Saúde pública, Microcefalia, Zika Vírus e Uma Péssima Comunicação (Em tempos de Web 2.0

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Saúde pública, Microcefalia, Zika Vírus e Uma Péssima Comunicação
(Em tempos de Web 2.0)
Por Silvana Simão

Algumas áreas da ciência e do saber requerem dos técnicos que a elas se dedicam o desenvolvimento de um tipo de raciocínio, método de pesquisa e lógica que contribuem para a criação de um universo de certa forma paralelo ao da vida leiga, do cotidiano das pessoas e que acabam por distanciá-los deste mesmo corpo social sobre o qual sua ciência e técnica se debruça e objetiva conhecer, cuidar, ajudar. Consequência e causa do distanciamento, este universo inclui uma linguagem própria.
O desenvolvimento destas ciências, particularmente no caso das ciências da natureza e da saúde, ao mesmo tempo em que permitiu avanços no domínio da saúde humana e da qualidade de vida, criou também gigantescos cânions na comunicação entre técnicos e leigos. Percebo que mesmo com a melhoria do acesso às informações em nossos dias de conexões em redes globais, ainda não conseguimos nos comunicar... Tal panorama revela-se especialmente danoso às relações entre profissionais da saúde, médicos e pacientes e, em escala exponencialmente maior pela amplitude social que atingem, profissionais, técnicos, acadêmicos, representantes de governos, pesquisadores de instituições governamentais e de universidades, quando chamados a opinar e a orientar a população, não conseguem estabelecer uma comunicação efetiva com a sociedade. Faço aqui eu também um "mea culpa" enquanto profissional técnico da área... Definitivamente, não nos fazemos entender! É o que o atual e triste panorama epidemiológico do país nos revela...
O crescente e assustador número de casos de microcefalia a que assistimos no Brasil no último ano, sua associação com a infecção pelo Zika Vírus transmitido pela picada do mosquito Aedes aegypt, que é também vetor para a transmissão dos vírus da dengue e Chikungunya, tem escancarado este abismo comunicacional entre técnicos e leigos, médicos e pacientes, autoridades sanitárias e o público em geral.
É fato que se trata de uma afecção nova, cuja gravidade surpreendeu a todos e cujos mecanismos de ação pouco se conhece... Tais fatos ensejam ainda maior responsabilidade dos técnicos e autoridades sanitárias quanto à utilização de técnicas apropriadas de comunicação com o público leigo, enquanto os governos, o mundo acadêmico e a comunidade científica correm contra o tempo em busca de respostas e soluções.
Cabe aqui lembrar da responsabilidade da imprensa e dos profissionais da saúde em geral, que são chamados a opinar nestes momentos de dúvidas e angústias frente às novas ameaças à saúde da população.
O boletim epidemiológico de 12/02/2016 do Ministério da Saúde informa que investiga, até o momento, 3.852 casos SUSPEITOS de MICROCEFALIA em todo o pais. Destes, 462 casos já foram confirmados para MICROCEFALIA ou outras alterações do sistema nervoso central, sendo que 41 deles tem relação com o vírus Zika (associação entre histórico de infecção na gestação, exames positivos no feto e gestante, segundo protocolos propostos pelo MS e OMS, para confirmação ou descarte de casos). Notamos aqui a primeira das possíveis confusões relacionadas aos jargões linguísticos da vigilância epidemiológica e em saúde e a população em geral. Habitualmente a vigilância divulga apenas os casos confirmados, mas neste caso, dada a potencial gravidade da situação, optou por divulgar também os casos suspeitos. Vejamos como os números afunilam-se, partindo dos casos SUSPEITOS de microcefalia, passando pelos casos CONFIRMADOS de microcefalia até chegar aos casos com relação ou associação com a infecção com o Zika vírus. Ainda assim, temos uma situação assustadora, porque repleta de fatores desconhecidos, porque grave do ponto de vista clínico, porque potencialmente acarretadora de sérios custos econômicos, psicológicos e sociais, porque em franca expansão, porque as estratégias de controle de vetores não se têm mostrado frutíferas até o momento, porque as sociedades caminham no sentido contrário ao do controle desta e de outras pragas, porque os vírus e suas constantes mutações constituem uma grave ameaça para a saúde humana e porque caminhamos a passos lentos no domínio de tecnologias que os desvendem e controlem, assim como os seus vetores e o meio em que vivemos.
Talvez tivesse sido melhor informar apenas os confirmados, mas é natural nestes casos graves, que os instrumentos de vigilância propostos tenham maior sensibilidade (sejam mais rigorosos para detectar possíveis casos), em detrimento da especificidade (neste caso, teremos muitos casos de "falsos positivos" iniciais, que serão felizmente descartados após a investigação, com muitos SUSPEITOS e poucos CONFIRMADOS). Imprescindível ainda lembrar que a microcefalia é uma malformação congênita do sistema nervoso central com várias causas possíveis, entre elas, vírus como os da rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose, alguns Herpes vírus, bem como drogas de ação central e inúmeras síndromes genéticas conhecidas. Muitas causas ainda não são conhecidas, ou não o eram até bem pouco tempo, como o vírus da Zika... Mais de uma causa pode inclusive estar associada ao mesmo tempo. Ainda não temos acúmulo nem pesquisas suficientes, o que certamente deve se modificar nos próximos anos. Alguns cientistas ainda pedem mais evidências da associação entre Zika e microcefalia, o que do ponto de vista estritamente metodológico pode até ser compreensível. Entretanto, do ponto de vista da saúde pública, as evidências da associação entre as variáveis existentes até o momento clamam por medidas urgentes! Neste sentido, a vigilância epidemiológica com parâmetros rigorosos é válida, ao mesmo tempo em que se intensificam os investimentos e as pesquisas para diagnosticar a infecção e esclarecer os mecanismos da associação entre o vírus e a microcefalia e seus mecanismos de ação no sistema nervoso central em geral. A participação de outros agentes causadores ou potencializadores da microcefalia, isoladamente ou em conjunto com o Zika vírus também deve ser investigada. O fato de outros agentes causarem microcefalia (e causam) em nada diminui a gravidade da situação verificada no surto atual, com a associação entre o Zika em grávidas e a ocorrência de microcefalia nos fetos e recém-nascidos infectados (mesmo que o avanço das pesquisas venha, com o tempo, a minimizá-la, ou, menos provavelmente, descarta-la)! Hoje, a associação já identificada pede ações imediatas!
É preciso ainda ter muito cuidado com alardes sensacionalistas, particularmente de profissionais mais ou menos céticos, que questionam informações e ações oficiais na imprensa e nas redes sociais, propondo alternativas carentes de substrato científico. É fundamental que se recordem dos princípios éticos que norteiam as profissões da saúde, particularmente em momentos de maior demanda social por informações, como nas epidemias, tragédias sanitárias e desastres ambientais! Não basta haver conhecido, ter tido notícias de ou ter atendido inúmeros casos assim ou assado para se tirar conclusões "definitivas" e sair propagando suposições ou impressões subjetivas como se fossem verdades absolutas pela imprensa e pelos meios virtuais digitais! O método científico pressupõe uma série de exigências que objetivam diminuir o peso das subjetividades e controlar, na medida do possível, o maior número de variáveis que possam interferir na análise do fenômeno estudado. É claro que não é perfeito! Quem trabalha com saúde complementar sabe bem o quão longe disto nos encontramos... Mas há que se ter responsabilidade e com a saúde dos outros não se brinca! Ter conhecimento de um ou meia dúzia de casos "aparentemente" relacionados a isto ou aquilo não dá a ninguém o direito de sair alardeando relações causais como verdades estabelecidas! "Achismo" nunca foi ciência: a população não sabe, mas profissionais de nível superior, em especial os da área da saúde, deveriam saber...
Algumas lições certamente teremos que aprender desta epidemia:
- Os vírus, particularmente os retrovírus e sua imensa capacidade de mutação são uma grande ameaça para o futuro da humanidade e sabemos pouco, muito pouco mesmo sobre sua maneira de ação e como controlá-los. Será necessário muito investimento em pesquisa e tecnologia de ponta para desenvolver o conhecimento e o controle de vírus como o Zika, Ebola, Influenza, e outros que sucessivamente nos ameaçarão. Parcerias e convênios multi-institucionais são benvindos!
- É claro que cada um tem que fazer a sua parte, mas as campanhas que colocam o foco da responsabilidade sobre o controle do mosquito exclusivamente na população não têm funcionado. Falta muito investimento governamental em tecnologia para o controle de pragas e vetores e para o saneamento do meio;
- A medicina, a biologia e todas as áreas que tratam da saúde não são, como se sabe, ciências exatas e a construção do conhecimento nestas áreas está em constante modificação, uma vez que os objetos de seu estudo são conhecidos e construídos por aproximações sucessivas, através do método científico, que não raro os desconstroem por completo para reconstruí-los sob novas perspectivas e parâmetros. Como diziam nossos antigos mestres: "En la médecine et dans l'amour, il n'y a pas jamais ou toujours"! (Em tradução livre: Na medicina e no amor, não há nem nunca nem sempre!);
- Para dar conta desta complexidade, a linguagem utilizada pelos técnicos destas áreas distanciou-se de tal forma da adotada no meio leigo que chega a obstruir a comunicação entre os técnicos e a sociedade. Tal comunicação é essencial nas ciências aplicadas, particularmente na área da saúde (em especial entre médicos e pacientes) e entre autoridades sanitárias e a população em geral (em saúde pública) e precisa ser urgentemente repensada!


Alguns sites para consulta sobre o tema:
http://www.who.int/emergencies/zika-virus/en/
http://www.who.int/mediacentre/factsheets/zika/pt/
http://combateaedes.saude.gov.br/
http://combateaedes.saude.gov.br/noticias/320-ministerio-da-saude-investiga-3-852-casos-suspeitos-de-microcefalia-no-pais
http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/situacao-epidemiologica-dados-dengue
http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/22161-esclarecimento-sobre-o-uso-do-larvicida-pyriproxifen
http://www.unicamp.br/unicamp/notic...
http://www.usp.br/imprensa/?p=55253



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Silvana Simão, MD on Linkedin:
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