Schopenhauer e a possibilidade da Metafísica no período pós-crítico

July 19, 2017 | Autor: Daniella Bianchi | Categoria: Schopenhauer, Metafísica
Share Embed


Descrição do Produto

"Schopenhauer e a possibilidade da Metafísica no período pós-crítico"

A Metafísica, enquanto realidade que transcende o campo da experiência, buscou, ao longo da história da filosofia, responder questões filosóficas que se encontram para além do dado sensível. Com Kant, a possibilidade da Metafísica enquanto base sólida e conhecimento científico dessas indagações foi posta em questão, e sua validade dependeria da possibilidade juízos sintéticos a priori, dado que tais juízos seriam os únicos capazes de fundamentar a ciência através da validade universal e necessária de sua verdade, anteriormente a toda e qualquer experiência. Assim, o inquérito sobre a possibilidade da Metafísica enquanto ciência dependeria, primeiramente, da verificação da possibilidade de tais juízos na mesma.
Os juízos sintéticos a priori representariam o único modo de conhecimento capaz de promover o progresso da Metafísica enquanto ciência, pelo fato de serem juízos que ampliam o conhecimento, sem auxílio de qualquer experiência. Dessa forma, segundo Kant, "a produção do conhecimento a priori, tanto segundo a intuição como segundo os conceitos, e por fim também a de proposições sintéticas a priori, justamente no conhecimento filosófico, é que formam o conteúdo essencial da metafísica". Kant afirma ainda que é justamente pela falta de atenção dada a tais juízos pela filosofia que a Metafísica não conseguia se firmar sobre uma base sólida:

Ora o verdadeiro problema da razão pura está contido na seguinte pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori? O fato da metafísica até hoje se ter mantido em estado tão vacilante entre incertezas e contradições é simplesmente devido a não se ter pensado mais cedo neste problema, nem talvez mesmo na distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. A salvação ou a ruína da metafísica assenta na solução deste problema ou numa demonstração satisfatória de que não há realmente possibilidade de resolver o que ela pretende ver esclarecido.

Visto que a possibilidade dos juízos sintéticos a priori é a condição do estatuto científico da Metafísica, como seriam tais juízos, então, possíveis? A resposta versa justamente sobre a indissociabilidade necessária entre intuição sensível e conceito do entendimento:
Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas. Pelo que é tão necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las aos conceitos). Estas duas capacidades ou faculdades não podem permutar as suas funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua reunião se obtém conhecimento.

Em suma, os juízos sintéticos a priori só podem aumentar o conhecimento se seus conceitos estiverem relacionados com a intuição, pois os conceitos nunca podem se referir imediatamente aos objetos, mas somente a outras representações, sendo por essa razão que a ligação entre conceitos do sujeito e do predicado pensada em um juízo sintético pode ter base ou ser objetivamente válida somente se ambos os conceitos referirem à intuição do objeto.
É possível observar, portanto, a necessidade de tornar sensíveis os conceitos assim como tornar compreensíveis as intuições, esclarecendo de que modo os pensamentos sem conteúdo são vazios e as intuições sem conceitos são cegas. Sendo porque um necessita do outro, não podendo os conceitos pensarem os objetos se eles não tiverem sido oferecidos pela intuição, assim como, da mesma forma, somente a intuição não basta para o conhecimento, pois retém o objeto como meramente dado e indeterminado, sem o conceito, e por conseguinte, sem o conhecimento. É imprescindível, sendo assim, que a sensibilidade forneça a matéria – a saber, os conteúdos -, assim como o entendimento forneça a forma.
A partir disso, constata-se que o problema da Metafísica gira em torno de seus três objetos tradicionais, a saber, Deus, Alma e Liberdade. A dificuldade consiste no seguinte: tais objetos são incondicionados, isto é, podem ser pensados, mas não conhecidos, pois não são dados na experiência sensível. Portanto, retirado um dos pólos imprescindíveis para o conhecimento, a saber, a intuição sensível, o conhecimento metafísico do incondicionado não pode ser legitimado. Segundo Jair Barboza, quanto a isso,
o entendimento não intui, a sensibilidade não pensa. Só do concurso de ambos surge o conhecimento, que, sublinha Kant, refere-se exclusivamente à experiência fenomênica possível. A coisa-em-si permanece um "x" desconhecido, mero objeto de pensamento, o limite do conhecimento científico. Aqui encontrando-se a sentença de morte da metafísica dogmática, com suas pretensões de conhecer o incondicionado: Deus, mundo, imortalidade da alma. Entre nós e o em-si sempre haverá o entendimento e a sensibilidade, limitando-nos assim à finitude, ao conhecimento dos objetos condicionados a aparecerem na cadeia necessária de causa e efeito.

Constatada a impossibilidade da Metafísica enquanto conhecimento a priori e científico exatamente porque lhe falta a matéria do conhecimento, tira-se daí que a razão não pode possuir um uso estritamente teórico (embora possa lidar com um uso prático, pensando o incondicionado) em relação à Metafísica, por suas idéias estarem além da experiência possível. Portanto, pode-se dizer que Kant estabelece um fim à Metafísica, mas somente em relação ao que nos interessa aqui: um fim à Metafísica enquanto ciência.
Em um período no qual à Razão é dada primazia, Kant estabelece limites à capacidade gnosiológica humana, ao investigar as pretensões da Metafísica. Deu, nesse sentido, um grande passo na história da Filosofia e marcou inúmeros pensadores posteriores a ele, influenciando-os. Fato é, sem dúvida, que tais pensadores não poderiam simplesmente ignorar esses limites estabelecidos por Kant, sendo este último, portanto, um "divisor de águas" da história da Filosofia. No entanto, mesmo tendo seguido os passos de Kant e tendo o considerado um "gênio", um filósofo em particular moldou sua própria filosofia a partir dos princípios da filosofia kantiana, porém criticando-a e fundamentando a partir dela, mesmo após sua aparente ruína, a Metafísica. Esse filósofo foi Arthur Schopenhauer. Mas Como pode-se ter a pretensão de falar ainda em Metafísica, quando Kant a impossibilitou enquanto ciência, estabelecendo limites à razão teórica no que concerne às questões metafísicas do incondicionado?
Como visto, a doutrina kantiana considera a intuição e o conceito dois pólos fundamentais para o conhecimento, mas enquanto Kant afirma que a intuição, sem o conceito, retém o objeto como meramente dado e indeterminado, para Schopenhauer, toda intuição já é intelectual. No § 30 da Crítica da Filosofia Kantiana, fica claro que Schopenhauer recusa o caráter puramente passivo da intuição proposto por Kant, e que a impressão dada não é, como em um passe de mágica, já "representação", mas precisa do entendimento e do princípio de razão, para que se torna uma representação. Assim, é papel do intelecto realizar essa conversão de mera sensação em representação. Para Schopenhauer, portanto, o pensamento não serve, em última análise, para conferir realidade às intuições, pois elas já têm realidade por si mesmas:

O OBJETO enquanto tal existe sempre apenas para e na INTUIÇÃO. Esta, por sua vez, só pode ser consumada através dos sentidos ou, na sua ausência, pela imaginação. Por outro lado, o que é PENSADO é sempre um conceito universal, não intuitivo, que pode ser o conceito de um objeto em geral. Porém, apenas mediatamente, via conceitos, o pensamento se refere a OBJETOS, os quais eles mesmos sempre são, e permanecem, INTUITIVOS. Pois nosso pensamento não serve para conferir realidade às intuições: esta elas já o têm, desde que são capazes dela (realidade empírica) por si mesmas.


O mundo objetivo e a experiência não dependem, então, do entendimento no sentido kantiano, isto é, não dependem da faculdade de pensar, pois o entendimento, para Schopenhauer, é o responsável justamente pela intuição. Em suma, para Schopenhauer, o entendimento intui as coisas particulares através dos sentidos, e assim que passamos ao pensamento, as coisas particulares são abandonadas, dando lugar aos conceitos universais. Assim, a realidade empírica e a experiência são dadas na própria intuição, esta que, por sua vez, é estabelecida por intermédio da aplicação do conhecimento do nexo causal.
Dado que, para Schopenhauer, a intuição é um conhecimento de primeiro grau, pois os objetos existem primeiramente para ela, logo, os conceitos, sendo apenas abstrações dessa intuição, representam, como reflexos desta, um conhecimento de segundo grau. "Daí o tropo óptico da reflexão ser perfeito para designar o seu trabalho: trata-se de simples reflexo, como num espelho, de material exterior. Tem-se na atividade de pensar, aparências refletidas, conteúdos depurados do material intuitivo". É nesse sentido que Schopenhauer discorda da afirmação de Kant de que há apenas conceitos de objetos, e não de intuição:

Objetos existem primeiramente apenas para a intuição, e conceitos são sempre abstrações dessa intuição. Por isso o pensamento abstrato tem de orientar-se exatamente segundo o mundo encontrado na intuição, pois só a referência a este fornece conteúdo aos conceitos.


A filosofia, por conseguinte, é uma expressão in abstracto da essência do mundo, e isso significa que os conceitos, e em última instância a própria linguagem não revelam nada sobre a natureza das coisas, que já não tenham tido referência na intuição sensível. Dito de outro modo, a linguagem expressa o "como", e não "o quê":

A linguagem, e aqui se inclui também a científica e a lógica, expressa o mundo, COMO ele nos aparece, mas não o QUÊ dele. O que remete este quê, como tal, é exterior ao como do mundo, refletido pelo discurso. É o quê metafísico, além do físico, e, apesar de indizível, inefável, pode no entanto ser sentido e apontado exteriormente no domínio da ética e da estética, ou seja, no domínio do místico, não submetido ao princípio de razão, não cabível na linguagem lógico-científica nem na filosófica que se orienta por esses parâmetros.


Segundo Schopenhauer, ainda, "a filosofia será uma REPETIÇÃO COMPLETA, POR ASSIM DIZER UM ESPELHAMENTO DO MUNDO EM CONCEITOS ABSTRATOS". Em outros termos,

a linguagem, por conseqüência, como qualquer outro fenômeno que se credita à faculdade racional, que diferencia o homem do animal, pode ser explicitada por esse único e simples elemento que a constitui: os conceitos veiculados por palavras, conceitos que são representações abstratas e universais, não individuais, não intuitivas, numa palavra, representações de representações.


Em resumo, Schopenhauer afirma que só a referência à intuição oferece conteúdo aos conceitos, o que representa um golpe sagaz à primazia e pretensão da Razão segundo a tradição filosófica, ou até mesmo uma crítica fortemente "anti-hegeliana":

Quanto mais se avança no pensamento abstrato, mais se perde. Os conceitos mais universais da filosofia, nesse sentido, são os que menos dizem, como os conceitos de SER, ESSÊNCIA, COISA, DEVIR, INFINITO, FINITO, SUBSTÂNCIA. Segue-se que as filosofias a se servirem insistentemente de tais termos são as mais vazias. Sobretudo no hegelianismo Schopenhauer identifica semelhante defeito. Cabe endereçar a elas, pois, a crítica estilística mais cortante.


Assim, nota-se que a admissão schopenhauriana de que os conceitos são meras reflexões da intuição leva à constatação de uma crítica avassaladora da linguagem, e, em última instância, à própria ciência, uma vez que os conceitos nada criam, e nada descobrem, que já não tenha sido material adquirido pela intuição. Com isso, já se pode notar que a busca pelo em-si, ou ainda, a solução do "enigma do mundo", igualmente não poderá partir de um conhecimento totalmente a priori, destituído de conteúdo sensível.
Schopenhauer considera ainda que o maior feito de Kant foi a distinção entre fenômeno e coisa-em-si. No entanto, por uma forma de analogia, pode-se dizer que Schopenhauer nomeia de fenômeno a representação, e de coisa-em-si a Vontade. É claro que Schopenhauer não procura infringir as proibições da Crítica no que diz respeito à capacidade de conhecimento do incondicionado a partir de um conhecimento estritamente a priori. O problema, portanto, não consiste simplesmente na incapacidade da Metafísica de resolver o problema do incondicionado, mas consistirá em outra coisa: sua definição.
Na Crítica da Filosofia Kantiana, Schopenhauer critica a definição de Metafísica tomada por Kant como herança dos dogmáticos:

1) Metafísica é ciência daquilo que está para além da possibilidade de toda experiência; 2) Uma tal coisa jamais pode ser encontrada segundo princípios fundamentais eles mesmos primeiro hauridos da experiência (Prolegômenos, §1): só aquilo que sabemos ANTES, portanto INDEPENDENTE DE toda experiência, pode alcançar mais do que a experiência possível; 3) Em nossa razão podem ser encontrados efetivamente alguns princípios fundamentais desse tipo, concebidos sob o nome de conhecimentos a partir da razão pura.

A crítica de Schopenhauer versa sobre o seguinte: O fato de a Metafísica não poder possuir fonte extraída da experiência não diz nada além do que está exposto em sua própria etimologia, e por isso tal afirmação não passa de uma petição de princípio. Em outros termos, segundo Kant, a coisa-em-si deve ser procurada para além dos dados sensíveis, e deduzida a partir de princípios universais a priori: daí o termo "metafísica", tomado pelo sentido etimológico de "além da física", ou seja, para além do sensível. O problema, para Schopenhauer, consiste nessa coincidência entre "metafísica" e "conhecimento a priori", pois é justamente a partir dessa equivalência, que Kant postulou que o enigma do mundo não poderia ser solucionado a partir da própria experiência. Quando a isso, Schopenhauer afirma que

A solução do enigma tem antes de ser procurada somente naquilo que podemos obter indiretamente, a saber, por meio de deduções a partir de princípios universais a priori. Ora, depois que se excluiu dessa maneira a principal fonte de todo conhecimento, e se obstruiu o reto caminho para a verdade, não é surpreendente que os ensaios dogmáticos tenham fracassado e Kant pudesse demonstrar a necessidade desse fracasso; pois se tinha admitido previamente metafísica e conhecimento a priori como idênticos. No entanto, em vista disso, teria sido preciso primeiro demonstrar que o estofo para a solução do enigma do mundo não pode absolutamente estar contido nele mesmo, mas tem de ser procurado só exteriormente ao mundo, em algo que podemos atingir somente pelo fio condutor daquelas formas de que somos a priori conscientes.

Para Schopenhauer, por outro lado, a solução do enigma não deve ser procurada exteriormente ao próprio mundo, de forma que a vocação extra-mundana da Metafísica passa a ser rejeitada. Schopenhauer, nesse sentido, desfaz a ligação entre "metafísica" e "conhecimento a priori", defendendo que o enigma do mundo deve ser buscado no próprio mundo, e conseqüentemente, a concepção de Metafísica segundo Schopenhauer não pode coincidir com a concepção kantiana, mas deve ganhar um novo significado:

(...) a solução do enigma do mundo tem de provir da compreensão do mundo mesmo; que, portanto, a tarefa da metafísica não é sobrevoar a experiência na qual o mundo existe, mas compreendê-la a partir de seu fundamento, na medida em que a experiência, externa e interna, e certamente a fonte principal de todo conhecimento; que, em conseqüência, a solução do enigma do mundo só é possível através da conexão adequada, e executada no ponto certo, entre experiência externa e interna (...)

A experiência unicamente externa, que diz respeito somente às representações, não dariam conta da resolução do problema, e não alcançaria a significação desses fenômenos, exatamente porque se o indivíduo for sujeito puro do conhecimento ("cabeça de anjo alada"), isso significa que ele opera com o princípio de razão, este que "explica as ligações dos fenômenos, não os fenômenos mesmos", e justamente por esse motivo, segundo Schopenhauer, não se chega à significação da coisa em si "a partir da representação, seguindo o fio condutor das leis que meramente ligam objetos, representações entre si, que são as figuras do princípio de razão". Não se chega, portanto, à essência do fenômeno levando em conta somente a experiência externa, isto é, "os dados imediatos que pressupõem o espaço como sua condição", mas

(...) se os objetos que aparecem nessas formas não devem ser fantasmas vazios, mas possuir uma significação, então têm de indicar e ser expressão de algo que não é mais, como eles mesmos, objeto, representação, isto é, meramente relativo e para um sujeito, mas algo que existe sem dependência de uma condição essencial e de suas formas a ele contrapostas, ou seja, algo que não é mais REPRESENTAÇÃO e sim uma COISA-EM-SI.

Deve-se, para tanto, encontrar o ponto exato em que tanto a experiência interna quanto a externa se ligam. Essa necessidade de enraizamento do indivíduo neste mundo, e mais precisamente, esse "ponto exato" entre experiências interna e externa se dá no próprio corpo, de forma que são imprescindíveis tanto o "conhecimento, sustentáculo condicionante do mundo inteiro como representação", quanto o corpo, cujas afecções "são para o entendimento o ponto de partida da intuição do mundo". Quanto a isso, afirma Cacciola:

O filósofo propõe um "entrelaçamento adequado e feito no ponto certo (rechten Punkt)" da experiência externa com a interna. Este ponto certo ele localiza na experiência que cada um tem de seu próprio corpo. Se ficarmos restritos à experiência externa, ou seja, aos dados imediatos que pressupõem o espaço como sua condição, jamais sairemos do terreno das representações. Assim, o mero sujeito do conhecimento seria incapaz de ultrapassar os limites impostos pela forma intuitiva de seu conhecimento.


Em suma, só com a experiência externa, o conhecimento passa a ser meramente "formal e sem conteúdo, é preciso que a garantia de sua realidade seja buscada em outra parte, a saber, no conhecimento do próprio corpo". O corpo, chave do enigma, apresenta ainda uma dupla função: uma vez como representação na intuição do entendimento, como objeto entre objetos e submetido às leis destes; outra vez de maneira completamente outra, a saber, como aquilo conhecido imediatamente por cada um e indicado pela palavra VONTADE". Nos termos de Cacciola, é nesse sentido que "o corpo é pois objeto imediato em relação ao mundo como representação e, também, objeto mediato, quando faz parte deste mundo e nele se conhece". É possível observar, a partir disso, que é necessário, para Schopenhauer, que se admita que o sujeito do conhecimento seja também um corpo, este que é manifestação da Vontade. Nesse sentido, pode-se dizer que a cada experiência do corpo, há um indício da coisa-em-si.
É tendo isso em vista que Schopenhauer reprime Kant por ter mantido a definição dogmática de Metafísica tomada como um saber do supra-sensível, que dispensa qualquer auxílio da experiência. O erro de Kant foi ter inferido a coisa-em-si como causa do fenômeno, e isso representou uma chance para explicar o mundo por meio de algo externo a ele mesmo. Assim, "Schopenhauer descarta qualquer relação causal entre a Vontade e o seu fenômeno, isto é, o mundo, excluindo a possibilidade de pensar uma coisa-em-si como causa". Além disso, segundo Cacciola, "mantendo como único o ponto de vista da razão, tanto no domínio teórico, quanto no prático, ele [Kant] não pôde chegar àquilo que, para Schopenhauer, teria sido a conseqüência lógica de seu pensamento: o em-si como Vontade". Esse estabelecimento do mundo ou como Vontade, ou como representação nos permite afirmar que o mundo não tem, em última instância, nenhuma inteligência divina como causa exterior, pois "se as causas e razões só se referem ao fenômeno ou representação, deixando que a Vontade fique alheia a qualquer finalidade, não resta nenhum lugar para uma inteligência divina" . E além disso, justamente pelo princípio de razão tratar das relações entre os fenômenos, e não de sua significação última, a filosofia não pode buscar "uma causa efficiens" ou uma "causa finalis do mundo inteiro". A coisa-em-si, portanto, "jamais pode ser remetida à mera forma, e, como esta é o princípio de razão, jamais pode ser plenamente FUNDAMENTADA". A essência do mundo é, por conseguinte, cega e sem fundamento (grundlos).
Kant teria errado ao perder o ponto de cruzamento entre experiências interna e externa, isto é, o corpo, justamente por ter concebido a Metafísica de forma a considerar que "no tocante às fontes do conhecimento metafísico, elas não podem, já segundo o seu conceito, ser empíricas", e seus princípios devem ser um conhecimento "não físico, mas metafísico, isto é, que vai além da experiência". E nem a experiência externa, "que é a fonte da física propriamente dita", nem a interna, "que constitui o fundamento da psicologia empírica" poderiam lhe servir de fundamento. "É, por conseguinte, conhecimento a priori ou de entendimento puro e de razão pura". Esse pressuposto "transcendente" da Metafísica teria excluído justamente o que leva o indivíduo à verdade da Vontade, verdade essa que não pode ser atingida nem pela razão, nem pelo discurso, mas somente pelo próprio corpo.
Concluindo, ao mesmo tempo em que, com a crítica à Metafísica transcendente, Schopenhauer possa parecer "anti-metafísico", sua doutrina sobre o conceito de Vontade parece pressupor um retorno à Metafísica. Não obstante, é preciso que se tenha em mente que sua crítica gira em torno do caráter transcendente desprovido de experiência da concepção de Metafísica presa à escolástica presente na filosofia kantiana. Por sua vez, Schopenhauer propõe uma Metafísica com base não na transcendência, mas na imanência, de forma que a Vontade, isto é, o em-si, não pode ser conhecida, mas deve ser experenciada por meio do ponto de ligação entre a experiência externa e a experiência interna do indivíduo: o corpo.
Em suma, a possibilidade viável de concepção da metafísica no período pós-crítico depende, em última instância, dessa nova concepção de Metafísica na filosofia schopenhaueriana, destituída de todo caráter transcendente e extra-mundano, e que não ultrapasse os limites epistemológicos do homem já considerados por Kant, a saber, a experiência possível, mas que, pelo contrário, faça uso dela como intermédio para o alcance de uma metafísica - malgrado a aparente ruína do termo no período pós-crítico -, mas uma metafísca imanente, que permita que se chegue ao em-si através do corpo, que procure explicar o mundo no próprio mundo: a metafísica da Vontade, que parece legitimar, nesse sentido, o estabelecimento de uma metafísica no período pós-crítico.

Bibliografia:
SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Representação. Tradução: Jair Lopes Barboza. São Paulo: editora UNESP, 2005.
KANT, I. Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se apresentar como ciência. Coleção Textos filosóficos; Edições 70. Lisboa, Portugal. Tradução de Artur Morão.
______. Crítica da Razão Pura. Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição. Lisboa, 1985. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Mourão.
CACCIOLA, M. A crítica da razão no pensamento de Schopenhauer. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1981.
______. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo. Editora da Universidade de São Paulo, 1994. Campi, v.17, São Paulo.
BARBOZA, J. Modo de conhecimento estético e mundo em Schopenhauer. Revista Trans/Form/Ação, SP, 2006.
______. Os Limites da Expressão, Linguagem e Realidade em Schopenhauer. Revista Veritas, v.50. Número 1. Porto Alegre, março/2005. p.127-135.




KANT, I. Prolegômenos a toda metafísica futura que queira se apresentar como ciência.. Coleção Textos filosóficos; Edições 70. Lisboa, Portugal. Tradução de Artur Morão. p.35. Grifo meu. Doravante "Prolegômenos".
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição. Lisboa, 1985. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Mourão [BXIX].
Idem, ibidem, B76/A52.
BARBOZA, J. Modo de conhecimento estético e mundo em Schopenhauer. Revista Trans/Form/Ação, SP, 2006, p.35.
SCHOPENHAUER, A. Crítica da Filosofia Kantiana. In: O Mundo Como Vontade e Representação. Tradução: Jair Lopes Barboza. São Paulo: editora UNESP, 2005, pp.555 – 556. Doravante "CFK".
BARBOZA, J. Os Limites da Expressão, Linguagem e Realidade em Schopenhauer. Revista Veritas, v.50. Número 1. Porto Alegre, março/2005, p. 129.
SCHOPENHAUER, A. CFK, p. 562.
BARBOZA, J. Os Limites da Expressão, Linguagem e Realidade em Schopenhauer, pp. 133 - 134.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Representação, pp.137 – 138.
BARBOZA, J. Os Limites da Expressão, Linguagem e Realidade em Schopenhauer, p.130.
Idem, ibidem, pp. 132 – 133.
SCHOPENHAUER, A. CFK, pp. 536 – 537.
"Para fundamentação desta afirmação cardeal, todavia, nada é invocado senão o argumento etimológico da palavra metafísica". Idem, ibidem, p.537.
Idem, ibidem, p.538.
Idem, ibidem, Loc. Cit.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Representação, p.137.
Idem, ibidem, p.155.
CACCIOLA, M. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo. Editora da Universidade de São Paulo, 1994. Campi, v.17, São Paulo, p.39.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Representação, p. 179.
Idem, ibidem, p.156.
Idem, ibidem, Loc. Cit.
CACCIOLA, M. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, p.39.

Idem, ibidem, p.57.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Representação, p.157.
CACCIOLA, M. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, p.39.
Idem, ibidem, p.49.
Idem, ibidem, p.44.
Idem, ibidem, p.102.
SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Representação, p.137.
Idem, ibidem, p.181.
KANT, I. Prolegômenos, pp. 23 – 24.
Idem, ibidem, p.24.



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.