Se (des)fazendo encenador: estudo e análise do processo de criação do espetáculo Alto-Mar

May 27, 2017 | Autor: Phelippe Celestino | Categoria: Contemporary Theatre, Theatrical Performance, Processes of Artistic Creation
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Universidade Federal de Ouro Preto Instituto de Filosofia Artes e Cultura Departamento de Artes Cênicas

PHELIPPE CELESTINO

SE (DES)FAZENDO ENCENADOR: ESTUDO E ANÁLISE DO PROCESSO DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO ALTO-MAR

OURO PRETO 2015

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Universidade Federal de Ouro Preto Instituto de Filosofia Artes e Cultura Departamento de Artes Cênicas

PHELIPPE CELESTINO

SE (DES)FAZENDO ENCENADOR: Estudo e análise do processo de criação do espetáculo Alto-Mar

Monografia apresentada ao Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Artes Cênicas. Área de concentração: Direção Teatral. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Elvina M. C. Pereira

OURO PRETO 2015

C392s

Celestino, Phelippe. Se (des)fazendo encenador [manuscrito]: estudo e análise do processo de criação do espetáculo Alto-Mar / Phelippe Celestino. - 2015. 98f.: il.: color. Orientadora: Prof. Dr. Elvina Maria Caetano Pereira. Monografia (Graduação). Universidade Federal de Ouro Preto. Artes Cênicas e Música. Departamento de Artes Cênicas. 1. Encenação. 2. Rapsódia. 3. Processo de criação. I. Pereira, Elvina Maria Caetano. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo. CDU: 792.02

Catalogação: [email protected]

     

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À minha mãe, Benedita: O farol que sempre me iluminou em meios às ondas do mar da vida.

AGRADECIMENTOS À Universidade Federal de Ouro Preto pelos momentos memoráveis. Aos funcionários do DEART, que nas horas que precisei sempre me ajudaram com muita paciência e compreensão. Em especial o secretário Vinícius de Souza. Aos professores do DEART, pelas boas lições ensinadas ao longo dos anos. Aos meus colegas da turma 11.1, que no início de tudo foram a força para que eu seguisse em frente. Aos meus amigos Elias Neto, Larissa Guimarães, Matheus Borelli, Ricelli Piva e Tuty Mantelato, pelas grandes alegrias e boas risadas. À Mayara Silva pela inesquecível ajuda e auxílio na montagem e execução do espetáculo. E também ao Agnaldo Pires, pela energia empreendida. Ao Alexandre Reis, vulgo Zaca, pela parceria indispensável e fundamental na criação e confecção do cenário. E junto dele, agradeço o Prof. Daniel Ducato, por nos fazer acreditar que é possível transformar ideias em matéria viva. Ao Adão e Berenice Ansaloni, por disponibilizaram o espaço de criação e montagem do cenário. À Letícia Rachid e ao Vinícius Amorim: sem vocês eu não teria chegado até aqui. À professora Nina Caetano, minha primeira e eterna orientadora, pela generosidade e pelos anos de parceria, lições, risadas e partilhas. A toda a minha família, pela confiança. À Luma Ansaloni, por ser o meu porto seguro de sempre. À minha irmã Fabiana Garcia e à minha sobrinha Ana Júlia, pela força e carinho. Ao meu pai, Itamar, por sempre acreditar em mim. E, por fim, à minha mãe, Benedita, que não só meu deu a minha vida: ensinou-me a vivê-la, sempre com honestidade, respeito e humildade.

No princípio, existia apenas uma vaga vontade de trabalharmos juntos. Antônio Araújo

RESUMO A partir dos conceitos de rapsódia e processo colaborativo, fundamenta-se um projeto para a realização de um processo de criação teatral com vistas à formação do espetáculo necessário à formação superior em direção teatral. Através da exposição do projeto e dos registros e anotações dos ensaios, busca-se nesta monografia analisar e investigar o desenvolvimento de um processo de criação teatral a partir do ponto de vista do encenador. Investiu-se, ainda, uma análise quanto aos procedimentos e dispositivos de criação utilizados. Busca-se, portanto, através do estudo do processo postular a possibilidade de uma encenação rapsódica.

RÉSUMÉ Basé sur les concepts de rhapsody et procédé collaborative est basée sur un projet pour la réalisation d'un processus de visant à la formation de le espectacle pour un diplôme en mise en scène. En exposant le projet et les enregistrements et les notes des répétitions, nous cherchons dans cette monographie analyser et enquêter sur le développement d'un processus du point de vue du directeur. Il a également investi une analyse sur les procédures et la création de dispositifs utilisés. Recherche est aussi à travers le processus de l'étude, la possibilité de postuler un scénario rhapsodique.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO O NÓ ANTES DO (DES)ENLACE ______________________________________________12  1.  Os rastros da trilha Os fatos precedentes _____________________________________ 13  2.  Os desejos e os embaraços O projeto e as implicações___________________________ 16 

CAPÍTULO I OS 2 PÉS QUE ME (RE)MOVERAM ___________________________________________21  1.  Por que não a Rapsódia? ____________________________________________________ 22  1.1  Um breve urro do monstro Apresentando brevemente a rapsódia __________ 26  1.2  Dissecando o monstro A Rapsódia e Alguns de seus Procedimentos ________ 29  1.2.1 Hibridação___________________________________________________ 31  1.2.2 Montagem e Colagem _________________________________________ 32  1.2.3 Polifonia_____________________________________________________ 34  2.  Uma Peripécia O Colaborativo _______________________________________________ 39  2.1  Escada Sem Degraus Brevemente o conceito Processo Colaborativo ________ 43  2.2  Lava outra, lava uma: mão. Por uma Dinâmica Colaborativa ______________ 49 

CAPÍTULO II A IMENSA ESCURIDÃO: O (DES)FAZER ______________________________________56  1.  Ante o Salto Traçando o Itinerário ___________________________________________ 57  2.  O voo Registros do Processo de Criação _______________________________________ 60  Relato n.1 ________________________________________________________________ 66  Relato n.2 ________________________________________________________________ 70  Relato n.3 ________________________________________________________________ 71  Relato n.4 ________________________________________________________________ 74  Relato n.5 ________________________________________________________________ 76  Relato n.6 ________________________________________________________________ 79  Relato n.7 ________________________________________________________________ 81  Relato n.8 ________________________________________________________________ 84  Relato n.9 ________________________________________________________________ 87  Relato n.10 _______________________________________________________________ 90 

CONSIDERAÇÕES FINAIS UM POUCO DAQUILO TUDO QUE AINDA RESTA______________________________94  BIBLIOGRAFIA ________________________________________________________97 

INTRODUÇÃO O NÓ ANTES DO (DES)ENLACE

INTRODUÇÃO O nó antes do (des)enlace

Os rastros da trilha Os fatos precedentes

1. OS RASTROS DA TRILHA OS FATOS PRECEDENTES Quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha juntos é o começo da realidade. M. de Cervantes, D. Quixote.

Esta monografia se faz mais que um resultado reflexivo e conceitual sobre a fundamentação teórica e o processo de montagem cênica a partir de uma pesquisa de linguagem, requerimentos para a conclusão da graduação em Direção Teatral. Ela é, acima de tudo, o espaço no qual vem se lançar grande parte das inquietações e pensamentos, rastros do percurso realizado durante a graduação. É, nesse sentido, o limiar de uma trajetória acadêmica, que longe de estar se findando, apenas começa. De março de 2013 a março de 2014, estive envolvido, juntamente com a Prof.ª Nina Caetano, no desenvolvimento do primeiro ano do TEXTURAS – Laboratório de Textualidade Cênicas Contemporâneas, projeto de iniciação científica financiado pelo PIPES/UFOP. Nesse trabalho, tinha-se como anseio principal a construção colaborativa de uma dramaturgia e a experimentação de procedimentos de escrita dramatúrgica. O campo de trabalho escolhido para desenvolvimento dessa prática foi o Coletivo seráFIM, grupo de estudantes-artistas do DEART/UFOP, que fundei em 2011 com a ajuda de outros colegas. Desde o início tínhamos acordado que nosso modo de criação seria norteado pelo que se convencionou chamar como processo colaborativo1. Ademais, era sabido de todos envolvidos que o anseio do ponto de vista dramatúrgico era por uma proposta de escrita teatral que dialogasse diretamente com a noção de rapsódia cunhada por Sarrazac na obra O Futuro do Drama2. Efetivamos nosso compromisso: como resultados tivemos o espetáculo APARTHEID BRASIL3 e o artigo Por uma Dramaturgia Colaborativa4, publicado na 11ª edição da Revista DAPesquisa (UDESC). Desse modo, considero que nesse primeiro ano se iniciava os primeiros desejos pela investigação de uma dinâmica colaborativa de criação, aspecto que se ARAÚJO, Antônio. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo (tese de doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. 2 Porto: Editora Campo das Letras, 2002. 3 Estreado na programação do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana – Fórum das Artes 2014, no dia 18 de Julho de 2014 nas Ruínas do Instituto de Filosofia Artes e Cultura da UFOP. 1

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INTRODUÇÃO O nó antes do (des)enlace

Os rastros da trilha Os fatos precedentes

tornou chave-mestre de todos os meus trabalhos posteriores elaborados dentro da academia. Além disso, conheci naqueles tempos a baliza mais cara aos meus estudos: as notáveis pesquisas do professor francês Jean-Pierre Sarrazac. Em março de 2014, embrenhávamos novamente numa jornada científica: o projeto de pesquisa ESCRITÚDIO: Ateliê de escrita teatral, financiado pelo PROBIC/FAPEMIG/UFOP. O desejo nessa época era aprofundar a pesquisa em torno do conceito de rapsódia, realizada no ano anterior, a partir da investigação da obra de dramaturgos e encenadores contemporâneos cujos procedimentos de criação dialogassem com essa noção. Mais especificamente, o intento era explorar as potências das relações texto-cena nas obras desses artistas, e então, refletir sobre isso a partir do conceito referido. Como objetivo adjacente, tínhamos também o intento de realizar oficinas de escrita teatral, a fim de disseminar o pouco do conhecimento que até aquele momento havíamos desenvolvido. Entretanto, esta meta não obteve sucesso, devido a algumas complicações e imprevistos que ocorreram ao longo do percurso e sobre os quais tratarei mais adiante. Pois bem, como resultado do ESCRITÚDIO teve-se o estudo e a análise dos espetáculos O Congresso Internacional do Medo (Grupo Espanca!), O Paraíso Perdido e o O Livro de Jó (ambos do grupo Teatro da Vertigem) e suas respectivas dramaturgias5. Esse trabalho deu origem ao artigo E O Verbo Se Fez Carne: por uma performatividade da palavra no teatro contemporâneo brasileiro, publicado na 16ª edição da Revista Cena do PPGAC/UFRGS. Além disso, este projeto destacou-se pela participação em importantes eventos científicos, dentre eles o VIII

Congresso

da

ABRACE

e

o

I

Seminário

de

Pesquisa

do

PPGAC/DEART/UFOP6, imprescindíveis para a troca de conhecimento e a possibilidade de observação de uma parte dos mecanismos de pesquisa vigentes no país em torno das Artes Cênicas. Posteriormente, depois do desenvolvimento desses dois projetos, chegávamos aos Trabalhos de Conclusão de Curso, e então tivemos que delimitar mais Como objeto de estudo e análise se utilizou as dramaturgias publicadas pelos próprios grupos em questão, e também os vídeos referentes às filmagens dos espetáculos. Os arquivos audiovisuais do Teatro da Vertigem foram cedidos pelo Prof. Rogério Santos de Oliveira. Já o material audiovisual do grupo Espança! foi baixado da internet, no seguinte endereço https://vimeo.com/73503099. 6 Dramaturgia Rapsódica: no âmbito do monstro IN: NOSELLA, Berilo Luigi Deiró; PERETTA, Éden da Silva [Orgs.]. Anais do I Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto. Vitória: Editora Cousa, 2014. 5

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Os rastros da trilha Os fatos precedentes

claramente nosso campo de pesquisa no que tangia ao âmbito específico da encenação, visto que era esta a minha modalidade de formação na graduação. Diante disso, após diversas conversas e reflexões com minha orientadora – que também orientara os projetos TEXTURAS e ESCRITÚDIO – concluímos que nossa investigação nos TCC’s teria como eixo pensar uma mise-en-scène do termo rapsódia. Assim sendo, retomamos as observações levantadas durante as práticas dramatúrgicas do TEXTURAS e as análises e estudos do ESCRITÚDIO, e então chegamos a um denominador: o conceito de Encenação Rapsódica. Nosso desejo, com a proposição deste conceito, partia do diagnóstico das características estéticas e estruturais dos exercícios que desenvolvíamos na sala de ensaio com o seráFIM, sempre impulsionados pela tentativa de aplicação prática dos elementos conceituais concernentes à rapsódia. Notava-se que esses exercícios dramatúrgicos propulsores de componentes rapsódicos, emanavam consequentemente uma conjuntura cênica que compartilhava do caráter rapsódico imanente às textualidades criadas. Além disso, nos estudos do ESCRITÚDIO, notamos também que as dramaturgias dotadas de traços rapsódicos transpunham à materialidade cênica um caráter igualmente rapsódico. Por fim, assim como um arqueólogo, tínhamos encontrado a rocha que iríamos cavar em busca de fósseis estruturais de um corpo em devir, a saber, a encenação rapsódica. Sendo assim, estabelecemos que nosso fundamento teórico-prático seria a investigação cênica do conceito dramatúrgico rapsódia atrelado ao modo de criação conhecido como processo colaborativo. Diretrizes traçadas, era o momento de adentrarmos a Imensa Escuridão, paradoxalmente assombrosa e prazerosa, e tão estimada de grande parte dos artistas teatrais: a sala de ensaio. Por fim, destaca-se o fato de que graças às experiências de pesquisa atreladas aos saberes oriundos das práticas dramatúrgicas, compusemos com relativa segurança o alicerce para o que viria a ser desenvolvido no último ano da graduação. Em vista disso, ressalta-se que a vivência científica nos projetos de iniciação, ou seja, a investigação teórico-prática de dois conceitos — que considero primordiais à minha formação como bacharel em direção teatral —: a rapsódia e o processo colaborativo; mostrou-se aspecto imprescindível para a elaboração do projeto referente aos TCC‘s.

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Os desejos e os embaraços O projeto e as implicações

2. OS DESEJOS E OS EMBARAÇOS O PROJETO E AS IMPLICAÇÕES Um processo de ensaio tem a mesma complexidade do mundo que ele quer refletir. É um microcosmo caótico, com imprevisibilidades e determinismos, ordens e desordens. Antônio Araújo, A Gênese da Vertigem.

Distante da crítica teatral tradicional, esta monografia se propõe, acima de tudo, a investigar o processo de criação do ponto de vista da direção, ou melhor: aborda o processo de criação de um formando em direção teatral – o caráter pedagógico desta experiência é crucial, visto que conta com a orientação de uma professora com ampla experiência no tema. Nessa perspectiva, como pressuposto fundamental da análise que nas páginas seguintes se mostrará, tem-se o interesse primordial sobre a experiência vivida e os procedimentos adotados. Assim, a observação se dá principalmente nas vias da investigação da processualidade, e em quase nada se detém nos aspectos estéticos do espetáculo produzido. Eventualmente os elementos deste virão à tona, mas surgirão apenas como desdobramento de alguma problemática processual, ou como referência a algum resultado estético obtido através de um determinado mecanismo de criação. Não se pretende (...) fazer uma apreciação estética do referido espetáculo. Ao contrário, interessa a trajetória de sua construção, os problemas do percurso, as cartografias sempre provisórias e mutantes, os erros de trilha, o desejo de atalhos, mais do que o seu ponto de chegada. Busca-se uma arqueologia da criação e, especialmente, do processo de direção (ARAÚJO, 2011, p. 2).

Por conseguinte, esse processo de reflexão proposto lida com a inevitável dificuldade de distanciamento do criador para com a sua obra. Tal fator é inerente ao encenador e a qualquer outro artista que se proponha a discutir e refletir sobre seu próprio trabalho, a fim de poder gerar conhecimento a partir da sua prática teatral. Tal escrita e consequente sistematização incorre necessariamente na mesma precariedade própria do fenômeno teatral, o que não implica na invalidez da tentativa. Antônio Araújo, acerca dessa escrita, diz que “as limitações a ela inerentes também revelam o processo de esforço e tentativa de uma primeira reflexão escrita do artista em relação à construção de sua obra” (idem, p. 3). Diante disso, ao nos colocarmos a par desse desafio, aderimos instantane-

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Os desejos e os embaraços O projeto e as implicações

amente a esse caráter aparentemente inapreensível da obra teatral e de seu intrínseco processo de concepção, de modo que toda tentativa de assimilação plena da prática e manifestação teatrais empreendidas seria senão uma alusão e projeção teóricas de princípios e fatos processuais oriundos de um ponto de vista específico: do artista-pesquisador formando. Entretanto, por mais que seja um olhar individual o constituinte dessa escrita, este ponto de vista provém de um artista imerso em todo o processo de criação do espetáculo. Esse fator paradoxalmente delibera e legitima a manifestação das observações e críticas que são, no mínimo, consideráveis, e de certo modo válidas, visto que se deram de forma empírica. (...) seria o próprio artista a pessoa mais indicada para fazer uma análise crítica do seu percurso criativo? Quanto de distanciamento ele conseguiria ter? Ou ainda, como não se tornar um refém da obra ou do ego, aproveitando-se da reflexão escrita como mais um canal de vaidade pessoal ou de legitimação da própria obra? Como não se justificar ou justificar as falhas do processo por meio de teorizações encantatórias? Como não dourar a pílula nem manipular os fatos? Tal dilema me acompanhou durante toda a escritura deste trabalho. Porém, por mais limitadora, pouco ambiciosa ou excessivamente autocentrada que tal opção possa parecer, ela, de fato, ofereceu-me outra possibilidade de exercitar a minha condição de artista-pesquisador. Significou, também, a oportunidade de afastar-me do objeto-em-construção, para reexaminá-lo e colocá-lo em xeque, à luz do objeto construído. O que acarretou, inevitavelmente, uma autocrítica “a frio” do meu trabalho de diretor. E se, ao procurar evitar a autoindulgência, incorri em impiedade ou excessivo rigor em relação ao processo, tanto melhor. Prefiro assim7 (ARAÚJO, 2011, p. 6).

A princípio, todas essas questões feitas por Araújo também me intimidaram, e a decisão de utilizar como assunto da própria monografia a escrita em torno da minha prática, apenas ocorreu por acreditar que as relações entre teoria e prática são imanentes a qualquer projeto de pesquisa que tenha como objeto a obra de arte e implicitamente a sua construção. Desse modo, diferentemente do que é comum à crítica e à tradição histórica do teatro, ou seja, o ato de análise do resultado/produto/obra “acabada”, optamos por refletir sobre o processo, ou melhor, sobre os diversos desdobramentos surgidos dos procedimentos de criação e dos fatores inerentes à realização do processo criativo na sala de ensaio. (...) desde o início, uma dúvida se apresentou: o trabalho árduo e diário dentro de uma sala de ensaio valeria uma investigação em si por parte de seus criadores? Porque o que interessa, via de re7

Grifo nosso. 17

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Os desejos e os embaraços O projeto e as implicações

gra, tanto para os críticos como para os espectadores, é o resultado final. A crítica teatral, especialmente, tenta analisar aquilo que funciona ou não, seja na articulação dos diferentes elementos, seja na materialização de um conceito da dramaturgia ou da encenação. Analisa-se o enunciado cênico, o discurso, a ideologia, o sentido geral, sempre a partir da perspectiva da obra acabada. Contudo, se o teatro é a arte do provisório, daquilo que se esvai a cada noite, sem a possibilidade de recuperação idêntica e exata à da noite anterior, não seria o processo de ensaio, espaço por excelência da precariedade, um espelho mais fiel da arte teatral? (...) Este livro, ao realizar uma cartografia dos ensaios e uma crítica do processo, ao investigar os elementos e as dinâmicas que compuseram o processo de construção cênica do espetáculo O Paraíso Perdido, problematizou um território intervalar: o que vai da criação da cena à cena da Criação (ARAÚJO, 2011, p. 2).

Ainda a respeito dessa importância presente no estudo de processo, vale manifestar que conteúdos de reflexão teórica em torno dos processos de criação vivenciados pelos encenadores são lamentavelmente muito escassos no Brasil. E por fim, mudando de viés – porém ainda em defesa dos estudos de processo – poder-se-ia argumentar que faltam mais análises sobre a metodologia dos encenadores brasileiros. Até mesmo a bibliografia sobre a prática de direção teatral, em língua portuguesa, é escassa. Em geral, as publicações nessa área privilegiam a análises dos espetáculos ou o estudo do pensamento de um determinado diretor, às vezes sem ultrapassar o aspecto eminentemente biográfico. Porém, investigam-se pouco seus processos criativos e poucos também são os relatos pormenorizados sobre seus procedimentos de trabalho (ARAÚJO, 2011, p. 6).

Diante disso, essa decisão autocrítica se mostra como mais um ato afirmativo, que se junta ao coro que protesta pela ampliação dos estudos que se debrucem sobre a dinâmica criativa inerente à sala de ensaio. Há ainda, por outro lado, um estranho “mistério” que ronda o que ocorre dentro das salas de ensaio, uma noção antiga de que todo processo artístico se dá apenas pelo invisível, indizível e inaudível. Os estudos da crítica genética e dos processos de criação contribuem de forma decisiva para entender esta área do conhecimento das artes que é, de modo geral, envolto numa áurea de mistério e enigma que ao longo da história ocidental sempre esteve sustentada por expressões como “gênio criativo”, “musa inspiradora”, “criatividade”, “iluminação criadora”. O esforço da crítica genética é o de entender a criação como o resultado de um complexo sistema que tanto envolve a subjetividade sensível como também o árduo trabalho lógico e esforço cognitivista dos artistas criadores. Desempenha, assim, papel decisivo para o entendimento da criação não só como um processo da sutil e impetuosa sensibilidade humana, mas também do vigoroso, zeloso, vigilante e esmeroso 18

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Os desejos e os embaraços O projeto e as implicações

trabalho de composição. Dupla articulação entre sensibilidade e labor, inspiração e transpiração (SCHETTINI, 2009, p. 64).

Tal noção parece-nos equivocada à medida que há o entendimento da grande parcela de técnica envolvida no processo criativo, fator que não anula a coexistência do acaso e do “extraordinário”. Ademais, a investigação e consequente sistematização do processo de criação teatral não promulga a instauração de “manuais” e “normas” de como deveria ser realizada uma prática teatral. Pelo contrário, proclama a exegese dos procedimentos e das vivências ocorridas em salas de ensaios e em outros vários espaços de criação teatral. Isto é, fazer fugir à superfície textual a aquosidade do suor e o som do esbaforir que preenchem os vazios de todo espaço de ensaio. (...) espero que a atual reflexão também possa servir a outras pessoas. No mínimo, aos colegas diretores ou aos artistas que tenham interesse pelo teatro de grupo. Pois pretendi radiografar os mecanismos de construção de um espetáculo, tanto no sentido da descrição metodológica detalhada como na reflexão crítica sobre seus procedimentos. Quis, também, fornecer alguns subsídios para o trabalho prático do diretor em sala de ensaio. Sem o propósito, é claro, de chegar a algum modelo, padrão ou receituário, mas, sim, de mapear diferentes abordagens práticas e a experiência específica que elas produzem. A ideia foi expandir o conhecimento sobre o processo de ensaio, e não reduzi-lo a alguma fórmula ou manual (ARAÚJO, 2011, p. 7).

Logo, aflora-se uma questão: a democratização dessas vivências atuaria em prol de outro desejo que senão pela expansão e fomento da reflexão e pensamento acerca da cena e dos seus modos de construção? Acredita-se (e defende-se aqui) que, para difundir a prática teatral é imprescindível que passemos a tratá-la como movimento que por meio da articulação entre teoria e prática gera conhecimento. Também é importante dizer que a utilização desse trabalho para o meu exercício reflexivo não diminui ou subvaloriza a pesquisa realizada na prática. Ela pode ser tão crítica quanto um trabalho acadêmico. A bem da verdade, o processo de criação é um processo crítico em si. E compreende, ainda, um movimento prático-teórico constante. Leituras de texto que provocam improvisações, que provocam discussões, que, por sua vez, provocam novas sugestões cênicas. E assim por diante. Daí por que teoria e prática se retroalimentam continuamente durante a criação de uma obra. Podemos, inclusive, olhar o processo de ensaio como um meio de pensar em si mesmo e no outro. Como uma forma de conhecimento do mundo. Ou, se quisermos, de sua transformação. Portanto, não foi apenas agora, por meio deste trabalho escrito, que a reflexão 19

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Os desejos e os embaraços O projeto e as implicações

sobre a construção da cena ou a crítica dos procedimentos metodológicos ocorreu. Isso já havia sido feito durante os próprios ensaios. Talvez o que difira aquela experiência da atual sejam os meios (reflexão escrita e sistemática) (...) (ARAÚJO, 2011, p. 8).

Portanto, esse trabalho se inspira numa linha (ou corrente) que considera vital, para a produção de conhecimento acerca do teatro, o estreitamento entre teoria e prática, bem como a sua sistematização. Este engajar-se na observação crítica do processo criativo teatral tem se mostrado profícuo e contagiante, originando empreendimentos referenciais como os de Antônio Araújo, Nina Caetano, Nara Keisermann, Marcos Bulhões e Renato Ferracini.

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CAPÍTULO I OS 2 PÉS QUE ME (RE)MOVERAM

CAPÍTULO I Os 2 pés que me (re)moveram

Uma Peripécia O Colaborativo

1. POR QUE NÃO A RAPSÓDIA? O que Dort nos ensinou, a mim e à minha geração, é um reviravolta coperniciana da relação entre o texto e o palco: o palco está em primeiro lugar. Jean-Pierre Sarrazac

Nessas palavras de Sarrazac concentra-se, certamente, senão o todo, mas uma grande parcela do impulso criativo que fundamenta a prática teatral moderna e contemporânea: a investigação do fenômeno cena. A partir do momento em que entendemos a especificidade da arte teatral, ou seja, sua efemeridade – dado que é a arte do encontro – seria demasiado ingênuo ainda incidirmos naquele mesmo erro: a cisão entre texto e cena (ou, teatro versus drama). Acredita-se, como salienta Nosella, que isso possua grandes raízes numa antiga confusão erigida sobre A Poética de Aristóteles. Ler a presente passagem [Aristóteles, 1999, p. 45] de forma descontextualizada historicamente e descolada da obra do filósofo gerará exageros na história do pensamento sobre o teatro como a assertiva de que o texto é superior, e, portanto, não precisa da cena. Como nos mostra Marco De Marinis (1991), é uma assertiva equivocada, e deve muito mais à releitura do filósofo grego feita pelo pensamento cortesão francês do século XVII e enfatizado pelo nascente pensamento burguês (herdeiro de alguns elementos da ideologia cortesão) nos séculos XVIII e XIX do que efetivamente por uma possível verdade absoluta lançada por Aristóteles. Assim, a historiografia do teatro ocidental, no seu período moderno, teria realizado essa equação em que teatro = drama = texto teatral, e no caso, um tipo específico e normatizado de texto teatral (NOSELLA, 20014, p. 36).

À medida que esse desentendimento se desconstrói, podem-se vislumbrar outras instâncias de reflexão e percepção da cena, esteticamente e criativamente. Percebê-la como instrumento que articula elementos cênicos que vão além da dramaturgia, mostra-nos como ela tem se emancipado de seu fundamento estritamente representativo. Assim, a questão “texto e cena” se mostra pouco pertinente. Não se trata mais de saber qual elemento vai prevalecer sobre o outro (o texto ou a cena). A relação entre eles pode nem mesmo ser pensada em termos de união ou subordinação. É uma competição, uma contradição que se revela diante de nós, espectadores. Sendo assim, a teatralidade não é apenas essa “espessura de signos” da qual nos falou Roland Barthes. Ela é também o deslocamento desses signos, sua combinação impossível, seu confronto sob o olhar 22

CAPÍTULO I Os 2 pés que me (re)moveram

Uma Peripécia O Colaborativo

do espectador (DORT, 2013, p. 55).

desta

representação

emancipada

Nesse sentido, os artistas e pesquisadores da cena estariam a serviço de outro porvir que senão a própria cena? Isto é, a efetividade de todo trabalho teatral da sala de ensaio – e de fora dela – se encontrará totalmente plena por outra via que senão a do encontro do artista com o seu público? Há algo de maior excelência teatral do que os instantes singulares de fruição entre o espectador, de caráter sempre provisório, e o espetáculo, fatalmente fugaz? Poder-se-ia dizer, ainda, que houve em um dado momento do século XX no Brasil – especificamente a década de 80 –, uma noção de que o encenador exercia, de certo modo, uma soberania sobre os outros componentes cênicos. Ou seja, mesmo que houvesse uma autonomia diante da cena, esta se sustentava em detrimento às outras funções teatrais. Desenvolvendo uma análise sobre a produção teatral desse período, podemos dizer que as manifestações cênicas brasileiras também foram marcadas sob a égide esteticista. O metteur en scene retomou ao centro da cena brasileira, normalmente associado a um projeto de encenação autoral. Houve, nesse sentido, uma desvalorização do teatro associado ao texto dramático, sublinhando urna fase de declínio da dramaturgia nacional. A formação de grupos de pesquisas teatrais continuou se desenvolvendo, porém, muitos tiveram sua atuação orientada pelo impulso criativo do diretor/encenador que normalmente concentrava a formação de equipes ao seu redor. Assim, as formas teatrais são delimitadas pela hegemonia do diretor como autoridade responsável pela organização, condução e definições temática e, principalmente, estéticas da ação teatral (FISCHER, 2003, p. 21).

No entanto, com a sucessiva abertura da construção teatral para as fronteiras além-palco, tivemos o impulsionamento de um contexto de reivindicação e instauração de uma pluralidade de vozes na plataforma cênica, provavelmente advindo das pesquisas mais recentes em torno da técnica do ator, da construção cenográfica, da prática dramatúrgica, da concepção da luz e, principalmente, da presença do espectador. A prática ultrapassou novamente a teoria. Eu não falo somente da contestação do encenador tirano e castrador, formulada com força e ingenuidade por alguns atores, por volta de 1968, se tornando palavra de ordem, moda. Uma outra transformação, mais ampla e mais profunda, está afetando o teatro. O advento do encenador e a consideração da representação como um lugar de significação (não como uma tradução ou decoração de um texto) 23

CAPÍTULO I Os 2 pés que me (re)moveram

Uma Peripécia O Colaborativo

constituíram, sem dúvida, apenas uma primeira fase. Constatamos hoje uma emancipação gradual dos elementos da representação teatral e observamos uma mudança estrutural: a renúncia à unidade orgânica ordenada a priori e o reconhecimento do fato teatral enquanto polifonia significante, aberta para o espectador (DORT, 2013, p. 51).

É tendo isso em vista que outorgamos nossa possibilidade de reflexão acerca de uma Encenação Rapsódica. Parte-se, primeiramente, do entendimento de que a noção de rapsódia diz respeito principalmente ao gesto criativo – e de certo modo político – que caminha em direção à ruptura da forma e da lógica dramática aristotélica. Reivindica, acima de tudo, a desconstrução do belo animal aristotélico, de modo a rearticular elementos dramáticos juntamente aos elementos épicos e líricos. Diante disso, percebe-se uma pulsão rapsódica que transcende o próprio conceito dramatúrgico, e caminha como diz Sarrazac, para um devir cênico, que é senão a própria materialidade cênica pertencente à encenação. Situada na origem de um gesto de criação poética, bem como na confluência dos principais dados do drama moderno, a rapsódia afirma-se como um conceito transversal importante, que se declina em uma série de termos operatórios, desembocando na constituição de uma verdadeira constelação rapsódica. Através do rapsodo, com efeito, a rapsódia faz ouvir uma voz rapsódica, a que produz uma rapsodização que se resolve num transbordamento rapsódico - uma relação concorrencial entre o dramático e o épico no seio das dramaturgias demasiado contemporâneas -, que por sua vez se inscreve num devir rapsódico (SARRAZAC, 2012, p. 152).

Logo, ao nos apropriarmos de elementos que num primeiro momento faziam referência apenas às peças teatrais de um determinado tempo-espaço histórico, ou seja, àquelas analisadas por Sarrazac em O Futuro do Drama (Campo das Letras, 2002), estamos nos habilitando a rearticular tais elementos além de uma fronteira estritamente dramatúrgica, a fim de percebê-los como denominadores comuns às determinadas práticas teatrais da época moderna e contemporânea. A pulsão rapsódica na escrita - ou no espetáculo - corresponde a esta tentativa, de longe a longe reiterada, de recuperar o descontínuo - ou o desunido - que preside originariamente à relação teatral. Reabrir o palco original do drama, desobstruí-lo da hiperdramaticidade do diálogo do teatro burguês. Deixar uma ou outra voz para além da das personagens, abrir caminho. Não é de modo algum a do "sujeito épico" de Szondi, essa é ainda uma voz excessivamente dominada e, afinal, demasiado abstrata, mas sim a voz hesitante, velada, balbuciante do rapsodo moderno (SARRAZAC, 2002, p. 234). 24

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Então, pensando a dramaturgia dentro de uma perspectiva não mais textocêntrica, percebe-se que ela se transforma em mais um dos componentes que participam da composição cênica, desvinculando-se, por fim, do antigo estigma que a colocava como única matriz de onde a cena – ou o teatro – emanava. Essa perspectiva possibilita também pensar a dramaturgia dentro deste âmbito independente, no qual não há hierarquias rigidamente delimitadas ou soberanas. Há, nisso, um ato inerente de ampliação e democratização para toda a prática teatral, de expansão dos conceitos de análise e de estudos anteriormente restritos, a princípio, a um único âmbito. É o que ocorre, por exemplo, com a noção de dramaturgia, atualmente difundida a vários segmentos. A dramaturgia entendida como a arte de compor e tecer a materialidade cênica passa a sugerir novas articulações conceituais. Dramaturgia da luz, propõem os artistas da área. Dramaturgia da imagem, ensaiam os estudiosos de um teatro mais imagético e plástico. A percepção das múltiplas textualidades permite vislumbrar a polifonia constitutiva da cena teatral. Dramaturgia da cena, concluem os criadores debruçados sobre a pluralidade sígnica e polissêmica de gestos, sons, palavras, imagens, luz, espaço (MENCARELLI apud CAETANO, 2011, p. 16).

Diante disso, fundamentamos nosso projeto tendo como premissa básica uma compreensão de que a produção textual dialoga diretamente com a produção cênica e vice-versa. Ou melhor: talvez seja possível haver uma confluência de motivos e ferramentas formais que se fazem imanentes a uma parcela da produção teatral de nosso tempo sócio-histórico. Entre o texto desacreditado e o espectáculo inapreensível, o teatrólogo atenta em tudo e nada o retém: ele não sabe, no verdadeiro sentido da expressão, a que porta há-de ir bater. Perante esta situação incômoda, Jean-Pierre Sarrazac decide-se: opta pelo texto dramático - são as flutuações que este último vai sofrendo, ao longo dos últimos vinte anos, que ele escolhe como objecto de estudo - mas não o faz contra o espectáculo. Pelo contrário, assinala com cuidado os espaços do texto, as "linhas" e as entrelinhas, tudo aquilo que permite que a cena esteja presente na própria construção do texto (DORT, 2002, p. 20).

Portanto, a fim de esclarecer e expor melhor os conceitos formais propostos por Sarrazac e por nós aqui reapropriados, atentar-se-á nas próximas páginas para um detalhamento básico das características arquitetônicas dessas construções formais evidenciadas pelo professor francês, oriundas da reformulação da

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composição dramática ocidental do século XX e vigente até os dias de hoje.

1.1 UM BREVE URRO DO MONSTRO APRESENTANDO BREVEMENTE A RAPSÓDIA Estabeleçamos hoje as bases de uma estética contra naturam. E penetremos, sem medo, no antro do monstro. Jean-Pierre Sarrazac

Ensaísta, dramaturgo, e professor, o francês Jean-Pierre Sarrazac nasceu em 1946 e é professor emérito do Instituto de Estudos Teatrais da Universidade Paris III — Sorbonne Nouvelle, na qual em 1995 funda o Grupo de pesquisa sobre a poética do drama moderno e contemporâneo. Assim como o húngaro Peter Szondi em Teoria do Drama Moderno, Sarrazac funda sua pesquisa em torno dos possíveis desdobramentos filiados à produção dramatúrgica do final do século XIX e todo século XX, chegando à proposição, no caso do primeiro, de uma possível Crise do Drama, e do segundo, de uma escrita rapsódica. Não nos cabe nesse trabalho aprofundar na primeira noção. Portanto, o que mais nos interessa no nosso caso é a conceituação que o professor francês realizou em O Futuro do Drama, na qual ele descreve de maneira pragmática as características dos elementos que definiu como sendo componentes do conceito de rapsódia. Desse modo, façamos uma sucinta incursão do que determinamos como princípios fundamentais a esta noção. Antes de tudo, é preciso nos permitir perceber a noção de drama como modo livre e independente, múltiplo e heterogêneo, capaz de agregar ao seu corpo as diversas linguagens que ao longo da história foram determinadas estritamente como gênero. Assim, o drama se faz como lugar de encontro dos diversos gestos de escrita e não mais se restringe unicamente ao gesto dramático como proposto na Poética de Aristóteles. Diante disso, temos um terreno composto por diversas materialidades textuais distintas, mas que se confluem e dialogam no cerne do drama, ou seja, do modo dramatúrgico ou sendo ainda mais claro, da escrita dramatúrgica. Na Poética de Aristóteles, o drama é apenas uma categoria abstracta que abrange gêneros estritamente delimitados, a comédia e a tragédia. Bastante mais tarde, o drama, por seu lado, vai designar um gênero particular e dominante: o drama burguês, cu26

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jos últimos sobressaltos agonizantes podemos ainda surpreender, nomeadamente no boulevard. Mas se o drama ressuscita, hoje, qual Fénix, não é das cinzas do género defunto, é sim, e bem pelo contrário, emancipando-se definitivamente da noção de gênero (SARRAZAC, 2002, p. 27).

Não obstante, há a utilização das arquiteturas de um exercício dissipado (o drama clássico), para representar o mundo de hoje. Isso não é inocente. Tal fato ocorre devido alguns escritores do teatro contemporâneo negligenciarem o que Sarrazac denomina como a visão histórica das categorias estéticas ( SARRAZAC, 2002, p. 34). O autor nos esclarece tal ideia quando menciona Brecht, que defende: “não basta dizer coisas novas, é preciso, também, dizê-las de outra forma”. Suplementando esta ideia, Sarrazac afirma também que assim “a escrita dramática revelaria um atraso continuo relativamente ao resto da literatura. Insensível à modernidade, tenderia para o imobilismo” ( SARRAZAC, 2002, p. 33). Ademais, o exercício da escrita não se restringe somente ao registro da sociedade e o seu relevo, mas também na capacidade de manipular as formas precedentes, de modo que elas possam intervir na sociedade, mapeando as deficiências, as rachaduras, os decalques e as fissuras imanentes a qualquer sociedade histórica. Por sua vez, essa cartografia estética, ou seja, a dramaturgia, não é capaz de ser fabricada com ferramentas e procedimentos indiferentes ao tempo no qual ela é constituída, oriunda. É um resultado dialético entre forma-conteúdo. Escrever no presente não é contentar-se em registrar as mudanças da nossa sociedade; é intervir na «conversão» das formas. Segundo Armand Gatti, «cada assunto tem uma teatralidade que lhe é própria» e «é a procura das estruturas que exprimem essa teatralidade que forma uma peça» (SARRAZAC, 2002, p. 34).

Nessa perspectiva, Sarrazac (2002, p. 35) também denuncia a ineficiência da utilização dos termos forma e conteúdo, visto que um não deve ser necessariamente subordinado ao outro, como se deu tradicionalmente, mas sim pelo contrário, ou seja, há uma “fusão do material extraído da realidade e dos procedimentos formais”. Assim, “a própria noção de tema se encontra desqualificada”, e o que podemos notar claramente, é o “entrelaçado de tema”, “o enredo de temas”, como acontece no romance, gênero livre por excelência. Contudo, há um paradigma embasado na tradição histórica que ainda insiste em advogar uma estética em

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ruínas. Tal postura reacionária desencoraja a renovação da escrita teatral, perdurando, muitas vezes, a prática de uma poética normativa e anacrônica. (...) o preconceito é obstinado: enquanto que se admite, sem reticências, a vocação do gênero romanesco para se reformular continuamente, para variar e renovar as suas estruturas, persiste-se em recusar, em nome da óptica teatral a da sacrossanta construção dramática, esta possibilidade a uma obra escrita para a cena (SARRAZAC, 2002, p. 35).

Todavia, há um revés a princípio transformador: “o abalo que Brecht provocou nas bases aristotélicas do teatro ocidental” (SARRAZAC, 2002, p.35). Entretanto, essa ruptura na forma dramática culminou, na maioria dos autores, em uma caçada que buscava a superação da forma dramática em detrimento à plenitude do épico. Segundo Sarrazac, esse intento não obteve sucesso, a escrita dramática permaneceu no âmbito do modelo da obra brechtiana, e em nada avançou. A tendência secular, do Teatro medieval a Piscator, e de Shakespeare a Brecht, para a epicização da forma dramática estava reduzida a uma alternativa sumária: escolher o seu campo; optar por uma forma dramática decadente ou pela renovação do teatro épico. Assim, a dramaturgia francesa apresentava no final dos anos cinquenta, uma paisagem quase desértica onde se desafiavam com o olhar dois clãs irredutíveis de epígonos: os turiferários do Teatro do absurdo e os aduladores de Brecht (SARRAZAC, 2002, p. 36).

Contudo, após Brecht, podemos notar que o antigo paradigma que norteava as relações entre o dramático e o cênico se dissolveu, sendo substituído pela noção de conversão das formas, que se resume “num movimento duplo que consiste, por um lado, em abrir, desconstruir, problematizar as formas antigas e, por outro, em criar novas formas” (SARRAZAC, 2002, p. 36). Além disso, Sarrazac advoga que o escritor de teatro não deve trabalhar, e nem pensar, em formas estanques, estruturas genéricas, estabelecidas a priori, que possuem como desejo intrínseco adequarem um conteúdo específico e singular a um reservatório restrito, padrão e genérico. Trata-se, antes de tudo, de concentrar a atenção “no detalhe da escrita, na escrita do detalhe” (SARRAZAC, 2002, p. 37), ou seja, caberia ao dramaturgo descobrir na estrutura que fundamenta a obra dramática tradicional, alguns mecanismos que lhe serão necessários para a construção de uma forma que seja inerente ao conteúdo em questão.

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Em suma, fragmentar a estrutura dramática convencional, extrair dela potencialidades e posteriormente reorganizá-las; agregar a ela elementos épicos, e até mesmo líricos, tornando-a um emaranhado de detalhes, dispostos numa única superfície: o texto. Formaríamos assim, um mosaico, com diferentes texturas e materialidades, costuradas pelas mãos do que Sarrazac (SARRAZAC, 2002, p. 37) aponta como escritor-rapsodo, uma vez que rhaptein, em grego, significa coser.

1.2 DISSECANDO O MONSTRO A RAPSÓDIA E ALGUNS DE SEUS PROCEDIMENTOS Monstro: s.m. Tudo o que é contra a ordem regular da natureza. Dicionário Online de Português8

A fim de traçar uma proposta do conceito de rapsódia aplicado à encenação, faz-se necessário primeiramente apontar algumas premissas fundamentais que compõem essa noção. Acima de tudo, e denominador comum a todos os traços rapsódicos que serão abordados, reside o fato de grande parte, senão o todo completo, referir-se diretamente, cada qual em sua medida, a tudo que se opõe à ideia aristotélica de belo animal, ou melhor, à concepção do que é natural, harmonioso, homogêneo, orgânico e uniforme. Isso porque, como aponta Sarrazac: Durante vários milênios, esta analogia fez dogma e acompanhou o progresso do drama. Logo, subverter a estética clássica é prioritariamente intervir nesse lugar metafórico onde se elabora uma concepção organicista do drama (SARRAZAC, 2002, p. 53).

Ao deslocarmos a concepção de drama da noção de belo animal, aproximamo-la do monstro, adentramos em território de infinitas possibilidades, não mais buscamos a Mimesis, não nos subordinamos à natureza, não estamos mais a mercê da representação, desvencilhamo-nos dos dogmas, dos paradigmas e das referências. Assim, a cristalização que a estética clássica engessou sobre a escrita teatral é substituída pela livre associação dos diversos elementos que compõem os gestos de escrita, ou ainda os modos poéticos. O desejo se faz então por “hibridações mais vastas: cruzamentos, já não entre gêneros literários historicamente de-

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Disponível em: < http://www.dicio.com.br/monstro/>. Acesso em: (13/04/2015). 29

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limitados (...), mas entre os grandes modos poéticos, que remetem para formas originais e estão dotados de um fundamento antropológico: o épico, o dramático e mesmo o lírico” (SARRAZAC, 2002, p. 54). Ao postular tal perspectiva teórica, fundada sobre esse preceito básico de ruptura do belo animal aristotélico, Sarrazac proclama a possibilidade de uma livre articulação dos modos poéticos em busca de uma potência na expressão das questões humanas emergentes na contemporaneidade daquele que compõe dramaturgicamente, pois “escrever no presente não é contentar-se em registrar as mudanças da nossa sociedade; é intervir na «conversão» das formas” (SARRAZAC, 2002, p. 34). Além disso, “não se trata de, em nome de qualquer modelo «mecanicista», desumanizar o drama, mas sim de produzir obras contra naturam e preferir à imitação rígida da bela natureza a livre variedade dos monstros” (SARRAZAC, 2002, p. 56). Combinado a esse princípio vital, existem outros gestos que alimentam a pulsão rapsódica. Sarrazac cita-os nesse trecho: Penso ter apresentado, suficientemente, ao longo desta obra os princípios característicos da rapsodização do teatro: recusa do "belo animal" aristotélico e escolha da irregularidade; caleidoscópio dos modos dramático, épico e lírico; reviravolta constante do alto e do baixo, do trágico e do cômico; junção de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita resultante de uma montagem dinâmica; passagem de uma voz narradora e interrogante, que não poderíamos reduzir ao "sujeito épico" szondiano, desdobramento (nomeadamente em Strindberg) de uma subjectividade alternadamente dramática e épica (ou visionária)... Limitar-me-ei, portanto, a um problema que se situa no centro da evolução da escrita dramática no século XX: a liquidação do último constrangimento "aristotélico": a "unidade de acção", tão incômoda e obsoleta no nosso tempo, como incômodas e obsoletas podem ter parecido, no século das Luzes, as unidades de tempo e de lugar. Porque, se a acção deixou de ter um "fim", no sentido hegeliano do termo, como e por que razão deveria ela manter essa famosa "unidade"? (SARRAZAC, 2002, p. 229).

Portanto, são esses gestos que, surgidos ou combinados a partir do ímpeto da monstruosidade, são responsáveis por configurar, segundo Sarrazac, uma dramaturgia rapsódica. Adiante, vamos aos seus detalhamentos, de modo a investigar as suas essências, com fins de rearticulá-los cenicamente.

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1.2.1 HIBRIDAÇÃO Há de se ressaltar que nos parece ser a noção de hibridação a mais cara ao conceito aqui abordado. No entanto, isso não se dá por uma possível complexidade conceitual, mas sim pelo seu caráter formalmente transgressivo. Isto é, ao adotarmos como fator primordial a irrupção do épico e do lírico no âmbito da escrita dramática, conhecida antes como pura e absoluta, estamos nos referindo, sem dúvida, ao ato de mestiçagem de um corpo estranho no cerne dessa pureza e rigor advindos dessa definição clássica de peça bem-feita (o belo animal). Essa carência de outro modo de escrita no conjunto dramático convencional incorre diretamente na revelação de uma fissura, de um vazio no corpo do drama, agora com vistas a ser preenchido pelo gesto épico e/ou lírico. Pode-se dizer: deram voz aos mudos, e ouvidos aos surdos. A imagem do “belo animal” inscreve se assim num paradigma organicista, que constitui uma das metáforas centrais da estética ocidental. Essa imagem original, tornada unidade de ação na época clássica, ao mesmo tempo acompanhou e promoveu o desenvolvimento do drama. Subverter a estética clássica é, portanto, intervir nesse lugar metafórico onde se elabora uma concepção organicista da peça de teatro. Por exemplo, Jean-Pierre Sarrazac opõe ao “belo animal” da Poética “a estranha besta, metade gato, metade cordeiro” descrita por Kafka em “Un croisement ou um hybride” [“Um cruzamento ou um híbrido”]. Essa criatura quimérica oferece a imagem de um drama moderno e contemporâneo cujo desenvolvimento deve menos a um modelo clássico de composição do que a uma hibridização das formas (KUNTZ, 2012, p. 42).

Nesse sentido, o hibridismo instala propulsores terríveis à forma dramática clássica, germinando em seu cerne a destruição do absoluto, do totalizante, do harmonioso e unitário. É típico do que é híbrido o fato de nos fazer recorrer às outras referências, aos vislumbres de fissuras, aos evidentes contrastes e às múltiplas texturas. Realizar a hibridação é lacerar a trama da língua vernácula, inserindo-lhe uma quantidade de elementos alogénicos: citações de línguas estrangeiras, presença do bretão ou do occitano, mas também convocação de todas as línguas especializadas - sociolectos profissionais, gírias do mundo econômico e científico — que também falam do mundo. Marcas na pluralidade dos discursos, desde a Bíblia até aos tratados de Física moderna: «Aconteceu-me, confessava Alfred Döblin, mal poder conter-me ao copiar extractos de documentos, dizendo para mim próprio: nunca poderei fazer melhor. E quando num livro descrevia a luta dos gigantes contra a 31

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grande natureza, quase não conseguia deixar de copiar artigos inteiros de geografia: o curso do Rhône, como nasce nas montanhas, o nome de cada um dos seus vales, as cidades que aí se encontram, todas estas coisas são tão maravilhosas e a relação entre elas tão épica que me sinto totalmente a mais» (SARRAZAC, 2002, p. 167).

Desse modo, a hibridização, enquanto procedimento de criação se mostra como fundadora de uma rede composta de diversos fragmentos. Sua potência reside numa busca paradoxal em não mimetizar a natureza compreendida de maneira homogênea e uniforme, mas ao mesmo tempo em transmutar textualmente a complexidade do pensamento humano, que aparentemente não se reduz apenas à expressividade dramática. Invaginada no corpo, a língua deixa de estar obrigada a mimar a natureza como quando era ainda exterior a este corpo. Emerge uma palavra desviante, monstruosa, uma palavra contra naturam. A escrita bocal – ou anal, de tal forma esta extremidades estão ligadas –, a escrita visceral propaga a rapsódia na língua teatral. Já não é só a personagem que é desfeita e costurada, mas é também esta palavra saída do corpo. Da mesma forma que a meio de Moby Dick o corpo gigantesco da baleia branca ocupa a narrativa de Melville e abre espaço aos solilóquios e ao diálogo dos marinheiros, e mescla, ao mesmo tempo, o lírico, o épico e o dramático, assim a língua do dramaturgo-rapsodo trespassa a escrita teatral e instaura a hibridação (SARRAZAC, 2002, p. 172).

Portanto, a hibridação (ou hibridização) se trata do ato de cruzamento de espécies textuais distintas, de modo que tal miscigenação fique aparente, às vistas. De fato, Sarrazac postula que esse seria a atitude do “autor rapsodo do futuro”: “praticar a vivissecção. Cortar e cauterizar, coser e descoser, como se da mesma atitude se tratasse, o corpo do drama” (2002, p. 54). E, ainda acrescenta que a hibridação denuncia o seguinte fato: “o drama sentia-se apertado na pele do «belo animal»”, pois “o seu sangue aspirava a ser misturado [hibridizado]” (idem). 1.2.2 MONTAGEM E COLAGEM Outras duas características de matrizes análogas que dialogam com a composição rapsódica são a montagem e a colagem. Tais procedimentos também se opõem à noção de belo animal, e a confronta de modo que a sua presença anula qualquer possibilidade de unidade e de progressão dramática, tendo em vista que ao utilizarmos da montagem, estamos lidando inevitavelmente com a ideia de 32

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fragmentos, que quando manipulados compõem uma sequência, que não deve ser necessariamente linear ou contínua, como é no drama. Por sua vez, a colagem lida com a justaposição de elementos heterogêneos e disformes, o seu potencial está em agregar ao texto teatral a textura de elementos variados. Por exemplo, ao agregarmos na composição dramatúrgica um texto jornalístico na íntegra, sem alterações, estamos fazendo uma colagem. Por outro lado, ao justapormos esse texto com outro texto científico, estamos fazendo uma montagem. Nesse sentido, apesar de análogas, montagem e colagem não dizem respeito ao mesmo procedimento. Como se pode ver na contribuição de dois autores colaboradores de Sarrazac, a montagem se refere à noção temporal, e a colagem à noção espacial. A montagem é um termo técnico tomado do cinema, sugerindo, por conseguinte, acima de tudo a ideia de uma descontinuidade temporal, de tensões instaurando-se entre as diferentes partes da obra dramática. A colagem, por sua vez, faz referências às artes plásticas (colagens de Braque e Picasso), evocando, portanto, mais a justaposição espacial de materiais diversos, a inserção de elementos “inusitados” (por exemplo, documentos “brutos”) no seio do texto de teatro, que dão a impressão, em relação a uma concepção “tradicional” da arte dramática, de interromper o curso do drama, detendo certa autonomia e podendo aparecer como outros tantos corpos estranhos (BAILLET; BOUZITAT, 2012, p. 120).

Ainda no que tange à distinção entre colagem e montagem, e às suas relações de ruptura formal e ideológica, a dramaturga e pesquisadora Adélia Nicolete (2013, p. 240) nos esclarece alguns pontos. Para Jean-Pierre Sarrazac, a utilização da montagem e da colagem na dramaturgia imprimem no trabalho uma heterogeneidade e uma descontinuidade estrutural, mas também temática. No cinema, a montagem tem o objetivo de articular as diversas tomadas, de modo a constituir, por exemplo, as passagens de tempo, as mudanças de lugar e de núcleo (2012, p. 120) – isso pode ser feito por meio do corte das cenas e da realocação das sequências, etc. A colagem, como pudemos ver, justapõe materiais diversos sem, no entanto, alterar sua estrutura original. Colagem e montagem distinguem-se “pela complexidade de suas questões, que fazem intervir domínios variados e obrigam a sair das categorias já prontas (a ciência/ a arte/ a política), desde que ambas constituem ao mesmo tempo uma técnica, uma prática artística e um engajamento ideológico” (2012, p. 122). Tais recursos, cada um com sua especificidade, além de dirigidos a um resultado esteticamente determinado, servem a um propósito definido pelo artista que lhe permite a manipulação de materiais diversos à semelhança do que pode ser feito em relação à alteração/transformação de uma dada realidade. 33

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Portanto, assim como o hibridismo, a colagem e a montagem são procedimentos de escrita que anunciam uma tomada de posição política e ideológica, atuando como porta-vozes de uma desconstrução da ordem e da harmonia, palavras tão caras a qualquer sociedade privilegiada. Quer dizer, sendo sucessivamente a sociedade aristocrata do Renascimento e a burguesa do Romantismo, as fundadoras da tradição dramática como a conhecemos, por meio do drama clássico, no caso da primeira, e do drama burguês, referente à segunda; atuam a colagem e a montagem como ferramentas de subversão, e assim o dramaturgorapsodo aplica uma ruptura e renovação formal no cerne da prática dramatúrgica, advindas das mudanças sociais e políticas que regem o comportamento e a cultura de uma época. Enfim (...), sua prática é repleta de sentido, tem um alcance simbólico, até mesmo ideológico: por muito tempo associadas a um teatro revolucionário, questionando a ordem burguesa, a montagem e a colagem parecem ter um apelo de contestação, de crítica, talvez porque, antes de “colar” e “montar”, trata-se de desmontar ou evidenciar as emendas destinadas a conferir certa “unidade” a obra: a colagem e a montagem extraem certos elementos de seu contexto, desvirtuando seu sentido primordial, para reorganizá-los (...) .(BAILLET; BOUZITAT, 2012, p. 123)

Portanto, montagem e colagem referem-se também a procedimentos de costura, e consequentemente de hibridização. Sendo assim, como ferramentas de criação, tais conceitos agem como motores para a construção de uma rede composta de diversas camadas. 1.2.3 POLIFONIA Ainda no campo do que Sarrazac classifica como elemento rapsódico, temse a polifonia, primeiramente proposta e discutida por Mikhail Bakhtin9 e amplamente difundida nos estudos modernos e contemporâneos10, a fim de compreender a multiplicidade e diversidade de vozes presentes nos discursos, processos e textos teatrais mais recentes. Desse modo, ao pensarmos a polifonia no texto teaBAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 10 Nina Caetano e Antônio Araújo são exemplos de estudiosos do teatro que utilizaram em suas teses de doutorado o conceito de polifonia para abordar a multiplicidade de vozes envolvidas tanto no processo de escrita dramatúrgica quanto no processo de criação coletivizado; quanto à análise dramatúrgica, Silvia Fernandes também se utiliza do termo [ver os autores na bibliografia]. 9

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tral, estamos apontando novamente para o enfrentamento e oposição das ideias de unidade e homogeneidade, inerentes ao antigo conceito de drama. A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior a da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de varias vontades individuais, realiza-se a saída de principio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: à vontade artística da polifonia e a vontade de combinação de muitas vontades (...) (BAKHTIN, 1981, p. 16).

Assim, a polifonia possui como potencialidade principal a função de fazer ouvir diferentes vozes numa mesma plataforma. Ou seja, sua eficiência está na possibilidade de justapor múltiplas vozes num mesmo enunciador. Nesse sentido, ao pensarmos polifonicamente dentro do universo dramatúrgico aludimos à possibilidade de uma escrita que possua várias vozes, ou melhor, de uma voz polifônica que combina as vozes épica, lírica e dramática. Assim o drama convencional se estilhaça, visto que seu caráter primordial esta na expressão da subjetividade absolutamente individual e não da coletividade difusamente expandida. Ainda se refutando a Bakhtin, o autor nos explica a relação homofônica presente no drama clássico fechado e absoluto. Em primeiro lugar, o drama é por natureza estranho à autêntica polifonia; o drama pode ter uma multiplicidade de planos mas não pode ter uma multiplicidade de mundos, admite apenas um e não vários sistemas de referencia (BAKHTIN, 1981, p. 28).

Deve-se discernir polifonia e coralidade, uma vez que a primeira não corresponde necessariamente a segunda. Uma voz polifônica diz respeito à expressão unitária de várias vozes (ou como diz Bakhtin, vontades): diz-se discurso polifônico – no singular. Ou seja, uma voz que tem em si a expressão de diversas vozes (ou vontades) heterogêneas entre si. Por outro lado, a coralidade corresponderia, por exemplo, ao estilhaçamento que ocorre no ato de enunciação e expressão de “um sujeito dividido em várias realidades irredutíveis, seja uma realidade exterior ao sujeito, mas por ele percebida como plural” (LOSCO; MÉGEVAN, 2012, p. 61). Assim como a polifônica, a voz coral às vezes pode ser à reunião de uma diversidade de vozes, no entanto, a segunda se trata de uma enunciação fragmentada, cheia de vazios e pausas. São falas, cantos, palavras superpostas em diversos planos de emissão vocal. A polifonia se materializa de forma uniforme, mas 35

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traz na sua composição a diversidade de vozes que a engendrou. Polifonia se aproxima mais de um conceito que exerce função adjetiva: uma voz coral pode ser polifônica. Coralidade corresponde a um procedimento de aplicação cênicodramatúrgica: a polifonia não precisa ser necessariamente expressa através da coralidade. A coralidade, que afeta a escrita dramática desde o fim do século XIX, corresponde a um questionamento da concepção do microcosmo dramático e da dialética do diálogo, tradicionalmente organizadas em torno do conflito. No nível da palavra, a coralidade manifesta-se como um conjunto de réplicas que escapam ao enunciado lógico da ação, e que podem estruturar-se de forma melódica, qual um canto em várias vozes; no nível dos personagens, corresponde a uma comunidade que não está mais propensa ao desafio do confronto individual. (...) A coralidade, portanto, não implica apenas um novo questionamento do personagem e do diálogo tradicionais, mas motiva também uma refundação radical do espaçotempo teatral (LOSCO; MÉGEVAN, 2012, p. 62-63).

Assim, percebe-se que tanto a polifonia quanto a coralidade agem em rompimento aos limites do universo ficcional restrito e microcósmico da dramaturgia convencional fechada. Avança de forma direta e objetiva em direção ao exterior, isto é, ao universo real do leitor/espectador e chama-o para dialogar com as diversas vozes que ali se expressam no palco. Nesse sentido, essas vozes por muitas vezes são forças sociais, históricas e políticas, componentes que escapam a abordagem dramática tradicional, de caráter basicamente intraficcional. A fala de um personagem torna-se polifônica quando, em seu discurso, irrompe uma voz que extrapola a identidade psicológica ou quando ela não inscreve mais uma situação de comunicação com outro personagem (...); ou quando se acrescentam a seu discurso outras fontes sonoras de significação que participam do estilhaçamento do sujeito falante (JOLLY; SILVA, 2012, p. 187).

Além disso, a polifonia está na materialização concreta de vozes nãosonoras: elementos textuais inscritos na superfície do texto que falam mesmo sem terem sua própria voz. Isto é, ao corporalizar cenicamente elementos tais como rubricas, títulos, explicações e epígrafes presentes no tecido textual, estamos nos comunicando não através de sons, mas sim por meio de uma performatividade própria das palavras. Ou seja, “na medida em que a escrita é projetada nas ações, corpos e espaços para ser lida e imediatamente reescrita, ela pode trazer, na superfície

mesmo

do

texto,

as marcas 36

dessa

projeção

espacializada e

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corporificada” (CAETANO, 2011, p. 137). Logo, “a performatividade da palavra não estaria ligada ao seu significado, mas à sua existência quase física, à sua materialidade” (idem, p. 37). Surge então a questão da origem dessa fala e do fundamento da tradicional divisão entre o diálogo e as rubricas. Da mesma forma que a “rubrica-texto” (...) desenvolvida pelas dramaturgias modernas e contemporâneas concerne tanto aos atos verbais e não verbais quanto à cena ou ao fora da cena, ela pode conter uma voz de narrador, poeta ou encenador virtual. Se as rubricas que são simples indicações de contrarregra constituem uma enunciação identificável, este não é mais o caso daquelas que são subjetivas (reações, explicações, dúvidas emitidas sobre a ficção ou sobre o devir cênico) ou polifônicas (confronto de vozes divergentes e de diferentes destinatários). A multiplicação dessas vozes resulta na fragmentação da forma puramente dramática, multiplicando os pontos de vista sobre a fábula e transformando o drama em endereçamento ao leitor ou ao espectador (JOLLY; SILVA, 2012, p. 189).

Logo, a polifonia vai além do que é comumente relacionado à fonética, e se amplia para tudo o que é comunicativo, seja de modo verbal, imagético, sonoro ou concreto. Sua singularidade talvez esteja justamente nessa possibilidade de ser dispositivo capaz de exprimir múltiplas “vozes” de modo simultâneo. Como dispositivo de criação, a polifonia afirma-se como instauradora de uma rede composta por múltiplas vozes.

* Portanto, sido explicitado esses principais pontos necessários ao nosso trabalho aqui pretendido, é possível compreender essencialmente do que se trata a proposta de Sarrazac com o conceito de rapsódia. Passando pelo pressuposto da hibridização, do inédito, e do entre dois, preconizando a irregularidade contra a uniformidade e a unidade, a escrita rapsódica não apenas conduz a uma crise salutar do drama, como cria esse espaço privilegiado de confronto e tensionamento onde lutam e se superpõem as formas (HERSANT; NAUGRETTE, 2012, p. 154).

Por outro lado, vale ressaltar que é de nosso conhecimento que os traços rapsódicos não se resumem apenas a estes que aqui foram detalhados. Entretanto, acredita-se serem esses quatros procedimentos supracitados — e os seus múltiplos desdobramentos — os alicerces principais para o desenvolvimento da nossa 37

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proposta de Encenação Rapsódica11. De certo modo, nosso projeto se resume e se faz ouvir nas palavras de Sarrazac, quando ele diz que a pulsão rapsódica age como um espaço de tensões, de linhas de fuga, de transbordamentos. Transbordamento do dramático, pelo épico e/ou pelo lírico; livre jogo de contrários. (...) recusa do "belo animal" aristotélico e escolha da irregularidade; caleidoscópio dos modos dramático, épico e lírico; reviravolta constante do alto e do baixo, do trágico e do cômico; junção de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita resultante de uma montagem dinâmica; passagem de uma voz narradora e interrogante, que não poderíamos reduzir ao "sujeito épico" szondiano, desdobramento (nomeadamente em Strindberg) de uma subjectividade alternadamente dramática e épica (ou visionária)... (SARRAZAC, 2002, p. 229).

Em suma, aprofundar nesses conceitos levar-nos-ia talvez a um trabalho de análise e estudo intimamente dramatúrgico. Contudo, como dito anteriormente, nossa proposta de pesquisa nesse trabalho reside a priori na reapropriação de alguns elementos básicos pertencentes a uma noção básica: a rapsódia. Diante disso, e tendo como fundamento basilar esses quatros procedimentos extraídos do estudo e da observação empreendidas por Sarrazac, e propostos por ele como propensamente rapsódicos, partiremos mais tarde, no próximo capítulo, para pensar suas aplicabilidades cênicas, associadas com o que será o próximo assunto deste capítulo: a dinâmica de criação proveniente do processo colaborativo. Que por sua vez, possui muita proximidade com as noções de hibridação, montagem, colagem e polifonia aqui apresentadas como características rapsódicas. O pensamento artístico de tipo polifônico se caracteriza pela presença simultânea de vozes autônomas, mutuamente contraditórias. Segundo Bakhtin, trata-se da “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis” formando uma “autêntica polifonia de vozes plenivalentes”. Este aspecto da imiscibilidade pode ser remetido ao caráter autônomo – ou de relativa autonomia – das diferentes contribuições artísticas dentro do processo colaborativo. Como já dissemos, não ocorre a soma ou fusão das diferentes áreas. Elas são consonantes, mas sem se dissolverem ou se desintegrarem uma na outra; são contíguas, porém, às vezes, contrárias e até mesmo contraditórias entre si (ARAÚJO, 2008, p. 79).

No artigo A vertigem rapsódica de Jó: aspectos rapsódicos no espetáculo O livro de Jó do Teatro da Vertigem, publicado na 8ª edição da revista Pitágoras 500, encontram-se detalhados com maior rigor e de forma comparativa os elementos que caracterizam o que denominamos como Encenação Rapsódica. 11

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2. UMA PERIPÉCIA O COLABORATIVO Entramos assim: como quem entra no escuro, nos lançando como crianças que brincam de cabra-cega. Medo e alegria inauguram o processo. O risco e a crença de que toda criação não deixa de ser um mergulho para dentro. Miriam Rinaldi, Trilogia Bíblica.

Assim como havia mencionado na Introdução dessa monografia, o processo colaborativo esteve presente no primeiro projeto de iniciação científica que participei, atuando como um dos eixos principais. Aquela época – há dois anos, ainda latente – certamente vivenciei uma experiência ao mesmo tempo conflituosa e esclarecedora. Encontrava-me no início do terceiro ano da graduação e dotado com as poucas experiências que essa duração me proporcionava. Nesse sentido, propúnhamos algo que até aquele momento ainda não tinha vivido: uma experiência de dimensão verticalizada pautada na experiência criativa objetivamente prática, localizada num contexto hierarquicamente horizontal12. Todavia, a diretora que se dispôs estar à frente desse projeto havia perpassado anteriormente uma experiência que tinha embasamentos no processo colaborativo, e isso se fez fundamental para as experiências ocorridas nos meses seguintes. Além disso, contava com a orientação da professora coordenadora do TEXTURAS (Nina Caetano), que havia vivenciado a criação dramatúrgica colaborativa em experiências anteriores. O nosso processo de criação teve duração aproximada de doze meses – subtraída as férias e recessos acadêmicos – e em meados de julho de 2014 chagávamos a um “conjunto cênico apresentável”. Considerávamos que não era uma finalização ou resultado – se é que isso existe no contexto teatral –, pois havíamos nos Pontuo tal aspecto dessa experiência, ou seja, a imersão, pois é comum a inexistência de experiências aprofundadas no âmbito das disciplinas acadêmicas. Vários fatores atuam como complicadores para a realização de tal vivência. Como aluno que perpassei esse contexto, posso citar alguns delas. O primeiro com certeza refere-se à carga horária das disciplinas, oriunda de um segundo aspecto: a divisão fragmentada entre os campos de conhecimentos teatrais. Ter uma conjuntura de 3 disciplinas estanques e sumárias de Interpretação, Expressão Vocal e Expressão Corporal, em detrimento, por exemplo, a uma experiência verticalizada e intensa de Atuação Cênica, parece-me não apontar para um aproveitamento “máximo” do tempo e das relações recíprocas de cada segmento da prática atoral. O mesmo ocorre com a Direção, com disciplinas restritas a prática da Encenação separadas da Cenografia e da Semiótica da cena. Todavia, o ensino acadêmico de teatro é ainda um neonato em comparação à existência da prática teatral no Brasil, o que nos coloca como desbravadores de uma terra e horizonte que ainda estão por vir. Ainda estamos tateando o terreno, mas ao menos fincamos a nossa bandeira. 12

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Fig. 1 e 3 Ator Jotapê Antunes ocupa e ressignificar o espaço das Ruínas do IFAC.

comprometido a apresentar na edição daquele ano do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana. Portanto, a fim de dar um primeiro arremate que aglutinasse as experiências em sala de ensaio, compusemos um primeiro esboço cênico, com diretrizes de dramaturgia e de encenação claras e objetivas. Porém, não era um “resultado final”, pois almejávamos ainda algumas investigações e amarrações que iam além desse primeiro conjunto cênico. Por outro lado, estávamos a três períodos acadêmicos envolvidos nesse processo que, com idas e vindas, saídas e entradas de artistas, passou a nos exigir certo esforço e desgaste, e então decidimos consensualmente por fazer uma primeira composição cênica do material que até aquele momento tínhamos elaborado e por fim levá-lo à fruição pública. E assim, no dia 18 de Julho de 2014 estreávamos APARTHEID BRASIL nas Ruínas do Instituto de Filosofia Artes e Cultura da UFOP.

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Como assunto adotou-se a ocupação das favelas por parte dos organismos de segurança públicas – as famosas Unidades de Polícia Pacificadora. Nesse sentido, além do processo ter sido um espaço enriquecedor de reflexão “sócio-político artística”, fez-se também como um primeiro espaço de risco, visto que ali foram os primeiros momentos que pude propor exercícios práticos de criação dramatúrgica – digo práticos não porque a escrita “na mesa” não seja prática, mas sim porque envolvia fisicamente os atores. Aquela época os exercícios dramatúrgicos já circundavam tentativas de construções texto-cênicas rapsódicas.

Fig. 4 Instalação colocada no corredor de saída, no final do espetáculo.

Fig. 5 Ator Jotapê Antunes rearticula um dos espaços inutilizados originalmente.

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Fig. 6 Uma das composições textuais que compunha a instalação localizada no corredor de entrada do espaço.

Em suma, a participação na criação de APARTHEID BRASIL significou mais que um primeiro momento de relação prática com a noção de trabalho colaborativo, correspondeu a uma primeira reflexão empírica diante da relação forma-conteúdo. Posto que, havíamos acordado a ideia que todos deveriam compor e se fazerem presentes tanto no processo quanto no produto resultante, precisávamos então de algo que nos encaminhasse para isso, por isso adotamos as diretrizes que compõem o conceito de processo colaborativo.

Fig. 2 Ator Jotapê Antunes escreve estatísticas sobre mortes derivadas do crime.

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Tal dinâmica se constitui numa metodologia de criação em que todos integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, e sob um regime de hierarquias móveis ou flutuantes, têm igual espaço propositivo, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos (ARAÚJO, 2011, p. 131).

Pois bem, a essa altura a aranha havia-me picado, seu veneno fluía adentro, eu gostara, dispensava a vacina. Admirava-me a potência do trabalho em colaboração: o contaminar-se e ser contaminado, a possibilidade de fazerem-se obras plurais e híbridas. Mais do que das bocas, gostara dos gritos.

2.1 ESCADA SEM DEGRAUS BREVEMENTE O CONCEITO PROCESSO COLABORATIVO Na história da humanidade e dos animais aqueles que aprenderam a colaborar e improvisar foram os que prevaleceram. C. Darwin

A princípio, “para compreendermos as proporções da tendência do processo colaborativo, é inevitável que nos remetamos à historiografia do desenvolvimento e difusão do teatro de grupo, em âmbito nacional” (FISCHER, 2003, p. 7). Nesse sentido, ao observarmos os anos 60 e 70 da prática teatral brasileira, notaremos um momento no qual havia uma conjuntura criativa e estrutural que preponderava nos grupos teatrais: a criação coletiva13. Esse modo de criação possui certamente claras alianças reivindicatórias com o atual sistema e conjuntura políticas que naqueles anos se instauravam no Brasil: o Golpe Militar de 1964. É importante frisar que a perspectiva histórica do teatro de grupo brasileiro que vem se difundido ate hoje terá sua maior expressão a partir dos anos 60, com grande desenvolvimento na década seguinte. Rompendo com a predominância tebecista14 e adquirindo valores ideológicos e estéticos que reviam os padrões importados, configura-se um movimento teatral que reavivou a draSobre esse assunto, ver FERNANDES, Silvia. Grupos Teatrais Anos 70. Campinas: Editora da Unicamp, 2000. 14 “O império do Teatro Brasileiro de Comédia (1948), criado pelo diretor italiano Franco Zampari, ostentou produ96es centradas principalmente em repertórios de textos clássicos estrangeiros e na estética do virtuosismo realista. Resultado de sua fragmentação, formaram-se diversas companhias que sustentavam os reflexos artísticos de uma sociedade industrial e burguesa em ascensão. O Teatro dos Sete, Teatro Bela Vista da Companhia Nydia Licia-Sérgio Cardoso, Teatro Cacilda Becker, Companhia Tônia-Celi-Autran e Companhia Maria Della Costa são alguns exemplos” (FISCHER, 2003, p. 8). 13

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maturgia e encenação nacional. A orientação ideológica de artistas e grupos de contestação social propõe um diálogo entre a arte e um Brasil que passa por um período de agitação e tensão politica. Diversos movimentos culturais irradiavam vitalidade e inovações, como a Antropofagia, a Tropicália, o Cinema Novo de Glauber Rocha e a poesia concretista de Haroldo de Campos, que utilizavam as artes como veículo para a afirmação da nacionalidade brasileira (FISCHER, 2003, p. 8).

Por outro lado, essa potente expansão da prática teatral vigente nos grupos e embasada na coletividade, encontrará seu marco histórico com a obra Gracias, Señor15 do grupo Teatro Oficina. Essa criação ocorre após a vinda do grupo norteamericano Living Theatre ao Brasil em julho de 1970, a convite de José Celso Martinez Corrêa, diretor do Oficina. Após a experiência de Zé Celso na direção de Roda Viva (1968), o Oficina desconstruiu a estrutura organizacional do teatro, propondo um modelo de criação coletiva, nos moldes do teatro de vanguarda e experimental que vinha se realizando nos Estados Unidos e na Europa. A produção cênica nacional passa em revista seus parâmetros de criação em equipe, enveredando-se pelo teatro não-institucionalizado e pela perspectiva coletiva. (...) No início dos anos 60, em exílio na Europa, o Living Theatre conduz a implantação de uma forma diferenciada de criação teatral: "Foi durante este período que o grupo desenvolveu um novo conceito de teatro, no qual o dramaturgo como tal parecia ser abandonado, e a obra apresentada surgia a partir da colaboração e da inovação de parte dos vários membros da companhia na criação coletiva", segundo Margot Berthold. A partir dessas diretrizes, o teatro proposto por Judith Malina e Julian Beck tornou-se fonte referencial para o teatro de grupo brasileiro: "Viemos ao Brasil para realizar uma experiência coletiva com o elenco do Teatro Oficina e o Grupo Los Lobos de Buenos Aires. Achamos que será a tarefa mais importante de nossa vida.", profetizou Beck. Apesar das divergências ideológicas e estéticas entre os grupos que comprometeram essa proposta de parceria, a estada do Living Theatre rendeu ao teatro nacional o ingresso ao modelo de criação coletiva (FISCHER, 2003, p. 10-11).

“Criação Coletiva do Oficina com Espaço Cênico criado por Lina Bardi. Estreia no Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro, depois vem para o Teatro Ruth Escobar onde ocupa o Buraco deixado pela retirada da estrutura do Cenário de “O Balcão” de Jean Genet, encenado por Victor Garcia. Depois vai para o Teatro Oficina, onde é tirado de cena, pela Greve de 40 censores que protestavam contra a Policia Federal que insistia em manter em cartaz a peça para estudar o que chamavam de “ hipnotismo, aprendido da revolução chinesa pelos atores do Oficina” Tal como foi revelado no Documento publicado pelo Exército nos Jornais do Brasil em matéria denominada “COMO ELES AGEM”.” Disponível em IN: Cronologia 50 anos. Acesso em: (04/05/2015). 15

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Desse modo, tal modo de criação ficou conhecido pelo seu caráter anárquico, devido à inexistência de divisões hierárquicas, e ainda mais radicalmente, pela ausência das comuns delimitações de funções artísticas específicas. Se pensarmos no sentido geral dessa prática – perspectiva nem sempre apropriada e verdadeira, na medida em que houve diferentes tipos de criação coletiva, várias delas com traços bastante peculiares-, existia o desejo de diluição das funções artísticas ou, pelo menos, de sua relativização. Ou seja, havia um acúmulo de atributos por parte do mesmo artista ou uma transitoriedade mais fluida entre as diferentes funções. Portanto, no limite, não havia mais um único dramaturgo, mas uma dramaturgia coletiva, nem apenas um encenador, mas uma encenação coletiva, e nem mesmo um figurinista ou cenógrafo ou iluminador, mas uma criação de cenário, luz e figurinos realizada conjuntamente por todos os integrantes do grupo (ARAÚJO, 2011, p. 131).

Portanto, sem entrarmos no mérito de análise profunda desta específica conformação organizacional de relações criativas, o que não podemos deixar de enfatizar reside na potência criativa e na independência formal que a criação coletiva delega para a prática teatral brasileira16, tornando-se assim o solo fértil daquilo que viria aflorar duas décadas depois: o processo colaborativo. Ademais, entre essa prática anárquica dos anos sessenta e setenta, e a colaborativa dos anos noventa, tem-se ainda a supremacia do encenador, que na década de oitenta atingia seu ápice com trabalhos tais como os de Antunes Filho e Gerald Thomas. Desenvolvendo uma análise sobre a produção teatral desse período, podemos dizer que as manifestações cênicas brasileiras também foram marcadas sob a égide esteticista. 0 metteur em scène retomou ao centro da cena brasileira, normalmente associado a um projeto de encenação autoral. Houve, nesse sentido, urna desvalorização do teatro associado ao texto dramático, sublinhando urna fase de declínio da dramaturgia nacional. A formação de grupos de pesquisas teatrais continuou se desenvolvendo, porém, muitos tiveram sua atuação orientada pelo impulso criativo do diretor/encenador que normalmente concentrava a formação de equipes ao seu redor. Assim, as formas teatrais são delimitadas peAcerca dessa potência criativa e “boom” teatral, Fischer ressalta: “Com diferentes perspectivas estéticas e ideológicas, grande parte dessas companhias irradiou influencias substanciais na formação de outros núcleos teatrais. Nos anos 70, configuraram-se diversas companhias independentes na forma de produção, organizando-se em cooperativas, em oposição aos padrões impostos pelo mercado cultural, e experimentais, enquanto desenvolvimento de urna linguagem e identidade artística. Grupos como os paulistanos Teatro União e 0lho Vivo (1969), Royal Bexiga's Company (1972), Pod Minoga (1972), Ventoforte (1974), Pessoal do Victor (1975), Mambembe (1976), Ornitorrinco (1977), os cariocas Asdrúbal Trouxe o Trombone (1972), Tá na Rua (1974), o sergipano Imbuaça (1977) e o gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz (1978) dão continuidade ao 1egado do Oficina e fixam na cena brasileira a tendência da criação coletiva” (FISCHER, 2003, p. 15). 16

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la hegemonia do diretor como autoridade responsável pela organização, condução e definições temáticas e, principalmente, estéticas da ação teatral. A montagem inaugural foi Macunaíma (1978), criada pelo grupo Pau Brasil (1974) e pelo diretor Antunes Filho, inspirada na obra de Mario de Andrade. O espetáculo representa um salto qualitativo dos parâmetros processuais e estéticos que cercam uma produção cênica. A partir dessa experiência, ternos, novamente, o domínio do diretor/encenador, dotado de urna forte personalidade e, muitas vezes, impositiva, como é o caso (FISCHER, 2003, p. 21-22).

Entre os “progenitores” e disseminadores desse modo de criação difundido como processo colaborativo destacam-se os integrantes do grupo Teatro da Vertigem, que no início da década de noventa realiza uma experimentação teatral com firmes alicerces na investigação teórico-prática de procedimentos criativos embasados na teoria da Mecânica Clássica e na temática em consonância ao âmbito do Paraíso e a Queda. Tal investigação deu origem ao espetáculo O Paraíso Perdido, estreado em 2 de novembro de 1992, e também ao próprio grupo e ainda às principais diretrizes do que viria a se tornar seu modus operandi. A criação do Teatro da Vertigem se confunde com o processo de criação de ensaio de O Paraíso Perdido. Uma coisa é indissociável da outra. Isso fica ainda mais imbricado na fase de preparação dos ensaios práticos. Preparação para o quê? Para a formação de um grupo? Para o desenvolvimento de uma investigação teatral? Para a criação de um espetáculo? Era tudo isso junto, embora algumas de nossas motivações estivessem menos claras que outras – ou menos assumidas (ARAÚJO, 2011, p. 17).

À vista disso, é possível pensarmos que para vir à tona a prática colaborativa, fez-se necessária uma conjuntura a posteriori na qual o Teatro Brasileiro do fim do século XX tivesse vivido duas experiências extremamente opostas, a fim de que posteriormente chegasse numa proposta de equilíbrio, “quase como se o processo colaborativo pudesse realizar uma síntese do discurso e da ideologia coletiva com a permanência da função artística individual” (ARAÚJO, 2008, p. 58). Esse status intermediário situa-se entre dois âmbitos específicos: o primeiro diz respeito à supressão de qualquer divisão hierárquica e de habilidades específicas e o segundo refere-se ao monopólio de um único criador, nesse caso o encenador. Mas no que então ele se distinguiria da criação coletiva? Como já apontado, a principal diferença se encontra na manutenção das funções artísticas. Se a criação coletiva pretendia a diluição ou a erradicação desses papéis, no processo colaborativo a sua existência é garantida, além de estar pactuada antes do início dos en46

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saios. Portanto, nesse modo de criação, existiria, sim, um dramaturgo, um diretor, um iluminador etc., que sintetizariam as diversas sugestões para aquela determinada área, propondo-lhe um conceito estruturador. Além disso, diante de algum impasse insolúvel, teriam direito à palavra final concernente àquele aspecto da criação (ARAÚJO, 2011, P. 136).

Segundo Antônio Araújo (2008, p. 59), diretor do Vertigem, o processo colaborativo possui claras semelhanças com a criação coletiva, mas isso ocorre se o olharmos pelo viés do método, pois ambos são sistematicamente coletivizados, e se organizam a partir de uma mesma “diretriz ideológica”, e assim poderíamos pensá-los “germinadamente”. Por outro lado, se o observamos pelo viés do modo, iremos notar que ele se distingue significativamente da criação coletiva, posto que “o como se opera a inter-relação entre os diferentes elementos de criação produz, aqui, processos distintos”. (...) é possível perceber que o que está em pauta não é a presença ou não do elemento dialógico ou participativo, mas o como ele se estabelece. Nesse sentido, pelo viés do modo, processo colaborativo e criação coletiva não são a mesma coisa, não traduzem a mesma experiência. E a referida distinção – entre método e modo – é capaz de nos ajudar a entender a discussão, muitas vezes polêmica, que cerca esses dois conceitos teatrais (ARAÚJO, 2008, p. 133).

Ademais, ressalta-se que um modo de criação não é “melhor” que o outro, e seria demasiado imprudente afirmarmos isso categoricamente. Nesse sentido, a criação coletiva possui suas falhas e seus agravantes, e que em muito se assemelham, talvez em menor medida, com o processo colaborativo. Como exemplos podem-se mencionar dois fatores: (1) ambos possuem uma grande produção de material cênico fragmentado e discrepante e há também um (2) longo tempo gasto – gastar é diferente de perder – com debates a fim de estabelecer definições de cena17. Por outro lado, o que prevalece enquanto denominador comum reside justamente na capacidade de os dois pautarem as relações de maneira horizontal e democrática. Logo, o que irá distanciar um do outro, e então defini-los enquanto distintos, será a política de conservação das funções artísticas. No caso do Teatro da Vertigem, nos orientaríamos em outro sentido, que parecia traduzir melhor as características e interesses dos integrantes do grupo. É claro que, em essência, estamos afiliaEssas questões complicadoras e dificultadoras do processo colaborativo serão discutidas com maior profundidade mais adiante. 17

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dos a alguns dos princípios da criação coletiva, porém vamos praticá-los de forma diferenciada. A defesa da manutenção das funções artísticas é exemplo disso (ARAÚJO, 2011, p. 133).

Sendo assim, o que caracteriza basicamente a proposta referente ao processo colaborativo está no aspecto da forte defesa de permanência e desempenho das funções artísticas específicas, e ao mesmo tempo, da equanimidade representativa dessas vozes tanto no processo criativo quanto na obra resultante. Além disso, não há fronteiras rígidas entre as várias funções criativas, e se há algumas, podemos dizer que elas são infectadas e impuras. (...) diferentemente de um tipo de teatro mais convencional, em que as funções apresentam limites rígidos, e as interferências criativas de um colaborador com outro são vistas como sinal de desrespeito ou invasão, no processo colaborativo tais demarcações territoriais passam a ser mais tênues, frágeis, imprecisas, com um artista “invadindo” a área do outro criador, modificando-a, confrontando-a, sugerindo soluções e interpolações. Nesse sentido, a contaminação criativa não é só bem-vinda, como é, o tempo inteiro, estimulada (ARAÚJO, 2011, p. 137).

Diferentemente da tradição teatral, principalmente a eurocêntrica, que reservava ao dramaturgo, e posteriormente ao encenador, o estatuto autoral do evento cênico, vimos que o processo colaborativo reivindica o estabelecimento do choque, do debate e da imanência de opiniões díspares e diversas. Nesse sentido, o regulamento que orienta a construção colaborativa emerge como eclosão, fazendo-se resposta a histórica batalha ad infinitum pelo poderio autoral sobre uma obra de arte. Logo, no processo colaborativo esse aspecto autoral não deixou de existir, mas fez-se polifônico, visto que se tornou instância compartilhada por todos envolvidos no processo. Se pensarmos a “escritura coletiva” como aquela realizada por várias mãos, todas juntas escrevendo, ao mesmo tempo, um mesmo “texto”, poderíamos associá-la a uma prática comum na criação coletiva. Ao contrário, a “escritura múltipla” definida como “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original”, onde “o espaço da escritura deve ser percorrido, e não penetrado”, remete-nos ao território do processo colaborativo. Nele, os vários autores – ou autorias – não se somam, mas coabitam dentro da obra. As diferentes escrituras individuais estão ali mantidas, identificáveis, e o conjunto se forma não pela síntese entre elas, mas pelo diálogo e atrito, pelo choque de pólos artísticos particularizados, que se justapõem ou se contaminam, mas não se diluem um no outro (ARAÚJO, 2008, p. 69). 48

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Enfim, o processo colaborativo situa-se como um modo de criação notável na cena brasileira do final do segundo milênio, e tem acompanhado o desenvolvimento de diversos grupos no Brasil. Fernando Mencarelli nos relata acerca deste processo de absorção do modo de criação colaborativo na capital mineira: Em Belo Horizonte, as experiências realizadas nos anos 1960 e 1970 foram renovadas nos anos 1980 com o movimento de teatro de grupos capitaneado por companhias como Grupo Galpão, Cia. Absurda, Cia Sonho e Drama e Oficcina Multimédia. Os anos 1990 e esta primeira década dos anos 2000 foram terreno fértil para o surgimento de dezenas de grupos na cidade e no estado de Minas Gerais. O circuito estabelecido entre os grupos em âmbito nacional contaminou as discussões e os processos criativos, ganhando corpo na cidade em movimentos como Movimento Teatro de Grupo - MTG, Circuito Off, Redemoinho, e em projetos como o Cena 3x4, do Galpão Cine Horto e da Cia Maldita, que contribuiu para a difusão das proposições do processo colaborativo de criação (MENCARELLI, 2010, p. 24).

Segundo Araújo, a maior importância do colaborativo fez-se graças a sua participação “dentro de um contexto de retomada do movimento de teatro de grupo na cena paulistana” (2008, p. 57). A prática colaborativa segue, ainda, na esteira do recente movimento de afirmação da autonomia do ator, oriundo dos grandes estudos teatrais do final do século XX, tais como os de Jerzy Grotowski, Eugênio Barba e Luís Otávio Burnier, que registraram de uma vez por todas a emancipação do ator enquanto sujeito ativo, igualmente criativo e proposito no âmbito da criação cênica. Nesse sentido, “o retorno desta perspectiva grupal, que aparece quase como um contraponto à hegemonia do encenador no teatro brasileiro da década anterior, vai, pouco a pouco, ganhando uma dimensão nacional” (idem). Portanto, ao refletirmos diante desse modo de criação, encontramos nele algo além de um modo, e vislumbramos uma dinâmica, dotada de diretrizes ideológicas e éticas bastante claras, e será isso que iremos discutir no próximo tópico.

2.2 LAVA OUTRA, LAVA UMA: MÃO. POR UMA DINÂMICA COLABORATIVA A princípio, permita-me colocar e esclarecer uma questão, que dentro do nosso contexto se faz fatal e pertinente.

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Uma Peripécia O Colaborativo

Como dito desde a introdução dessa monografia, nossa proposta de trabalho possuía como uma de suas diretrizes a exploração do fazer colaborativo. Porém, formalmente o enunciado curricular nos orientava para uma investigação estritamente do artista-formando, ou seja, uma averiguação prática, do ponto de vista da Direção Teatral, de uma linguagem e uma prática cênica específica. Eis uma primeira questão: a pesquisa de linguagem que propúnhamos não se adequava às conjunturas individuais, era preciso envolver um coletivo. Associado a isso, mostrava-se separadamente a indicação de outro fazer: uma prática de montagem. Desse modo, o processo proposto para conclusão da formação referia-se a uma divisão literal em dois momentos (cada qual com duração equivalente a um período/semestre letivo) aparentemente distintos: (1) Pesquisa de Linguagem: Teoria e Prática da Encenação e (2) Pratica de Montagem e Apresentação. Entendíamos que tal critério não nos impedia da possibilidade de escolha do processo colaborativo como modo norteador das relações criativas dentro da sala de ensaio, mas nos gerava um paradoxo. Nossas diretrizes de pesquisa – a rapsódia e o processo colaborativo – culminavam numa investigação imprescindivelmente pragmática, não compreendíamos como seria possível explorar uma pesquisa de linguagem de ordem teórica e prática sem a realização de uma prática de montagem. Sabíamos de antemão a composição conceitual das nossas diretrizes – havíamos feito um trabalho anterior (não seria este um dos objetivos dos anos da graduação que antecedem a processo final de formação?) – e nos era inconcebível articularmos nossos pressupostos de pesquisa apenas teoricamente e num tempo de um semestre, e ao mesmo tempo, também se mostrava inimaginável a possibilidade de realizar uma prática de montagem desarticulada de uma pesquisa de linguagem. Havia um grande nó estrutural, e não estávamos dispostos a desfazê-lo. A dicotomia teoria versus prática não compreende, verdadeiramente, a realidade contemporânea imanente às práticas de criações coletivizadas. Uma abordagem bipartidária caminharia em oposição às mútuas relações responsáveis justamente pela constituição do próprio modo de criação que, de antemão, se propõe como renovador dos paradigmas vigentes no modo de produção teatral tradicional. Trata-se, acima de tudo, de uma relação recíproca de forma e conteúdo. Trazendo Sarrazac novamente à tona, o modo de criação e o seu 50

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Uma Peripécia O Colaborativo

resultado correspondem à “fusão do material extraído da realidade e dos procedimentos formais” (2002, p. 35). E é isso que nos esclarece Michael Kirby: Seria difícil sustentar que um trabalho inovador não pudesse ser produzido segundo procedimentos tradicionais de ensaio. Contudo, o processo criativo afeta o resultado artístico e, pode-se prever que qualquer trabalho desenvolvido segundo padrões tradicionais, seja tradicional em certos aspectos básicos. Por outro lado, pode-se supor que qualquer trabalho que seja significativamente novo deveria envolver inovação nos seus procedimentos de criação (KIRBY apud ARAÚJO, 2011, p. 4).

A fim de resolver o impasse, este aluno formando e a sua respectiva orientadora acordaram que agenciariam ambos os aspectos simultaneamente, tanto a pesquisa de linguagem quanto a prática de montagem, e assim estaríamos de acordo com nosso projeto e teríamos tempo minimamente hábil para um e outro. Quanto às questões burocráticas, haveria duas notas: a primeira como uma préavaliação do material desenvolvido em um semestre, e a segunda uma nota referente ao trabalho todo (processo, monografia e espetáculo). Nessa perspectiva, ressalta-se que grande parte das pesquisas que têm sido desenvolvidas em torno da prática teatral atual dialoga com a proposta que adotávamos. Trabalhos tais como os de Antônio Araújo, Nina Caetano e Soraya Beatriz Silva, que se debruçam sobre o processo intrínseco ao fazer artístico e a obra consequente dessa prática, sinalizam a importância cada vez maior nos detalhes e nas articulações que compõem a precariedade do espaço de ensaio. Temos a pesquisa natural que envolve os processos de criação, que são buscas de obtenção de conhecimento, no sentido que o artista está em permanente processo de experimentação. Hipóteses teatrais, no caso, são testadas, sem haver, necessariamente, consciência ou explicitação de método. 18

Além do mais, esse fato evidencia a noção contemporânea de encenação, que vem rompendo sistematicamente com a ideia de pensar apenas o resultado, ou seja, a linguagem estética e passa a refletir também sobre o processo prático19.

SALLES, Cecília Almeida. Apresentação in: A gênese da Vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011. 19 Todavia, essas instâncias não são rigidamente delimitadas, e talvez nem divisíveis sistematicamente, mas as segmentamos a fim de maior clareza na explicação dos nossos argumentos, ambas são fenômenos hibridamente teórico-práticos, porém, possuem suas diferenças e singularidade, e é isso que queremos ressaltar. 18

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Uma Peripécia O Colaborativo

Dessa maneira, chegamos à conclusão de que é “difícil imaginar o teatro moderno desvinculado de seus processos construtivos” (ibid.). Tal perspectiva se radicaliza ainda mais quando pensamos nas experiências cênicas das últimas décadas. Além da performance e do happening, várias companhias teatrais passam a advogar o fim da obra enquanto produto, propondo, em seu lugar, a noção de obra enquanto processo. É o que se denomina work in progress (ou work in process), conceito e práxis indissociáveis da teatralidade contemporânea (ARAÚJO, 2011, p. 5).

Assim, abordando a rapsódia como uma premissa conceitual que advém de um campo substancialmente teórico, e combinando-a ao processo colaborativo, de matriz essencialmente prática, nosso planejamento caminhava em direção a esse objetivo proposto pela matriz curricular: uma formação consolidada através da efetivação de um projeto de pesquisa teórico-prático, capaz de confluir uma investigação constituída pela pesquisa de uma linguagem estética e de um processo de criação. Logo, “conceito e práxis indissociáveis”. E, diferentemente do que se apresentava no currículo oficial, o nosso caso abordava simultaneamente ambas as instâncias, pois nos era imprescindível tal abordagem teórico-prática.

* Passemos primeiramente pelo detalhamento da equipe que se dispunha a colaborar conosco nesse processo de formação. Os artistas envolvidos, além do autor deste trabalho, eram: dois atores, a saber, Letícia Rachid e Vinícius Amorim, e uma preparadora corporal, a bailarina e pesquisadora Aline Serzedello Vilaça. Essa conjuntura foi a que se efetivou, pois no início havia outros atores, mas por motivos diversos, eles se ausentaram. É claro que, do ponto de vista “ideal” de um processo colaborativo, não possuíamos outras funções artísticas além da atuação, encenação e preparação corporal. Esse aspecto de certo modo instaurou impasses de ordem prática, pois a demanda pela construção de cenários, figurinos, maquiagem, iluminação e trilha sonora viria à tona em algum momento. Todavia, sabíamos que na falta destas funções, seriamos plenamente capazes de dar conta desses elementos cênicos. Por outro lado, havia outra questão conceitual, que não estava na composição criativa nem na execução técnica desses componentes da cena, mas sim na instalação de

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heterogeneidades na sala de ensaio, ou melhor, na processualidade criativa que iríamos iniciar nos meses seguintes. Diante disso, notamos que impor um determinado conceito às nossas reais circunstâncias, apenas por mero desejo “teórico-intelectual”, seria “forçação de barra”, e então decidimos ressignificar à nossa maneira o que primávamos no modo colaborativo de criação. Sendo assim, instituímos uma reapropriação perante o processo colaborativo, o que denominamos posteriormente como dinâmica colaborativa, pois “não há dúvida de que cada artista deve buscar a maneira de trabalhar com a qual mais se identifique” (ARAÚJO, 2011, p. 133). Mas, por que o processo colaborativo? Porque era sua essência que nos havia alimentado um pensar, do ponto de vista da criação, baseado em fundamentos de organização democrática e compartilhada, sem supressões absolutas ou monopólios criativos. Dentro disso, há também, sem sombra de dúvida, a força semântica imanente à noção de processo colaborativo, marcada pela sua importância histórica na História do Teatro Brasileiro. Consequentemente, há também sua capacidade de se localizar enquanto prática que possui fortes origens num determinado contexto sócio-histórico, no qual, com o surgimento da tecnologia e das redes sociais, passou a verticalizar a relação colaborativa, fazendo-a instrumento de produção compartilhada e de agenciamento justaposto de diversidades. Portanto, menos importante do que determinar a autoria ou a origem exata da expressão processo colaborativo é flagrar a tendência de época, o contexto histórico particular, a inquietação relativa ao modo de fazer teatro, que colocava em sintonia diversos artistas e companhias, dentro e fora do país. No caso do Teatro da Vertigem, adotamos e continuamos a usar essa expressão pelo significado e força que a reunião destes dois vocábulos suscita: o elemento “processual” aliado ao “trabalho em conjunto”. Essa ênfase colocada na ideia de processo, em que o “colaborativo” funciona como uma qualidade ou característica intrínseca, é bastante relevante (ARAÚJO, 2008, p. 83).

E, por fim, e talvez o mais importante, refere-se à capacidade e potencialidade do modo de criação colaborativo em agenciar, provocar, estimular e articular os conceitos rapsódicos que elencamos no item 1 deste capítulo. A dramaturgia – e a cena – produzida em processo colaborativo vai incorporar essa presença de planos distintos, identificáveis, por exemplo, no amplo espectro de registros, no cruzamento 53

CAPÍTULO I Os 2 pés que me (re)moveram

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de referências, no choque de discursos, na estrutura fragmentada e no mosaico de textos e cenas. O elemento dramático coabita com o épico, o lírico, o testemunho, o documental criando uma cena – e um texto – multifacetada (ARAÚJO, 2008, p. 80).

Araújo, diretor do grupo pioneiro no desenvolvimento e sistematização do processo colaborativo, utiliza-se na sua argumentação teórica do termo “colchade-retalhos”. Tal conceito também é utilizado décadas antes por Sarrazac, ao analisar a obra La Gangrène de Daniel Lemahieu. O pesquisador menciona o fato de tal obra ter sido “concebida como uma manta de retalhos” (2002, p. 75). Essa coincidência ressalta a potencialidade do processo colaborativo em estimular e provocar a experimentação e utilização de alguns procedimentos rapsódicos. Poderia ser apontada ainda a existência de um elemento fragmentário, de justaposição de cenas sem forte ligação causal, produzindo uma estrutura dramática mais aberta e ramificada. Tal configuração, marcada por elementos de colagem, intertextualidade e cadeias de leitmotiv, é resultado direto do conjunto diversificado de vozes artísticas presentes no processo, e poderia incorrer em flacidez estrutural e em peças “colcha-de-retalho” (ARAÚJO, 2008, p. 67).

Portanto, logo na primeira reunião do grupo acordou-se que o nosso método seria coletivizado e o nosso modo seria o colaborativo20. Isto é, a nossa política relacional e ética de criação estavam pautadas antes numa dinâmica colaborativa inerente ao conceito de processo colaborativo, do que propriamente no modelo ideal – se é que ele existe – que há em torno deste modo de criação característico. Assumíamos, assim, as nossas dificuldades circunstanciais e também refletíamos sobre a metodologia que adotaríamos dali em diante, dentro em vista as particularidades intrínsecas ao nosso contexto. Pretendíamos garantir e estimular a participação de cada uma das pessoas do grupo, não apenas na criação material da obra, mas também na reflexão crítica sobre as escolhas estéticas e os posicionamentos ideológicos. Não bastava, portanto, sermos apenas artistas-executores ou propositores de material cênico bruto. Deveríamos assumir também o papel de artistas-pensadores, tanto dos caminhos metodológicos como do sentido geral do espetáculo. (ARAÚJO, 2011, p. 133)

Ainda nessa formulação do que denominamos como dinâmica colaborativa encontra-se o fato desta promover uma mútua e contínua colaboração entre as 20

Para retomar essa distinção entre método e modo, ver o segundo parágrafo da página 39. 54

CAPÍTULO I Os 2 pés que me (re)moveram

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funções criativas – por mais que fossem “apenas” três. Logo, o que nos interessava no processo colaborativo enquanto criadores era a sua possibilidade de incitar o estatuto da colaboração. Ademais, mostrava-se instrumento eficaz para a estimulação da transitoriedade das proposições e dos materiais produzidos, ou seja, promovia dentro da sala de ensaio a implantação de uma plataforma criativa que orientada pela contaminação recíproca entre os artistas, os seus desejos e as suas vontades. Por conseguinte, durante os ensaios a prática de premissa colaborativa mostrou-se como profícuo dispositivo fomentador de fricções e contágios criativos entre as funções presentes no processo. E assim, numa verificação comparativa, tínhamos fortes raízes no processo colaborativo. Se examinarmos o processo colaborativo sob o ponto de vista metodológico, é possível identificarmos alguns princípios de trabalho. O perigo, como sempre, é a transformação disto em receituário ou fórmula. Nesse sentido parece preferível aproximar-se de tais princípios como pontos de reverberação ou como agentes desencadeadores. Funcionariam como pontos de partida ou gatilhos, a partir dos quais, cada processo engendraria seus desdobramentos particulares, seus mecanismos e contramecanismos de estruturação, seus campos de experiência, suas acomodações e turbulências, suas precipitações e dispersões. (...) Eles podem ser pensados também como agentes em uma estratégia de operação dramatúrgica ou cênica, capazes de provocar o aparecimento de experimentos textuais, corporais, imagéticos, etc. Ou seja, atuariam como estímulos para a produção das escrituras do espetáculo. Outra possibilidade ainda é abordar tais princípios como regras de jogo, capazes de indicar parâmetros de ação e de organizar o percurso dos ensaios. Por se tratar de um processo sem dramaturgia prévia, sem personagens definidas, sem marcações dadas de antemão, sem tempo de duração rígido anterior à estreia do espetáculo, entre outros elementos abertos, essas regras serviriam como balizas de navegação. 21 (ARAÚJO, 2008, p. 62)

Expostos, portanto, os itens-chave para a fundamentação do projeto de pesquisa teórico-prático, vamos à análise do processo de criação desenvolvido na sala de ensaio.

21

Todos as palavras em negrito dessa citação são grifos nossos. 55

CAPÍTULO II A IMENSA ESCURIDÃO: O (DES)FAZER

CAPÍTULO II A Imensa Escuridão: o (des)Fazer

Ante o Salto Traçando o Itinerário

1. ANTE O SALTO TRAÇANDO O ITINERÁRIO

22

As mãos geladas. Suor escorrendo por entre os pelos da nuca. Tum-tum tum-tum tum-tum... Coração com batidas fortes, não-rápidas. O vento forte nas lentes transparentes do óculos-de-proteção. As pontas-dos-pés longe-longe do solo firme. Pequeninos milésimos de segundos ante o salto. Estávamos todos, prontos para saltar, tudo estava pronto. Equipamentos de segurança: OK. Sabíamos que era preciso aproveitar o voo, apreciar todo seu prazer, sua beleza e sua ternura. A qualquer descuido: puxar a corda! Era chegada a ho... (em queda).23

Era essa a sensação. Começaríamos nossos ensaios. Não era o primeiro, e com certeza não seria o último. Mas anunciava o fim de uma etapa: a graduação. Atores e atrizes convidados. Desejos devidamente ditos e esclarecidos. Start. Sabia intimamente que antes de definirmos nosso modus operandi surgiriam ainda algumas implicações. Em primeiro lugar, definir os horários, algo tão custoso nos tempos atuais. Pontualidade matutina, como diz Araújo, é algo “não muito comum e bem-vindo às pessoas de teatro” (2011, p. 36). Gostaríamos de “evitar”, na medida do possível, esse “empecilho”. Aparentemente, havíamos perpassado tal dificuldade, ou seja, não teríamos apenas ensaios matutinos. De todo modo, é nesse momento de definição de horários e duração dos ensaios que “a nossa disciplina – e o desejo real de fazer o trabalho – ia definitivamente ser posta à prova” (ibid.). Todavia, havíamos definido que seriam doze horas mínimas de ensaio por semana, o que por fim estruturou-se em três ensaios de quatro horas, e preferencialmente em dias alternados, sem dias sucessivos ou muito distanciados. Logo, os dias se restringiam à segunda, terça e quarta-feira. Nesse primeiro momento de decisão, um ator e uma atriz sucumbiram, restando apenas duas pessoas, que permaneceram até o fim, a saber, Vinícius Amorim e Letícia Rachid. Quanto à preparadora corporal, a bailarina Aline Serzedello, tínhamos acordado 22 23

Modulação de frequência do som de um helicóptero. Imagem extraída e editada pelo autor. Texto criado pelo próprio autor da monografia. 57

CAPÍTULO II A Imensa Escuridão: o (des)Fazer

Ante o Salto Traçando o Itinerário

que seu horário seria com duração de duas horas às segundas-feiras. Adiante aos horários, partiríamos então à definição do como seriam realizados os ensaios, ou seja, o modo e a duração de cada atividade. Havia trabalhado em outros momentos com esses mesmos dois atores, o que de certo modo revelava certa predileção organizacional e conhecimento prévio da dinâmica e time de cada um, não somente de mim para com eles, mas também deles para comigo. Nesse sentido, deixamos acordado de antemão que cada um seria responsável pelo seu alongamento individual, e quanto ao aquecimento, ficaria por minha conta. Essas duas atividades gerava uma duração média de trinta a quarenta e cinco minutos, aspecto que se mostrou positivo como tempo-de-chegada, como apaziguamento do fluxo cotidiano para chegada ao espaço de trabalho. Ainda no que tange essa primeira fase de ajustes organizacionais, tivemos também a discussão do que seria nosso campo temático, o assunto que abordaríamos enquanto problemática a ser instigada. Dentro disso, propus discutirmos a noção de liberdade. A princípio, tal conceito é inevitavelmente amplo e, sem dúvida, demasiado genérico. Todavia, o que mais nos interessava no que tangia à liberdade estava no fato de acreditarmos que contemporaneamente a liberdade não era mais condicionada às antigas instituições religiosas e políticas. Ou melhor, o Estado e a Igreja não eram mais os detentores da ordem e da moral. Ou seja, nos tempos de hoje parecia-nos que tais poderes tinham sido estratificados para a subjetividade de cada indivíduo. Portanto, se até outrora quem vigiava e punia eram as instituições formais, atualmente quem exerce tal função de forma declarada são exatamente os próprios sujeitos, não somente para consigo mesmos, mas também para com os outros. Ou melhor, nos dizeres de Peter Pál Pelbart: “nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida, como nessa modalidade contemporânea do biopoder” (2007, p. 58). Nesse sentido, sugeri que abordássemos a relação sócio-política do sujeito com o exercício da sua própria liberdade e também com a dos outros. Então, em discussões com a orientadora do trabalho, definiu-se que o conceito de biopolítica24 nos contemplava nesse aspecto almejado.

24

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008. 58

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Ante o Salto Traçando o Itinerário

Já no contexto biopolítico surge uma nova preocupação, segundo Foucault. Não cabe ao poder fazer morrer, mas sobretudo fazer viver, isto é, cuidar da população, da espécie, dos processos biológicos, cabe ao poder otimizar a vida. Gerir a vida em todas as suas dimensões, mais do que exigir a morte. Assim, se o poder, num regime de soberania, consistia num mecanismo de supressão, de extorsão, seja da riqueza, do trabalho, da força, do sangue, culminando com o privilégio de suprimir a própria vida, no regime subsequente de biopoder ele passa a funcionar na base da incitação, do reforço, da vigilância, visando a otimização das forças vitais que ele submete. Ao invés então de fazer morrer e deixar viver, trata-se de fazer viver e deixar morrer. O poder investe a vida, não mais a morte. Daí porque se desinvestiu tanto a própria morte, que antes era ritual, espetacular e hoje é anônima, insignificante (PELBART, p. 59).

No entanto, o histórico teórico e conceitual correspondente à noção de biopolítica é inegavelmente complexo e denso. Teóricos de grande envergadura tais como Michel Foucault, Giorgio Agamben e Peter Pál Pelbart dedicaram e dedicam suas vidas ao estudo e análise desse processo paradoxalmente real e metafísico, de cunhos político, social e psicológico. Nessa perspectiva, inferir uma pesquisa verticalizada a partir da biopolítica nos demandaria um logo tempo e também um arcabouço teórico consideravelmente consistente. Nossos objetivos de certo modo eram outros. Sendo assim, fizemos a leitura de alguns textos teóricos do filósofo e pesquisador Peter Pál Pelbart e também dos estudos e análises de alguns outros colaboradores da Cia. Teatral Ueinzz25. Pois bem, além desse aspecto temático, acordamos também aspectos metodológicos, expus brevemente aos dois atores o que estávamos – eu e minha orientadora – propondo enquanto pesquisa de linguagem. Primeiramente, mostrava-se necessário ampliar noção de rapsódia, extrapolando seu sentido aparentemente apenas teórico, e aplicá-la pragmaticamente à cena, enquanto conjunto de procedimentos, dispositivos e ferramentas de criação. Em segundo lugar, mas não menos importante, nos era cara a ideia de que os fundamentos tocantes ao conceito de processo colaborativo eram essenciais para a construção de uma plataforma criativa que fosse propícia para a instauração da diversidade e hibridez que notávamos como fatores matrizes à noção de rapsódia. Estabelecíamos, portanto, as matrizes elementares quanto modus operandi dos nossos ensaios. Do ponto de Alguns textos estão citados na bibliografia e podem ser acessados no seguinte endereço: . 25

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Ante o Salto Traçando o Itinerário

vista teórico, tal reflexão sobre como e por que pensar a estruturação do ensaio criativo, tem-se mostrado como um denominador comum às manifestações teatrais desde o século passado. E não bastasse a afinidade entre o fenômeno teatral e o fenômeno do ensaio, parecia difícil imaginar o teatro moderno desvinculado de seus processos criativos. O século XX operará uma verdadeira revolução no papel do ensaio, tanto em suas abordagens como em suas metodologias. George Banu, por exemplo, ao referir-se ao século passado como o “século da encenação”, o vincula, quase numa relação de causa e efeito, à “renovação dos ensaios”. (ARAÚJO, 2011, p. 4)

Sendo assim, cumprida essa etapa de reflexão sobre como iria se dar os ensaios, caminhamos para o processo de criação propriamente dito.

2. O VOO REGISTROS DO PROCESSO DE CRIAÇÃO Investigar o ensaio, palavra que, entre outras acepções, significa exercício, treinamento, tentativa, preparativo, experiência, parece nos confrontar com o que há de mais genuíno e especificamente teatral. O ensaio é o lugar do erro, da crise, da pergunta sem resposta, do lixo da criação – que mesmo não tendo valor qualitativo em si, nos faz perceber, pela via negativa, aquilo que não desejamos. O ensaio é o lugar da frustração, do fracasso, do mau gosto, da ignorância e dos clichês. Mas é também o espaço do mergulho, do aprofundamento, do vislumbre de horizontes possíveis, da descoberta de ilhas incomunicáveis, de países sem continente, de territórios sem fronteiras e, por outro lado, de territórios demarcados demais, conhecidos demais, explorados à exaustão. Terra de ninguém, terra de litígio, terra à vista, terra submersa. Antônio Araújo, A Gênese da Vertigem

Nessas palavras de Araújo fazem-se ouvir também as nossas angústias vividas, nossas alegrias sentidas, e além tudo, nosso fazer artístico. Ao nos debruçarmos sobre a escrita do ensaio – ou ainda sobre o ensaio de uma escrita – nos deparamos com a olhar para si, que por vezes poderá se mostrar como cruel e/ou enganoso, seco e/ou molhado, mas que por fim, nos levará a outro status que senão o da reflexão válida e frutífera. Pois, “independentemente de poder ou não, o artista precisa, em muitos casos, refletir sobre seu fazer” (SALLES, 2011, p. XII). Por outro lado, as “limitações a ela [escrita] inerentes também revelam o processo de esforço e tentativa de uma primeira reflexão escrita do artista em relação à construção de sua obra” (ARAÚJO, 2011, p. 3).

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CAPÍTULO II A Imensa Escuridão: o (des)Fazer

O voo Registros do Processo de Criação

Vale ressaltar também que nossos registros “formais” se situam em superfícies de papel, que possuem suas conhecidas limitações. Por mais que se desenhasse, rabiscasse, escrevesse ou pintasse; não se conseguiria transcrever naquelas páginas todas as frustrações, os fracassos, as alegrias e os sucessos. O Caderno de Direção é esse lugar igualmente efêmero, assim como o do ensaio – e também o do teatro. Ele dá conta do que foi possível transmutar-se em palavras, linhas ou rabiscos. Nesse sentido, refere-se a uma grande parte, mas não ao todo. De qualquer modo, era sabido o desejo por uma reflexão escrita e sistematizada do processo de criação, e mais ainda, que tal material seria a fundação para edificação de uma monografia com fins a aprovação e formação de ensino superior. Logo, esforcei-me ao máximo para registrar as anotações de maneira suficientemente compreensível, utilizando algumas vezes códigos, abreviações e afins. Aliás, atentei-me também para o fato de não registrar com material de grafite (lápis, lapiseira etc.), pois temia que tais anotações posteriormente, com o tempo, ou por algum acidente, poderiam se apagar. Assim, utilizando ferramentas de escrita a tinta os registros ficariam mais seguros. Existem algumas possíveis explicações para isso. Além de não haver a preocupação de quem um caderno de direção seja claro e didático – na verdade, ele é o espaço por excelência das impressões recolhidas à queima-roupa no ensaio, das informações contraditórias, dos rabiscos, das ideias pela metade, dos registros caóticos da criação, das angústias e insatisfações pessoais do diretor, das críticas ao trabalho dos atores etc. – ocorreu o fato de que, a partir desse momento, os ensaios começaram a “esquentar”. (...) a profusão de impressões, imagens e sequências de movimento, tudo isso parecia avesso a uma descrição diária e detalhada da minha parte. Talvez devesse ter sido mais disciplinado, a mesma disciplina que eu cobrava dos atores, contudo, o movimento transbordante do processo parecia não me levar a isso, à necessidade de rigor e detalhamento nas anotações (ARAÚJO, 2011, p. 64).

Portanto, tendo sido esclarecida esta questão, ou seja, quanto às condições e especificidades da plataforma de anotação utilizada pelo autor, sigamos para a revisão e análise dos ensaios registrados.

* Têm-se registros dos ensaios que ocorrem a partir de 22 de setembro de 2014, momento no qual, posteriormente, delimitamos como o marco do trabalho mais objetivo, ou seja, com metas “claras” no que tangia aos procedimentos. 61

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O voo Registros do Processo de Criação

Quanto ao término dos registros, ele data de 22 de maio de 2015 26, época na qual se encerrava o que denominamos como criação texto-cênica. É pressuposto fundamental o fato de que não irei transcrever integralmente todos os ensaios registrados, até mesmo porque muito deles não tiverem um registro muito claro quanto aos procedimentos e exercícios de criação realizados, ou também porque eles talvez não tenham sido tão interessantes do ponto de vista que buscarei estabelecer nas páginas que se seguem. Priorizei, de certo modo, os que considero como sendo os mais importantes para a compreensão das nossas tentativas de assimilação prática dos conceitos dramatúrgicos propostos por Sarrazac. Além disso, dei preferência também aos que proporcionaram maior consistência para reflexões acerca da função do encenador imerso num coletivo. Ainda no que tange aos registros, deve-se ressaltar que de algum modo, talvez intuitivo, ou não, parecia-nos que este dia (22/07/2015) marcava o verdadeiro início do nosso trabalho criativo, aquele com maior consistência e objetividade. Ou seja, foi a partir deste primeiro momento oficialmente registrado que houve maior clareza quando aos caminhos e os horizontes que se traçavam à nossa frente. É fato, também, que anteriormente a esta data nós já vínhamos experimentando diversas propostas, procedimentos, dispositivos e exercícios de criação. É óbvio, por conseguinte, que esta época antecessora aos registros tem em si o seu significado e importância, e de certo modo, talvez tenha sido uma falha não tê-la registrado, mas, a bem da verdade, foram instantes de tamanha instabilidade, experimentação e desorientação, que a preocupação em registrá-los talvez os tivesse afetado de maneira negativa, ou melhor: “o movimento transbordante do processo parecia não me levar a isso, à necessidade de rigor e detalhamento nas anotações” (ARAÚJO, 2008, p. 64). Atrelado a isso, há ainda a “insatisfação causada pela linearidade que a reflexão verbal escrita exige”, pois ela “parece não dar conta da complexidade das redes criação” (SALLES, 2008, p. XII). Outro fato é que nem todos os ensaios a partir desta data (22/09) foram registrados com a devida clareza e inteligibilidade. Percebe-se hoje, que houve alguns dias nos quais as anotações não se apresentaram numa forma muito coesa, coerente e objetiva. Optei então, por suprimir deste trabalho monográfico esses dias atípicos.

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O espetáculo estreou no dia 4 de julho de 2015 na Sala 35 da Escola de Minas. 62

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O voo Registros do Processo de Criação

Por outro lado, como último registro tínhamos algo parecido com um canovaccio27, ou melhor, uma evolução dele, pois possuíamos também como suporte um Roteiro Audiovisual das criações feitas até aquela data. Tal roteiro serviria para que o encenador pudesse criar três fatores conjuntivos da encenação: (1) prólogo: que funcionaria analogamente a uma “cena introdutória em que as ações são elucidadas antes do desenrolar da trama”

28,

com um caráter absolutamente épico

e lírico, com fim unicamente apresentativo; o (2) epílogo: que serviria como um último quadro do espetáculo a fim de trazer um “resumo e/ou término da ação”29, nesse nosso caso, não da ação propriamente dita, mas sim do argumento da obra; e por último (3) costuras: criação textuais propostas pelo encenador-dramaturgo a serem apropriadas pelos atores, e que funcionariam como transições e amarrações entre os quadros/fragmentos criados durante o processo. Acerca deste último, o denominamos como dramaturgia, visto que se tratava da transcrição e composição das ações texto-cênicas do espetáculo. A palavra texto, antes de significar um texto falado ou escrito, impresso ou manuscrito, significava “tessitura”. Nesse sentido, não há espetáculo sem “texto”. O que está relacionado ao “texto” (à tessitura) do espetáculo pode ser definido como “dramaturgia”, ou seja, drama-ergon, o trabalho das ações no espetáculo. Já o modo como as ações trabalham constitui a trama. Nem sempre é possível distinguir, na dramaturgia de um espetáculo, o que pode ser chamado de “direção” e o que pode ser chamado de “escrita” do autor. Essa distinção só é clara em um teatro que deseja ser a interpretação de um texto escrito. (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 66)

Além disso, ressalto que ação, para nós, tem fortes bases no entendimento da Física do que é uma ação. Segundo esta área do conhecimento científico, ação corresponde basicamente a qualquer força exercida no tempo-espaço, gerando sempre, e consequentemente, uma reação de força proporcionalmente igual. Assim, ação diz respeito a todo e qualquer gesto que resulta numa reação – os termos causa e efeito são análogos à ação e reação, e juntos compõem a causalidade. A partir desta perspectiva poderíamos pensar em diversas ações, não somente humanas, no seu sentido restrito, como propõe Aristóteles na Poética, mas Segundo Patrice Pavis (Editora Perspectiva, 2008, p. 38), canovaccio “é o resumo (o roteiro) de uma peça, para as improvisações dos atores, em particular na Commedia dell'arte. Os comediantes usam os roteiros (ou canovaccios) para resumir a intriga, fixar os jogos de cena, os efeitos especiais ou os lazzi. Chegaram até nós coletâneas deles, que devem ser lidos não como textos literários, mas como partitura constituída de pontos de referência para os atores improvisadores.”. 28 Disponível em Acesso em: 05/05/2015. 29 Disponível em < http://www.dicio.com.br/epilogo/> Acesso em: 05/05/2015. 27

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também em ações cenográficas, sonoras, corporais e etc. Avançando ainda mais, poderíamos adotar a utilização do termo gesto, que figurativamente se assemelha mais ao nosso objetivo, pois traz em si, além da ideia de força ativa presente na ação, a eminente intenção de se expressar algo. Quando fazemos um gesto, dispensamos uma força física para poder expressar um sentido conotativo, a fim de nos comunicarmos uns com os outros. Assim, valendo-se dessas diversas aplicações cênico-dramatúrgicas do gesto, as dramaturgias iam sendo compostas. Uma vez justapostas na superfície textual, tais ações confluiriam à formação de uma tessitura dramatúrgica. Ao deslocar a unidade do texto do autor para o leitor, Barthes vai permitir que se conceba tanto a dramaturgia – como prática textual e cênica – quanto o texto resultante desta operação, como um espaço em que se reúnem dimensões múltiplas, originadas no embate entre as diversas escritas, ou melhor, entre os diversos gestos de inscrição que, livres da determinação de um autor-deus, vão compor o tecido dramatúrgico: o gesto do dramaturgo, mas também o gesto do ator, do encenador e de todas as funções vinculadas à sua criação. Em outras palavras, pode-se afirmar que a dramaturgia, ao ser concebida como uma escritura, resulta em uma operação entre textos, em uma tessitura intertextual que vai ser constituída por muitos gestos de enunciação, todos em permanente diálogo (CAETANO, 2011, p. 40).

Sarrazac (2002, p. 20) também se utiliza do termo gesto para elucidar as ações realizadas pelo o que ele considera “dramaturgo-rapsodo do futuro”. As ações aludidas pelo pesquisador francês contribuem para pensarmos o que se realizou durante o processo de encenação aqui referido. Não seriam, portanto, de caráter rapsódico os gestos adotados no processo de construção do espetáculo? Vemos, contudo, esboçar-se, nesta peça, o gesto do autorrapsodo do futuro. Praticar a vivissecção. Cortar e cauterizar, coser e descoser, como se da mesma atitude se tratasse, o corpo do drama (idem).

Tal pergunta talvez não possua respostas objetivas, mas, se considerarmos que desde o início se admitiu o ímpeto rapsódico como matriz básica, chegaremos à conclusão de que os gestos são igualmente rapsódicos. Nesse sentido, as dramaturgias resultantes do processo de criação iriam posteriormente se configurarem numa tessitura cênica de caráter intrinsecamente híbrido e polifônico, devidos aos gestos rapsódicos adotados. Assume-se, portanto, uma encenação rapsódica.

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A ideia de que existe uma dramaturgia que só pode ser identificada no texto escrito do espetáculo – que independe dele e ao mesmo tempo é sua matriz – é uma consequência daquelas situações históricas em que a memória de um teatro foi transmitida através das palavras faladas pelos personagens de seus espetáculos. Uma distinção desse tipo seria totalmente impensável se o objeto de análise fossem os espetáculos em sua integridade. Concretamente, em um espetáculo teatral, ação (ou seja, tudo o que está relacionado à dramaturgia) não é apenas o que é dito ou feito pelos atores, mas também os sons, os ruídos, as luzes, as mudanças do espaço. (...) Também são ações objetos que se transformam, adquirindo diferentes significados ou colorações emotivas. Ações são inclusive todas as relações, todas as interações entre os personagens entre si ou entre eles e as luzes, os sons, o espaço. Tudo o que age diretamente sobre a atenção do espectador, sobre sua compreensão, sua emotividade e sua cinestesia também é ação30 (BARBA, SAVARESE, 1995, p. 66).

Portanto, esclarecidos esses pontos, passemos a análise e reflexão sobre os registros dos ensaios, de modo que possamos finalmente “radiografar os mecanismos de construção de um espetáculo, tanto no sentido da descrição metodológica detalhada como na reflexão crítica sobre seus procedimentos” (ARAÚJO, 2011, p. 7). Além disso, tal exercício de reflexão e escrita contribui para compreender o ensaio enquanto espaço de aplicações vastas, sendo uma destas, de ordem potencialmente “teórica”. Pois, foram muitas as vezes que em meio às proposições criativas discutiram-se questões de ordem conceitual e estética. Não estávamos absortos no universo instintivo, caótico e irracional que aparentemente constitui o fenômeno da criação artística. Mantínhamos sempre, a medida do possível, e se prezava por isso, os pés no chão, visto que possuíamos em nós a clarividência que um mínimo de distanciamento fazia-se imprescindível à nossa proposta de pesquisa31. A técnica atua justamente neste lugar, de certo domínio oscilante, que ora se distancia a fim de permitir maiores e imprevisíveis saltos, e outrora se faz presente como caminho ao start criativo e também para que não nos percamos plenamente. Talvez, seja esse nosso maior tormento: voar sobre as águas do mar ignorando o medo de que a qualquer momento ela possa nos furtar.

Grifo nosso. A fim de esclarecer essa pontuação em torno do caráter teórico-prático do ensaio, ver a citação da página 19. 30 31

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Relato n.1 Logo no primeiro momento de chegada apresentei a eles um pequeno texto que havia lido, de autoria do filósofo Jean-Paul Sartre, que achava muito significativo à nossa temática. É um fragmento que compõe a parte Essência ou existência. O que é isto? do livro É proibido proibir. Quando penso em minha vida, vejo que há mil direções para se seguir. À medida que vou existindo, decido-me por um caminho. Ando nele. Com meu caminhar, abro a trilha. Sou como o trator, que faz seu caminho enquanto avança, mais do que o automóvel, que só corre por estradas que foram feitas por outros.

A partir dele, e com ele, pensamos nessa relação implícita: fazer os próprios caminhos ou correr por caminhos feitos por outros. Há nisso, em certa medida, aquela questão da determinação que de princípio acreditávamos haver hoje em dia: exercemos nossa própria liberdade ou nos exercemos a partir da liberdade dos outros? Foram por estes lugares que elucubramos. Após isso, passamos à dinâmica que vinha se tornando recorrente em nossos ensaios. Esta se tratava de uma releitura da técnica dos viewpoints. Os viewpoints foram primeiramente formulados nos anos 70 pela coreógrafa Mary Overlie. Já a teoria dos viewpoints, tal como se popularizou, foi adaptada para o teatro pelas diretoras Anne Bogart e Tina Landau. A constituição de todo o trabalho sobre o Viewpoints se encontra no simples ato de permanecer no espaço. Dentro desta perspectiva, os artistas são ensinados a ler e a aprender o léxico da experiência cotidiana: as informações do espaço, a experiência do tempo, a familiaridade com as formas, as qualidades e regras da cinética do movimento, os caminhos da lógica, as histórias que são construídas e os estados do ser e do sentir, as trocas emocionais que constituem a base dos processos de comunicação estabelecidos entre os seres humanos. Estes são os seis elementos denominados "Os Seis Vlewpoints" que formam a base para a desconstrução daquilo que conhecemos por "teatro". Trabalhar diretamente com este material, permite ao artista o aprendizado da performance através de linguagens essenciais e, também, como uma autonomia da inteligência.32

Apesar de a técnica viewpoints ter se espalhado por muitos lugares e países, aqui no Brasil não há uma bibliografia vasta e considerável acerca do assun-

Este trecho foi extraído do site: http://www.pirandellocontemporaneo.uff.br/index.php?option=com_content&view=article&id=42:s istema-de-viewpoints&catid=18&Itemid=224 (Acesso em 09/12/2015). 32

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to, e são bem poucos os artigos que abordam o tema. Além disso, o The viewpoints book, escrito por Bogart e Landau, cujo conteúdo é de grande importância para esta prática, infelizmente não se encontra traduzido para a língua portuguesa. Diante disso, o que tínhamos de aproximação com o viewpoints era basicamente uma breve vivência prática, que se dera a partir de outra experiência do diretor num outro grupo que esteve envolvido durante um tempo. A condutora deste outro grupo tinha participado de algumas oficinas de viewpoints, daí que surgira sua experiência. Então, a partir disso que podemos dizer que chegamos a esta dinâmica que possui fundamentos na técnica dos viewpoints. O trabalho concernente a isso se refere basicamente à utilização das raias e de alguns outros fundamentos que derivam dos viewpoints. As raias, para nós, se tratavam, na verdade, de linhas imaginárias traçadas de uma parede da sala a outra, paralela; e em muito se assemelham, e daí deriva o termo, das raias da piscina, ou das pistas de corrida do atletismo. Nessas raias desenvolvíamos alguns fundamentos básicos explorados comumente nas disciplinas de expressão corporal, ou seja, antes mesmo de serem preceitos dos viewpoints, “são ideias que todo intérprete vem usando desde o início dos tempos” (MATHER, 2010, p. 4). Tais variações básicas são: 

Plano: alto, médio e alto;



Direção: p/ frente, p/ o lado (direito ou esquerdo), p/ cima e p/ trás;



Peso: leve, equilibrado e pesado;



Densidade: rígido, firme e mole.



Velocidade: lento, normal e rápido.

Os verdadeiros elementos básicos dos viewpoints são bem mais complexos e compreendem um conjunto formando por seis grupos, que se subdividem em outros vários fatores de movimento. Isso reforça o argumento referente ao nosso interesse maior no viewpoints residir sobre o conceito das raias, e os desdobramentos que delas surgem. Tais raias formavam, na verdade, uma gridline, ou seja, uma grade. E os atores somente podiam se deslocar num sentido estritamente

retilíneo,

que

compreendiam

por

fim,

deslocamentos

perpendiculares ou paralelos. Firmada essa estrutura básica de deslocamento, tinha-se um jogo com as suas devidas regras e possibilidades. Neste ensaio aqui em relato, propus aos ato-

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res que eles se deslocassem na grade utilizando uma única movimentação: um tipo de salto que a preparadora corporal Aline havia ensinado para eles. Primeiramente o deslocamento deveria seguir somente essa matriz, ou seja, o salto. Conforme o exercício ia se desenvolvimento os fundamentos básicos eram propostos pelo condutor. Portanto, se o condutor propusesse as indicações “leve” e “alto”, os atores continuariam a realizar o salto, mas agora improvisando a partir dessas provocações, e tendo em vista a regra do deslocamento em raias. Depois de um tempo considerável (30 a 40 minutos) nesta dinâmica de jogo e improvisação, inspirada pelos viewpoints, pedi aos atores que eles, a partir do que fora vivenciado, construíssem uma sequência de movimentos. Permita-me uma observação: depois de realizado o exercício de elaboração da sequência, percebeu-se que aquele salto, que havia sido a matriz incipiente do jogo, estava agora totalmente ressignificado. A base ainda era visível, mas as possibilidades haviam se multiplicado, graças aos estímulos variações básicas articuladas ao jogo que somente o deslocamento através das raias pode proporcionar. Tal dinâmica de criação é marcada fortemente pelo condicionamento que a principio gera um impacto limitador, mas que por fim culmina numa explosão – ou implosão – criativa. É como se, para existir o ímpeto criativo, fosse necessário antes provocá-lo, de modo a restringir a sua livre expressão. Ressalta-se, ainda, que uma vez submetidos a esta dinâmica de jogo, os atores percebiam com maior clareza cada mínimo detalhe de movimento que era realizado, pois se há a repetição exaustiva de apenas um sentido retilíneo e uma matriz única, qualquer gesto fora disso, por mais ínfimo que fosse, era percebido. E é graças a esse aguçamento da consciência corporal que as futuras intervenções e interferências – permitidas, liberadas e estimuladas pelo condutor – ocorriam com maior discernimento e precisão. Com as sequências de movimentos criadas, propus aos atores que eles as executassem agregando o texto que havíamos discutido no início do ensaio. Como o texto havia sido apresentado a eles naquele mesmo dia, sugeri que houvesse um tempo curto de leitura e internalização do texto. Não era necessário que eles decorassem o texto ipsis litteris, mas sim que o sentido geral fosse compreendido minimamente – até mesmo porque era um texto densamente filosófico.

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Com o fragmento textual apreendido, os atores realizaram as sequências e improvisaram a inserção do texto junto aos movimentos. Depois de um tempo de experimentação, cada ator chegou a uma partitura física e corporal específica. Propus então que um deles executasse a partitura enquanto o outro deveria, utilizando uma lanterna, iluminar tal desenvolvimento. Atentei-os para o fato de que tal ato de iluminar o outro poderia ser articulado de muitas maneiras diferentes: evidenciar apenas o olho, iluminar o corpo todo, deixar na escuridão e etc. Caberia a eles manipular a lanterna e ir improvisando simultaneamente com o colega que executava a sua respectiva partitura. Essa investigação sobre a ação de iluminar o outro não se conformou em maiores resultados estéticos ou coisas que tais. Continuamos a experimentá-la durante alguns ensaios, mas não obtivemos maiores avanços. Relaciono isso a alguns fatores: talvez tenha havido uma insegurança por parte dos atores, devido ao fato da relação deles com a iluminação cênica ser bastante “precária”; outro complicador está relacionado à própria falta de incentivo ou de viabilização por parte do diretor, de meios de improvisação e familiarização com estes mecanismos e procedimentos de iluminação; além disso, e com o distanciamento devido, fica a questão do tamanho, na verdade, da vontade de se desenvolver esse aspecto no processo e no espetáculo, era realmente um desejo latente do grupo, num todo, ou apenas da direção? Este último talvez se configure como uma falha, marcada por uma possível falta de diálogo ou discussão sobre a proposta referida33. Por outro lado, esses erros não deveriam ser considerados apenas pelo seu aspecto negativo, pois, na verdade, eles são necessários ao amadurecimento do percurso da construção da obra. Portanto, mais do que falhas ou desvios, eles são, sim, elementos inseparáveis do processo de criação. Podem funcionar como ruídos ou enzimas – na estabilidade precária da obra, tornando-se fundamentais à prospecção de outros caminhos e alternativas. A via negativa pode ser tão ou mais fértil quanto os acertos de alvo (ARAUJO, 2011, p. 152).

De todo modo, essa percepção não sera factível se nós tivessemos sabotado tal proposta desde o início: continuar experimentando tal proposição nos ensaios

Há outra questão que é paralela, mas foge ao universo do processo, que é a insuficiência de infraestrutura e repertório de acessórios de iluminação no departamento de artes cênicas. Os poucos dispositivos utilizados nas experimentações foram adquiridos pelo próprio grupo. Todavia, não julgo que tenha sido isso o maior complicador, mas apenas um agravante. 33

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subsequentes é justamente o que estabele o grau de imprevisibilidade intríseco a qualquer processo de criação que se proponha minamente à descoberta. Especialmente se compreendermos que a prática coletiva se nutre dessa pluralidade contrastante de visões e que experimentar cenicamente uma ideia alheia não significa concordar com ela, mas, sim, conhecê-la por dentro antes de descarta-la, se for o caso, é claro (idem, p. 163).

Por fim, feita a experimentação e improvisação do que tinha sido proposto, ou seja, da inserção da textualidade que havia sido extraída do fragmento textual na partitura, seguimos para o encerramento do ensaio. Deve-se salientar, também, que assim como o diretor, os atores também tinham um caderno de registro dos ensaios. A fim de disponibilizar um tempo para um debruçar-se sobre esse caderno de ator, deixava-se de 15 a 10 minutos antes do horário pré-estabelecido de encerramento dos ensaios. É claro que os atores poderiam retornar a estes cadernos após os ensaios, mas havia um frescor e uma latência que se não fossem registrados logo, ficariam perdidos, ou atenuados. Além desse registro pessoal através de anotações escritas, ao fim dos ensaios fazíamos também o registro audiovisual dos materiais cênicos produzidos. Relato n.2 Neste dia de ensaio trabalhamos novamente a nossa dinâmica própria inspirada no viewpoints. Mas, desta vez, a matriz inicial de movimento utilizada pelos atores era diferente: corre, corre, salta à frente e chuta. Tal célula de movimento também havia sido proposta pela preparadora corporal, num outro ensaio no qual ela havia apresentado isso aos atores. Os ensaios dos atores com a preparadora não eram registrados pelo diretor, mas eram observados e acompanhados presencialmente. Iniciado o jogo de deslocamento sobre as raias, repetiu-se durante um tempo apenas a matriz principal, sempre em sentido retilíneo. Passada esta etapa de exaustão, iniciei a provocação improvisacional a partir das variações básicas de movimento. Deu-se um tempo médio de improvisação (40 a 45 minutos) e então pedi a eles que parassem e selecionassem – dentro do que haviam improvisado – 5 movimentações curtas, e que as articulassem de modo a formar uma partitura. Partituras compostas, pedi aos atores que as executassem repetidamente, e que simultaneamente a isso eles narrassem o que estavam desempenhando não 70

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só fisicamente, mas também emocionalmente. Ainda como pressuposto dessa sugestão, tal detalhamento e descrição deveriam ser feitos de modo narrativo, em terceira pessoa. Tal experimentação narrativa é um fator precedente e que surge nas minhas primeiras experimentações dramatúrgicas com o Coletivo seráFIM. Possui como origem o trabalho desenvolvido e relatado na tese de doutorado pela artista e pesquisadora Nara Keiserman. A hipótese aqui levantada é a da possibilidade de apontar um caminho pedagógico para a formação do ator narrador, que possa exercer diversos tipos de procedimentos verbais narrativos e dialógicos e ainda disponha dos recursos corporais necessários para privilegiar a gestualidade no exercício ilustrativo dos relatos34.

Todavia, nosso trabalho não se trata necessariamente da aplicação dos mesmos pressupostos e exercícios utilizados pela pesquisadora supracitada. Nosso caminho de investigação, de fato, tinha como mote inicial o estudo do trabalho que ela havia desenvolvido, no entanto, não se intentava uma reprodução

da

mesma

dinâmica

e

configuração

de

trabalho.

Nossas

experimentações primavam por um caráter performativo do ator sobre o seu trabalho narrativo, diferentemente da Prof. Keiserman, que ainda circundava o âmbito da ficcionalidade e da “história a ser contada”. Estávamos mais próximos de uma narrativa textual um tanto quanto abstrata, e desenvolvida de modo autoral através dos materiais imanentes ao processo de criação. Pois bem, passado um tempo desta improvisação da partitura com a narração, os atores selecionaram algumas das criações textuais que surgiram, e por fim construíram cada um a sua partitura física e sonora. Repetiram-nas algumas vezes, a fim de memorizá-las, e fizemos o registro audiovisual. E, finalmente, partimos aos cadernos e encerou-se o ensaio. Relato n.3 Deste dia se tem registrado o exercício inicial de aquecimento. Tal prática era comum, e conjuntamente ao alongamento que a precedia, ambos constituíam um rito de chegada. Os objetivos do aquecimento eram quase sempre o de

KEISERMAN, Nara Waldemar. Caminho Pedagógico para a Formação do Ator. Tese (Doutorado em Teatro) – Centro de Letras e Artes da UNIRIO, 2004. O material ao qual se teve acesso não possuía paginação. Entrou-se em contato com a autora, mas ela mencionou não ter realizado a finalização formal completa do trabalho, por isso não havia número nas páginas. 34

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despertar o corpo e potencializar a concentração. O mesmo se desenvolveu da seguinte maneira: 1º Andar de costas; 2º Andar de lado; 3º Andar de costas e de lado. Cada fase durava de 10 a 15 minutos. Como acompanhamento havia uma música ao fundo. Orientava os atores a não se aterem apenas ao ritmo comum da música, mas sim perceberem os contratempos, a melodia, os instrumentos, e a partir dessas percepções sonoras, relacionarem-se “estranhamente” com a música. Ainda referente a este exercício, estimulava-se nos atores um andar de maior enraizamento dos pés no chão. Para tal, dizia-se a eles que dobrassem um pouco o joelho e encaixassem a bacia, de modo a deixar a coluna ereta. Mantendo um olhar à frente, para o horizonte, sem tencionar o pescoço e os ombros. Prezava-se, também, em não culminar numa monotonia tediosa quanto ao ritmo do deslocamento. Quando percebia que o andamento caminharia para isso, pedia a eles que se concentrassem e propusessem outros modos de tempo e ritmo no caminhar em desenvolvimento. Depois de algumas vezes repetida essa sequência, que sempre mudava de fase (costas, lado, costas e lado) através de um pedido meu, chegava-se então à outra dinâmica: toda vez que o condutor batesse palma, os atores deveriam parar, dançar de forma agitada, e depois voltar ao caminhar ora pausado. Tal proposição se dava no sentido de tentar aguçar a presença e a concentração dos atores, pois era fato recorrente: ao chegarem à sala de ensaio eles estariam ou muito cansados, ou muito agitados. Façamos uma observação: se por um lado era bom que os ensaios não ocorressem de manhã, por conta dos atrasos e afins, por outros era complicado o trabalhar a noite, já que ambos os atores desenvolviam muitas outras atividades durante o dia: outros ensaios, projetos de extensão, disciplinas da graduação, estudos e etc. Essa peculiaridade, ou melhor, esta complexa simultaneidade de afazeres é uma marca não somente da nossa geração Y, mas também um traço de grande parte dos graduandos da nossa contemporaneidade: há uma completa

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imersão na vivência e experiência universitária35. Terminada essa etapa de aquecimento, partimos à rememoração das partituras físicas e vocais criadas no dia correspondente aos registros do relato n.2. Feito isso, avançamos para relembrar o fragmento textual apresentado e proposto por mim no último ensaio, no qual foi pedido a eles que decorassem o seguinte texto: “Queremos a liberdade pela liberdade em cada circunstância em particular. E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros e que a liberdade dos outros depende da nossa”.

Passado isso, pediu-se aos atores que executassem as sequências que constituíam as partituras. Junto a isso, orientou-se que eles parrassem em dado momento aleatório da execução e falassem em alto e bom som o texto decorado. Como as partituras eram compostas não somente de gestos físicos, mas também de emissões vocais e sons produzidos pelo corpo, propus a eles que tentassem inserir o texto naqueles mesmos registros vocais e sonoros (vibrações, tonalidades, pausar, alturas, volumes, densidades e etc.). Indo mais adiante, intervi com outra dinâmica: enquanto um dos dois atores executava a sua partitura com o texto recém-decorado, o outro deveria ficar de fora e realizar apenas os sons da sua partitura original (aquela sem o novo texto proposto). Posteriormente, mas ainda como desdobramento deste experimento, pedi que o ator de fora que incluísse na sua emissão vocal e sonora a descrição detalhada do corpo do ator que executava a partitura. Agora, tínhamos duas materialidades textuais distintas em vigência: a do ator que executava a partitura, e a do detalhamento descritivo do ator que estava observando. Como orientação, sugeri o seguinte ao ator que observava a utilização de traços textuais narrativos: preponderância da 3ª pessoa do singular, sem a utilização da primeira; descrição objetiva das cores, gestos, texturas do ator em desempenho; descrição da relação do ator observado com o espaço (o chão, as paredes e até o mesmo o próprio ar Este aspecto ainda se potencializa um pouco mais quando observado o local geográfico ao qual estamos submetidos. O contexto inerente ao município de Ouro Preto proporciona, provoca e estimula tal imergência, pois grande parte dos discentes, quase o todo completo, não reside na cidade, e mora aqui apenas e por conta do curso superior. Logo, percebe-se que a dedicação é quase integral, sendo compartilhada apenas com aquela outra parcela da vida universitária, a que transcende os muros da instituição, ou seja, as festas, os bares, os encontros e as confraternizações. E, até mesmo nesses últimos casos, como muito dos encontros se dão com outros colegas da graduação, a matéria a ser discutida e comentada não foge muito dos assuntos do curso desenvolvido. 35

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envolto). Tem-se a seguinte anotação: “É uma fala que “brinca” com os pronomes e os tempos verbais. Sempre narrando, descrevendo”. Esse caráter descritivo possuía em seu cerne a tentativa de aproximá-los da linguagem rapsódica, de modo a fazê-los perceber como poderia ser esta outra criação dramatúrgica e textual desvinculada da noção de personagem como concebida tradicionalmente, por exemplo. Além disso, o estímulo à linguagem épica proposto de maneira prática e experimental incitava o deslocamento do lugar comum quanto a uma suposta dramaticidade presente na linguagem teatral. Devese registrar ainda que esta possibilidade narrativa é na verdade uma dificuldade para os atores em comum. Trabalhar nessa direção é fazer um exercício de desconstrução interpretativa, estética e operacional. A noção de interpretação, talvez devido à tradição realista e dramática, cristalizou-se num sentido de conotação emotiva, quase melodramática, e fugir disso é uma dificuldade. A dificuldade na direção de atores residiu, muitas vezes, na troca de registros que o texto ou a encenação pediam. Além das múltiplas identidades que caracterizavam os personagens e da necessidade de trânsito de uma a outra – às vezes na mesma cena –, também era exigida do ator uma alternância entre a construção e a não-construção, entre a formalização expressiva mais acentuada e a não-interpretação. Talvez pela falta de experiência nesta última modalidade, alguns atores sentiam dificuldade quando lhes era solicitado para “pararem de interpretar”, isto é, simplesmente dizerem o texto ou executarem um movimento com naturalidade. Além da dificuldade técnica de realização deste registro, havia uma desconfiança em relação a ele, seguida, em geral, do sentimento – equivocado – de “perda” de qualidade interpretativa (ARAÚJO, 2008, p. 140).

Após o revezamento, de modo que ambos os atores participassem da execução e observação da partitura, fizemos a gravação audiovisual do trabalho produzido e encerramos o ensaio. Relato n.4 De aquecimento realizamos o mesmo exercício de andar no espaço da sala de ensaio, com as variações andar de costas e andar de lado. Uma única diferença se refere ao fato de que ao invés deles pararem e dançarem ao bater de palmas do condutor, dessa vez eles paravam, corria até o encontro um do outro, pulavam, e ainda no alto tocavam as duas mãos, e voltavam a se deslocar no espaço.

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Terminado o aquecimento, passamos à criação dramatúrgica. Os atores relembraram as partituras físicas e sonoras criadas nos dias correspondentes aos relatos n.1 e n.2. Isso feito, pedi a eles que misturassem os elementos componentes das partituras: as sonoridades da partitura do dia do relato n.1 iriam ser combinadas às fisicalidades da partitura do dia do relato n.2, e viceversa. Tal hibridação sobre as criações dos gestos dramatúrgicos dos atores resultou em materiais cênicos mais interessantes do que aqueles que haviam sido criados no outros ensaios. Relaciono isso a uma possível e aparente estranheza que se instaura a princípio, pois se presume que os elementos sonoros e os elementos físicos de cada partitura estejam intimamente e mutuamente vinculados. Entretanto, ao realizar tal inversão e miscigenação, percebeu-se que as fricções, os ruídos e os vazios emergidos desse processo de hibridação acrescentavam e ampliavam substancialmente os sentidos, as percepções e os significados do que dali emanava. Isso rompia o estigma “isso foi feito pra isso e aquilo foi feito para aquilo” e colaborava também para a fomentação da experimentação e do livre jogo dos possíveis. Essa tendência à hibridação feita através da montagem de fragmentos extraídos de matrizes distintas revela-se como um aspecto essencialmente rapsódico. Se quiséssemos compreender esses mecanismos e dispositivos formais na prática, deveríamos testá-los e investigá-los empiricamente, e nada melhor do que a sala de ensaio para isso, pois compreendíamos que “experimentar era sinônimo de ensaiar, pôr à prova” (ARAÚJO, 2011, p. 20). Mais que isso, essa experiência nos revelava não apenas o produto estético resultante, mas acima de tudo, e talvez o mais importante, a processualidade com a qual se desenvolve originalmente tais ferramentas de criação. Buscávamos “praticar sem timidez as desconexões, as aspas, juntar o mosaico das línguas e dos discursos”, pois atentávamos a lição sarrazacniana de que isso compõe “o campo de novas possibilidades que se abre perante a escrita teatral contemporânea” (SARRAZAC, 2002, p. 167). Realizadas as improvisações das mestiçagens, os atores afinaram a partitura resultante desse processo de (des)criação. Apresentaram-nas um ao outro e também ao diretor, fizemos o registro audiovisual, debruçamo-nos sobre os respectivos cadernos e finalizamos o ensaio.

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Relato n.5 Para este dia de ensaio havia preparado outra dinâmica de aquecimento. Estava preocupado com o modo pelo qual os atores vinham ocupando todo o espaço da sala de ensaio. Não estava ocorrendo de fato uma ocupação efetiva do ambiente, e a fim de solucionar isso propus uma prática. Primeiramente, dividi o espaço em 2 metades. Tive a ideia de que se eles começassem num espaço reduzido e depois fossem “soltos” para um espaço maior, eles teriam maior consciência perceptiva quanto ao real tamanho da sala e os fatores inerentes a isso. O espaço total devidamente dividido, pedi que eles andassem restritamente sobre uma das metades. A princípio, não havia indicações quanto ao andar, mas logo depois de alguns minutos de entendimento da dimensão espacial, propus um jogo de deslocamento: a metade que eles estavam ocupando seria seccionada: fundo, meio, frente, direita e esquerda. Deste modo:

Fig. 7 Ilustração sobre a divisão da sala para o exercício de ocupação.

Após isso explicado, expus que o exercício consistiria, a princípio, num jogo pautado pela dinâmica de oposições. Se um ator tivesse no fundo e à direita, o outro deveria estar diametralmente oposto, ou seja, na frente e à esquerda. Quanto ao meio, era terreno de transição e apenas a oposição direita e esquerda vigorava. Outro fator era: quanto mais um ator se aproximasse do meio, mais o outro deveria se aproximar do limite oposto: a parede – algo semelhante ao processo que ocorre quando aproximamos dois polos positivos imantados: eles se re76

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pelem. Logo, não era permitido que eles ficassem próximos demais, pois isso “desocuparia” o espaço. Depois de um tempo de exploração dessa dinâmica, acrescentei outros elementos: os planos alto, médio e baixo. A regra para isso era ainda a de oposição plena e agora também a de equilíbrio, ou seja, se um tivesse no alto, o outro deveria estar no baixo; mas se um tivesse no meio, o outro também deveria estar no meio. Procurava atentá-los a todo o momento ao fato de não ficarem tensos ou apreensivos, pois isso de certo modo atrapalharia o desenvolvimento do jogo: as oposições deveriam ocorrer de maneira fluída e dinamizada, sem travamentos, inseguranças ou titubeios. Além disso, depois de um tempo, no qual o jogo já estava mais espontâneo, busquei estimulá-los quanto às variações de deslocamento no espaço: não seria interessante deslocar-se apenas para à frente, devia-se experimentar também o andar de costas, o andar de lado, o rastejar, o pular, o saltar, o correr e etc. Ressalto a importância do condutor-diretor ficar atento aos aspectos que muitas vezes os próprios atores não estão percebendo, pois eles estão mais imersos no jogo do que aquele que observa. A observação deve ser ativa e presente, os jogo não é somente dos atores, mas sim do coletivo todo envolvido na sala de ensaio: a aprendizagem também se dá pela vivência da observação. É como uma corrente de bicicleta: se todos não estiverem conectados naquilo que está ocorrendo ali, é como se um elo se perdesse, fosse arrebentado, e ai a corrente que move a bicicleta não funciona e ela para. Vivenciada a dinâmica em uma das metades da sala, pedi que eles expandissem o jogo para a outra metade também, e assim, depois de um tempo de deslocamento sobre toda a sala, a dinâmica caminhava para o fim. Observou-se que o exercício seguiu sem maiores complicações e conforme ele ia se desenvolvendo ficava nítido que os atores estavam começando a compreender como que se dava de fato a ocupação plena do espaço. Mais que isso, eles compreendiam como que poderiam criar mecanismos para poderem se perceber e perceber o outro no espaço compartilhado. Esse jogo de oposições se mostrou bastante interessante e colaborou posteriormente nos momentos finais do processo, na hora da composição e afinamento das cenas. Ainda no que tange ao ensaio deste dia, propus a eles que trabalhássemos

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nas partituras que eles haviam criado até ali. Diferentemente das outras vezes, sugeri que eles fizessem composições conjuntas, ou melhor, que os repertórios até ali criados individualmente fossem contaminados de maneira recíproca. Como indicações de estímulo a fim de provocar maneiras diversas de experimentação, referi-me a alguns procedimentos de criação que poderiam ser interessante para aquele momento: justaposição, fragmentação, simultaneidade, multiplanariedade, montagem, colagem e outros afins foram os termos mencionados. Busquei estimulá-los ao jogo livre perante os textos que acompanhavam os movimentos constituintes das matrizes. Fazer silêncios, experimentar outras tonalidades, volumes e densidades vocais. Fazer a repetição, incluir no seu próprio texto partes do texto do outro e assim por diante. O interessante foi perceber que muito destes dispositivos de articulação de material cênico-dramatúrgico, possuem correspondência com a formulação rapsódica proposta pelo Sarrazac. Uma criação cênica que originalmente aplica tais mecanismos de criação, possivelmente ira resultar numa conformação cênica que também compartilha desses mesmos elementos vigentes no processo. Logo, a encenação rapsódica começava a surgir com um pouco mais de clareza e concretude. Os atores elaboraram composições ricas e consistentes do ponto de vista cênico, e o material passava a tomar um pouco mais de firmeza, parecendo mais palpável. Havia ainda muito a ser trabalho, afinado, apurado e acrescentado, mas ali algumas faíscas despontavam. Por fim, tem-se anotado nesta data o início da experimentação de uma das cenas que foi efetivamente agregada ao espetáculo. A cena era basicamente uma dança entre os dois atores. Mas, um fator especial transformou toda a configuração da cena, que deixou de ser apenas uma simples dança: era um homem e uma mulher dançando abraçados. Ao ver aquela cena, que havia sido originada no ensaio com a preparadora vocal, despertaram em mim vozes veementes que me faziam ver naquilo uma ironia sem tamanho: em meio a tanta violência doméstica e social contra a mulher, era realmente possível uma dança tão tranquila e romântica como aquela? Esta concepção não entrava na minha cabeça. De fato o teor romântico não era uma intenção da preparadora corporal e muito menos dos atores, era uma leitura própria que não me fugia da mente.

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Naquele dia não desenvolvemos esta inquietação, mas depois do ensaio fui embora com aquilo ainda pulsante. Relato n.6 Como não há neste dia registo sobre o aquecimento que fora realizado, comecemos diretamente pelo exercício de criação proposto no respectivo ensaio. O trabalho do dia se resume a uma tentativa de tentar estimular a narrativa descritiva e metafórica nos atores. De início disse aos atores que ficassem de costas um para o outro, dessem as mãos e entrelaçassem os dedos. Isso feito, pedi que eles se deslocassem no espaço com essas limitações intrínsecas à junção dos corpos. Propus a eles que, enquanto eles andassem, dissessem simultaneamente palavras pontuais relacionadas às sensações que sentiam naquele momento. Depois de um tempo, pedi a um dos atores que fechasse os olhos e ao outro, que permaneceria de olhos abertos, indiquei que deveria ser ele o cuidador do seu colega. Agora o deslocamento se daria pela mútua confiança. Após os dois atores terem passado pelas mesmas variações (olhos abertos/fechados e condutor/conduzido) propus que os dois fechassem os olhos e tentassem deslocar no espaço. A preocupação em si nem era tanto com o trombar na parede ou os tropeços recorrentes da proximidade dos corpos, mas sim no fato de tentar perceber como que se dá a relação de troca. Ou seja, agora que os dois estavam de olhos fechados, não havia uma indicação clara de quem seria o condutor ou de quem seria o conduzido. Se essa decisão fosse tomada ela deveria ser feita através da percepção corporal de um para com o outro. Nesse sentido, as percepções precisariam estar mais aguçadas e os corpos mais presentes, pois qualquer descuido levaria a um tropeço ou até mesmo a uma queda. Portanto, essa dinâmica se norteou basicamente sobre esse objetivo de buscar sentir, captar e identificar quem em dado momento estaria ou sendo o conduzido ou sendo o condutor. Se ambos quisessem conduzir simultaneamente não haveria um deslocamento contínuo. Juntamente a isso, sugeri que eles explorassem mais o corpo um do outro, que não se deslocassem apenas com o corpo ereto, as penas esticadas e os braços ao longo do corpo. Havia inúmeras possibilidades e cabia a eles, segundo suas vontades, experimentarem as variações e as alternativas possíveis – e as impossíveis também. Deve-se ressaltar, ainda, que durante todo o desenvolvimento do

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exercício os atores permaneceram emitindo palavras que tentavam “traduzir” os sentimentos e as sensações que ocorriam durante a dinâmica. Depois de certo tempo de improvisação e deslocamento em conjunto no espaço, os atores se separaram e então pedi a eles que escolhessem uma célula de movimento dentre as movimentações que eles haviam experimentado durante o exercício. Escolhida a célula, eles repetiram cada um para si a fim de memorizar. Partimos então para o trabalho em raias. Propus de início, que eles cruzassem a sala de uma parede a outra, apenas, sem fazer direções horizontais, somente retilíneas. Eles deveriam andar cada qual na sua raia, sempre repetindo a mesma célula de movimento que eles haviam selecionado e memorizado. Depois de um dado tempo de repetição – o suficiente para exauri-los um pouco –, pedi a eles que descrevessem verbalmente os movimentos que eles estavam executando. Tal detalhamento deveria ocorrer de maneira bastante minuciosa e criteriosa, atendo-se aos mínimos detalhes. Ao observar que algo havia fugido à descrição impetrada por eles, atentava-os para o ponto do corpo no qual tal esquecimento estava concentrado. Por exemplo, se um dos atores estava movimento algum dos dedos da mão, mas não o inseria na descrição, dizia-se: — E a mão? Há algo acontecendo nela? Após eles improvisarem um texto a partir dessa proposição, sugeri a eles que intercalassem entre descrição objetiva e descrição subjetiva, ou seja, entre uma descrição “fria” e “seca” e outra de caráter figurativo e metafórico. Além de intercalar, eles eram estimulados também a mesclarem as duas linguagens descritivas, de modo que uma colaborasse com a outra, ampliados os sentidos e as possíveis interpretações. Como exemplo disso, tem-se o seguinte: — Olhos abertos e fixos num ponto à frente, tal como uma águia a espera do momento de surpreender a sua presa. Próximo ao fim, um dos atores havia estabelecido um bom trânsito entre as duas possibilidades narrativas e fazia incursões interessantes do ponto de vista formal. Se tivermos como pressuposto a heterogeneidade intrínseca a rapsódia, pode-se deduzir que o exercício caminhava para uma configuração cênicodramatúrgica potencialmente desuniforme, e isso se confirma à medida que iam surgindo imagens poéticas e quadros imagéticos férteis e promissores.

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O outro ator havia tido dificuldades com o desenvolvimento do exercício. Relaciono isso a um aspecto que longe de ser particular ao nosso caso, é na verdade comum a uma grande parte dos atores brasileiros. Realizar deslizamentos entre as instâncias dramáticas e épicas, ou abstratas, é uma dificuldade que se apresenta devido principalmente à tradição do drama que se cristalizou entre nós ocidentais. Aparentemente existe uma ideia comum entre os atores: a de que a excelência interpretativa reside no quanto maior for o grau emotivo empreendido, e de cunho puramente dramatizado. É como se o grau de primor do ator fosse proporcionalmente igual ao grau de proximidade que ele estabelece com aquele sentimentalismo típico do melodrama do século XIX. Esse estigma se engendrou sobre a dramaturgia e também sobre o teatro, de modo que é difícil distanciá-lo da percepção não só do público teatral como também dos profissionais que fazem teatro. Há uma cultura de que o teatro serve apenas para emocionar e expurgar, retratando sempre as grandes desventuras e infortúnios que precedem a vitória de um indivíduo altamente psicologizado e alheio às interferências e condições sociais que o cercam. Isso se deve em certa medida à tradição da forma burguesa de se fazer teatro, que não contente em apenas condicionar o gênero dramático, extrapolou também à cena, através da consolidação de uma linguagem realista de caráter estritamente intraficcional. A fim de provocar o ator que sentiu dificuldades no exercício proposto, sugeri que ele escrevesse a descrição surgida durante a improvisação, e que posteriormente ao ensaio tentasse sozinho transcrever o mesmo texto, mas sem utilizar qualquer palavra igual àquelas utilizadas por ele no escrito original. Relato n.7 Como aquecimento para este ensaio realizou-se exercícios de respiração. Os atores caminhavam pelo espaço e em dado momento pediu-se a eles que inspirassem e depois expirassem. Contudo, havia um aspecto dinamizador: compassos com tempos múltiplos de 2 (2, 4, 6, 8 e 10). Ou seja, o exercício ocorria da seguinte maneira: inspira e segura durante a contagem até 2; expira dentro do tempo da contagem até 2. E assim por diante, até se realizar o tempo da contagem até 10. Depois de ter repetido algumas vezes os compassos, propus aos atores que fizessem sons com o aparelho vocal, eram eles: solfejar ao som de hum e soprar emi-

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tindo som de xis. O primeiro se concentrava com maior intensidade na ventilação das narinas e o segundo na ventilação bucal. Terminado o aquecimento, passei à introdução de um exercício de sensibilização sensorial. Em primeiro lugar, pedi aos atores que ficassem de frente um para o outro. Em seguida, disse que um ator deveria descrever o outro localizado à sua frente, através do que realmente se apresentava fisicamente e não do que ele pensava ou achava do colega. Nesse sentido, observações tais como “legal”, “sincero” ou coisas do gênero não faziam parte do objetivo. Tratava-se de um detalhamento rigorosamente objetivo e claro. Feito isso, pedi ao ator-descritor que ele fechasse os olhos, e com eles fechados tocasse o outro colega, e conforme o fazia fosse detalhando e descrevendo verbalmente o que sentia através das palmas das mãos. Após as duas variações realizadas, inverteu-se o descritor. Depois de ambos os atores terem realizado as duas variantes de percepção sensorial, sugeri que repetíssemos as etapas efetuadas, mas com uma modificação: as descrições deveriam ser feitas apenas com a utilização de metáforas. Como exemplo disso, mostro-lhe uma possibilidade de descrição metafórica dos cabelos: no alto ele trazia linhas compridas e sedosas, costuradas sobre um tecido macio e poroso que envolvia toda a superfície do pensamento. Após um e outro realizarem a experimentação, encerramos o exercício. Referente a essa prática ainda há uma observação crítica a ser realizada: esse exercício e outros que possuem em comum esse caráter de experimentação verbal e descritiva, reúnem-se no conjunto que se referem às nossas tentativas de assimilação prática de procedimentos de criação cênico-dramatúrgica que são vinculados à perspectiva rapsódica. Sabíamos que a linguagem estritamente dramática não era um dos nossos objetivos, de modo que não buscávamos configurações de comunicação que não fossem constituídas de diálogos encadeados sucessivamente, ou ainda relações entre os atores desempenhando personagens psicologizados. Desejávamos articulações cênicas e dramatúrgicas que fossem originárias de linguagem próximas ao gênero épico e lírico, e por isso caminhávamos em direção a esses exercícios de narração descritiva, de criação de metáforas, de elaboração de quadros verbais figurativos, de relações indiretas entre os atores e de dinâmicas de ocupações geométricas no espaço. O objetivo, a princípio, era o fugir de qualquer lógica inerente a toda e qualquer estrutura

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cênica ou dramatúrgica que se configure dramática, e para isso nos distanciávamos de propostas tais como: diálogo intersubjetivo no presente, personagem psicologizada e cenário representativamente realista. Para que esse argumento fique claro, é necessário que se compreenda o “drama” de um ponto de vista conceitualmente expandido, semelhante àquele proposto pelo pesquisador Hans-Thies Lehmann no Teatro pós-dramático36. Ademais, Lehmann argumenta que a superação épica empreendida por um autor modelar como Brecht não implicaria uma plena mudança qualitativa em relação à tradição hegemônica do teatro, baseada no texto composto por diálogos entre figuras. Para dar sustentação a essa tese polêmica, o autor faz uso de um conceito expandido de "drama". Não se trata mais do drama burguês, baseado no diálogo intersubjetivo e na fórmula de um presente absoluto e contínuo, apresentado sem mediações externas por meio de figuras que agem de acordo com uma vontade autodeterminada. Dramático, para Lehmann, é todo teatro baseado num texto com fábula, em que a cena teatral serve de suporte a um mundo ficcional: "Totalidade, ilusão e representação do mundo estão na base do modelo 'drama'". Com esse conceito de drama, que reúne Eurípedes, Molière, Ibsen e Brecht, o teatro épico não mais poderia ser considerado um salto, porque nele os deslocamentos da dinâmica interpessoal – por meio de coros, apartes, narrativas etc. – não chegariam a subverter a vivência ficcional (CARVALHO, 2007, p. 10).

Perante essa exposição, deve-se ressaltar que uma possível proximidade do nosso trabalho com alguns elementos do teatro pós-dramático não configura obrigatoriamente o nosso processo ou o seu resultante como necessariamente pósdramáticos37. Por outro lado, nossa adesão à rapsódia se deu justamente pelo fato de nela haver uma reunião de elementos cênicos e dramatúrgicos que extrapolam qualquer necessidade a priori quanto à tradição dramática. A nosso ver, a teoria postulada por Sarrazac possibilitada analisar, observar e experimentar conceitos pragmáticos que em nada são tarifários ao drama. Em contrapartida, ao se utiliSão Paulo: Editora Cosac Naify, 2007. A possibilidade de uma absorção do conceito pós-dramático no contexto específico do teatro brasileiro pode culminar em diversas complicações, dentre elas a que talvez se apresente de maneira mais complexa é a que se refere à inexistência de uma verdadeira tradição dramática do ponto de vista dramatúrgico, semelhante àquela que está presente na conjuntura apresentada por Lehmann. Nossa tradição dramática, se ela realmente tiver existido, deu-se de maneira totalmente distinta, e pouco ou quase nada esteve vinculada a dramaturgia tal como a que se desenvolveu na Europa. A tradição dramática que aqui de certo modo ocorreu, se consolidou, sobretudo, através da constante presença de companhias estrangeiras nos primeiros momentos de formação do teatro brasileiro, e que acima de tudo se mostravam engajadas em encenar em solo brasileiro obras canônicas do ponto de vista da dramaturgia europeia. 36 37

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zar do termo dramático na teoria que sustenta o conceito de pós-dramático, Lehmann acaba automaticamente estabelecendo uma relação de interdependência com o drama: é uma conditio sine qua non38. Relato n.8 O aquecimento deste ensaio se fundiu à dinâmica de criação proposta para o mesmo dia. Começou-se com práticas de respiração semelhantes as do ensaio anterior, ou seja, desenvolviam-se inspirações e expirações em compassos múltiplos de 2 até chegar à contagem de 10 segundos. O que se deu de forma diferente, e que a partir daí iniciou-se o processo criativo, foi o fato de que além de realizar a emissão vocal com sons de solfejo em um, de sopro em xis, e agora também de vibração labial, os atores deveriam acrescentar a cada emissão dessa um movimento físico característico. Por exemplo: sopro em xis simultaneamente a um balançar das pernas, ou uma vibração labial juntamente a um chacoalhar dos braços, e assim por diante. Criado e experimentado por um tempo o repertório de exercícios vocais simultâneos a determinados movimentos corporais, propus aos atores que substituíssem as vogais ou sílabas matrizes de cada emissão vocal por palavras aleatórias, ou seja, substituir o sopro em xis por um sopro dizendo a palavra parado. Como exemplo, tem-se o registro de um ator que desenvolveu “braços esticados ao alto e balançando, com a intenção do som vocal de vibração labial, mas dizendo a palavra molhado”. Depois de um tempo razoável de experimentação entre as possibilidades de articulações entre as emissões vocais, os movimentos corporais e as enunciações de palavras, sugeri aos atores que partíssemos ao deslocamento em raias. A proposta era de que eles cruzassem a sala de uma parede a outra, sempre repetindo alguma das composições físico-sonoras que eles haviam criado. Após os atores terem repetindo uma boa quantidade de vezes às composições físico-sonoras, pedi a eles que começassem a articular outras possibilidades de movimentos e sonoridades, tendo ainda como premissa a matriz original criada por eles, mas agora deixando intervir e interferir aquelas variações básicas que sempre utilizávamos, ou seja, as variantes de plano, direção, peso, densidade

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Termo em latim que corresponde à condição sem a qual não pode ser. 84

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e velocidade. Em seguida, depois dos atores terem improvisado alguns minutos, propus que eles extraíssem algumas células de movimento e de sonoridade dentre aquelas que eles haviam acabado de experimentar, e por fim compusessem uma sequência. Isso feito, passamos à investigação de possibilidades de sobreposição da sequência criada justaposta a um fragmento textual que um dos atores havia trazido. Isso se deu da seguinte maneira: tendo como base a sequência físico-sonora criada, o ator deveria experimentar as possibilidades de inserção do fragmento textual proposto; testando, portanto, a variedade de articulações entre os sons da sequência original com a enunciação das palavras presentes no fragmento. O texto trazido pelo ator foi este: Para Spinoza, a liberdade possui um elemento de identificação com a natureza do "ser". Nesse sentido, ser livre significa agir de acordo com sua natureza39.

Desse modo, este exercício final de hibridação entre partituras corporais, sonoridades e textualidades configurou-se como uma dinâmica de criação basicamente cênico-dramatúrgica, pois à medida que as propostas iam sendo desenvolvidos e os estímulos iam sendo inseridos, os atores iam confeccionando uma composição permeada de gestualidades, de movimentações e de sons. Uma das composições que surgiu neste ensaio se firmou posteriormente como um trecho do espetáculo resultante do processo. Contudo, conforme íamos aperfeiçando e dando mais solidez às nossas intenções, os sentidos eminentes à composição iam surgindo, e por fim a composição orignal acabou indo à cena apenas com seu caráter visual, de movimentação e gestualidade. Os sons foram substituídos por uma música e vídeo, o que não incide necessariamente na abolição do conteúdo principal do fragmento textual trazido e investigado pelo ator. Na verdade, os elementos audiovisuais foram inseridos pela direção de modo a potencializar e ampliar os sentidos que emanavam da composição original. Percebia-se que o texto propunha uma relação dependente entre liberdade e livre expressão da natureza humana, e a partir disso agregamos à cena um fundo sonoro extraído de um vídeo pornográfico de tipificação homossexual masculina, que combinado com um vídeo que exibia frases de ódio, violência e intolerância sexual, expandia

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O ator não informou a referência bibliográfica do fragmento textual. 85

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o sentido incipiente da composição criado pelo ator. Estes gestos criativos realizados pelo diretor se aproximam da perspectiva rapsódica que relaciona a colagem como fundamentos de ruptura com a linearidade e a lógica de ordem convencionalmente dramática. Ao justapor materiais heterogêneos sobre uma criação aparentemente coerente e finalizada, busca-se expandir e estimular outros lugares perceptivos e receptivos. Permanecer apenas sobre o que o primeiro momento de criação proporcionou gera um fator estagnante no material gerado, pois a transformação dramatúrgica ocorre na medida em que as fricções, os ruídos, os contrastes e os vazios passam a surgir e permear a criação primária. Manipular os signos do espetáculo e as inúmeras leituras possíveis perante uma determinada cena é uma tarefa de excelência do encenador, mas que somente pode ser dar através da colaboração dos outros artistas envolvidos no processo de criação e ajustamento da encenação. Nesse sentido, o encenador buscava um agenciamento entre as matrizes poéticas criadas pelos atores e as articulações cênicas que se localizam nos seus devires. A partir disso, pode-se deduzir que um processe de criação que anseia uma encenação rapsódica perpassa por estas noções de buscar compreender algumas das inúmeras e imprevisiveis linhas de fuga que são imanentes a todo e qualquer material cênicodramatúrgico. Ou seja, o devir cênico reside justamente da precaridade da obra em caráter bruto, que ainda se mostra permeável e repleta de vazios. A noção de devir cênico, tal como sugerimos, extrapola por mais de uma razão o âmbito delimitado por Gouhier. Em primeiro lugar, pode ser aplicada, como dissemos, a um texto não dramático. Além disso, continua a ser demasiado restritivo falar em “recriação” e não em uma criação específica para o trabalho teatral. Por fim, convém acabar definitivamente com a cobrança textocentrista de uma representação teatral que passaria da “realização” de um texto. Ou seja, de um ato cênico que se visse de certa forma instrumentalizado pelo texto. A dinâmica moderna e contemporânea da criação teatral – ligada à invenção da encenação [mise en scène] e a uma emancipação mais ou menos radical do teatro com relação à jurisdição do literário – não procede de um desenvolvimento linear que iria do textual ao cênico, mas de uma mise en jeu, de uma mise en scène concorrencial e polifônica do texto (considerado ele mesmo na distância e no “jogo” entre a voz e o gesto do ator) e outros elementos da representação: cenários, luzes, sons etc (SARRAZAC, 2012, p. 67).

Por outro lado, qualquer vontade que intente uma criação autocrática e autônoma recai sobre o cerceamento das possibilidades que podem vir a emegir jus86

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tamente do território de singularidades em imanência que é a sala de ensaio. O encenador, num caso como este, restringe as possibilidades, ou os devires, que são alheios a sua leitura ou criação. A atitude de se chegar com uma estrutura e composição “prontas” e “fechadas” com fins de que os atores apenas as executem, não corrobora para a instauração de uma plataforma de livre colaboração, e assim a instalação de uma obra teatral polifônica não se concretiza. É óbvio que todo processo teatral é coletivo, todavia, o grau que diferencia cada um reside no modo pelo o qual ocorre às relações entre as diversas singularidades ali envolvidas. E quanto a isso o encenador corresponde a uma figura primordial quanto às políticas e os dispositivos relacionais que se estabelecem durante o processo criativo. A autonomia de sua escritura cênica ocuparia um lugar semelhante àquele descrito por Philippe Willemart, quando ele sustenta o deslocamento do “estudo dos processos de criação do escritor, sujeito da enunciação, para o scriptor, que ocupa o verdadeiro lugar ou campo das mudanças, sem ser todavia o agente”. Em outras palavras, mais do que compor cenas, o encenador colaborativo trabalharia a construção da obra-processo – ou do processo-obra – por meio de procedimentos gerativos, dispositivos e operadores. Aliás, o conceito de “dispositivo”, como um elemento capaz de engendrar situações, seria mais apropriado, a nosso ver, para se pensar as matrizes cênicas atuais. A estrutura cênica dele resultante seria reticular ou, então, permitiria operar com redes ou com campos de força (ARAÚJO, 2008, p. 200).

No que ainda se refere ao ensaio propriamente dito, relata-se o fato de não termos avançado em direção à composição que a atriz havia criado, até mesmo por um desinteresse dela mesma, já que não havia uma curiosidade dela em desenvolver o material gerado. Respeitou-se tal decisão, fizemos os registros audiovisuais dos resultados do ensaio e por fim encerramos o trabalho. Relato n.9 Neste ensaio o aquecimento ocorreu ainda na perspectiva dos exercícios de respiração. Repetiu-se a dinâmica de contagem de tempos ao inspirar e expirar, e também as emissões vocais soprando, solfejando e vibrando. Quanto à etapa de criação cênico-dramatúrgica, pedi em primeiro lugar que os atores ficassem de frente um para o outro. Em seguida, pedi a um deles que fizesse um som aleatório e ao outro que criasse um movimento corporal que fosse capaz de traduzir o som do colega. Depois disso, aquele que ouviu o som e fez o movimento corporal deveria executar o mesmo movimento, mas agora ten87

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tando emitir o mesmo som que o outro ator tinha criado. Então a dinâmica se resume assim: o ator 1 faz um som, o ator 2 o traduz com o corpo e por fim o ator 2 repete o movimento e tenta reproduzir o mesmo som criado pelo ator 1. O prosseguimento do exercício se deu através da inversão da dinâmica entre eles, de modo que ambos os atores realizassem diversas vezes as mesmas etapas, ou seja, de criação vocal e de tradução corporal e reprodução. Após alguns minutos de improvisação, pedi aos atores que fizessem individualmente uma seleção daqueles movimentos e vocalidades que eles mais tinham se interessado. Isso feito, propus que eles combinassem e misturassem as seleções que foram feitas por cada um, de modo que no final se formasse uma sequência única, na qual ambos repetissem os mesmos movimentos de forma simultânea e sincronizada. Depois dessa etapa eles mostraram o que tinham produzido e então apresentei a eles um fragmento textual: Eu sou o Homem a quem nada aconteceu. Prefiro me calar a não falar 40.

Sugeri então que eles tentassem agregar esse texto na composição que eles haviam acabado de criar. Salientei a importância de se manter as características sonoras ao se justapor o texto proposto à estrutura original da sequência. Elementos tais como volume, entonação, timbre e altura deveriam ser mantidos na medida do possível. Ou seja, o exercício não era de impor à composição a absorção passiva do fragmento textual, mas ao contrário, deveria haver, e é isso que tornaria o material interessante, fricções, choques, contrastes e heterogeneidades. O material que fora produzido neste dia de ensaio também é um dos que acabou se firmando no espetáculo. De modo que a compreensão fique clara, retomemos uma das cenas que colaboraram para que isso ocorresse. A dança que menciono no relato n.5 se configurou posteriormente como uma dança ao som de uma música romântica41. Tal música possui um texto que a todo instante elogia e se declara perante a figura da mulher. No espetáculo, simultaneamente à música e à dança, eram projetados vídeos de violência doméstica e pública contra a mulher. Estas diversas contradições entre a dança a dois, a

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Trecho extraído da obra O Animal do Tempo/A Inquietude do autor Valère Novarina. She de Charles Aznavour. 88

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música romantizada e os vídeos de violência, possibilitavam obviamente uma abertura a crítica quanto à questão inerente a isso, ou seja, a impunidade e a injustica acerca da violência contra a mulher no Brasil. Por si só esse conjunto (dança, música e vídeos) seria o suficiente para instaurar e expressar essa crítica que fazíamos a questão da violência conta a mulher. Todavia, na época que antecedia a finalização do espetáculo, percebemos que poderíamos relacionar esta cena da dança com a cena que tinha sido criada a partir do texto “Eu sou o Homem a quem nada aconteceu.//Prefiro me calar a não falar”. Nunca foi a nossa intenção relacionar uma cena à outra, quanto levei o texto para os atores experimentarem, não imaginava que essa articulação poderia ser realizada, e isso se comprova no fato de que tal hibridação entre as cenas se deu muito depois de elas terem sido criadas. Assim, experimentamos tal justaposição, e acabamos percebendo que para que isso ocoresse, ambas as cenas deveriam ser modificadas, a fim de que chegassemos ao resultado dramatúrgico desejado. Na cena da dança incluímos um elemento que foi a queda ao chão da atriz, uma ação que se repetia exaustivamente e que se intensificava cada vez mais. Junto a isso incluimos outro elemento: o ator que dançava junto dela não poderia ajudá-la a se levantar, ou até mesmo esboçar qualquer movimento. A sua ação seria a inação diante da queda da atriz. O que tange ao fragmento textual, ele entraria logo depois de terminada a dança, a música e a projeção dos vídeos. A partitura física e sonora que dava corpo ao fragmento textual havia sido criada em conjunto pelos dois atores, e os dois executavam ela simultaneamente e de forma integral. Contudo, para dar o sentido que queríamos, fizemos uma alteração: o ator deveria executar apenas o trecho da partitura que diz “Eu sou o Homem a quem nada aconteceu”. Já a atriz, deveria executar apenas o trecho da partitura que diz “Prefiro me calar a não falar”. Uma outra transformação ocorreu quanto ao modo como eles executavam a partitura, já que no espetáculo as execuções não eram simultâneas tal como na criação original, pois o ator realizava primeiro a sua parte e depois, um pouco antes de encerrar a dele, a atriz entrava com o seu respectivo trecho, o que em dado momento gerava um sobreposição de vozes e também de movimentos, porque o ator repetia a parte dele duas vezes, e a atriz apenas uma, o que culminava na supressão do delay inicial.

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Portanto, ao se analisar esse agenciamento entre duas cenas distintas e que a princípio não foram pensadas para serem combinadas, percebe-se vir à tona uma maneira de hibridação típica da rapsódia, na qual as diferenças entre as linguagens não são suprimidas, mas sim evidenciadas, de modo a contribuir para um propósito determinado. Do ponto de vista cênico, miscigenou-se música, texto, dança e audiovisual. E numa perspectiva dramatúrigica, articulou-se textualidade musical, textualidade lirica e dramaturgia visual. Além do mais, vale lembrar que a tradução da letra da música utilizada estava sendo projetada encima dos vídeos, sobrepondo-os. Essa colagem audiovisual potencializava ainda mais os vídeos, devido ao caráter romantizado da letra referente à música. Devido a essas ressignificações da escrita verbal, agora vinculadas a uma escrita cênicodramatúrgica, pode-se assumir uma teatralidade potente que independe da carga dramática ou emocional exercida pelos atores através de uma interpretação convencional. O jogo cênico desta teatralidade independente prioriza a livre dinâmica dos elementos que se dispõem sobre o palco, sem inquirir sobre eles uma necessidade narrativa implícita ou lógica, há assim uma encenação isenta de personagens psicologizadas, cenários realistas e diálogos intersubjetivos. A teatralidade cênica separa então o teatro da obra dramática, mas faz com que se abra para todo tipo de textos. Subsiste um elo tênue entre o escrito e a encenação, que requer uma espécie de extração, às vezes violenta, de alguma coisa que seria – faria – teatro fora da forma escrita abstrata, ou seria a recuperação, a absorção de um escrito (material entre outros) pela materialização cênica, a concretização visual, auditiva etc. A teatralidade, considerada síntese alquímica, gera por fim um desaparecimento do texto sob seu potencial universalista, pois recoore a outras sensações; o potencial substitui o real, o devir o ser, o virtual o atual. A interpretação atenua a irredutibilidade da coisa interpretada (JOLLY; PLANA, 2012, p. 180).

Relato n.10 Neste ensaio o aquecimento teve como fundamento básico a tarefa de estimular a concentração e um estado de presença para que iniciássemos os trabalhos. Pedi de início que os atores andassem normalmente pelo espaço, sem qualquer indicação mais precisa. Um pouco depois os chamei à atenção para o fato de observarem o tempo-ritmo do próprio andar e do colega. Pedi em seguida que buscassem uma sintonia a fim de que estabelecessem uma sincronia no deslocamento. Há uma tendência comum que ocorre neste tipo de exercício: o 90

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artificio da ralentação, com a aparente intenção de criar facilidades na execução do exercício. A medida do possível deve-se evitar tal artimanha, chamando a atenção dos atores quando esse subterfugio passa a se instalar. Não há nada de extremamente negativo e ruim nisso, a não ser a tensão que aumenta quanto mais à lentidão se intensifica. Deve-se, portanto, atentar os atores para o fato do sentido real do exercício, que não é a sincronia perfeita e absoluta – até mesmo porque isso apenas virtuosismo –, mas sim para a possibilidade que o exercício proporciona de poder perceber o seu próprio corpo e o do outro que está no mesmo espaço compartilhado. Muitas vezes – e vivi isso quando ator – ocorre do deslocamento no espaço acontecer de maneira desinteressada, sem objetivo e absorta: o “andar pelo andar”, sem presença de espírito alguma42. Além disso, tem-se registrada uma das observações que fiz aos atores na ocasião: Percebam como que andar é a repetição de um mesmo e único movimento, e como que através do nosso cotidiano ele se tornou autônomo, e ao mesmo tempo, autômato. Não pensamos para andar na rua, é um ato paradoxalmente inconsciente, mas voluntário. Mas isso não pode ser assim no teatro, pelo menos não nesse que a gente tem pesquisado43.

No que se refere ao processo criativo deste dia, começamos pela apreciação de uma imagem que um dos atores havia trazido como sugestão para criação cênico-dramatúrgica. Após observarmos um tempo a image, propus que falássemos aleatoriamente e compulsivamente palavras inspiradas na imagem proposta. Depois disso, sugeri que descrevessemos detalhadamente o que cada um via na imagem. Ressalta-se que detalhar descritivamente é diferente de tentar “explicar” uma imagem, tentando “adivinhar” qual teria sido a situação na qual a mesma surgiu, ou algo assim. Era justamente isso que não queríamos: tentar ficar criando historietas em nossas imaginações. Essas etapas realizadas, pedi que, dentre o texto que eles haviam criado para detalhar a imagem, eles escolhessem três palavras e que a partir dessas três palavras criassem três gestos curtos (chutar/socar/pular). Juntamente à execução dos gestos deveria acontecer o dizer da palavra que havia inspirado o respectivo gesto. Depois de escolhido os três gestos, propus que eles criassem três movimen-

Esse aspecto de alienação talvez tenha a ver com o estigma inerente a frase “andando pelo espaço!”. 43 Trecho extraído do Caderno de Direção do autor. 42

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tações mais complexas, cada uma a partir de um gesto. A improvisação para criar essas movimentações se deu a partir das variações dos próprios gestos, ou seja, através da experimentação dos gestos em diferentes planos, direções, pesos, densidades e velocidades. Após ambos os atores terem criado as três movimentações, pedi que eles as montassem numa sequência. Sequência pronta, avançamos para o deslocamente em raias. A dinâmica das raias se daria da mesma forma que nos outros ensaios, ou seja, cruzar de uma parede a outra, num sentido reto. A indicação, em seguida, foi de que eles se deslocassem pelas raias e fossem repetindo a sequência criada – tanto os movimentos quanto a enunciação das palavras. Primeiramente a repetição seria exata, sem variações. Depois de um tempo de repetição, estimulei os atores às variações possíveis (planos, direções, pesos, densidades, velocidades). A essa altura quando eu pedia as variações eles já sabiam que se tratava de um repertório específico, e nesse sentido minha função como observador era a de atentá-los quanto ao esquecimento de alguma possibilidade de variação, como por exemplo, a densidade rígida (tanto para o corpo como para a voz). Era importante que eles variassem o quanto fosse possível, pois assim a improvisação se potencializava e consequentemente as possibilidades de criação se ampliavam. Após um período de improvisação, pedi aos atores para comporem uma partitura físicosonora a partir de alguns movimentos surgidos durante a experimentação. Em seguida, passamos a leitura de um texto que a atriz havia trazido como mote para criação. Sucesso supremo. A imagem e fogo no céu. Assim o homem superior impede o mal e favorece o bem. O desta forma a vontade dos céus obedece ao benevolente.

Depois de algumas leituras e observações sobre o texto, pedi a eles que escolhessem três palavras do texto. Por sua vez, essas três palavras seriam substituídas por aquelas três primeiras inspiradas na descrição detalhada da imagem trazida pelo ator. Os atores então improvisaram a partir da proposta que havia feito e por fim confeccionaram uma partitura físico-sonora ressignificada, graças às novas articulações que as outras três palavras impeliram. No que diz respeito a essa criação, ela também corresponde a uma das cenas do espetáculo, no entanto, nesse caso apenas a partitura da atriz foi efetiva92

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mente desenvolvida. Ao inserir as três palavras escolhidas (obedece, vontade e mal) na partitura primária, a atriz criou um material cênico-dramatúrgico muito potente do ponto de vista de provocar imagens, sensações e percepções. Um dos gestos que ela realizava era o de bater com muita força num ponto próxima da vagina, e simultaneamente a isso ela dizia a palavra mal com a voz articulada de maneira grave, e depois ia “afinando” a voz, à medida que os socos iam suavizando. Essa partitura provocou uma leitura quanto a recorrente estigmatização do sexo quando tratado do ponto de vista da mulher, como se elas todas fossem proibidas de sentir prazer, ou algo próximo a isso. Nessa perspectiva, a construção cênica e dramatúrgica inerente à partitura da atriz, possibilitou que trabalhassemos encima desse sentido gerado. A fim de acentuar tal percepção e leitura, sugeri a ela que utilizasse uma capa que cubrisse parte do seu corpo, pois havia no início da partitura movimentos que com a manipulação da capa poderiam encobrir ou descobrir o seu corpo de mulher. As colaborações trazidas por este acessório atuaram para ampliar o sentido conotativo quanto ao dogma sobre o corpo da mulher, na verdade, sobre a nudez da mulher, que somente é permitida socialmente se for para estar na “playboy” ou no “vídeo pornô”. Enfim, as questões intrínsecas aos assuntos são diversas, e sabíamos que não dariamos conta de abordar todas, e na verdade nem era essa a nossa preocupação, pois o nosso desejo estava muito mais em provocar a discussão e não em dar respostas. No que corresponde desenvolvimento do exercício de criação propriamente dito, ressalta-se o seu caráter rapsódico quanto a hibridação de elementos díspares, procedimento este realizada através do mecanismo da colagem, que proporcionou justapor o texto proposto com a partitura criada anteriormente, ampliando poranto os seus sentidos e nos possibilitando articulá-la cenicamente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

UM POUCO DAQUILO TUDO QUE AINDA RESTA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um Pouco Daquilo Tudo Que Ainda Resta

Como resultado palpável diante deste conjunto todo de trabalho, e não somente desta monografia, mas também do espetáculo, dos ensaios, das trocas, das orientações e tudo mais que se relacione de alguma forma a isso, tem-se a experiência prática das inúmeras e férteis possibilidades de articulações entre as diferenças. Esse fato não diz respeito apenas às diversas linguagens textuais ou cênicas exploradas durante o processo, mas também, e principalmente, às pessoas que possibilitaram que tal vivência acontecesse. Se há um coletivo de singularidades no qual se pode construir todo o nosso trabalho, pode-se ter certeza que esse coletivo corresponde à amálgama de heterogeneidades intrínsecas a cada sujeito envolvido e colaborador do processo de criação. De um ponto de vista crítico, ressalta-se a importância de comentar a dificuldade em estabelecer trocas colaborativas de maior profundidade dentro do processo criativo aqui referido. Essa questão que está relacionada, a princípio, sobre o pequeno número de envolvidos no processo, e a variedade de funções inerente a isso, pode estar vinculada, na verdade, na ainda recente e imatura percepção de que a dinâmica colaborativa exige reformulações que não são da ordem estética, mas sim da ordem ética, humana e profissional. O colaborativo proclama não apenas outro modo de se fazer teatro, mas também outro ator, outro diretor, outro dramaturgo, outro figurinista, outro iluminador e quiçá outro artista. Pretendíamos garantir e estimular a participação de cada uma das pessoas do grupo, não apenas na criação material da obra, mas também na reflexão crítica sobre as escolhas estéticas e os posicionamentos ideológicos. Não bastava, portanto, sermos apenas artistas-executores ou propositores de material cênico bruto. Deveríamos assumir também o papel de artistas-pensadores, tanto dos caminhos metodológicos como do sentido geral do espetáculo. Em termos convencionais, o dramaturgo e o encenador são “aqueles que pensam”, enquanto os atores são “aqueles que fazem”. O conceito da obra parece, nesse caso, ser um atributo da dramaturgia ou direção, cabendo aos atores, quando muito, articularem a visão geral de seus personagens. Esse “ator linha de montagem”, que poucas vezes ou nunca se relaciona com o discurso artístico global, escravo da “parte” e alienado do “todo”, não tinha lugar em nosso coletivo de trabalho nem em nossos possíveis interesses de parceria (ARAÚJO, 2011, p. 133).

Se o estatuto que o sustenta é o da colaboratividade, isso intervém imediatamente sobre o ego que cada um de nós artistas carrega dentro si, cada qual a sua medida. Se houve algum paradigma de genialidade e virtuosismo autoral sobre o fazer artístico, o processo colaborativo surge para desmistificá-lo. 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um Pouco Daquilo Tudo Que Ainda Resta

Se no século XIX houve o surgimento da mise-en-scène como uma arte autônoma, e o século XX presenciou a sua incontestável consolidação, que caminhos se apontam para o diretor nesse nascente século XXI? Não estaríamos hoje, frente à retomada de um teatro grupal e coletivizado, diante de uma mudança “territorial” em relação à direção? O século XXI, ao consolidar o uso da tecnologia digital e das redes virtuais de cooperação, não traria em seu bojo uma “anarqui-encenação”, liberta dos conceitos de autoridade e unidade? Será que a força da mise-en-scène, contemporaneamente falando, não residiria na sua capacidade de potencializar os agentes nela conectados? Talvez um “novo” diretor surja quando ele “liberta-se do seu ego, liberta-se de seu nome, liberta-se da pretensão inócua de entrar para a história e, então, ao se desterritorializar pode participar de um plano mais complexo, onde o sentido construído pelo autor é substituído pelas estratégias de múltiplos sentidos em co-autoria com seus integrantes”, num entrelaçamento de “multiplicidades heterogêneas num jogo de livres conexões” (ARAÚJO, 2008, p. 200).

É nesse sentido, que se pode dizer que o processo colaborativo extrapola os limites referentes a um modo de criação, e atingem o cerne da prática teatral como um todo, intervindo principal nos fator humano que fundamenta o fazer próprio do teatro. E é nessa instância que talvez exista a maior contribuição do processo colaborativo para com esse investigador, porque mais do que ensinar a ouvir, a dinâmica colaborativa me ensinou a falar. Como o diretor atua num processo socializado de construção do espetáculo? Conforme já analisamos, numa dinâmica coletiva de criação, o encenador não é mais o epicentro do trabalho, para onde tudo converge. O seu poder autocrático se desestabiliza, abrindo espaço para o partilhamento das decisões e para as interferências na condução do processo. O conceito do espetáculo, ainda que possa ser por ele sintetizado, é, em geral, construído ao longo dos ensaios, a partir de múltiplas contribuições e hibridações (id., p. 192).

Portanto, no que se refere à formação em direção teatral, pode-se considerar que ao fim deste processo foi possível compreender mais do que procedimentos, dispositivos e mecanimos de criação e encenação, pois a pauta de reflexão sobre a própria função sempre esteve vigente, em dicussão, em fricção. Atento à lição de Araújo, acredito que “a arte contemporânea instaura um novo paradigma de produção e recepção, caracterizado pelo elemento da precariedade, do transitório, do inacabado e do processual”. Prioriza-se “a luta com a materialidade, o percurso de formação da obra, o trabalho do artista” (id., p. 83). Nesse sentido, o trabalho aqui relatado possui os seus avanços.

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