agente etiológico e a saúde como ausência de doença. Para o enfrentamento desta compreensão, apontamos a necessidade de os professores de ciências abordarem, em sala de aula, o tema saúde e doença, questões de ordem social e política para a desmistificação da produção da doença e da saúde como elemento reduzido à dimensão individual. PALAVRAS-CHAVE: Livro didático. Saúde indígena. Educação escolar indígena. Educação problematizadora. ABSTRACT: The objective of this research is to identify the concepts of health and disease present in textbooks adopted by teachers of indigenous schools of Dourados, in Mato Grosso do Sul. This study analyzed two works – “Radix Project: science” and “Natural Science: learning from the everyday” – used in the 7th year of elementary school. Through the analysis identified that the conception of disease is understood as vision that is reduced to a cause and effect relationship between the human body and the etiologic agent, and health as absence of disease. To deal with this understanding, we point out the need for science teachers address

in class the theme health and disease, the issues of social and political order to demystify the production of disease and health as limited element to the individual dimension. KEYWORDS: Textbook. Indigenous health. Indigenous school education. Problem-based education. RESUMEN: El objetivo de esta investigación es identificar las concepciones de salud y enfermedad presentes en los libros didácticos adoptados por los profesores en las escuelas indígenas del municipio de Dourados-MS. En este trabajo fueron analizadas dos obras – “Proyecto Radix: Ciencias” y “Ciencias Naturales: aprendiendo con el cotidiano” utilizados en el primer ciclo de la Educación Secundaria. A través de los análisis identificamos que las comprensiones de salud y enfermedad, se reducen a una visión donde la enfermedad es comprendida como relación causa-efecto entre el cuerpo humano y el agente etiológico y la salud como ausencia de enfermedad. Para el enfrentamiento de esta comprensión, señalamos la necesidad de los profesores de ciencias abordar en clase el tema salud y enfermedad, las cuestiones de orden social y política para la desmitificación de la producción de la enfermedad y de la salud como elemento limitado a la dimensión individual. PALABRAS CLAVE: Libro didáctico. Salud indígena. Educación escolar indígena. Educación problematizadora.

REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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* Aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), cursando Doutorado. ** Professor Orientador de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

INTRODUÇÃO Iniciamos esta investigação sobre o conceito de saúde e doença presente nos livros didáticos de ciências adotados no Ensino Fundamental das escolas localizadas nas aldeias do município de Dourados/MS, por compreendermos que estes materiais orientam e formam compreensões e conceitos sobre saúde e doença que necessitam ser problematizados junto à população indígena do município de Dourados, ampliando para o aspecto social e político desta abordagem. A cidade de Dourados pertence a Mato Grosso do Sul, estado que, por sua vez, apresenta a segunda maior população indígena do país (73.295 indígenas), o primeiro é o Amazonas, onde vivem 168.680 indígenas. Além disso, segundo os dados divulgados no ano de 2011 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 13.000 indígenas residem nas aldeias de Dourados (BENTO, 2011). Compreende-se, de acordo com Oliveira e Pereira (2009), que o termo aldeia era utilizado para designar pequenos vilarejos e/ou distritos rurais. No Brasil, em decorrência da situação de contato entre os povos indígenas e o Estado Nacional, o termo passou a ser utilizado para designar locais de maior concentração de indígenas, visto que prevaleceu a ideia de que tais famílias vivem em forma de vilarejo sob a liderança de um cacique. Porém, este modelo, não é válido para todos os povos indígenas, inclusive para os Kaiowa e Guarani, o que pode gerar problemas interpretativos a depender do emprego do termo. Mas, no Estado de Mato Grosso do Sul, as terras indígenas são designadas como aldeias, tanto por indígenas como por não indígenas (CAVALCANTE, 2013). Atualmente, uma grande parcela das etnias Kaiowá, Guarani e Terena encontram-se confinadas em duas delas: Jaguapiru e a Bororo. Segundo Cavalcante (2013), os Guaranis e os Kaiowás são grupos indígenas que tradicionalmente habitam a região sul do estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Em Dourados, esse processo teve início e mais eficácia na Aldeia Jaguapiru, onde a presença Terena e Guarani é mais forte. Já na Aldeia Bororo, a presença dos Kaiowás ocorreu na década de 1980. A aldeia Jaguapiru fica a 4 km da zona urbana da cidade de Dourados. Esta e aldeia Bororo somam um território de 9.000 hectares e uma população de aproximadamente 14.000 indígenas. Quanto às famílias que estavam presentes desde a formação da reserva, já não se encontram mais nestas aldeias, pois, por estarem descontentes com as lideranças, acabaram saindo da aldeia e se abrigando em assentamentos, periferias da cidade e fazendas (LOPES; SANGALI; RODRIGUES, 2009). Lopes, Sangali e Rodrigues (2009) acrescentam que esse deslocamento de espaços realizados por muitas famílias contribuiu para a perda de costumes e tradições que eram repassadas de pai para filho. Entre estes costumes e tradições, os autores ressaltam não somente a falta de fé REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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nas plantas medicinais e no benzimento mas também a ausência de cultivo e conhecimento destas plantas na cura de doenças. Então, objetivando resgatar e valorizar estes saberes e práticas dos grupos indígenas, Lopes, Sangali e Rodrigues (2009) elaboraram um projeto com o objetivo de retomar o uso e o cultivo das plantas medicinais, resgatando, assim, os conhecimentos tradicionais relacionados à utilização dessas plantas, além de fazer com que as crianças voltassem a valorizar os ensinamentos e conhecimentos dos xamãs e rezadores da comunidade. Neste trabalho, os pesquisadores buscaram sanar, também, uma das demandas da educação escolar indígena: a carência de materiais didáticos para uso nas aldeias. Esse projeto resultou na elaboração de uma cartilha, com identificação e categorização das plantas medicinais encontradas na aldeia Amambaí conforme os conhecimentos indígenas, destacando a importância tradicional das plantas como medicamento. Certamente, o trabalho desses autores é pertinente para a educação escolar indígena por corresponder a uma educação intercultural, diferenciada e bilíngue. Compreendemos a necessidade tanto do resgate cultural quanto da elaboração de materiais pedagógicos, resgatar e fortalecer conhecimentos tradicionais é de suma importância para a implementação e o desenvolvimento de uma educação intercultural, diferenciada e bilíngue; porém, ao abordar temas relacionados à saúde e à doença na instituição escola, ainda que pelo viés das plantas medicinais, não podemos reduzir esta abordagem a cosmologia e ao resgate e uso destas. Esta é uma das dimensões que necessita estar presente na educação escolar indígena, mas sugerimos que tal abordagem se articule com os problemas sociais presentes nas aldeias. Ao não perceber a realidade como totalidade, na qual se encontram as partes em processo de interação, se perde o homem na visão “focalista” da mesma. A percepção parcializada da realidade rouba ao homem a possibilidade de uma ação autêntica sobre ela. (FREIRE, 2006a, p. 34).

Sendo assim, um dos grandes desafios da educação escolar indígena é estabelecer o diálogo com os saberes tradicionais, com o intuito de avançar no entendimento dos problemas que afetam as comunidades, e buscando, na literatura científica, respostas mais aprofundadas e amplas para as demandas da população indígena. No entanto, precisamos considerar a importância do diálogo problematizador como mediador na elaboração de novos conhecimentos concebendo os membros da comunidade escolar indígena como sujeitos e não objetos. Assim, devemos tecer relações que estabeleçam a comunicação e não a extensão (FREIRE, 2006b); afinal, na perspectiva progressista de educação, o ato de conhecer é concebido REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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como algo dinâmico, que exige uma presença curiosa e participante do sujeito frente ao conhecimento. Portanto, concebendo a dimensão gnosiológica da educação freireana, o educador precisa ser um agente que contribua para “a reflexão crítica da realidade social”. Essa questão é defendida por Freire (2006b, p. 16) quando afirma que o conhecimento exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer, por isso, [...] sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato.

Abordar e articular criticamente o uso de plantas medicinais aos fatores sociais e históricos relacionados à produção da saúde e da doença torna-se necessário para a formação de sujeitos críticos. Compartilhamos que um dos papéis da escola e dos conhecimentos nela veiculados é possibilitar ao sujeito compreensão e apreensão da sua realidade, possibilitando que supere os problemas sociais, por exemplo, os da saúde e da doença, junto aos demais órgãos que enfrentam esses problemas. Neste sentido, o papel do professor é fundamental para a mediação desses saberes. A tarefa do educador [...] é a de problematizar ao educando o conteúdo que os mediatiza e não a de dissertar sobre ele, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado, terminado. (FREIRE, 2006a, p. 81).

Portanto, essa tarefa de conceber a educação como uma situação gnosiológica destaca a relevância da inter-relação entre a problematização e a dialogicidade no desvelamento da realidade social, na elaboração de um processo de conscientização (FREIRE, 2006a). Cabe, então, ao educador compreender o caráter ontológico da problematização que ultrapassa a dimensão de uma mera conversa descompromissada assumindo o seu papel de envolver os educandos na tarefa de pensar criticamente sobre os fatos. Como é inseparável do ato cognoscente [...] a problematização se acha, como este, inseparável das situações concretas. Esta é a razão pela qual, partindo destas últimas, cuja análise leva os sujeitos a reverem-se em sua confrontação com elas, a refazer esta confrontação, a problematização implica um retorno crítico à ação. Parte dela e a ela volta. (FREIRE, 2006a, p. 82). REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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Compreendemos que a educação escolar indígena se encontra em um paradigma distinto do modelo de escola presente na sociedade. Logo, sua elaboração torna-se um desafio. E como todo desafio, seus caminhos são marcados por erros e acertos, conflitos e contradições na implantação de uma prática político-pedagógica que atenta às demandas da população indígena. A educação escolar indígena no Brasil vem obtendo, desde a década de 70, avanços significativos no que diz respeito à legislação que a regula. Se existem hoje leis bastante favoráveis quanto ao reconhecimento da necessidade de uma educação específica, diferenciada e de qualidade para as populações indígenas, na prática, entretanto, há enormes conflitos e contradições a serem superados. (BRASIL, 1998, p. 11).

A abordagem educacional de temas destinados à saúde e à doença ainda é marcada por conflitos e contradições na educação escolar indígena. As abordagens têm ocorrido somente pelo viés da cosmologia ou por abordagens reducionistas de saúde e doença – esta última está presente em livros didáticos. As condições sociais que impossibilitam o indígena de exercer o seu direito à saúde e, também, as doenças que acometem esta população é alvo de preocupação. Na mídia, ainda nos deparamos com informações divulgando as situações precárias dos lugares onde esta população reside, visto que costuma mostrar a falta de saneamento básico, a carência de postos de saúde e de médicos, além de outros agravantes, como: desnutrição, alcoolismo, violência, desemprego. Ressaltamos que as contradições sociais vivenciadas pela população indígena, em especial nas aldeias de Jaquapiru e Bororo, vêm sendo objeto de preocupação da Vigilância Sanitária e da Saúde Pública, devido aos altos índices, por exemplo, de casos de pessoas com tuberculose. Abordar as condições sociais como elemento que propicia essa condição é um fator essencial para superar os problemas relacionados à saúde e/ou à doença. Compreendemos que a posição social de um indivíduo é um dos fatores que influencia sua saúde. Logo, elencar os elementos que aprisionam os sujeitos a esta realidade são fatores de mediação para os professores discutirem a produção da saúde e da doença. Para Freire (2008, p. 87), o mundo “[...] já não é algo sobre que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da educação, a incidência da ação transformadora dos homens”. Barata (2009) assevera que é importante conhecer o sentido que as desigualdades sociais em saúde têm para aqueles que procuram compreender o processo de produção da saúde e da doença nas populações, para não se reduzir, assim, somente aos aspectos biológicos. Segundo a autora, compreender as desigualdades sociais, REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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[...] vai muito além da simplificação habitual presente nas dicotomias “doenças de pobre x doenças de rico ou doenças sociais x doenças biológicas”. Toda e qualquer doença e sua distribuição populacional são produtos da organização social, não tendo sentido falar, portanto, em doenças sócias ou doenças não sociais. (Barata, 2009, p. 15).

Para Barata (2009), a posição social decorre da classificação de três dimensões: classe econômica (ocupação territorial e renda), prestígio social (escolaridade) e poder político. Quando essas dimensões não são contempladas no universo do sujeito, tanto a igualdade social quanto a saúde ficam comprometidas. O presente trabalho não tem a intenção de retomar toda a discussão que envolve os mecanismos de produção da doença e/ou da saúde na população, visto que eles foram abordados no sentido de refletirmos acerca do papel social e político da escola ao discutir temas relacionados à saúde e à doença, em especial, para as populações indígenas. Ressaltamos, por isso, que [...] até o final do século passado, o quadro da saúde dos povos indígenas era de total descaso e as taxas de mortalidade e incidência de doenças eram muito superiores a da população brasileira em geral. Intensificados pelas alterações no seu modo de vida impostas pela colonização como escravidão, trabalho forçado, maus tratos, confinamento e fixação compulsória em aldeamentos, os povos indígenas de forma geral e também os Kaiowá e Guarani tinham como principal agente da mortandade as epidemias de doenças infecciosas. Nas comunidades indígenas do sul do MS, por exemplo, observou-se nas décadas de 1980 a 1990 a morte de muitas crianças por desnutrição, pneumonia e tuberculose, entre outras doenças infecciosas. (Souza, 2011, p. 78).

A Fundação de Assistência ao Estudante (FAE) é o órgão vinculado ao Ministério da Educação e responsável pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). 1

Diante desse relato, voltamos nossa reflexão a um dos elementos mais importantes na veiculação de conhecimento no espaço escolar, em especial à educação escolar indígena: o livro didático1. Como ele é um elemento que orienta as práticas pedagógicas, segundo Delizoicov (1995, p. 12), sua presença em sala de aula ocorre devido: [...] ao poderoso marketing exercido, particularmente, pelas grandes editoras sobre aqueles que decidem os títulos adquiridos pela FAE para serem “doados” às escolas; [...] à pressão exercida por pais e mais particularmente por alunos que reivindicam o direito de posse do livro “doado”.

Apesar de algumas fragilidades que esse elemento possa apresentar, Delizoicov (1995, p. 13) discorre que REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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excluir o livro didático do espaço educacional não é melhor caminho. Aboli-lo torna-se quase que impossível, além de não ser esta a melhor forma de enfrentar a questão do livro didático. Na realidade, ele encobre uma questão mais ampla que é a formação do professor. Fazer uso de um livro didático, com as características apontadas pelas análises realizadas, exige que o professor esteja instrumentalizado para detectar e desvelar as fragilidades implícitas no livro texto bem como em qualquer outro material a ser utilizado em sala de aula. Se a maioria tivesse base teórica e disponibilidade para, através de mecanismos colegiados, analisar e escolher o melhor livro didático, talvez a sua qualidade não estivesse sendo questionada.

Problematizar conhecimentos e práticas veiculadas nos livros didáticos, junto à formação inicial e continuadas de professores de Ciências para o desvelamento de compreensões e abordagens reducionistas de temas científicos é um dos caminhos para enfrentar os problemas apontados. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é analisar a compreensão de saúde e de doença veiculadas nos livros didáticos de Ciências adotados nas escolas municipais localizadas nas aldeias de Dourados.

METODOLOGIA DA PESQUISA Esta pesquisa foi desenvolvida no município de Dourados-MS no primeiro semestre do ano de 2014. Os livros didáticos que foram selecionados para a análise devido à sua adoção por professores que lecionam nas escolas indígenas do município. As obras analisadas foram: “Projeto Radix: Ciências” e “Ciências Naturais: aprendendo com o cotidiano”, adotadas no 7º ano. Os temas investigados foram a compreensão de saúde e doença. As categorias de análise foram: holística (articulação com os fatores biológicos com os aspectos sociais e políticos) e reducionista (relação entre o homem x agente etiológico biológico).

RESULTADO E DISCUSSÃO Os temas investigados nos livros didáticos do 7º ano adotados nas escolas municipais indígenas foram: tuberculose e ascaridíase. Optamos por investigar a tuberculose porque ela é, segundo Amarante e Costa (2000), um dos agravos que acometem com maior freqüência e severidade as comunidades indígenas. Quanto a ascaridíase por estar voltada ao parasitismo intestinal. Segundo Leite (2012), tanto o parasitismo intestinal como as diarréias são conhecidas causas de morbidade entre os povos indígenas REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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do Brasil, especialmente entre as crianças. Em 2002 a FUNASA registrou 614.822 atendimentos ambulatoriais; deste total, 42,7% relacionados a verminoses e 28,8% a diarréias (LEITE, 2012). Na obra de Favalli, Pessôa e Angelo (2012) “Projeto Radix: Ciências”, o Reino Monera é apresentado permeando os aspectos sobre a estrutura, a nutrição, a respiração, a reprodução, a importância da bactéria e sua importância para a vida no planeta terra. A obra descreve, no tópico “Bactéria e Saúde”, que algumas bactérias são benéficas ao corpo humano enquanto outras maléficas, conforme ilustra o seguinte trecho: Uma grande quantidade de bactérias habita partes do corpo humano e de outros seres vivos. Algumas são benéficas e essenciais ao bom funcionamento do organismo que habitam. No entanto, existem algumas bactérias presentes nos organismos, ou mesmo invasoras, que podem causar doenças. (FAVALLI; PESSÔA; ANGELO, 2012, p. 60).

Quanto à tuberculose, o livro apresenta uma imagem de computador ampliada 10.000 vezes e descreve: “A Mycobacterium tuberculosis é um exemplo de bactéria aeróbia”. Ela se aloja nos pulmões dos seres humanos por serem órgãos ricos em gás oxigênio (FAVALLI; PESSÔA; ANGELO, 2012, p. 60). Ademais, a Cólera, a Hanseníase e a Meningite meningocócita são outros exemplos de doenças apontadas pelo livro “Projeto Radix: Ciências”. A dinâmica de suas apresentações está subdividida na tríade: transmissão, sintomas e prevenção. Na obra “Ciências Naturais: aprendendo com o cotidiano”, a apresentação do Reino Monera segue a mesma lógica da obra anterior. A doença tuberculose foi citada como exemplo de bactéria que provoca doenças no ser humano. O livro também apresenta outras doenças, como: tétano, tifo, coqueluche, pneumonia bacteriana, leptospirose hanseníase, meningite bacteriana, cólera e botulismo (CANTO, 2012). Nesta obra, sugerem-se alguns critérios para se trabalhar as doenças apresentadas, entre elas: o agente causador, as formas de contato, a profilaxia, os sintomas, o tratamento, as possíveis consequências ao doente e a possível presença destas doenças nas regiões onde os “alunos” vivem. No caderno de atividades, há um texto do site Médicos sem Fronteira sobre a tuberculose: [...] A doença tuberculose é uma das principais causas de mortalidade no mundo. Apesar de ter cura, ainda mata certa de 1,3 milhão de pessoas por ano. [...] Os métodos de diagnósticos e tratamento usados, em geral, são obsoletos e as pesquisas médicas insuficientes. [...] Dos 9,4 milhões de novos casos de tuberculose registrados anualmente, 440 mil REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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Grifo nossos.

desenvolvem múltipla resistência aos medicamentos. [...] Cerca de 1,5 milhão de pessoas morrem de tuberculose resistente na última década. Dos 5% milhões de contaminados, apenas 1% teve tratamento apropriado. [...] A tuberculose é altamente contagiosa e se espalha facilmente pelo ar. Basta alguém infectado tossir, cuspir ou até mesmo falar para que o vírus2 seja carregado pelo vento. [...] A doença é bastante comum entre crianças, que ainda não têm o sistema imunológico altamente desenvolvido, e pessoas com baixa imunidade, como as infectadas pelo vírus HIV [...] Os métodos para diagnósticos da tuberculose são defasados, caros e inadequados, já que sua pesquisa e desenvolvimento não despertam interesse econômico. [...] O tratamento é longo e complexo. [...] Se interrompido, pode levar o paciente a desenvolver resistência, tornando a infecção mais difícil de tratar. [...] Medicamentos de segunda linha [...] caros e com muitos efeitos colaterais, que exigem tratamento longo e que muitas vezes podem não ser eficazes. [...] A maior parte dos pacientes em países em desenvolvimento não tem acesso a essas medicações. (2011 apud CANTO, 2012, p. 186).

O primeiro ponto que chamamos a atenção se refere ao agente causador da tuberculose explicitado no livro didático. Nesta obra, os autores conceituam a tuberculose como uma doença causada por “vírus”. Evidentemente, essa informação é um equívoco, pois a tuberculose é uma doença infectocontagiosa que, geralmente, assume evolução crônica e tem como agente etiológico a Mycobacterium tuberculosis. De acordo com Bertolli Filho (2001, p. 29): Acredita-se que este micróbio – também conhecido como bacilo de Koch – seja anterior ao próprio homem, sucedendo formas ainda mais elementares de vida microscópica. O encontro entre o germe da tuberculose e a espécie humana levou o agente infeccioso a desenvolver estratégias de adaptação ao novo hospedeiro: além da perda da capacidade de multiplicação no meio exterior, o bacilo inicialmente sofreu um significativo aumento de virulência para, na continuidade, restringir sua capacidade destrutiva, tornando-se um comensal aceitável para os indivíduos e para os agrupamentos humanos.

Na abordagem referente à tuberculose, as duas obras analisadas apresentam uma concepção de doença reducionista por direcionar sua produção na relação exclusiva na relação do homem com o agente etiológico. A ausência de REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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elementos voltados aos aspectos sociais, como as condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer e liberdade, contribui para uma compreensão individual da produção de doença. Essa compreensão reducionista de doença e saúde compromete uma visão holística deste problema. Se a compreensão de doença é a presença de agentes etiológicos, a saúde, por simetria, corresponde à ausência destes agentes etiológicos. Logo, a discussão pode se voltar à compreensão salvacionista e, portanto, ingênua do uso de medicamentos para o enfrentamento do problema. Para Delizoicov (1995), citando Minayo (1992), a saúde deveria se apresentar na seguinte compreensão: A VIII Conferência Nacional de Saúde-1986, em seu relatório final, assim, refere-se à questão da saúde: “Em sentido mais abrangente, a Saúde é o resultado das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. (Minayo, 1992 apud DELIZOICOV, 1995, p. 48).

Essa compreensão também está de acordo com os apontamentos de Barata (2009) que alega, que – quando a ocupação territorial e a renda, assim como o prestígio social e o poder político, não são contempladas no universo do sujeito –, a saúde fica comprometida, pois esta se reflete mediante as desigualdades sociais instaladas. A visão holística, voltada à produção da saúde e da doença em relação às abordagens das contradições sociais, precisa estar presente na prática pedagógica dos professores indígenas que lecionam na educação escolar indígena, para que os alunos se apropriem destes conhecimentos e compreendam a relação dos problemas sociais com a produção da saúde e da doença. Um segundo elemento de análise nas obras “Projeto Radix: Ciências” e “Ciências Naturais: aprendendo com o cotidiano”: a Ascaridíase. Nessa obra, sua abordagem ocorre em nível descritivo com ênfase nas características morfofisiológicas do nematelminto Ascaris lumbricoides, popularmente conhecido como lombriga. O trecho a seguir discorre sobre o ciclo de contaminação no homem: Machos e fêmeas de lombrigas adultas acasalam-se no intestino da pessoa infectada. Uma fêmea pode depositar até 200 mil ovos por dia. Esses ovos são eliminados do organismo humano com as fezes, podendo contaminar o solo, a água e os vegetais. O ser humano pode ingerir alimentos ou água contaminados pelos ovos, que, no intestino, abrem-se e REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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liberam embriões. Os embriões atravessam a parede intestinal e atingem a circulação sanguínea, migrando pelo organismo, desenvolvendo-se e transformando-se em larvas. As larvas instalam-se no intestino delgado e se desenvolvem em vermes adultos. (FAVALLI; PESSÔA; ANGELO, 2012, p. 101).

“Ciências Naturais: aprendendo com o cotidiano” apresenta de forma genérica os aspectos morfofisiológicos dos nematódeos em geral. O Ascaris lumbricoides é apontado na obra como um “parasita” denominado lombriga (CANTO, 2012). De acordo com as análises, as duas obras (FAVALLI; PESSÔA; ANGELO, 2012; CANTO, 2012) apresentam uma compreensão reducionista da doença Ascaridíase, pois esta contempla somente a relação do homem com o agente etiológico. Como apontam os autores Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2011), o livro didático continua prevalecendo como principal instrumento de trabalho do professor, atuando como uma ou a única referência para os professores. Porém, pesquisas realizadas na década de 1970 têm alertado para o fato de os livros didáticos apresentam algumas deficiências e limitações. Entre estas deficiências, encontram-se a abordagem conceitual e metodológica. Indubitavelmente, por melhor que seja um livro didático, é um erro considerá-lo como única fonte de pesquisa para o planejamento das aulas de Ciências, principalmente na educação escolar indígena que busca uma educação diferenciada, específica, bilíngue e intercultural.

CONSIDERAÇÕES finais Ao analisarmos as obras “Projeto Radix: Ciências” e “Ciências Naturais: aprendendo com o cotidiano”, adotadas no 7º ano, identificamos uma concepção de saúde e doença: a saúde é ausência de doença; e a doença é a causa unilateral da relação do homem com o agente etiológico. Compreendemos que essas abordagens são de cunho reducionista e ingênuo, em detrimento da abordagem que permeia a relação causa e efeito entre o corpo humano e o agente etiológico. Reforçamos, diante dos dados levantados, a importância da formação inicial e permanente de professores indígenas em Ciências, para que estes possam potencializar temas como saúde e doença na educação escolar indígena diante de materiais didáticos – e no caso em estudo, o livro didático – que apresentam um distanciamento com a realidade sociocultural da aldeia. Neste sentindo, os Referenciais para a formação de professores indígenas apontam que: [...] espera-se dos professores indígenas, em conjunto com suas comunidades, que tenham possibilidades graduais e progressivas, REVISTA PEDAGÓGICA | V.17, N.34, JAN/ABR. 2015.

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de formular junto dos diversos atores envolvidos nesses programas, as propostas não só de seus cursos de formação, mas as de suas escolas. Nesse sentido, os cursos de formação devem permitir a análise crítica da escola, novo campo cultural/social, pelos professores indígenas. Estes devem ter a capacidade de pensar os projetos escolares, segundo as transformações socioculturais por eles experimentadas, formulando-as em termos curriculares e educacionais. Dessa maneira, os programas de formação precisam dar conta de formar professores indígenas para a pesquisa e para a reflexão pedagógica e curricular, de forma que pensem e promovam a renovação da sua educação escolar, sensíveis às necessidades históricas de sua comunidade. (BRASIL, 2002, p. 23).

Stuani (2010) salienta a importância da formação permanente na ação-reflexão-ação docente, pois, a partir de seus próprios limites, o educador desenvolve o seu pensar sobre sua ação, passando de um olhar ingênuo para um olhar crítico perante o seu fazer. Já Lambach (2013), na interlocução com Freire (2006a, 2006b, 2008), define como uma condição humana a vocação ontológica do ser humano sempre em busca do ser mais. Defendemos a dimensão da formação na ação-reflexão-ação docente, por entendermos que – para além da atualização dos conhecimentos –, a formação necessita discutir o porquê e para que os conhecimentos fazem-se necessários na vida dos educandos. Pensar a formação na perspectiva de formação inicial e permanente, por conseguinte, exige conceber o educador como um sujeito em constante processo de educação e transformação. Saúde e doença, questões de ordem social e política são temas que devem ser problematizados, discutidos pelos professores de Ciências junto à população indígena para a desmistificação da produção da doença e da saúde como elemento reduzido à dimensão individual.

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