Sé de Viseu – 100 anos de restauro”.

September 6, 2017 | Autor: M. Lopes Aleixo F... | Categoria: Heritage Conservation
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Na página anterior Remoção de coberturas em telha sobre a nave. 1941/2.

Intervenções da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais Maria Fernandes, Laura Figueirinhas, Belbetões/Pedramalba, José Maria Lobo de Carvalho

vai alterar qualitativamente o uso dos edifícios religiosos, resultando no desaparecimento quase completo dos conventos, na sobrevivência de algumas igrejas e capelas, e na resistência das catedrais, apesar de alterações substanciais. A partir de então

100 ANOS DE RESTAURO A presença dos monumentos nas cidades ajudou sempre a definir o carácter histórico de uma comunidade. Na generalidade das sociedades ocidentais, os monumentos contribuíram para a apreciação e compreensão do passado, como sentido de continuidade histórica, enquanto nas orientais, o espírito do lugar suplantou sempre as construções. No Ocidente crê-se que a memória não se perde se a materialização da sua história não desaparecer, enquanto no Oriente a herança é transmitida através do saber, do conhecimento do construir, da manufactura dos objectos e do espírito, em desfavor do construído. Esta enorme diferença mitificou os monumentos ocidentais que hoje conhecemos, velhos mas eternos, conferindo-lhes uma imortalidade que está longe de ser real, já que muitos são frágeis e outros não tão velhos quanto julgávamos.

nada voltou a ser como antes. Neste contexto, a Sé de Viseu não constituiu uma excepção. Sede de Bispado e Cabido, aberta ao público e em funcionamento, foi palco das primeiras experiências portuguesas ao nível do restauro arquitectónico no século XIX, e objecto de obras nacionais de conservação, a partir dos anos trinta no século XX. Do conhecimento que se tem da sua história e do seu restauro é hoje possível constatar, que aos problemas antigos de degradação foram somadas novas patologias e, à imagem do monumento, adicionada uma nova estética.

Nas comunidades onde não existiu o corte com o passado por via da ruptura com as tradições culturais, os monumentos sobreviveram através dos séculos com uso2, numa lógica contínua de alterações lentas. Mas qual foi o momento, o período exacto em que se começou a olhar para os edifícios históricos de outra forma? Terá sido a partir de uma mudança cultural e política que alterou o seu rumo histórico? Ou uma destruição súbita que nos fez descobrir o vazio da sua perda?

Antes e após 1929 Pouco se sabe do que ocorreu em termos de intervenções antes dos anos trinta. As datas e os trabalhos executados são imprecisos, os registos escassos, as fotografias quase inexistentes mas não obstante os vestígios dessas intervenções surgem visíveis e claros, no que concerne aos critérios aplicados. Os restauros estilísticos na Sé de Viseu já vinham do século XIX, marcados pelas intervenções que aspiravam à busca do estilo românico/gótico. Foi assim concluída a remoção dos

Para os imóveis religiosos portugueses foi, seguramente, a partir de 1834 que a história traçou uma clivagem anticlerical, que

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mente aos seus antecessores, nos valores que pretendia alcançar, só intensificou esta tendência, atribuindo-lhe evidentemente a conotação nacionalista, que se tornaria na alma das reconstruções a partir de então. Durante os anos trinta na Sé de Viseu, continuam-se a desobstruir passagens, a refechar juntas em alvenarias, agora limpas dos rebocos que anteriormente as cobriam, e iniciam-se as substituições das estruturas de coberturas em madeira por betão armado, prática que irá mais tarde tornar-se uma constante. As obras são adjudicadas à tarefa e financiadas parcialmente pelo Fundo de Desemprego.

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Durante a II Guerra Existe um enorme vazio durante este período. Para além da conclusão das obras que vinham de 1938, apenas se ajardinou e reparou o largo fronteiro à Sé. As condicionantes económicas que marcaram estes anos tiveram deste ponto de vista pouca influência, já que segundo alguns autores, terá sido justamente nesta altura, que mais obras se fizeram em monumentos4.

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Em Viseu, possivelmente porque os problemas mais urgentes de humidade e rectificação de anteriores restauros já haviam sido parcialmente resolvidos, não foi assim. Longe dos cenários do conflito mundial, Portugal restaurava monumentos na lógica de exaltação nacionalista já referida e preparava a grande intervenção na Sé de Viseu que seria mais tarde concretizada.

Abertura de passagens, na zona da escada de acesso ao coro. Década de trinta.

rebocos interiores da nave e transferidos os azulejos que as cobriam para o claustro, demolidas algumas partes, como o alpendre que cobria o terraço, o altar que obstruía o portal de ligação entre a nave e o claustro, a sacristia dos pontificiais e diversos anexos, todos posteriores ao estilo pretendido com prejuízo dos serviços de culto, sem qualquer entendimento com a autoridade eclesiástica, antes até contra a sua vontade...3

Os construtores: anos 40 e 50 Este foi seguramente o grande momento da Catedral de Viseu, em que pela primeira vez se traça um plano de intervenção e se realizam sistematicamente intervenções segundo objectivos delineados. Os problemas estéticos continuam a dominar a filosofia de intervenção, mas agora em complemento com as questões de natureza física. A humidade por infiltração proveniente das coberturas levou simultaneamente à sua revisão completa, com alteração do revestimento por telha de canudo e romana no canal como era prática da DGEMN, bem como à remoção da estrutura de coberturas em telha da nave para a colocação a descoberto do terraço em cantaria original. Esta operação geraria consequências em termos de humidade, que vieram mais tarde a manifestar-se. Os anexos existentes na fachada poente são demolidos e as fachadas devidamente rectificadas. Obras de manutenção em grande escala são também executadas, como o fornecimento e reparação de caixilharias em madeira, vitrais, tectos e pequenas reconstruções ou substituições de lajedo e cantaria em escadas e pavimentos.

A cultura francesa marcou definitivamente este iniciar português no domínio da conservação arquitectónica. Não tanto pela filiação no movimento Romântico/Nacionalista, como preconizava Viollet-le-Duc, mas sobretudo pela devolução do seu estilo próprio – gótico, renascentista ou outro. Por esse motivo restauro em Portugal significava quase sempre e, em simultâneo, reparar e devolver algo de original ao monumento, que se havia perdido ao longo do tempo. Estava-se muito longe da abordagem científica de Ruskin e de qualquer influência anglo-saxónica que não fosse a de recriar ruínas em espaços de lazer. No que dizia respeito à conservação arquitectónica, em Portugal favorecia-se muito mais a corrente francesa que a inglesa e por esse motivo o Estado Novo, mais organizado e objectivo, comparativa-

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Demolição de anexos e respectiva rectificação de fachada. 1937 e 1942.

Um temporal de fortes proporções com a caída de um raio numa das torres, em 1950, levou a obras de urgência nos anos seguintes.

meira vez com indicações precisas relativas à forma de execução dos trabalhos.

A grande euforia restauradora reinicia-se justamente em 1950: desobstrução e restauro de mais vãos no claustro inferior, desmontagem e transporte do órgão existente na nave para o Seminário, reconstrução segundo vestígios encontrados de janelas e óculos no transepto, desentulhamento das escadas de acesso às coberturas, remoção e nova implantação da pia baptismal na capela lateral e, finalmente, com as obras de modificação de pavimentos na capela-mor que incluíram escavação arqueológica. À parte destas operações, encontram-se ainda registos de restauro das pinturas da abóbada, limpeza e restauro dos altares em talha da capela-mor e transepto, bem como a consolidação dos azulejos da sacristia. Da descrição dos trabalhos e da análise actual destes elementos, somos levados a concluir que se tratou de um repinte nas pinturas, do douramento nos altares, e da remoção com substituição nos azulejos. Todo o interior da nave é cuidado, através da aquisição de novo mobiliário, fornecimento de candeeiros próprios de iluminação e tapetes, em colaboração estreita com o Cabido. As obras realizavam-se já por concurso público e os cadernos de encargos aparecem pela pri-

Os serenos anos 60 Na década de cinquenta são inúmeros os relatórios da autoria do arquitecto Luís Amoroso Lopes, relativos ao estado de conservação do monumento e ao desenrolar das obras em curso, tornando-se a partir de aqui mais fácil a análise e compreensão de todo o processo de restauro da Sé. São aliás visíveis as modificações operadas na forma de intervir no monumento a partir da entrada deste arquitecto nos serviços, quer pela maneira completa como são argumentadas as intervenções, assim como preparadas e geridas as empreitadas. Todo este processo de grande restauro culmina em 1965 com a publicação do Boletim nº 122, dedicado à Sé de Viseu. O monumento é de facto preparado estética e fisicamente, para melhor acolher o culto e dignificar as cerimónias. A partir de então poder-se-á começar a falar em obras de conservação, no sentido anglo-saxónico do termo e tal como veio a ser definido mais tarde na Carta de Veneza, com intervenções que visavam exclusivamente o prolongamento da vida do monumento. Restaurada, no que era possível aproximar do seu estilo gótico, a Sé

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Estragos provocados pelo temporal na Torre do Relógio. 1950.

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passa então a ser conservada, no que de antigo e novo ela possuía a partir de então.

“Descoberta” de vãos no claustro. 1953.

imóveis na zona envolvente ao monumento vão assim ser destruídos. Os relatórios das obras continuam a ser uma constante, notando-se a partir de determinada altura a figura preponderante do arquitecto António Portugal, nas intervenções.

A crise dos 70 Os trabalhos iniciam-se a partir de 1974, mais uma vez para substituir revestimentos de coberturas, agora por telha de aba e canudo. A forte pluviosidade existente em Viseu associada a grandes amplitudes térmicas e vento constantes, assim obrigavam, resultando as substituições em novas experiências pela procura do revestimento mais eficaz e resistente à erosão contínua.

O retomar nos 80 e 90 Uma nova dinâmica desperta a partir de 80 e, definitivamente, os problemas físicos tornam-se os mais importantes na conservação do monumento. A impermeabilização da abóbada da nave só se resolve em 1985 com a aplicação de uma tela acrílica, que impede a infiltração de água e consequentemente o processo de desagregação do granito da abóbada.

O cimento e o betão transformaram-se nos materiais nobres para rebocos, argamassas de assentamento e colmatação de juntas, mas sem contudo resolverem a infiltração de água que, continuamente, se manifestava na abóbada da nave provocando a degradação cada dia mais acentuada do granito que a constituía. Basicamente o que se faz nos anos setenta são coberturas, substituindo-se as últimas estruturas em madeira por pré-esforçado, material considerado então incombustível e que preservaria o monumento de eventuais incêndios futuros, ameaça plausível dado que, a partir de 1977, diversos

Os anos noventa trazem uma nova intervenção nas coberturas, mas agora só ao nível de revestimento, mantendo-se as anteriores estruturas de betão e pré-esforço que haviam sido alteradas, assim como as que ainda existiam em madeira. O Museu de Arte Sacra sofre a maior remodelação de sempre tal como o presbítero, mencionando-se também o claustro inferior e superior com o restauro dos tectos, azulejos, reparação

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Frontispício antes da limpeza. 1999.

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Reparação do tecto do claustro. 1999.

de rebocos e nova iluminação. A Sé transformou-se num imóvel mais aberto ao público, e não exclusivamente num edifício para a frequência dos crentes.

Janela da fachada posterior.

venção urgente. Os altares, as pinturas, o mobiliário, a instalação eléctrica interior, sem esquecer a de valorização exterior, são seguramente as prioridades. A limpeza das cantarias em conjunto com o sistema de repulsão de pombos, vão permitir a abertura da Sé com outra segurança e conforto; a acessibilidade de deficientes e a circulação interior pelo claustro são ainda perspectivas a estudar no futuro próximo. Neste sentido, após a requalificação da Praça, estarão criadas as condições para que o monumento possa readquirir aquilo que sempre foi, e que algum dia perdeu: o local de encontro e reencontro com as origens de Viseu.

Um marco importante deste período foi, sem dúvida, o relatório da autoria da arquitecta Laura Figueirinhas, que delineou as intervenções a partir de 1996. Pela primeira vez a Sé foi objecto de um estudo profundo que se debruçou sobre a situação existente e as intervenções do passado, históricas e de restauro. Os antigos e novos materiais foram observados, analisados e em conjunto propostos para manutenção. A partir de então o exterior e o interior foram objecto de conservação integrada ficando, como ainda sucede, o interior para derradeira prioridade.

Ficha Técnica Coordenação: Lúcia Costa Pessoa, eng. civil, Chefe de Divisão de Monumentos, DREMC Arquitectura: Maria Fernandes, arq., DREMC

O futuro

Estrutura, fiscalização e gestão de obra: António Monteiro, eng. civil, DREMC Iluminação: Carlos Pessoa, eng. técnico electrotécnico, DREMC. Foram inúmeras as colaborações de outros técnicos, nas intervenções da Sé, ao nível de arquitectura.

Que falta ainda fazer neste monumento? Para além de todo o processo atento de controlo, vigia e manutenção do existente é seguramente o interior, mais delicado, que carece de inter-

Destaque para os arquitectos Luís Amoroso Lopes, António Portugal, Florindo Belo Marques, João Nuno Mendonça Soares, Ana Margarida Brito, Jorge de Brito e Abreu, José Fernando Canas e José Maria Lobo de Carvalho; e, em termos de iluminação, o engenheiro electrotécnico José Cruz de Azevedo.

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