Sé do Funchal - o brilho de um monumento (inter)nacional - breve ensaio

June 8, 2017 | Autor: Higino Faria | Categoria: Decorative Arts, Iconology, Arquitectura, Historia del Arte, Envrionmental Studies
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Sé do Funchal – o brilho de um monumento (inter)nacional – breve ensaio

A magnífica Sé Catedral do Funchal é um dos maiores e mais importantes templos construídos por portugueses no espaço ultramarino e um dos poucos que se conservam quase intactos dessa época de ouro da história portuguesa, marcada pelas grandes descobertas marítimas do reinado de D. Manuel I. Da parte da coroa foram várias as disposições tomadas, na década de oitenta do século XV, com vista à construção de uma igreja nova e demais edifícios reais, como a Câmara e o Paço dos Tabeliães, absolutamente necessários à administração do burgo madeirense, tendo a construção da Sé do Funchal arrancado à roda de 1493, quando D. Manuel era ainda Duque de Beja e governador da poderosa Ordem de Cristo, detentora do senhorio das férteis e estratégicas ilhas atlânticas. A primeira igreja da ilha em importância, dedicada a Santa Maria, tal como todas as catedrais do reino no século XV, também primaz de todo o Atlântico até 1551, foi mandada levantar no chamado Largo do Duque, na baixa da vila pensada desde cedo para ser cidade, logo que assim fosse possível (1508). Pelas suas obras, terminadas a 12 de junho de 1514, dia em que foi benzida e ocupada a sua cátedra episcopal por um ambicioso bispo (pai de três filhos,) D. Diogo Pinheiro; passaram vários mestres, como João Gonçalves, que parece ter estado à frente da primeira fase de obras, até 1500, depois afastado por razões incertas (técnicas?); Pero Anes, mestre da carpintaria e architectus (fazedor de tetos), logo o primeiro na hierarquia do seu estaleiro, e o seu parceiro Gil Anes, pedreiro-mestre. Do seu exterior, destacam-se certos elementos como as cantarias vermelhas da região, a cabeceira, com as suas gordas platibandas decorativas, rematadas por Cruzes da Ordem de Cristo; os seus merlões torsos ou salomónicos com simbólica régia, como as esferas armilares; a sua torre, militar – com cerca de 52 metros, o que para o contexto insular seria um prodigioso arranha-céus – o seu coruchéu brilhante revestido de azulejos mudéjares e o seu portal tardo-gótico de fino emolduramento e miniaturas

escultóricas, como seres fantásticos e flora simbólica europeia, a recordar, pelo aspeto filiforme, as artes da ourivesaria e da talha coeva. Se à arquitetura da Igreja Grande da Madeira – composta por planta gótica com três naves, transepto e cabeceira de três absidíolos (filiada nos tradicionais modelos mendicantes portugueses) cobertos por abóbadas de cruzaria de ogivas – o visitante atento se limitar pouco será o que a Sé do Funchal terá para lhe dizer, isto é, do ponto de vista formal. Repare-se, contudo, no resultado da relação entre a escala e a leveza interna, consequência da sua cobertura em madeira de cedro das serras da ilha, para que um aspeto próprio, algo de novo, não passe despercebido. O mesmo se dirá do fino “goticismo luso-ibérico”, patente, por exemplo, nos detalhes escultórico-arquitetónicos que, e bem, alguns autores consideram provir da mais fina linguagem decorativa internacional, encontrada nos mais valiosos manuscritos do tempo, como os livros de horas medievais, assim como nos debuxos de gravuristas fascinados pelo exótico e pelo novo que portugueses iam fazendo aportar às metrópoles europeias. O caráter retardatário do seu esquema e planta, reafirmando certa usança arquitetónica continental, em simbiose com certa cultura construtiva local, influenciada pelo meio ambiente e por critérios estilísticos e de gosto que se isolaram e fizeram escola na ilha; fazem desta obra um primoroso e eclético ensaio de arte e tecnologia entre o antigo e o moderno, fruto de uma época de confluências que em se redescobria o papel do homem no tempo e o curso da história em Portugal e no mundo. Compare-se a Sé do Funchal com outras igrejas do reino da mesma tipologia dos finais do século XV, para se ver como a Sé do Funchal é modelo finito de formas antigas que se abre e abraça diversas soluções decorativas e inovadoras provenientes do outro lado da fronteira religiosa, sem que estas firam a sua própria traça elementar e essência cristã. Assim foi que a fizeram, uma Arca de Noé das artes, encalhada no Atlântico: exótica e moderna na decoração, mas antiga e austera no desenho, adequada à devotio moderna. Quem a fez ou ordenou que se fizesse quis que assim ficasse, espelho de um ilha-terra-vergel imaginado e recriado para ser o Novo Éden. Recorde-se, pois, que os primeiros gémeos a nascer na ilha

receberam os pedagógicos nomes do primeiro casal a pisar a terra: Adão e Eva. É pela original decoração geométrica (mudéjar) dos tetos das naves e transepto, decorados com máscaras, grifos e outras criaturas renascentes; pelas suas cantarias cinzentas e vermelhas, decoradas com motivos da fauna real e fantástica (cerca de dezasseis) e da flora (trinta e seis espécies, cerca) da arte franco-flamenga, saídos da gravura avulsa do último gótico europeu; pelo valor dos seus equipamentos litúrgicos e devocionais, como o seu valioso cadeiral da capela-mor flamengo (ou germânico?), onde figuras demoníacas e satíricas coabitam com santos; pelo seu grandioso retábulo manuelino único no país por se conservar in situ com as suas pinturas bíblicas, que neste templo se acha um brilho e uma magnificência real, reunindo o mesmo, de um modo assumidamente eclético, peças de arte de tendências e proveniências geográficas diversas de superior valor histórico-artístico que o tornam num grande e precioso monumento (inter)nacional.

Sé do Funchal, 24-03-2012, ©Pedro Sousa.

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