Schiocchet, Leonardo. 2015. Por uma Antropologia Assimétrica da Palestinidade. In Schiocchet, Leonardo (Org.). 2015. Entre o Velho e o Novo Mundo: A Diáspora Palestina desde o Oriente Médio à América Latina. Lisboa: Chiado Editora. pp.07-49.

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COLEÇÃO COMPENDIUM

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Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida. www.chiadoeditora.com Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde Conjunto Nacional, cj. 903, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil Avenida da Liberdade, N.º 166, 1.º Andar 1250-166 Lisboa, Portugal

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© 2015, Leonardo Schiocchet e Chiado Editora E-mail: [email protected] Título: Entre o Velho e o Novo Mundo: a Diáspora Palestina Desde o Oriente Médio à América Latina Editor: Vitória Scritori Composição gráfica: Ricardo Heleno – Departamento gráfico Capa: Francisco Rivas Foto da capa: Leonardo Schiocchet Revisão: Marina Legroski Impressão e acabamento: Chiado Print 1.ª edição: Julho, 2015 ISBN: 978-989-51-4241-5 Depósito Legal n.º 391671/15

Leonardo Schiocchet

Entre o Velho e o Novo Mundo A Diáspora Palestina Desde o Oriente Médio à América Latina

Chiado Editora Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

Índice Introdução: Por uma Antropologia Assimétrica da Palestinidade  Leonardo Schiocchet..................................................................................7 v PARTE I – ORIENTE MÉDIO v 1 – Fazendo Palestinos Desaparecer: Um Projeto Colonialista  Rosemary Sayigh......................................................................................53 2 – Refutando Invisibilidade: Documentação e Memorialização em Demandas de Refugiados Palestinos  Ilana Feldman..........................................................................................87 3 – Os Refugiados Palestinos na Cisjordânia Doris Musalem e Augustin Porras.........................................................123 4 – O Movimento Pelo Direito de Retorno na Síria: Construindo a Cultura de Retorno, Mobilizando Memórias para o Retorno  Anaheed Al-Hardan...............................................................................139 5 – Populações Imaginadas – Estatística e Não-Estado em Chatila, Líbano Gustavo Barbosa....................................................................................177 6 – Pintores de Beddawi: Entre Criação Artística e Engajamento Político Amanda Dias..........................................................................................217

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v PARTE II – AMÉRICA DO SUL v 1 – Os Palestinos do Peru: uma Forte Identificação com a Palestina  Denys Cuche...........................................................................................253 2 – O “Refúgio” e o “Retorno” entre os Palestinos do Chile: Narrativa Identitária e Discurso Militante Cecília Baeza..........................................................................................297 3 – A “Diáspora Palestina” na Argentina: Militância para Além da Etnicidade  Sílvia Montenegro e Damián Setton.....................................................323 4 – A Pista e a Pena da Diáspora Palestina: Mapeando a América do Sul no Conflito Israelo-Árabe, 1967-1972  John T. Karam........................................................................................361 5 – A Diáspora Palestina: As Organizações Sanaud e a Experiência Geracional Acerca da Identidade Palestina no Sul do Brasil  Denise Jardim.........................................................................................411 6 – Árabes Estabelecidos e Refugiados Palestinos Recém-Chegados ao Brasil: tensões referentes ao “direito de retorno” e a uma “pedagogia de ascensão social” Sônia Hamid...........................................................................................449 7 – Espaços Habitados, Lugares Estendidos: A Experiência Dos Refugiados Palestinos no Brasil a partir de Redes Locais e Transnacionais  Daniele Abilas Prates............................................................................487 Anexo: Bibliografia sobre palestinos na América Latina Compilada pela RIMAAL......................................................................525

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INTRODUÇÃO: POR UMA ANTROPOLOGIA ASSIMÉTRICA DA PALESTINIDADE Leonardo Schiocchet 1 Palestinidade e Cosmologia no Singular Entre o Velho e o Novo Mundo segue ricas trajetórias de palestinos segundo dois eixos concomitantes: o primeiro, histórico, acompanha palestinos desde os tempos da Palestina Histórica2 até o presente dos Territórios Ocupados e do refúgio. O segundo, geográfico, acompanha o deslocamento de palestinos desde a Palestina Histórica até a América Latina. Como o livro demostra, tais trajetórias são melhor compreendidas em sua heterogeneidade e complexidade. Entretanto, em meio à diversidade que os casos apontam, é possível distinguir alguns elementos estruturais intimamente compartilhados. Tais elementos não determinam homogeneamente a experiência de palestinidade no mundo e tampouco em especial na América Latina, mas servem como fortíssimos referentes sociais comuns a partir dos quais a experiência de palestinidade tende a ser construída, transformada, negociada e expressa. Dentre estes principais referentes, estão certos eventos críticos (Das 1997) que, a um só passo, tiveram origem no espaço-tempo da Palestina Histórica e estimularam e continuam a estimular o marco nacional palestino e, com este, uma noção palestina espaço-temporal – tal como desenvolvi em outras ocasiões.3 Esta noção espaço-temporal, por sua vez, informa de forma assaz plural

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uma certa “cosmologia palestina” – entendida enquanto o espaço palestino relativo, segundo os próprios palestinos, no que, por falta de um termo melhor, podemos chamar de “mundo integral”.4 Isto não quer dizer que palestinos em todo o mundo possuam as mesmas concepções de mundo, ou ajam sobre este segundo as mesmas estratégias ou objetivos. O que este livro sugere, ao invés disso, é que tais referentes são coletivamente articulados em arenas de negociação – tanto aquelas palestinas quanto outras que se referem mais ou menos tangencialmente a espaços de palestinidade – e que os diversos contextos que inscrevem estas arenas possuem peso fundamental na articulação de concepções e expressões diversas de palestinidade. Por fim, inerentemente amalgamadas a articulações coletivas postas em marcha através de tais arenas e contextos, estão sínteses individuais que também contestam homogeneidade, contribuindo à pluralidade social. Assim, sugiro ser construtivo entender a palestinidade como uma “tradição”, em um sentido próximo ao que Talal Asad dá ao termo (1993)5. A saber, como uma ampla arena de negociação inerentemente heterodoxa, composta por espaços plurais de pertencimento social e a partir de sua própria interseção a outras arenas, que ao mesmo tempo produz e contesta ortodoxias segundo contextos distintos e interpretações e experiências diversas. É precisamente esta qualidade quase que infinitamente plural da tradição que assegura a própria possibilidade de sua ressignificação histórica e contextual e, com isso, sua continuidade espaço-temporal. Dito de forma mais simples e direta, é precisamente a riqueza de formas pelas quais palestinos vivem, articulam e expressam sua palestinidade, que possibilita a própria identificação de palestinos com algo que entendem, de forma extremamente diversa,

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enquanto uma essência palestina concreta compartilhada por indivíduos hoje dispersos pelo mundo todo. Entre o Velho e o Novo Mundo sugere assim também que, por mais diversa que seja na prática, sujeitos nas mais distantes partes do mundo, desde o Oriente Próximo à América Latina e além, se identificam intensamente com sua palestinidade. Considerando-se as excepcionais dificuldades que os palestinos devem enfrentar para viver como tal – como este livro também profundamente demonstra – o pertencimento social palestino, que, por sua vez, vincula questões tanto de identidade quanto de organização social, é um tema fundamental de questionamento antropológico. Nesse sentido, sugiro que é hora de focalizar esforços conceituais na identificação de amplos referentes simbólicos e largos processos sociais empíricos ao invés de na criação de modelos concretos normativos e absolutos, ou manter-se à sombra de particularismos locais. Devemos considerar a pluralidade empírica como recurso a partir do qual podemos identificar os referentes e processos sociais que, em relação dialética, acabam por constituir as arenas de negociação de palestinidade. Quais são os mecanismos pelos quais os palestinos vivem sua palestinidade e porquê insistem tanto em sua autodeterminação nacional são duas das mais extraordinárias questões exploradas aqui em toda a sua complexidade. A estrutura do livro, com capítulos que podem ser lidos na ordem proposta, aleatoriamente, ou isoladamente, reforça a diversidade da palestinidade e explora diferentes ângulos de aproximação. Não obstante, conceitos analíticos propostos nesta introdução, bem como pelos demais autores do livro, oferecem sólidas oportunidades para mais profundas explorações de cunho comparativo e,

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a partir destas, outras mais generalizantes, ainda que não absolutamente normativas. A despeito do projeto de apagamento dos palestinos como formando “uma comunidade política (...) tal como epitomado pela infame afirmação da Primeira Ministra Israelense Golda Meir em 1969, ‘o povo palestino não existe’” (Doumani 2007), palestinos, hoje em todo o mundo, se identificam como pertencendo a uma única nação palestina. Assim, entendo o termo palestinidade no singular; não por não reconhecer sua inerente diversidade, mas por supor sua multiplicidade empírica, tal como aquela de qualquer generalização de ordem sociológica. Assim, tal como entendo, existem palestinos, no plural, e uma palestinidade, no singular, inerentemente contestada. Através de minha experiência etnográfica com palestinos no Oriente Próximo, Brasil e Europa, constatei que este grupo tende a enfatizar sua unidade social através de experiências e concepções compartilhadas que se sobrepõem a manifestações singulares. Excluindo-se cientistas sociais e historiadores, jamais encontrei um palestino que tenha me falado de “múltiplas Palestinas”. Suponho que se procurarmos suficientemente encontraremos estas exceções, mas isto de forma alguma deve nos impedir de apontar para importantes tendências gerais. Contudo, palestinos tendem não apenas a reconhecer, mas também a celebrar a pluralidade inerente à palestinidade; diferentes vilas, dialetos, tradições, religiões, grupos étnicos, classes sociais, visões políticas e de mundo – algumas das quais radicalmente diferentes umas das outras, algumas das quais até mesmo por vezes classificadas por alguns deles como não correspondendo à “verdadeira palestinidade”. Pontos em comum a todas elas talvez não existam. Uma “palestinidade verdadeira”, oposta a falsos pertencimen-

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tos sociais, também apenas existe enquanto contestada ortodoxia. Entretanto, alguns referentes e processos sociais tendem a conduzir de forma bastante marcante a dinâmica de significação e ressignificação da palestinidade. Este livro possui olhares enfocando ambos estes polos, desde o mais singular ao mais plural e vice-versa, em todas as suas continuidades e contradições. Sua riqueza advém precisamente dessa ausência de normatividade absoluta; dessa trajetória de mão-dupla entre um e outro olhar, diretamente em sintonia com a dinâmica diaspórica palestina que busca explicar. Referentes Espaço-temporais Palestinos Talvez o mais fundamental dos referentes sociais supramencionados seja o que os palestinos chamam de al-Nakba – em árabe, literalmente “a Catástrofe”. Al-Nakba corresponde, segundo o conceito palestino, à criação de Israel em 1948 e, portanto, à origem do refúgio palestino (1947-1948). Como vários autores na primeira parte desse livro demonstram, palestinos não se tornaram refugiados apenas entre 1947-1948, mas também através de outros movimentos subsequentes, sobretudo após a captura de Gaza e da Cisjordânia pelo Estado de Israel durante a Guerra dos Seis Dias (1967) – o que os palestinos denominam de al-Naksa, ou, em árabe, “O Revés”. A origem da questão palestina é, além disso, anterior à Nakba, remontando ao final do século XIX com a imigração e compra de terras palestinas por sionistas, com o interesse explícito de tornar o território exclusivamente judaico (Khalidi 1997; Fromkin 1989). Al-Thawra al-Kubra (A Grande Revolta) de 1936-1939, por exemplo, foi a mais importante insurreição árabe palestina contra o Mandato Britânico e o plano sionista na Palestina an-

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tes da Guerra de 1948 (Swedenburg 2003). Esta revolta também não foi, entretanto, a primeira ou a última, sendo outros exemplos mais recentes as mais conhecidas Primeira e Segunda (Al-Aqsa) Intifadas6, respectivamente, entre 1987 e 1991 e entre 2000 e 2005. Contudo, a Nakba é mais do que um evento histórico, tal como sugerido por Lila Abu-Lughod e Ahmad Sa’di (2007). A criação de Israel é, assim, um dos eventos críticos que sugeri anteriormente, a partir do qual história, identidade e organização social palestinas foram dramaticamente ressignificadas e ao qual são até hoje continuamente indexadas, tornando-se assim parte da cosmologia palestina. Por isso, mais de 67 anos depois, palestinos falam hoje de uma “contínua Nakba7” ao se referir ao sofrimento palestino causado pela história do conflito na Palestina Histórica – tal como Rosemary Sayigh aponta em seu capítulo. Dentre outras coisas, a Nakba tende a evocar fortemente o refúgio. Não apenas o refúgio daqueles que possuem o status legal de “refugiado” segundo o direito internacional, mas também o processo de diasporização palestina como um todo, muitas vezes independentemente de sua relação conflituosa com o sionismo ou Israel. Em minha pesquisa etnográfica entre palestinos no Brasil, por exemplo, muitos descendentes de imigrantes palestinos chegados ao Brasil antes da Nakba também se consideravam “refugiados”, “como todos os palestinos” (Schiocchet 2014d)8. Esta construção revela o caráter social da ressignificação da tragédia e sofrimento palestinos, que vai além da experiência individual. Assim, a Nakba, para além de uma categoria do direito internacional, é também uma categoria cosmológica palestina, dispondo, ordenando e qualificando sujeitos no mundo. E, tal como qualquer

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outra cosmologia, a palestina é também uma arena plural de negociação social. Como al-Nakba e o refúgio9, outros referentes sociais são compartilhados e negociados na arena mais ampla da palestinidade. A ideia de “resistência”, em especial, ocupa um lugar central entre o Desastre e o Retorno utópico (Schiocchet 2013, 2014c, 2014). Outro exemplo bastante conhecido no caso palestino é sua representação como camponeses, que até hoje afeta mesmo aqueles que habitavam ou habitam importantes centros urbanos como Haifa ou Jerusalém – (Swedenburg 1990). Entretanto, al-Nakba condiciona a experiência de palestinidade não apenas como conceito social, mas como categoria de organização espaço-temporal, tal como sugeri anteriormente. A Nakba tende a marcar um passado idealizado interrompido pelo presente do sofrimento coletivo e do refúgio. Outra das mais importantes categorias espaço-temporais palestinas é al-‘Awda (o Retorno). Assim como al-Nakba, al-‘Awda é ressignificada coletivamente, possuindo entretanto lugar mais fundamental entre refugiados10. A maioria dos palestinos hoje tende a associar um futuro retorno à Palestina Histórica, de forma extremamente diversa, com o item “III” (Palestine - Progress Report of the United Nations Mediator), subitem “11” da Resolução 194 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 11 de Dezembro de 1948 (UN 2014). Tal item, Resolve que os refugiados que desejam retornar aos seus lares e viver em paz com seus vizinhos devem ser permitidos a fazê-lo na data mais próxima o possível, e que compensação deve ser paga em relação a propriedades daqueles que escolherem não retornar e por perdas ou danos a propriedade que, sob os princípios de direito internacional ou de direito à proprie-

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dade, devem ser realizados pelos Governos ou autoridades responsáveis (UN [1948] 2014)11.

Durante minha pesquisa etnográfica entre palestinos no Oriente Próximo, na América Latina e na Europa, frequentemente ouvi referências a esta resolução por parte de palestinos de quaisquer classes sociais e nível de escolaridade, especialmente entre refugiados. Como no caso da Nakba, estas referências tendiam a buscar ressonância transcultural e transreligiosa absoluta, ao evocar aos palestinos imperativos morais, mais do que questões de legalidade12. Em outras palavras, ao evocar al-Ḥaqq al-‘Awda (o Direito de Retorno), palestinos transacionam seu espaço nacional ao negociar a ordem cosmológica do mundo, recorrendo a um imperativo moral que esperam ter ressonância universal. Tal imperativo moral é o reconhecimento de sua expropriação e exílio como legitimador de sua autodeterminação enquanto palestinos e, assim, de seu direito de retorno às terras onde antes viviam e que hoje fazem parte do Estado de Israel. Muitos dos palestinos entre os quais realizei pesquisa de campo não desejam pessoalmente retornar à Palestina. E enquanto muitos deles têm receio de expressar este desejo, outros abertamente mantêm que o direito de retorno é algo maior do que o desejo individual de cada um e irredutível a compensações de ordem monetária. Assim, mesmo entre a grande maioria daqueles que não desejam voltar aos lares dos quais se viram obrigados a fugir13, o retorno é uma utopia coletiva diretamente relacionada à possibilidade de autodeterminação. Em outras palavras, há muito mais nas complexas vidas de sujeitos individuais do que apenas sua palestinidade. Contudo, sempre que manifesta, a palestinidade tende a estar fortemente marcada pela ferida aberta da Nakba e pela utopia da ‘Awda.

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Como a primeira parte deste livro aponta, “o Retorno” é ainda mais importante entre refugiados, sobretudo depois dos Acordos de Paz de Oslo. Estes acordos garantiram autonomia relativa à Autoridade Nacional Palestina (ANP) em troca da impossibilidade prática presente de soberania palestina em Gaza e na Cisjordânia, contanto que o Direito de Retorno não fosse sequer parte da pauta. Um dos efeitos mais agudos dos Acordos de Oslo foi assim alienar refugiados de sua cidadania palestina. A ausência de negociações sobre o status dos refugiados significou para estes muito mais do que apenas uma pequena “naksa” política presente. Ao contrário, aos olhos da maioria dos refugiados, esta ausência significou efetivamente um segundo exílio: desta vez, desde a própria utopia nacional palestina tal como antevista pelo corpo político palestino oficial concomitantemente instituído, a ANP. Marginalizados e desacreditados de sua própria utopia, uma minoria se tornou alvo fácil de recrutamento por grupos islamistas extremistas transnacionais. Outros, entretanto, passaram a apoiar outros partidos e movimentos palestinos ainda de cunho primariamente nacionalista, sejam eles secularistas, islamistas ou de outra estirpe. Como líder da oposição, foi então que o Hamas passou a ganhar extraordinário apoio popular e momentum político. Ao mesmo tempo em que os refugiados no Oriente Próximo foram assim mais uma vez politicamente marginalizados, Gaza e Cisjordânia passaram pela primeira vez desde 1948 ao centro político-ideológico de legitimação e autenticação de palestinidade. Até então, como este livro também sugere, a palestinidade não havia sido transacionada primariamente desde a Palestina Histórica. Em verdade, a palestinidade foi elaborada principalmente a partir da diáspora palestina, primeiro desde a Jordânia até 1970,

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depois a partir da ligação da OLP com os refugiados palestinos no Líbano até 1982, e desde a Tunísia até 1991. No entanto, já desde a Primeira Intifada, em 1987, e da proclamação oficial da independência da Cisjordânia pelo Rei Hussein da Jordânia, em 1988, os Territórios Ocupados Palestinos sofreram uma renovação política. Os acordos de Oslo e a formação da ANP representaram assim apenas a solidificação dessa tendência crescente. Porém, a palestinidade é uma noção polifônica.14 Palestinos por todo o Bilād al-Shām15, Europa, América do Norte, Austrália, América Latina e onde quer que estejam, disputam os significados da palestinidade, tanto desde arenas locais, quanto desde plataformas ideológicas transnacionais com base em etnicidade (por exemplo, panarabismo ou pansirianismo), religião (seja o islã ou o cristianismo), classe social ou gênero (através de movimentos sociais populares de empoderamento de uma certa classe ou gênero), entre outros. Além disso, dada a historicidade palestina, a palestinidade tende a ser significada em relação a uma projeção utópica de sua plenitude. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que palestinidade tende a evocar resistência contra as parábolas do passado e do presente, ela se articula profundamente à possibilidade utópica de superação desta condição social liminar. Ou seja, palestinos tendem a pensar a palestinidade em relação ao que chamam de “Causa Palestina” – em árabe, al-Qaḍiyya al-Falasṭyniyya – em si um conceito social altamente polifônico, evocando diferentes significados, estratégias, fins, valores e sentimentos, dependendo de sujeito e contexto. Alguns dos capítulos deste livro lidam mais diretamente com esta dimensão político-ideológica da palestinidade, especialmente os de Anaheed al Hardan, Sílvia Montenegro & Damian Setton e o de Denise Jar-

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dim, enquanto que o capítulo de Daniele Prates investiga mais de perto a questão da liminaridade. Entre o Velho e o Novo Mundo discute esse presente plural palestino, advindo de narrativas e trajetórias largamente situadas na relação entre os espaços concreto, simbólico e utópico vividos e construídos entre al-Nakba e al-‘Awda. Dentre as mais notáveis peculiaridades da diáspora palestina na América Latina seja justamente em grande medida preceder a Nakba, o que marca profundamente a arena latino-americana de palestinidade, tal como os autores discutem em toda a Parte 2 deste livro. Contudo, muito embora a diáspora palestina nas Américas seja significativamente anterior do que aquela na Europa, não devemos esquecer que o Oriente Próximo árabe esteve sob domínio imperial e colonial muito antes do início de qualquer grande onda migratória. Quer dizer, mesmo o movimento palestino mais antigo à América Latina deve ser compreendido segundo um contexto imperial e colonial (otomano e britânico), tal como discutido sobretudo nos capítulos de Denys Cuche e Cecília Baeza. Além disso, o imaginário social palestino sobre a Palestina e a palestinidade foi completamente ressignificado a partir das conquistas respectivamente sionista (final do séc. XIX – 1948) e Israelense (1948- ), tal como apresentado sobretudo no capítulo de John Tofik Karam. Isto, por sua vez, sugere que para além de historicidades, espaços simbólicos e utopias – sejam estes palestinos ou israelenses – processos sociohistóricos concretos são essenciais para uma análise aprofundada sobre a diáspora palestina e sua especificidade latino-americana.

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Neutralidade Acadêmica e Assimetria Social O que há para além das cosmologias e historicidades israelense e palestina?16 Ao tratar da palestinidade e de uma cosmologia palestina (ambas no singular, polifônicas), busco ressaltar a arena de negociação e os processos sociais ligados a esta arena, através dos quais a palestinidade é mantida e transformada, tanto geograficamente quanto historicamente. O mesmo pode ser dito de uma “israelidade” – muito embora este não seja o foco deste livro – e do embate entre ambas pela legitimidade da soberania territorial sobre a Palestina Histórica ou parte dela. Isto, por sua vez, nos leva ao questionamento do posicionamento do cientista social sobre a questão da Palestina. Desde onde pensar o tema? Existe objetividade para além da subjetividade de cosmologias e historicidades? Pensar que não existe objetividade para além de cosmologias e historicidades envolve, em última instância, desacreditar a própria possibilidade de existência das ciências sociais e da história. De fato, a antropologia esteve desde o final da década de 1970, e sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, à frente da desconstrução de si mesma e das outras ciências sociais. Tendências mais radicais propunham mesmo a substituição de análises mais densas e “éticas” por narrativas mais descritivamente “êmicas” – para usar termos advindos da virada linguística que ajudou a precipitar a mudança de paradigma. Falava-se até mesmo então, mais naquela época do que hoje, em uma “crise epistemológica”. Em outra ocasião, destaquei a íntima relação dos estudos palestinos com esta crise na antropologia, tanto como produto quanto como produtora (Schiocchet, EASA). Para o presente exercício, no entanto, basta destacar o papel fundamental de O Orientalismo (1994), de Edward Said, que por sua vez impulsionou a

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ascensão dos estudos culturais e da crítica social como alternativa ao fazer antropológico. Muito embora estas duas disciplinas não tenham de fato substituído a antropologia, esta última acabou por acomodar as duas neófitas em seu próprio seio – incidentalmente, tal como tinha acontecido com a virada linguística – transformando a disciplina de forma duradoura e impingindo a ela um forte tom pós-colonialista de crítica social. Neste livro, Said é bastante crítico à antropologia, que entende como um projeto inerentemente colonialista produtor de visões essencializantes e exotizantes sobre o outro, com o objetivo de possibilitar a ação sobre ele. Em Said, saberes estão intimamente ligados a poderes, assim como para Michel Foucault. A limitação do argumento de Said, entretanto, foi de direcionar sua crítica à essência do exercício antropológico e não a sua gênese histórica. O autor não acreditava no potencial de superação da antropologia. No entanto, a antropologia hoje tem fortes tendências diametralmente opostas àquela que Said criticou, justamente pela capacidade que teve de acomodação dessa mesma crítica. Ao contrário do que propunha, a antropologia não capitulou aos estudos culturais e à crítica social, desistindo de uma vez por todas de seu papel de terceiro termo entre “nós” e os “outros”. Esta não-capitulação, por sua vez, implica um posicionamento para além do relativismo absoluto de dois caminhos radicalmente diferentes; respectivamente, uma postura pretensamente apolítica e outra que se resume à militância política, ambas incapazes de discernir entre discurso “cultural” e práticas e processos sociais empíricos17. De um lado, para além de historicidades e cosmologias palestinas e israelenses, existe o mundo potencialmente visto segundo uma variedade enorme de perspectivas

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alternativas. E, para além destas, existem ainda acontecimentos sociohistóricos que, por mais que possam ser interpretados diferentemente, são mais ou menos passíveis de adaptação a distintas cosmologias, ideologias e historiografias. Em outras palavras, para além de subjetividades, existem também objetividades que limitam e qualificam possíveis imaginações sociológicas. Do outro lado, estão, antes de tudo, a possibilidade de escolha de fundamentos metodológicos e a variedade e qualidade das fontes a que se recorre. Muitas vezes, uma dada cosmologia ou historiografia não destoa de outra com base em fundamentos metodológicos diferentes, mas sim apenas com base na seletividade dos dados de análise. Por fim, algumas interpretações são simplesmente mais prováveis do que outras. Tal é o trabalho, limitado, tanto da subjetividade quanto da objetividade. Contudo, seja qual for a fonte empregada e a cosmologia ou historiografia em questão, existe ainda um aspecto metodológico que merece especial atenção em casos tais como o da questão Palestina: a ficção do “meio-termo”, ou a suposição ingênua de que a “neutralidade” deve ser localizada através de uma busca a priori por simetria, ou seja, independente do exame sócio-histórico de uma dada situação social. Esta busca por uma simetria a priori, por sua vez, se expressa basicamente em duas cores: na pior das hipóteses, a integridade de cosmologias ou historiografias concorrentes tende a ser julgada apenas com base em sua proximidade àquela do cientista social ou historiador. Aquela que se distancia mais de uma visão doméstica, é então taxada de “extrema”, ou “radical”. Já na melhor das hipóteses, todas as cosmologias ou historiografias concorrentes são julgadas segundo um centro relativo a elas próprias, e um esforço legítimo é feito no sentido de

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prevenir etnocentrismo e chauvinismo. Contudo, nenhum destes métodos é suficiente, já que têm como única base legitimadora uma ou outra cosmologia ou historiografia, ao invés da análise de fatos e acontecimentos empíricos em relação aos pleitos relativos das cosmologias e historiografias envolvidas. Enquanto neutralidade absoluta jamais seria possível, a contínua busca por neutralidade não apenas é desejável, como também é fundamento dos próprios métodos das ciências sociais e históricas contemporâneas. Entretanto, neutralidade não poderá jamais ser buscada senão a posteriori, durante e após a análise cuidadosa da situação social em questão. Trata-se assim de descrever uma dada situação social como assimétrica, tal como encontrada em sua forma empírica, de forma a possibilitar uma análise simétrica, e não o inverso. Desta forma, meu título não deve ser visto como crítica à “antropologia simétrica”, tal como sugerida por Bruno Latour (1993). Ao contrário, concordo com o autor no que diz respeito à necessidade de colocar a ciência em perspectiva e a “sociedade Ocidental” sob escrutínio antropológico tanto quanto antropólogos têm colocado seus “outros”. O título desta introdução deve ser lido como uma provocação que enfatiza a assimetria virtualmente inerente a toda a qualquer situação social e a necessidade de produção etnográfica correspondente a ela. Minha provocação visa, assim, apontar para outra dimensão do fazer antropológico, na qual busco aplicar o argumento inverso de Latour, buscando, entretanto, um efeito semelhante. Dentre as principais razões para a sustentação da ficção de um “meio-termo”, para além de chauvinismo, está a bem-intencionada ignorância. Isto é, muitos autores, buscando uma posição pessoal confortável ou apaziguar

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conflitos, se promovem como mediadores cuja legitimidade depende da percepção de sua localização em um espaço equidistante de polos concorrentes. O receio de ser visto como partidário a um ou outro polo, por sua vez, reforça ainda mais a construção do ideal de equidistância que por sua vez é incorporado e internalizado, passando a normatividade metodológica raramente epistemologicamente questionada. Além disso, o problema da ficção do “meio-termo” não é apenas epistemológico, mas eticamente concreto. Na prática, uma situação social é sempre mais ou menos diversa e mais ou menos assimétrica. Assim, para além dos debates sobre a possibilidade ou impossibilidade de neutralidade científica, supor uma tal neutralidade ao centro das diferentes posições é assim beneficiar de forma acrítica aquele grupo mais favorecido pelo sistema de forças analisado, ou o que chamamos de status quo. A busca por neutralidade em um dado processo social analisado deve assim partir de uma análise crítica desta situação em relação a seus pleitos relativos, mas também levando em consideração a assimetria inerente a virtualmente toda a qualquer situação social. Em suma, neutralidade sociológica e compromisso ético implicam justamente em aversão ao “meio-termo”. Alguns poucos exemplos já aceitos pelo senso comum podem ajudar a facilitar o entendimento dessa lógica metodológica que proponho: o posicionamento nazista não é tão válido quanto aquele das vítimas do Holocausto; o posicionamento de escravocratas não é tão válido quanto aqueles das vítimas da escravatura; o posicionamento dos colonizadores europeus não é tão válido quanto o pleito dos colonizados por sua autodeterminação. Entretanto, quando estruturas análogas são encontradas e altamente

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comprovadas em relação ao caso palestino – como é o caso de várias questões levantadas neste livro – a premissa metodológica da simetria a posteriori frequentemente dá lugar a demandas pelo “meio-termo”; seja este essencialmente etnocêntrico ou prescritivo de uma simetria relativa independente da situação social empírica. Não faço, com isso, apologia a uma ética universal. Busco apenas inscrever meu argumento em uma arena plural de negociação de ética acadêmica; reivindicando com isso o posicionamento crítico da comunidade acadêmica em relação questão da Palestina à luz de acontecimentos históricos e estruturas sociais de dominação, ao invés de em relação a uma suposta neutralidade simbólica independente do plano empírico. Em suma, neutralidade, tal como entendo, é diagnosticar a assimetria inerente a qualquer situação social e reconstruir equivalência em termos de ética profissional acadêmica. Poderíamos chamar esta neutralidade de uma “neutralidade informada”, ao invés de sua ingênua contraparte, a “neutralidade desinformada” (ou o meio-termo). Minha linha de argumentação não é necessariamente a mesma daquela de todos os autores deste livro. Entretanto, os capítulos que se seguem não refletem necessariamente um “ponto de vista palestino”, seja ele em termos metodológicos etnográficos (o chamado “ponto de vista nativo”) ou de militância política. Ao contrário, o compromisso dos autores deste livro é primariamente com a ética acadêmica e com a exposição de situações sociais inerentemente assimétricas, tal como estas se apresentam em sua análise. Ao descrever um sistema de forças assimétrico, entretanto, o pesquisador social está destinado a se aproximar mais de algumas cosmologias e historiografias do que de outras. Desde que, a posteriori, esta coinci-

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dência não interfira na neutralidade do pesquisador, contanto que neutralidade seja um exercício de manutenção de independência e rigor analítico, ao invés da busca por um meio-termo fictício, pois toda análise social produz sua própria cosmologia e historiografia, mesmo aquela do meio-termo, mas é o meio-termo que acaba por descaracterizar a situação social analisada, não a busca por neutralidade tal como aqui definida. Os Judeus e as Vozes Esquecidas de Israel Como contraparte à minha proposta de enfatizar a pluralidade inerente a conceitos e categorias sociais ao tratá-los no singular, identifico as vozes que compõe estas arenas como múltiplas. Este livro, do começo ao fim, apresenta a pluralidade de vozes da arena palestina. Nesta sessão, entretanto, discuto de forma bastante concisa a diversidade israelense e judia, incluindo sobretudo vozes dissonantes que raramente são associadas a estas arenas. Para tanto, devemos partir de uma desconstrução da sobreposição total entre Israel, os judeus e o sionismo – que faz parte do discurso nacionalista israelense e que ainda compele muitos a uma visão radicalmente reducionista da complexidade empírica e da pluralidade de cada uma destas arenas de pertencimento social. Esta sessão busca, assim, relativizar o discurso sionista, justificando que nem todos os israelenses são judeus, nem todos os judeus são israelenses, nem todos os judeus e israelenses são sionistas e que, por fim, antissionismo não é antissemitismo. Apesar das séries de casualidades de guerra e expulsões em massa que se seguiram desde 1947, árabes palestinos (muçulmanos e cristãos18) ainda compõem 20,7%, ou 1.688.600 pessoas, da população total de 8.157.300 cidadãos israelenses, enquanto que outras minorias não-ju-

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dias e não-árabes somam 4,2% do total populacional de Israel. Ou seja, cerca de 25%, ou um quarto, da população israelense atual não é judia (Central Bureau of Statistics 2014). Além disto, o parlamento israelense listou, em 2011, 46.382 “infiltradores” (termo usado pelo Knesset para se referir aos indivíduos que pedem asilo no país, em sua maioria africanos), mas listou também 95.000 “residentes ilegais”, ambas categorias de não-cidadãos que, portanto, não figuram nas percentagens acima (Gilad 2011). Estes números oficias são, entretanto, contestados por outros autores. Adriana Kemp, por exemplo, fala em cerca de 300.000 imigrantes ilegais já em 2004 (Kemp 2004). A estes números, somam-se ainda “algumas centenas” de palestinos que entram ilegalmente em Israel à procura de trabalho e cerca de 25.000 palestinos não-cidadãos de Israel, mas detentores de permissões legais de trabalho permanentes e cerca de 5.000 detentores de permissões sazonais – número esse que decresceu em 75% (de 100.000 a 30.000) entre 2000 e 2011, devido a uma mudança de estratégia política do próprio parlamento israelense (Gilad 2011). O número total de judeus cidadãos de Israel citado acima também contabiliza 534.224 “colonos israelenses” nos territórios palestinos da Cisjordânia e Jerusalém Oriental, bem como no território sírio das Colinas de Golan. Cidadãos judeus de Israel, por sua vez, também não são homogêneos em termos étnicos e de país de procedência, dado que a vasta maioria da população judia israelense chegou ao país depois de 1948, vinda do mundo todo (Pappe 2004). Para que se tenha uma ideia, quando Israel foi criado em 1948, a população da Palestina era composta por cerca de 1.070.000 árabes palestinos e 720.000 judeus (Schiocchet 2014a, Visualizing Palesti-

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ne 2013). Os 75% da população israelense que é judia é ainda subdivida em judeus asquenazes (do hebraico “ashkenazim”), de descendência europeia, sefarditas (do hebraico “sephardim”), provenientes da Península Ibérica, e, finalmente, mizrahim (do hebraico “mizrahim”), provenientes do Oriente Médio. Mizrahim frequentemente acusam o status quo israelense, asquenaze, de discriminação racial. Outra subdivisão entre os judeus, dentro e fora de Israel, corresponde não à etnicidade, mas a suas práticas religiosas. Tal como ocorre com o cristianismo e com o islã, não existe apenas uma forma de judaísmo. As correntes mais importantes são: o judaísmo ortodoxo moderno (que funde o judaísmo rabínico com o sionismo político), o judaísmo masorti (ou “tradicional”, de origem asquenaze), o judaísmo reformista (também chamado de “judaísmo liberal”, associado sobretudo aos EUA e à Inglaterra) e, por fim, o judaísmo haredi (ultraortodoxo, popular sobretudo entre comunidades sefarditas). Somados a estas, uma grande parcela da população etnicamente judaica de Israel se identifica como “secularista” ou não-religiosa. Tal como inicialmente formulado por Theodor Herzl, entretanto, o sionismo não é um movimento religioso, mas sim um movimento político-nacionalista que visava a criação de um estado-nacional judaico. Um estado judaico na Palestina então era apenas uma das possibilidades elencadas pelos sionistas, sendo que entre sugeriam parte da Argentina, Uganda, Madagascar, e os EUA (Schiocchet 2014a). Com o tempo, certos grupos religiosos incorporaram toda ou parte da ideologia sionista ao judaísmo, dando origem, por exemplo, ao judaísmo ortodoxo moderno. Outras correntes religiosas judaicas, particularmente os haredim (plural para haredi), viram essa incorporação com desprezo. Judeus haredim são, além disso,

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antissionistas, pois acreditam que o sionismo é contrário aos ensinamentos judaicos. Estes judeus ultraortodoxos são comumente vistos em manifestações pró-palestinas, tanto em Israel quanto fora dele. Em verdade, muitos sionistas não são judeus, mas cristãos sionistas. Entre eles estão alguns dos políticos europeus responsáveis pela negociação e assinatura de importantes documentos tais como a Declaração de Balfour, que viria a dar origem a Israel (Fromkin 1989). Muitos destes cristãos sionistas, sobretudo sua vertente evangélica, sustentam a perspectiva messiânica de que a criação de Israel em 1948 equivale à profecia bíblica do retorno dos judeus à Terra Santa – o argumento diametralmente oposto dos judeus haredim, que consideram tal suposição heresia. Outro mal entendido comum diz respeito ao termo “semita”, que não designa apenas judeus, mas também árabes, malteses, etíopes advindos do Oriente Próximo, entre muitos outros grupos linguísticos e etnicidades autóctones à região. O uso do termo para designar com exclusividade os judeus se popularizou na Europa, durante a primeira metade do século XX, em meio ao preconceito racial difundido não apenas entre a população europeia de forma geral, mas também incorporada a ideologias nacionalistas, tais como o nazismo. Assim, muito embora o uso do termo “antissemita” para designar apenas judeus pode ser considerada etimologicamente incompleta, é comumente aceita internacionalmente. Independentemente destes usos, entretanto, antissionismo e antissemitismo não são sinônimos e não são etimologicamente ou semanticamente relacionados. Antissemitismo pode significar assim, dependendo do uso, o preconceito relacionado a todos os povos de origem semita (incluindo judeus e árabes), ou em seu sentido co-

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loquial mais comum, apenas o preconceito contra judeus. Os haredim, por exemplo, são ao mesmo tempo judeus observantes e antissionistas. Quer dizer, ser antissionista significa ser contra o caráter judaico do estado de Israel, e não ser contra o judaísmo ou mesmo contra a existência de Israel em si – muito embora muitos dos haredim, eles mesmos entre os antissionistas mais extremistas, desejam o fim de Israel em prol de um estado palestino que inclua igualmente toda a diversidade étnica e religiosa local, ao passo que a ANP, por exemplo, já aceitou a solução de dois estados, muito embora se recuse em defender o caráter judaico do estado de Israel. Outro grupo de judeus antissionistas, mais moderado, é aquele de judeus, israelenses ou não, que defende que Israel deve abandonar seu status de estado judaico para se tornar um estado laico e de fato democrático, cujos cidadãos (incluindo árabes palestinos) não seriam discriminados segundo credo e/ou etnicidade. Em negociações de paz com os palestinos, a principal bandeira do estado de Israel tem sido a do reconhecimento palestino do caráter judaico deste estado, que os palestinos se veem obrigados a rejeitar, senão por outras razões, pelo simples fato de que 20,7% da população de Israel ser de origem árabe palestina (Schiocchet 2015, no prelo). Importantes acadêmicos e jornalistas fazem parte deste último grupo. Judith Butler, por exemplo, entende que Há aqueles que dizem, por exemplo, que qualquer criticismo a Israel é, em si, ou efetivamente, antissemítico, assumindo que judeidade e Israel são a mesma coisa. Mas é possível desejar um estado diferente aos judeus com base em valores judaicos. Uma opinião dissidente sobre o estado de Israel, suas fronteiras atuais, sua base constitucional, suas políticas militares e econômicas em relação aos palestinos, igualam-

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-se a “intolerância”? É possível fazer tal crítica em uma pesquisa, ou em atividades de extensão, e ainda ser elegível a um subsídio de pesquisa da Ford Foundation? Que medida deve ser utilizada para adjudicar a alegação que alguns ou todos estes pontos de vista constituiriam intolerância ou discriminação?19 (Butler 2016)

Mesmo nos EUA, e mesmo sob extrema pressão estrutural em muitas universidades norte-americanas, a maior parte dos especialistas em Oriente Médio reconhece a violência israelense contra os palestinos. Em Israel, um grupo ainda pequeno (mas em rápido crescimento) de cientistas sociais e sobretudo de historiadores, conhecidos como “pós-sionistas” e “novos historiadores”, tem questionado radicalmente a história nacionalista israelense e denunciado sua estrutura de ocupação de terras internacionalmente e legalmente reconhecidas como palestinas. Assim, o cabo de força entre sionistas e não-sionistas, antissionistas ou pós-sionistas não pode ser definido em termos de judeus ou israelenses contra palestinos, muçulmanos ou árabes. O sionismo é uma ideologia política irredutível a etnicidade e religião. Personalidades e intelectuais judeus, dentro e fora de Israel, têm historicamente denunciado o massacre do povo palestino ou a própria ideia de um estado judaico. Além de Judith Butler, figuram entre estes, por exemplo, Hannah Arendt (que deixou o movimento sionista por desilusão), Isaac Asimov, Albert Einstein, Sigmund Freud, Erich Fromm, Emma Goldman e Primo Levy. Hoje, somam-se a eles ainda intelectuais tais como Dan Rabinowitz, Noam Chomsky, Oren Yiftachel, Uri Avneri, Uri Davis, Ilan Pappe, Norman Finkelstein, Richard Falk, Avi Shlaim, Howard Zinn, Amy Goodman, Peter Singer, Nao-

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mi Klein, Shlomo Sand, Jon Steward e outros – todos reivindicando que o Estado de Israel não possui o monopólio da voz dos judeus. Além de intelectuais, dentre os judeus “dissidentes” (pejorativamente chamados de self-hating Jews por alguns sionistas) estão rabinos, ex-oficiais do exército israelense (conhecidos como “refuseniks”20) e sobreviventes do Holocausto. Recentemente, um grupo de antropólogos de todo o mundo assinou uma petição para expressar nossa oposição às constantes violações israelenses dos direitos dos palestinos, incluindo a ocupação israelense da Faixa de Gaza, Cisjordânia, e Jerusalém Oriental, e para boicotar instituições acadêmicas israelenses que são cúmplices destas violações (...) Tel Aviv University, the Hebrew University of Jerusalem, Bar Ilan University, Haifa University, Technion, and Ben Gurion University, declararam publicamente seu apoio incondicional às forças militares israelenses (Anthropologists for the Boycott of Israeli Academic Institutions 2014).21

Entre as várias centenas de assinantes desta petição, estavam alguns dos mais proeminentes nomes contemporâneos da disciplina: Lila Abu-Lughod (Columbia University); Talal Asad (CUNY Graduate Center); Dawn Chatty (Oxford University); Jean Comaroff (Harvard University); John Comaroff (Harvard University); Arturo Escobar (UNC Chapel Hill); Hildred Geertz (Princeton); Akhil Gupta (UCLA); Charles Hirschkind (UC Berkeley); Dorinne Kondo (University of Southern California); Brinkley Messick (Columbia University); Aihwa Ong (UC Berkeley); Sherry Ortner (UCLA); Deborah Poole (Johns Hopkins University); Ann Laura Stoler (New School for Social Research); Michael Taussig (Columbia University); Anna Tsing (UC Santa Cruz) e outros

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(Anthropologists for the Boycott of Israeli Academic Institutions 2014). Esta petição foi apenas a última em uma série de esforços acadêmicos de repúdio à atitude do governo de Israel contra os palestinos. Outra petição recente foi a da American Studies Association, que votou democraticamente a favor do boicote a instituições acadêmicas israelenses em protesto contra o apoio destas à violência israelense conta palestinos22, gerando enorme polêmica no meio acadêmico internacional (American Studies Association 2014). Em suma, não apenas Israel está longe de não representar a totalidade de seus cidadãos, como também está longe de representar o judaísmo. Outrossim, o número crescente de intelectuais e especialistas que se colocam contra as políticas de estado israelenses reforça profundamente meu argumento de que uma postura academicamente “neutra” está longe do “meio-termo” advogado por uma neutralidade desinformada. Entre o Velho e o Novo Mundo O Palestinian Bureau of Statistics cita a seguinte composição demográfica mundial palestina para o ano de 2010: dos 10.972.158 palestinos em todo o mundo, 37,5% deles residia nos Territórios Palestinos (4.108.631 indivíduos), 12,4% em Israel (1.360.214 indivíduos), 44,4% em países árabes (4.876.489 indivíduos), e apenas 5,7% em “países estrangeiros” (626.824 indivíduos) (Palestinian Bureau of Statistics 2010). De acordo com Baeza (2014) cerca de meio milhão de palestinos e seus descendentes residem atualmente na América Latina, fazendo do grupo de longe a maior ghurba23 (diáspora) palestina fora do mundo árabe.24 Uma das grandes polêmicas sobre a imigração palestina (assim como aquela do Bilād al-Shām em geral) para

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as Américas, é relacionada a sua motivação. Enquanto alguns autores enfatizam o empreendedorismo, outros enfatizam fuga da opressão otomana.25 Independentemente da ênfase, esta migração gerou comunidades Palestinas bem-estabelecidas nas Américas, as maiores delas respectivamente no Chile, EUA, Honduras, México, El Salvador, Brasil, Peru e Colômbia. Além destes, a Europa abrigava, em 2005, cerca de 191.000 palestinos (Shiblak 2005: 12), enquanto que a Austrália abrigava, em 2002, entre 10.000 e 15.000 (Batrouney 2002)26. Em parte por conta do interesse político direto na questão palestina e no Oriente Médio de forma mais geral nos EUA, a diáspora palestina nos EUA, que já contava com cerca de 200.000 palestinos em 2001 (Chirstison 2001: 74), é relativamente bem documentada em comparação com as outras.27 Cerca de metade dos palestinos residentes nos EUA, até 2000, eram de origem cristã, muito embora o número de muçulmanos tenha aumentado consideravelmente na última década relativamente ao número de cristãos. Alguns dos palestinos chegaram aos EUA junto a sírios já no início do século XX, mas muitos deles chegaram apenas depois das revoltas de 1936 ou depois da Nakba (1948), enquanto que a grande maioria aportou nos EUA somente depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967 (Schulz & Hammer 2003). A comunidade palestina americana esteve mais visivelmente envolvida do que a latino-americana na promoção da causa palestina. Esta visibilidade, entretanto, não significa que palestinos na América Latina tenham estado menos politicamente ativos do que sua contraparte na América do Norte, tal como este livro demonstra. A Alemanha e a Escandinávia abrigam as maiores comunidades palestinas europeias, ainda que muito pouco

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tenha sido escrito sobre estas comunidades, mesmo quando comparado a outras importantes diásporas palestinas tais como a das Américas. Para além de migrações individuais, a primeira onda de migração palestina para a Europa aquela composta por alguns servidores civis da autoridade do Mandato Britânico na Palestina e estudantes que foram ilhados na Grã-Bretanha depois de 1948. Esta migração é portanto muito mais recente do que aquela para as Américas, além de muito menor. Foi apenas a partir dos anos 1960 que algumas centenas de trabalhadores palestinos chegaram à Alemanha, sobretudo provenientes da Jordânia, como parte do programa de reconstrução daquele país (Shiblak 2005: 10). Como alternativa ao Líbano durante a guerra civil, os EUA e a Grã-Bretanha serviram como destinos para muitos empreendedores palestinos, seguindo-se a estes profissionais liberais (Hanafi 2001: 151). Como aconteceu décadas antes nas Américas, na medida em que estes imigrantes se estabeleciam na Europa, outros seguiram seus passos. Além disso, a Europa era muito mais aberta à imigração motivada por pedidos de asilo e refúgio naquele tempo do que é hoje. Baseado nestas motivações e parcialmente se beneficiando dos laços criados pela primeira geração de imigrantes, ondas de palestinos refugiados especialmente vindos desde o Líbano, entraram na Europa, primariamente na Alemanha e depois na Escandinávia. Como resultado, dos palestinos que habitavam a Alemanha em 2005, por exemplo, cerca de 80% eram provenientes do Líbano (Shiblak 2005: 12). Muito embora não possua números precisos, minha recente pesquisa de campo em Aarhus – ainda não publicada – confirmou que esta porcentagem pode ser até maior no caso da Dinamarca e na Suécia.

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Em suma, cerca de metade dos palestinos hoje vive fora da Palestina Histórica, na diáspora. A maior parte dessa diáspora se localiza, por sua vez, no Oriente Próximo e na América Latina. Mas enquanto palestinos no Oriente Próximo têm sido suficientemente estudados, o mesmo ainda não pode ser dito em relação aos palestinos da América Latina. Além disso, estas duas produções não gozam de um diálogo muito próximo – tal como ocorre no caos do estudo de sírios e libaneses, por exemplo – salvo algumas poucas exceções. Ao reforçar esta ponte transcontinental, o presente livro busca assim mitigar esta limitação. Finalmente, em 9 de outubro de 2014, o International Crisis Group publicou em seu website uma nota sobre a importância de fazer reemergir a questão dos refugiados para uma solução ao conflito israelo-árabe. Nesta nota, a ONG também faz notar que Refugiados cada vez mais têm se dado conta de que privação socioeconômica não é a única forma de manter sua identidade; o revigoramento de estruturas políticas para nutri-la e promover suas aspirações seria mais efetivo e humano (International Crisis Group 2014).28

Como este livro demonstra – e em especial o capítulo de Feldman – ao contrário do que o trecho assume, palestinos refugiados têm historicamente desenvolvido estruturas e estratégias visando sua autodeterminação, muito embora estes esforços nem sempre tenham estado em linha com projetos desenvolvidos por elites políticas (Allan 2014). Além disso, este livro também demonstra que, não obstante a obtenção de cidadania plena e relativamente confortável situação socioeconômica, os palestinos na América Latina têm continuamente se mobilizado poli-

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ticamente, evocando sua palestinidade, em prol daquilo que entendem como uma causa coletiva palestina. Trajetória Entre o Velho e o Novo Mundo tem um duplo objetivo fundamental: apresentar a pesquisa de ponta sobre os palestinos no Oriente Próximo ao público lusófono e compilar a pesquisa de ponta dos estudos sobre palestinos especificamente na América Latina. Assim, este livro apresenta alguns os mais importantes pesquisadores do tema ao passo em que exibe a variada gama temática do campo por eles constituído. Dos autores dos capítulos que se seguem, oito são antropólogos, enquanto que os seis restantes são historiadores, sociólogos e especialistas em relações internacionais. Mais especificamente, cada capítulo dialoga de forma diversa com as noções palestinas de al-Nakba, al-‘Awda e/ou a palestinidade. Recentemente, a antropóloga Diana Allan enfatizou a necessidade de se manter a uma distância segura do discurso nacionalista palestino (Allan 2013). Este livro mantém tal distância, colocando discursos, práticas e sentimentos de pertencimento nacional em perspectiva, sem entretanto com isso deixar de notar sua importância para a vida dos palestinos. Essa importância é certamente relativa e mais ou menos expressa (de diferentes formas) segundo contexto e sujeito. Entretanto, tende a se tornar imperativa frente a brutalidade do conflito e da impossibilidade de ignorá-lo, o que ocorre mais enfaticamente no Oriente Próximo do que na América Latina. Nesse sentido, aliado ao fato de que a imigração palestina na América Latina em grande medida precede a Nakba, o novo continente comporta possibilidades sociais únicas, já que a palestinidade ali não é necessariamente

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um imperativo moral inescapável tanto quanto no Oriente Próximo - historicamente sobretudo em Gaza e no Líbano e, infelizmente, hoje também no Iraque e na Síria. Entre o Velho e o Novo Mundo é composto por duas partes. A Parte I examina processos sociohistóricos que estruturam a vida de palestinos no Oriente Próximo, tanto daqueles que permaneceram em território palestino, quanto daqueles que vieram a formar comunidades palestinas no Oriente Próximo. No capítulo inicial, a eminente antropóloga e historiadora oral Rosemary Sayigh, pioneira da pesquisa de campo entre palestinos refugiados desde o início da década de 1970, investiga o impacto do movimento sionista, do Mandato Britânico e da criação de Israel na história palestina e, com isso, como refugiados deixaram o território que hoje corresponde a Israel, dando início à sua diáspora mundial. No capítulo 2, Ilana Feldman discute práticas de visibilidade palestinas após a Nakba. Seu foco é Gaza, que foi palco de densa e original pesquisa de campo por parte desta autora. Publicado originalmente na principal revista acadêmica de estudos sobre refugiados, o Journal of Refugee Studies, da Oxford University, este capítulo é leitura fundamental para aqueles que buscam saber como palestinos conseguiram manter vivas suas demandas e resistir ao seu desaparecimento enquanto povo. No capítulo 3, Doris Musalem e Augustín Porras trazem dados demográficos concretos sobre os palestinos da Cisjordânia. O foco destes autores está, sobretudo, sobre as semelhanças e diferenças entre a população de cidadãos palestinos e a população refugiada. O capítulo 4, de autoria de Anaheed al-Hardan, foi originalmente publicado no Journal of Palesitne Studies, do Institute for Palesitne Studies da Columbia University – um dos mais importantes institutos de estudos palestinos

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no mundo. Em seu capítulo, al-Hardan apresenta um retrato compreensivo da comunidade de palestinos refugiados da Síria, que vem sofrendo alguns dos piores golpes da guerra que se seguiu aos eventos da primavera de 2011. O tema principal de al-Hardan é o “Movimento pelo Direito de Retorno”, um movimento de cunho popular que revela a intrincada relação entre práticas sociais populares e lideranças políticas para a dinâmica de pertencimento social palestina. No capítulo 5, Gustavo Barbosa discute governamentalidade e a produção de estatísticas no campo de refugiados palestinos Shatila, no Líbano. Apesar do tema, o que Barbosa chama de “biografias de trabalho”, densas notas etnográficas trazidas pelo autor como base de sua argumentação, faz deste é um dos capítulos mais vivamente etnográficos do livro. Já o capítulo 6, de autoria de Amanda Dias, conclui a primeira parte do livro, ao discutir a relação entre a arte produzida no campo de refugiados palestinos Beddawi, no Líbano, e o ativismo político. Etnograficamente enriquecido pelas ilustrações artísticas que discute, Dias nos convida aqui a pensar, a partir do ponto de vista destes artistas, a possível existência ou ausência de uma “arte palestina” e a significação local da “militância política”. O capítulo 7, do antropólogo francês Denys Cuche, inicia a Parte II deste livro, atracando finalmente na América do Sul. Esta parte trata como um todo do estabelecimento de palestinos na América do Sul, desde a primeira leva de palestinos ao final do século XIX, até a chegada mais recente (2007) de um grupo de palestinos, refugiados saídos do Iraque como consequência da guerra, e reassentados no Brasil. O detalhamento histórico de Cuche dos motivos e processos que trouxeram os palestinos (sobretudo então cristãos) desde a Palestina à América Latina

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já desde o final do século XIX, confere ao presente livro profunda perspectiva histórica. O antropólogo enfoca o Peru e a forma como os palestinos foram aos poucos se integrando ao tecido social peruano, através da complexa “dupla identificação” destes palestinos tanto ao Peru quanto à Palestina. O capítulo 8, de Cecília Baeza, dialoga de forma bastante próxima com o de Cuche sobretudo em dois pontos: a relação entre a imigração palestina ao Peru e ao Chile, bem como os predominantes relatos dos palestinos sobre sua vinda à América Latina como “fuga” do Império Otomano – tal como é também o caso entre sírios e libaneses. A tônica de Baeza, entretanto, é mais diretamente em como “o refúgio” e “o retorno” são pensados pelos palestinos no Chile. Seguindo-se a ele, o capítulo 9, de Sílvia Montenegro e Damián Setton, retoma a discussão de Dias sobre a relação entre palestinidade e ativismo, mas desta vez em solo argentino e enfocando o universo associativo palestino local. Um dos maiores méritos deste capítulo é demonstrar como palestinos “habitam” vários “espaços” socio-políticos argentinos, sobretudo o muçulmano, o árabe e aquele da política local. O capítulo 10, de John T. Karam, foi originalmente publicado no Journal of Latin American Studies e apresenta a análise do autor de um caso judicial como veículo para sua discussão sobre a relação entre o Oriente Médio (e, em especial, a Palestina) e a América do Sul. O curioso caso, que deve despertar o interesse do leitor, é centrado no Paraguai à época da ditadura de Stroessner e envolve dois palestinos de Gaza, uma agência de viagens israelense, a embaixada israelense no Paraguai, uma corte paraguaia e um advogado sírio-libanês, repercutindo em todo o Cone Sul. O Capítulo 11, de Denise Jardim, volta a enfocar a relação entre palestinidade, ativismo político e vida associativa,

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mas desta vez no Brasil. O ponto focal de Jardim são as organizações Sanaud no Brasil, mas discute também a diversidade de narrativas palestinas sobre a diáspora, o próprio uso do termo diáspora para o caso palestino, além de outros temas associados. Os últimos capítulos, 12 e 13, de Sônia Hamid e Daniele Abilas Prates respectivamente, são os únicos da segunda parte do livro que lidam diretamente com um grupo de palestinos com status oficial de refugiado. O contraste entre o grupo de refugiados analisados por Hamid e Prates e aqueles de imigrantes palestinos na América Latina presentes nos outros capítulos encerra o livro convidando o leitor a considerar a centralidade da dimensão transnacional para um povo essencialmente diaspórico. A trajetória percorrida por este livro, portanto, não se encerra ao sul do novo continente, mas retorna a todo momento à Palestina dos palestinos, independentemente de sua localização e extensão simbólicas. Bibliografia ABU-LUGHOD, L. ; SA’DI, A. (eds.). Nakba: Palestine, 1948, and the Claims of Memory. New York: Columbia University Press, 2007. ALLAN, D. Refugees of the Revolution: Experiences of Palestinian Exile. Stanford: Stanford University Press, 2013. AMERICAN STUDIES ASSOCIATION. ASA Members Vote To Endorse Boycott of Israeli Academic Institutions. Disponível em: . Acesso em 15/10/2014.

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tenham necessariamente que fazer parte de uma tradição. Assim, a cosmologia palestina, ou a arena de palestinidade, negocia elementos advindos das tradições islâmica e cristã, dentre outras. Conceitos antropológicos como “cosmologia”, “rituais” e “mitos” não são muito populares em se tratando do campo da antropologia dos palestinos. Isto porque o campo dos “estudos palestinos” é por definição multidisciplinar e o leitor não familiarizado com o jargão antropológico tende a julgar que estes termos exotizam o “outro”. Entretanto, tais conceitos antropológicos são hoje utilizados “simetricamente” (veja nota 18 sobre Bruno Latour e a antropologia simétrica) para todo e qualquer grupo humano estudado por antropólogos, seja ele composto por palestinos ou por alemães, israelenses, elites políticas, ou “tribos urbanas”. Esta introdução reitera a importância explicativa particularmente dos conceitos antropológicos “cosmologia” e “tradição”. 6 Intifāḍa, em árabe, significa precisamente “insurreição, revolta”. 7 Expressa em árabe de diversa formas, e.g. “194?”, “al-Nakba al-istimrariyya”, e outras. 8 Esta reivindicação de parte dos imigrantes palestinos causou conflito entre gerações de imigrantes mais bem estabelecidos e o grupo de refugiados palestinos reassentados no Brasil em 2007, entre os quais realizei pesquisa de campo. Sônia Hamid relata situações semelhantes em seu capítulo neste livro. Veja também (Hamid 2012). 9 Aproximações entre al-Nakba e o refúgio tendem a se dar sobretudo através do conceito de “refugiado” (em árabe, sing. lāji’, pl. lāji’in). Muitos destes imigrantes me explicavam que, tal como aqueles que possuíam o status oficial de refugiados, eles também estavam legalmente barrados de retornar à Palestina caso quisessem. É importante ressaltar aqui a existência desta lógica para além da possibilidade ou impossibilidade prática de retorno individual. Além disso, entre imigrantes estabelecidos há muito tempo nas Américas, muitas vezes o mahjār (lugar de emigração) é pensado simbolicamente como refúgio, sobretudo dado que muitos imigrantes árabes, incluindo alguns palestinos, em sua maioria cristãos, clamam terem deixado o Oriente Próximo por conta dos abusos do Império Otomano. Veja o capítulo de Denys Cuche neste livro. 10 Para mais sobre a especificidade dos campos de refugiado palestinos, veja por exemplo (Schiocchet 2014b; Sayigh 2008; Doraï 2006). 11 Tradução do autor. O texto original em inglês é o seguinte: “Resolves that the refugees wishing to return to their homes and live at peace with their neighbours should be permitted to do so at the earliest practicable date, and that compensation should be paid for the property of those choosing not to return and for loss of or damage to property which, under principles of international law or in equity, should be made good by the Governments or authorities responsible” (UN 2014). 12 Muitos palestinos, inclusive entre os refugiados, sabem que as resoluções da Assembleia Geral da ONU não possuem caráter vinculativo, mas são legalmente apenas “recomendações” do corpo

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institucional. Isso, por sua vez, faz com que o não-cumprimento de resoluções da ONU não incorra necessariamente em penalidades pela chamada comunidade internacional. 13 Veja o capítulo de Feldman neste livro para mais sobre esse tema. 14 Desenvolvi mais sobre esse tópico principalmente em (Schiocchet 2014c). 15 Bilād al-Shām, Grande Síria, Mashreq, Oriente Próximo e Levante; muito embora empregados através da história por diferentes sujeitos enfatizando diferentes classificações, o primeiro termo refere-se ao território que hoje corresponde ao Líbano, Síria, Jordânia, Palestina e Israel. Como sua fronteira “natural” ao leste era o Rio Eufrates, por vezes o termo incluía terras que hoje fazem parte do Iraque. Da mesma forma, a literatura geralmente inclui também a Península do Sinai e assim por vezes todo o Egito. Finalmente, é comum também a inclusão da Província de Antioquia, hoje é parte do território turco, ou até mesmo o Chipre e a Turquia e como um todo (Schiocchet 2011; Slugglet & Weber 2010; Hourani 1991; Antonius 1969). 16 Em outra ocasião, desenvolvi em paralelo como as historicidades palestina e a oficial israelense informam dois projetos de nação mutuamente incongruentes. Nesta mesma ocasião, também discuti a possibilidade concreta das chamadas “solução de um estado” e “solução de dois estados”, apresentando ainda uma terceira via, proposta inicialmente pelo escritor israelense Oren Yiftachel (Schiocchet, no prelo). 17 Ao apresentar uma limitação ao trabalho de Said, não procuro me localizar em uma genealogia acadêmica distinta daquela do autor. Ao contrário, reconheço que meu trabalho, assim como a maioria absoluta do que se produz hoje no campo da antropologia da Palestina e palestinos, apenas se tornou possível após a intervenção crítica de Said em 1978. 18 Os palestinos drusos ficam de fora desta classificação. Para mais sobre o tema, veja (Kanaaneh 2009). 19 Tradução livre do autor. 20 Inicialmente, o termo refusenik foi usado para designar judeus da URSS que foram proibidos de imigrar para Israel. Entretanto, o termo passou a ser amplamente utilizado nos EUA para designar “aqueles que recusam” algo. Em Israel, refusenik designa especificamente alguém que se recusa a servir o exército por não concordar com suas práticas contra os palestinos. Refuseniks não são apenas ex-oficiais do exército, mas também jovens em idade de serviço militar, além de soldados que se recusam a servir depois da experiência de intervenções militares contra palestinos. O mais recente caso de refuseniks é o de 43 membros da Unidade 8200, uma unidade de elite ligada à inteligência do exército de Israel, que se recusaram a servir depois da ofensiva Israelense contra Gaza em 2014. Como punição por sua dissidência, o Ministro de Defesa Israelense Moshe Ya’alon afirmou que os refuseniks “serão tratados como criminosos” (The Guardian 2014). 21 Tradução livre do autor.

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22 66,05% dos 1252 membros da associação votaram a favor do boicote (American Studies Association 2014). 23 Ghurba não é um sinônimo técnico para o termo diáspora. Este conceito árabe é carregado de elementos sentimentais. Tal como entendo, inclui alguns dos sentimentos evocados pelo conceito português de “saudade”. 24 Uma lista completa de referências bibliográficas sobre palestinos na América Latina, compilada pela RIMAAL, pode ser encontrada ao final deste livro. 25 Sobre o caso de árabes de forma geral e sírios e libaneses em particular, veja (Khater 2001; Makdisi 2000) para a ênfase no empreendedorismo e (Khatlab 2002) para a ênfase na questão política. Sobre o caso palestino em particular, veja o capítulo de Baeza neste livro para a ênfase no empreendedorismo e o de Cuche para a ênfase na questão política. 26 Estes números não correspondem aos números do total de palestinos em “países estrangeiros”, tal como apresentados pelo Central Bureal of Statistics palestino, devido a diferenças de fontes tanto quanto de data. Assim, estas estimativas são apenas aproximativas. Para que todos estes números correspondessem à 100%, deveriam haver haver entre 800.000 e 900.000 palestinos residindo em países não árabes, excluindo-se Israel. Considero esta uma boa estimativa para 2014-2015. 27 Veja por exemplo, (Cainkar 1988; Christison 2001, 1989; Clarke 1999; Cohen & Tyree 1994; Deutsch & Thompson 2008; Moughrabi & El-Nazer 1989; Hammer 2005, 2000; Marshood 1997; Schulz & Hammer 2003; Smith 1986; Serhan 2008; Seikaly 1999). 28 Tradução livre do autor.

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