Se isto não é teatro onde é que está o teatro

June 6, 2017 | Autor: Renato Roque | Categoria: Gil Vicente, História do teatro português
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Se isto não é teatro onde é que está o teatro?

Renato Roque FLUP- 2015/2016

1

1.

Introdução....................................................................................................................................... 3

2.

Os diferentes tipos de teatro primitivo em Portugal ...................................................................... 5

3.

Ponto de situação da polémica sobre teatro anterior a Gil Vicente............................................... 8 3.1 A posição de alguns autores/investigadores perante a polémica do teatro pré-vicentino........ 12

4.

O diário de Nicolau Falkenstein .................................................................................................... 23 4.1 Análise do texto de Nicolau Falkenstein que traduzimos ........................................................... 25

5.

Conclusões .................................................................................................................................... 27

2

É preciso passar do cartório vicentino para a rua e para os campos: sair da Torre do Tombo para a serra da Estrela. Vitorino Nemésio, Gil Vicente, Floresta de Enganos

1.

Introdução

Como me convidavam para ir para a Serra da Estrela, vesti camisolão grosso de lã e calcei botas que me protegessem os pés do frio e da água. Não esqueci as luvas e antes de sair vesti o samarrão, à moda da Terra Fria. Não podia esquecer o garruço. Estava pronto para as intempéries. Partamos então! Comecemos pelo título, que resolvemos dar a esta nossa aventura. Este pequeno ensaio foi motivado por Gil Vicente1 e pela polémica que o seu teatro tem despertado, acerca de ter sido ou não ter sido o primeiro teatro em Portugal2. A palavra de ordem “Se isto não é povo, onde é que está o povo?” foi, com certeza, uma das palavras de ordem mais ouvidas em certas manifestações, no pós 25 de Abril, em Portugal. Embora não nos identifiquemos com a mensagem política inerente às muitas manifestações que a usaram, pareceu-nos que ela poderia ser por nós ser adaptada/ transformada, para intitular o pequeno artigo, por poder ilustrar muito bem a polémica sobre a qual pretendemos escrever, em torno de um suposto teatro português pré-vicentino. Mas que polémica é essa? Muitos autores e investigadores apresentam um conjunto de evidências, mais ou menos consistentes, mais ou menos discutíveis, que provariam a existência de um teatro “rudimentar” em Portugal, anterior ao século XVI. Assim, na opinião deles, seria contraditório apresentar Gil Vicente como o FUNDADOR do teatro português. Esse teatro primitivo, como lhe chama Luiz Francisco Rebello, manifestar-se-ia mesmo em três domínios distintos: um teatro de cariz litúrgico, um teatro popular e um teatro de corte. Mas outros autores e investigadores, pelo contrário, contestam essas opiniões, por as considerarem especulativas, sem suporte documental, e, desvalorizando as formas rudimentares de representação pré-vicentinas, em que não encontram contornos teatrais, negam a existência de um verdadeiro teatro em Portugal, antes do autor do Monólogo do Vaqueiro. É perante as polémicas entre esses dois grupos de investigadores que poderemos então perguntar, como os manifestantes então perguntavam, Se isto não é teatro onde é que está o teatro?

1

Gil Vicente é uma personagem sobre a qual se sabe muito pouco para além do que a sua obra dramática revela, havendo mesmo a eterna dúvida se o Gil Vicente, ourives da Rainha, designado por D. Manuel I como «ourives da senhora Rainha minha irmã», será o Gil Vicente escritor de autos, farsas e comédias. A prova maior de as duas personagens coincidirem seria uma carta de 4 de Fevereiro de 1513, onde se escreve «Gil Vicente trovador mestre da balança», ou seja, Gil Vicente parece acumular a profissão de trovador e de ourives. Outra polémica é se Gil Vicente foi actor, representando nalgumas das suas peças. O texto dos autos na Copilaçom indica apenas que ele recitou o argumento inicial de duas das suas peças: Templo de Apolo (1526) e Triunfo do Inverno (1529), mas num poema de 1533, chamado Genethliacon, André de Resende, escreve «Gillo auctor et actor» («Gil, autor e actor») e a polémica reacende-se. 2 Curiosamente o nascimento do teatro parece estar sempre envolto em grande mistério. Bastará pensar no aparecimento súbito, de rompante, do teatro grego clássico no século V a.C. em Atenas e mesmo no despertar do teatro latino em Roma. E também poderemos comparar o mistério em torno de Gil Vicente com o mistério em torno de Plauto. 3

Teremos de ter o cuidado de deixar claro, desde este princípio de escrita, que pretendemos apenas, com este nosso pequeno ensaio, construir uma reflexão muito pessoal, a partir das opiniões e das teorias desenvolvidas por alguns autores, sobre a história do teatro português até ao século XVI, sem quaisquer pretensões de oferecer um contributo verdadeiramente novo, em torno da existência de um teatro português anterior a Gil Vicente. Apresentar, neste terreno de polémicas antigas, algo de verdadeiramente original, obrigaria a um trabalho profundo de investigação, que o tempo de elaboração destas páginas, para não mencionar as ignorâncias que elas encobrem, não nos permite sequer equacionar. A razão próxima deste nosso interesse, e que originaria o ponto de partida para este trabalho, foi termos tomado conhecimento de um diário de 1451, escrito em latim por um padre alemão, de nome Nicolau Langmann de Falkenstein, que foi embaixador do imperador Federico III, representando-o nas festas nupciais em honra de D. Leonor, filha de D. Duarte e irmã do rei D. Afonso, que decorreram entre o dia 13 e o dia 25 de Outubro de 1451 em Lisboa. A princesa casara por procuração com o Imperador alemão e as festividades públicas aconteceram na cidade, antes da partida da princesa para ir ao encontro do Imperador. O diário tem constituído um dos elementos de prova, apresentado por alguns autores, para defender a teatralidade dos entremeses/momos, porque nele o clérigo conta toda a sua viagem a Portugal, dia a dia, e, em particular, descreve os entremeses/momos3 públicos, que integraram os festejos do casamento real. O que lemos sobre o diário, escrito em latim, levantou-nos algumas questões, como explicitaremos na secção seguinte, que não conseguíamos esclarecer. Decidimos então tentar fazer uma tradução da parte do diário que relata as festividades em Lisboa em 1451. Desconhecíamos então a existência de uma tradução anterior desse texto4. Quando fomos confrontados com ela, decidimos manter o nosso plano5. A nossa tradução é apresentada em anexo.

3

Como refere José Augusto Cadoso Bernardes “momos e entremeses são muitas vezes citados a par” embora “dotados de uma natureza e de uma importância diversa”. Alguns autores, como Jorge Osório, reservam a palavra momo para representações de salão e utilizam a designação entremez para representações de outro tipo que muitas vezes aconteciam no exterior. Jorge Osório também estabelece uma ligação entre o entremez, de cariz mais popular, e o que iria chamar-se farsa. O entremez seria um pequeno espectáculo ou, como de resto a própria designação insinua, uma parte de uma festa mais vasta, integrando cortejos, desfiles e cerimónias oficiais. Os entremeses, ao contrário dos momos, envolveriam muitas vezes grupos sociais que não pertenciam à aristocracia nem ao clero, mas que, no contexto da festa, participavam nas mesmas celebrações. Segundo Jorge Osório haveria, no entanto, entremeses populares e entremeses de paço. Garcia de Resende, que refere vários entremeses populares, no entanto, não nos dá muitas informações sobre eles, “certamente porque eram suficientemente conhecidos dos leitores a quem se destinava a sua crónica”. Na opinião de Jorge Osório, a aristocracia, “o grupo social que fazia do momo uma forma da sua linguagem de ostentação e comunicação com os outros sectores da sociedade não participava como actor na representação do entremez.” A aristocracia assistia aos entremeses“, como fase ou segmento da representação mais geral que era a. festa, e oferecia-o, como tal, à contemplação de outros «estados»”. De facto, “assistir aos entremeses do povo, dos Judeus e dos Mouros era também participar no diálogo”. 4 Só quando já estávamos numa fase final da nossa tradução, é que verificámos que Luiz Francisco Rebello utilizava no seu livro O Primitivo Teatro Português, naquilo que ele chama Documentário Antológico, um conjunto de anexos que reúnem algumas evidências de ter havido teatro primitivo em Portugal, uma tradução parcial desse diário, de autoria de Luciano Cordeiro, que terá sido publicada num livro chamado Uma Sobrinha do Infante Imperatriz da Alemanha e Rainha da Hungria. 5 Optámos por terminar a nossa tradução, por um lado por repararmos que ela continha algumas diferenças significativas relativamente à que Luiz Francisco Rebello utiliza, que, além disso, é parcial, por não nos apresentar todo o texto do diário, por outro lado porque ela continuava a fazer sentido, dado o âmbito deste nosso trabalho. 4

Feita a tradução, tentaremos reunir neste ensaio, para além de uma curta reflexão, construída sobre o texto do diário de Nicolau Falkenstein, uma reflexão mais alargada sobre a polémica em torno do chamado teatro primitivo, em todos os terrenos que descobrimos, onde essa polémica se trava. Como substracto dessa nossa reflexão alargada tentaremos, sempre que se justifique, recorrer aos autores, que verdadeiramente investigaram e que publicaram sobre este tema, e invocar as evidências e os argumentos por eles apresentados.

2.

Os diferentes tipos de teatro primitivo em Portugal

Convém fazer aqui uma pequena paragem para uma curta digressão através dos vários tipos de representações primitivas, a que se poderia associar o epíteto de teatral, antes de avaliarmos a polêmica em torno dessas manifestações. Muitos acreditam que houve uma origem fortemente religiosa no teatro da Idade Média, apesar de não existirem quase nenhuns registos dessas representações em Portugal6, ao contrário do que acontece noutras regiões, como por exemplo em França, a menos de algumas réplicas dispersas encontradas, que se referirão a cenas da Natividade e da Paixão7. Assim como na antiguidade clássica o teatro nasceu do culto dionisíaco, assim também as origens do teatro moderno aparecem, por entre as brumas da Idade Média, confundidas com a ritologia cristã – embora nela se não esgotem. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

O que há de mais relevante em Portugal são alguns documentos que provariam “a contrario” a existência dessas representações litúrgicas; correspondem normalmente a proibições/ regulamentações da igreja relativamente a representações de cenas sacras e profanas nos templos cristãos. E como observa Mário Martins «os sínodos não legislavam para situações irreais». E como realça Luiz Francisco Rebello, tais representações devem mesmo ter continuado a acontecer, apesar da proibição, pois existem diversos documentos conciliares ao longo do tempo que renovam e até reforçam essa proibição8. No entanto, esses decretos da Igreja consideram usualmente uma excepção para representações no Natal e na Paixão. A condenação dos «theatrales ludi» [só] se não estendia à evocação dramática – ou, mais propriamente, para-dramática – dos dois grandes mistérios da cristandade: a Incarnação e a Ressurreição. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Como Luís Francisco Rebelo afirma, teriam sido essas interdições da igreja que, provavelmente, teriam dado origem a um teatro profano, que seria de dois tipos: um teatro de cariz popular, vocacionado para públicos iletrados, representado por saltimbancos que iam de terra em terra, e um teatro aristocrático para ser representado na corte e em salões da nobreza. Os três tipos de teatro medieval ter-se-iam desenvolvido em paralelo e interpenetrado. Luiz Francisco 6

Em rigor teríamos de afirmar que alguns autores, como José Augusto Cardoso Bernardes, contestam esta visão dominante, tal como teremos oportunidade de desenvolver mais à frente. 7 Existe por exemplo um brevísimo diálogo em latim entre pastores para uma cena da natividade de Jesus, descoberto pela musicóloga francesa Solange Corbin num breviário do século XIV, que proviera do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Há também pequenos extractos de representações litúrgicas ligadas à paixão. 8 Luiz Francisco Rebello cita os estatutos de D. Frei Telo, arcebispo de Braga, de 1281 e outras resoluções ao longo do século XIV e XV. É curiosa uma resolução de D. Duarte de 1436, por condenar expressamente “blasfémias, cantigas e autos”. 5

Rebello afirma até que algumas peças de Gil Vicente poderão ter sido influenciadas pelo teatro litúrgico. E cita o exemplo do Auto de S. Martinho, representado na Igreja das Caldas, em 1504, em louvor da rainha D. Leonor. No teatro popular medieval, o arremedilho desempenharia também papel relevante; seria uma representação de tipo elementar, conjugando mímica e declamação. Parece, assim, não haver dúvidas de que estamos perante uma verdadeira manifestação dramática, embora incipiente e rudimentar; Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

E na opinião de Luiz Francisco Rebello, o arremedilho teria sido a principal influência nas farsas em Gil Vicente9. E assim como o arremedilho foi o núcleo a partir do qual a farsa vicentina se formou, abundam igualmente na obra do grande poeta quinhentista os vestígios directos da influência dos goliardos, desde o Pranto de Maria Parda. Luís Francisco Rebelo, Breve História do Teatro Português

É, pois, com o génio de Gil Vicente que se opera a mutação qualitativa do arremedilho em verdadeira e autêntica criação dramática.

Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Há registos de jograis residentes na corte e de jograis ou goliardos10 que a visitavam, quando de passagem, de jograis que viajavam pela Península; esses registos provariam que nos séculos XIII a XIV haveria espectáculos dramáticos frequentes. O arremedilho poderia ser assim representado na rua, mas também em casas nobres e até no paço real. Segundo Luís Francisco Rebelo o declínio do arremedilho só acontece com a invenção da imprensa. Haveria outro tipo de dramatização, intitulado entremês/ momo11, que se desenvolve a partir do século XIV em ambiente cortesão. Os momos eram divertimentos colectivos [ludi] onde participavam os fidalgos e por vezes até o próprio rei, em que representavam sobretudo temas das novelas da cavalaria. O momo, embora de origem borguinhesa, constituía uma espécie de representação muito do agrado da Corte lusitana, e consistia em mascaradas ou disfarces mais ou menos alegóricos e fantasistas. Não era necessariamente um divertimento de banal pantomina, mas antes uma forma privilegiada de ostentação de que a aristocracia deitava mão. Podia utilizar o texto escrito como complemento da linguagem simbólica que cada figura transportava em si mesma, mas a alegoria visual era-lhe nuclear. Distinguia-se nitidamente da justa e do torneio, realizados em campo aberto, porque o seu lugar era o salão, o ambiente de interior, se bem que certos elementos da «cidade» ou de fora da corte pudessem contemplar o espectáculo... o momo possuía um estatuto suficientemente elevado para que a mais alta nobreza e o próprio monarca o tivessem adoptado e nele houvessem participado como actores. Jorge A. Osório, O TESTEMUNHO DE GARCIA DE RESENDE SOBRE O TEATRO VICENTINO. ALGUMAS REFLEXÕES 9

Mais uma vez somos obrigados adizer que alguns autores, como José Augusto Cardoso Bernardes, contestam fortemente esta opinião, tal como teremos oportunidade de desenvolver mais à frente. 10 De acordo com Duarte Ivo Cruz, na sua História do Teatro Português, os goliardos seriam um tipo especial de jogral especializado na imitação, nomeadamente de cerimónias litúrgicas, muitas vezes desrespeitosas. 11

Os momos não eram exclusivos de Portugal; existiam também em Castela, França e Itália. Alguns autores, como veremos, distinguem claramente as duas designações, sendo o momo de natureza estritamente aristocrática, enquanto o entremez podia envolver outros estratos sociais. Mas nos documentos da época as duas designações parecem algumas vezes confundir-se. 6

Há inúmeros registos de momos, associados a dias festivos, ordenados pelo rei, príncipes e nobres. E se o seu local privilegiado era o salão, como refere Jorge Osório, casos há em que assumiu um carácter publico, como é o caso das festividades de 145112. ... o seu carácter predominantemente aristocrático não impedia o povo de a eles, por vezes, assistir, como sucedeu em 1451 e 1490, nas festas comemorativas do casamento da Infanta D. Leonor com o Imperador Frederico III da Alemanha, e do Príncipe D. Afonso com D. Isabel de Castela. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Luiz Francisco Rebello apresenta diversos documentos que provam a existência de momos na corte portuguesa desde o reinado de D. João I13. Eram alegorias e havia muitas vezes o recurso à palavra, pois os momos eram muitas vezes acompanhados por frases mais ou menos sentenciosas, mais ou menos enigmáticas, do tipo das “empresas” ou “divisas”. Não se tem a certeza se essas palavras eram ditas, lidas, ou apenas de alguma forma mostradas aos espectadores. Também o Cancioneiro Geral, organizado por Garcia Resende em 1516, alude no prólogo à importância deste fenómeno - «a arte de trovar [é] [...] nas cortes dos grandes príncipes, mui necessária na gentileza, amores, justas e momos » - e integra muitos poetas fazedores de momos ou de textos poéticos a integrar em dramatizações. ... as repetidas alusões que, por todo o Cancioneiro, se fazem a manifestações de natureza teatral: os «autos» representados nas festas nupciais de 1451, que Duarte de Brito nostalgicamente recorda; os «entremeses» de que falam Álvaro de Brito Pestana, Pêro de Sousa Ribeiro e Duarte da Gama («não há aí mais antremeses/no mundo universal/do que há em Portugal/nos Portugueses!»); os «momos» que Álvaro Barreto, e Pedro Homem evocam nos seus versos. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Algumas peças de Gil Vicente escritas para momentos de celebração parecem mesmo sofrer de alguma contaminação da estética do momo. Segundo José Augusto Cardoso Bernardes, bastará ler Cortes de Júpiter, Templo de Apolo, Nau de Amores ou Frágua de Amor, para nos apercebermos da importância do efeito cénico, da música e dos adereços. Apesar de alguns indícios de contaminação, contudo, nenhuma das peças pode resumir-se a esse tipo de exibições cénico-teatrais, uma vez que, em cada uma delas, existe uma desenvolvida dimensão retórica, que contraste com a presença exígua que a palavra acaba por ter nos momos genuínos. José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente

Mas, como refere Luiz Francisco Rebello, no Cancioneiro Geral, para além das referências a entremeses e a momos, reproduzem-se também algumas “letras e cimeiras”14 de personagens desses entremeses e momos, e também textos que ele considera “diálogos dramáticos”.

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Como vimos, alguns autores distinguem o entremez do momo, não só pela sua complexidade, mas também pelo local de representação e pelas classes sociais envolvidas. Nesse caso as festividades de 1451 incluiriam entremeses e não momos.

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Luiz Francisco Rebello lembra que Fernão Lopes, na segunda parte da sua Crónica de D. João I (capítulo 96), refere vários e luzidos jogos celebrados (em 1387) no banquete das núpcias do rei, e que no Livro da Montaria o rei faz a apologia dos «saraus, danças e tangeres» da corte. E Gomez Eannes de Zurara, na sua Crónica da Tomada de Ceuta, refere-se com grande entusiasmo aos «momos de tão desvairadas maneiras» que, por ordem do Infante D. Henrique, assinalaram as festas da Epifânia, em Viseu, no ano de 1414. 14

Não só no Cancioneiro Geral, mas também na Vida e Feitos de D. João II, Garcia de Resende registou divisas, empresas e invenções, aparecidas nas grandes festas de Évora de 1485. 7

Mas a presença do teatro no Cancioneiro de Resende (que adjectivando-se de «geral», implicitamente se obrigava a comportar, ao lado da poesia lírica e satírica, a poesia dramática) não se limita a estes indirectos testemunhos. A forma apostrofante de muitas das suas composições aproxima-as de verdadeiros monólogos – e engendra, com frequência, um encadeado de réplicas e tréplicas que, virtualmente, é já um esboço de diálogo dramático, à semelhança das «tenções» da poesia trovadoresca dos séculos XIII e XIV. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Rebello também refere exemplos de dramatismo incipiente em textos que integram o Cancioneiro Geral. Realça o longo debate sobre o «Cuidar e suspirar» e em particular os textos dialógicos de Anrique da Mota. A distância é já menor que separa do teatro o «processo de Vasco Abul», representado em Almada ante a Rainha D. Leonor em 1510?) – «porque, andando uma moça bailando em Alenquer, deu-lhe zombando uma cadeia de ouro, e depois a moça não lha quis tornar, e andaram sobre isso em demanda». E, como adiante veremos, as demais composições do organizador desse processo – Anrique (Henrique) da Mota – transpõem, decididamente, as fronteiras do teatro, em cujos domínios se instalam com afoiteza. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Luiz Francisco Rebello vai mesmo muito fundo, em busca das origens remotas do teatro português, até às canções em galaico-português do século XIII e XIV. Que as cantigas de amigo, de escárneo e de mal-dizer dos nossos Cancioneiros medievais não são teatro, é evidente – mas não o é menos que a sua estrutura lírico-dramática, sobretudo quando tomam a forma dialogal de tenções, dele as aproxima, permitindo falar então em pré-( ou para-) teatro. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Temos assim, como possíveis principais formas primitivas de teatro, anteriores a Gil Vicente: representações litúrgicas, arremedilhos, entremeses, momos, dialogia incipiente no Cancioneiro Geral e até alguns cantares medievais galaico-portugueses. O diário em latim por nós traduzido, que descreve os entremeses de 1451, pode ser apenas, afinal, mais uma evidência da importância dos entremeses/momos na corte portuguesa, podendo constituir uma prova mais, ou não, da dramaticidade dessas representações.

3.

Ponto de situação da polémica sobre teatro anterior a Gil Vicente

Na secção anterior, de alguma forma já introduzimos a polémica que agora tentaremos desenvolver. Nenhum autor/investigador da história da literatura/teatro em Portugal se atreveria a negar a importância da representação do Auto da Visitação, também chamado Monólogo do Vaqueiro, que aconteceu na noite de 7 para 8 de Junho de 1502, para celebrar o nascimento de D. João III, filho de D. Manuel I e futuro rei de Portugal. Todos concordariam em reconhecer que esse acontecimento, de que existem vários registos, foi novo e que inauguraria algo de inteiramente inovador e porventura até de revolucionário na história da literatura e do teatro em Portugal. Mas se nenhum autor/investigador negaria o que atrás escrevemos, a polémica residirá na pergunta, como nos lembra José Augusto Cardoso Bernardes na sua tese de doutoramento, ao recolocar a 8

questão que L.S Révah já colocara em 1950, “Gil Vicente a-t-il été le fondateur do théatre portugais?”,a que Révah acabara por não responder, por ter encontrado apenas provas “ ténues” ou “inexistentes” de uma ligação de Gil Vicente a formas de teatro medieval anteriores. Na Copilação de todalas obras de Gil Vicente15, editada em 156216 e que reúne todas as obras de Gil Vicente, o filho do dramaturgo escreve sobre o Monólogo do Vaqueiro, que se representara sessenta anos antes nos paços reais de Lisboa, e afirma que é não só «a primeira coisa que o autor fez», mas ainda a primeira coisa «que em Portugal se representou»; ele reforçaria no final do mesmo auto o que escrevera antes, apresentando o auto como «coisa nova em Portugal». Mesmo se não valorizássemos as palavras do filho de Gil Vicente17, por ele poder ser parcial na sua análise, outras evidências independentes nos confirmam a veracidade das palavras registadas na Copilação. Poderse-ia, por exemplo, invocar imediatamente as palavras de Garcia de Resende numa das suas trovas, incluída na sua Miscellanea em trovas do mesmo autor e hua variedade de historias, costumes, casos e cousas que em seu tempo acconteceram, publicada em 1554. De facto, na célebre trova 186, Garcia de Resende refere-se às «representações/de estilo mui eloquente,/de mui novas invenções,/e feitas por Gil Vicente» e mais à frente diz que «Ele foi o que inventou/isto cá, e o usou/com mais graça e mais doutrina /posto que Juan del Enzina / o pastoril começou». Interpretada à letra, a trova de Garcia de Resende parece querer dizer que Gil Vicente teria introduzido o auto pastoril na corte Portuguesa, tendo sido o seu inventor em Portugal, mas que teria aprendido a fazê-lo com Juan del Enzina, dramaturgo castelhano, da corte do Duque de Alba, em Salamanca. Mas como nos aconselha José Augusto Cardoso Bernardes, devemos talvez usar de alguma precaução na interpretação das palavras de Garcia de Resende. É com precaução que deveremos aproximar-nos, por exemplo, da célebre estrofe 186 da Miscelânea de Garcia de Resende, tentando descortinar, a este propósito, algum sentido testemunhal. José Augusto Cardoso Bernardes, Danças da Vida e da Morte nas Barcas de Gil Vicente

Há quem associe o uso do termo “eloquência de estilo” simplesmente ao facto de haver para os autos um texto escrito e à importância relativa desse texto na representação. Com Gil Vicente “o breve do texto hipertrofiou-se”, como escreveu Fidelino de Figueiredo. O texto, rudimentar nos momos e nos entremeses, adquirira relevo. Mas na opinião de Jorge Osório, o «estilo muy eloquente» da obra vicentina, que Garcia de Resende aponta, poderá não estar só relacionado com 15

Em rigor haverá três autos proibidos pela Inquisição que se perderam e que não integram a Copilação: Jubileu de Amor, Aderência do Paço e Vida do Paço. Haverá ainda outro auto que não consta da Copilação, o Auto da Festa. 16 Em 1586 foi publicada uma segunda edição da Copilação, mas nesta edição o texto da primeira foi profundamente mutilado pela censura inquisitorial. A publicação de 1562, para poder ser publicada com todas as obras, teria beneficiado de alguma indulgência da Inquisição, já activa, por pedido expresso da rainharegente ao Grande Inquisidor D. Henrique. De notar que a obra obteve o “privilégio real”, válido por dez anos, que a protegia, mas não deixa de ser como afirma Osório Mateus «o primeiro livro português de teatro que tem no rosto a indicação de censura prévia». De facto, no Index de 1561 havia uma directriz geral expressamente para teatro: «Comedias, tragedias, farças, autos onde entram por figuras Ecclesiasticos, e se representa algum sacramento, ou auto sacramental, ou se repreende, e pragueja das pessoas que frequentam os sacramentos, e os templos, ou se faz injúria a alguma ordem, ou estado aprovado pela Igreja». 17 Segundo Paul Théssier, que apresenta no seu trabalho, uma lista corrigida de todos os autos, com as datas de representação, “está demonstrado, infelizmente, que a Copilação contém, a par de indicações autênticas, numerosas inexactidões ― e os críticos aprenderam, consequentemente, a não confiar nela”. Ou seja também as afirmações sobre a novidade do teatro vicentino têm de ser validadas. 9

o facto de os autos de Gil Vicente serem suportados em texto, pois ao mesmo tempo Garcia de Resende diz-nos que a sua novidade provinha também das «muy nouas enuenções». Ora, como Jorge Osório realça, «invenção» era um termo característico da retórica e era usado para designar a criação ou a chamada feitura poética, ou seja, “eloquência” denunciaria sobretudo uma intenção em atribuir ao texto um estatuto mais «literário» do que aquele que até então lhe era concedido. Não há dúvida de que Gil Vicente conheceu preocupações a respeito do estatuto retórico-literário da sua produção; poder-se-ia mesmo dizer que, certamente sob a sugestão de influências externas, se interessou em dado momento por afirmar a intenção de dignificar literariamente a sua obra dramática. Um texto significativo sob esta perspectiva é o prólogo da edição avulsa do Auto de D. Duardos, peça que muito certamente é de 1522. Como é sabido, Gil Vicente, além de enumerar aí os géneros que versara até ao momento — numa classificação que não coincide com a oferecida pela Compilação de 1562 — revela o intuito de elevar o registo da obra que ia apresentar. É extremamente claro quanto às suas preocupações: até essa época oferecera peças de «figuras baxas», mas agora impunha-se preparar algo de estilo mais elevado, o que, na sua opinião, se podia obter à custa de «altas figuras» adaptadas à «história» que ia encenar. [...] A teoria literária e retórica que Gil Vicente conheceria era a da tradição medieval, fundada nas duas séries paralelas e correlativas dos três estilos e dos três géneros. [...] parece inegável que Gil Vicente conheceu esta teoria caracterizadora da comédia como género, em que a exposição diegética se fundava na articulação contrastiva da 18 situação inicial com a final, organizando-se, a nível do sentido, na transposição da tristeza para a alegria. [...] Depois de ter avançado do auto pastoril para a moralidade, revelava agora conhecer também o âmbito mais vasto da alegoria narrativa de carácter profano [...] passou a oferecer ao público alegorias profanas a que tendencialmente chama comédias e nas quais pressupõe uma exposição sobre argumento novelesco ou de fantasia. Do ponto de vista formal, quase todas estas peças possuem um prólogo ou introdução, à imitação do que era a tradicional na comédia latina e na teoria que lhe dizia respeito. Tudo indica que Gil Vicente, tendo tomado contacto com a comédia do seu contemporâneo Torres de Naharro, passou a dispor de um novo «género» que lhe permitiu alargar o horizonte de conhecimentos teatrais do seu público, explorando nesse horizonte sobretudo duas áreas de expectativa: o assunto novelesco e a fantasia alegórica profana. Jorge A. Osório, O TESTEMUNHO DE GARCIA DE RESENDE SOBRE O TEATRO VICENTINO. ALGUMAS REFLEXÕES

A ser assim, a trova 186 da Miscellanea poderia reflectir sobretudo a distância estética sentida por um público cortesão19 habituado aos momos, onde a alegoria era a fronteira da linguagem usual. Gil Vicente, com a sua busca da «eloquência», materializada numa doutrina literária, teria então tido plena consciência de estar a abrir novos horizontes às representações. Como escreveu José Augusto 18

O passo mais relevante, onde tal se pode concluir com mais clareza, são uns versos do «argumento» da comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra: «Ja sabeis, senhores, /que toda a comédia começa em dolores; /e inda que toque cousas lastimeiras sabei que as farsas todas chocarreiras /não são muito finas sem outros primores» Gil Vicente mostra conhecer a retorica medieval e mostra preocupação em acentuar a diferença da comédia relativamente à farsa que praticava há muito tempo: Finura e outros primores. “Por outras palavras, a comédia era mais «eloquente» do que & farsa, cuja falta de elaboração retórica está bem sugerida no adjectivo «todas chocarreiras»” como afirma Jorge Osório. 19 Gil Vicente fez toda a sua carreira como dramaturgo oficial da corte, ao serviço da rainha Dona Leonor, de D. Manuel I e de D. João III. Para a corte fora concebida a sua obra; perante a corte, no essencial, foi ela representada, quer em Lisboa quer nas várias residências reais de Évora, Almeirim, Tomar e Coimbra. Muitas das peças que escreveu foram encomendadas para celebrar determinados acontecimentos importantes ― nascimentos, casamentos, entradas solenes ― ou para acompanhar certas festas religiosas. O teatro de Gil Vicente é, por conseguinte, um teatro de corte, subordinado às exigências e ao cerimonial da vida cortesã. 10

Cardoso Bernardes “A obra de Gil Vicente constitui uma tentativa de renovar a tradição, conciliando o popular e o palaciano, em termos de gosto e em termos de moral”20. Essa renovação teria sido sentida por Garcia de Resende e pela corte, ao presenciar as suas obras, e a trova 186 reflectiria esse impacto. De facto, os momos, que merecem algum destaque como formas corteses teatrais anteriores, a que a corte portuguesa se habituara, poderiam ser considerados representações, mas viviam fundamentalmente de uma linguagem visual e da música. Como escreve Jorge Osório, ”O texto escrito acompanhava-as, mas não constituía o seu pretexto; era-lhes periférico e não essencial, como sucedia no emblema. Desta forma, não se ofereciam como discursos marcados pela eloquência.”. O autor afirma algo de semelhante relativamente ao entremês: “[No entremês ] O texto também não é ainda o pretexto da obra. Por outras palavras, o entremês, tal como o momo, não era obra eloquente”. Terá sido um público habituado aos momos, que constituíam uma moda enraizada na corte no final do século XV, a visualizar pela primeira vez o teatro vicentino, e a perceber a distância que esse teatro tinha relativamente aos géneros de representação que conheciam. E a trova de Garcia de Resende reflectirá então essa constatação, não necessariamente apenas fruto do Auto da Visitação, mas de todo o teatro vicentino que se seguiu, e que introduziu várias inovações, pois o livro de Garcia de Resende é de 1554, portanto posterior à morte de Gil Vicente. Estes factos/argumentos, que realçam a inovação de Gil Vicente, realmente sentida pelos seus contemporâneos, e o desconhecimento efectivo de verdadeiros textos dramáticos escritos, anteriores à obra vicentina, pelo menos com real valor literário, levam alguns investigadores, não só a defender a enorme importância atribuída ao autor das Barcas, mas até a negar a existência de teatro anterior em Portugal. Estaríamos assim, com a representação do Auto da Visitação, no acto fundacional do Teatro Português, ou porventura, para alguns menos peremptórios, na fundação do Teatro Português de Corte ou até, diminuindo a abrangência ao epíteto, na fundação do Teatro Português de Corte sustentado em texto literário. São pequenas e subtis diferenças, que podem esconder visões diferentes, ainda que talvez não absolutamente antagónicas, do que esse dia extraordinário poderá ter significado como ruptura e inovação. Mas também temos aqueles que afirmam sem ambiguidades que existia teatro em Portugal, teatro de corte e sem ser de corte, e até muito antes de 1502, e que esse teatro, a que podemos chamar primitivo, como lhe chamou Luiz Francisco Rebello, teria influenciado a obra vicentina. Ou seja, perante a representação de um auto de Gil Vicente em 1502 para celebrar o nascimento de D. João III, que constituiria um marco na história do teatro em Portugal, há muitos autores que se têm interrogado sobre a existência de fontes anteriores, que poderiam ter servido de inspiração e de modelo para a escrita do dramaturgo, e que respondem afirmativamente. Esses autores partem quase sempre da premissa de que é muito difícil conceber uma criação do modelo teatral a partir de um nada, uma criação a partir de um vazio (creatio ex nihilo), um vazio onde o teatro pura e simplesmente não acontecesse. Podemos mesmo afirmar desde já que esta posição parece continuar a ser dominante no presente.

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Esta concepção de Gil Vicente, como algo que parece extravasar o simples “dramaturgo de corte”, é desenvolvida por José Augusto Cardoso Bernardes e por Andrés José Pociña López e referir-nos-emos de novo a ela mais à frente. 11

3.1 A posição de alguns autores/investigadores perante a polémica do teatro pré-vicentino Percorrendo os principais autores/investigadores da história do teatro em Portugal, desde o século XIX até ao presente, percebemos que todos eles se defrontam com a questão do que existiu antes de Gil Vicente. Enfrentam depois essa questão de formas diversas, mas quase todos acabam por reconhecer a existência de um teatro medieval em Portugal anterior a Gil Vicente. Quer João Salgado, quer Teophilo Braga, por exemplo, ainda no século XIX, começam as suas obras por uma dissecação dessas origens remotas do teatro português. Ao incetar este trabalho, incontramos uma difficuldade invencível: - a de precisar rigorosamente o princípio e a origem do theatro em Portugal. Parece que a fórmula theatral existia na Europa desde tempos mais antigos; e, se atribuirmos a Gl Vicente a fundação do nosso theatro, temos que admitir que o illustre poeta não tirára do nada a sua creação, mas que se servíra de elementos já existente, que elle, com o seu génio grandioso, soube, primeiroque ninguem aproveiar e desinvolver, n’uma fórma aoerfeiçoadíssima, para a fundação da sua obra. João Salgado, em Historia do Theatro em Portugal, 1895, Bibliotheca do Povo e das Escolas Do mesmo século da fundação do reino de Portugal, encontramos um documento que nos descobre o fio da tradição dramática; é a palavra arremedilho, que o erudito Santa Rosa de Viterbo interpreta como uma espécie de farsa mímica. Teophilo Braga, Historia do Theatro Portuguez

Também os historiadores do teatro mais contemporâneos regressam ao assunto e parecem continuar a defender a existência de um teatro primitivo de vários tipos. Vejamos Luciana Picchio, Duarte Ivo Cruz, Luiz Francisco Rebello, António José Saraiva e Paul Théssier. A ideia de um teatro português que ao nascer, no ano da graça de 1502, já fosse adulto foi tão cara a românticos como a positivistas. E chegou até nós, nas asas da tradição e da autoridade; as dúvidas levantadas por uma parte da crítica, tão rica de faro comparativo quão desprovida de documentos, mal conseguiram arranhá-la. ... Sendo inconcebível imaginar a parcela lusitana como elemento avulso do corpo europeu, a verdade é que ainda não foram encontrados, ou foram-no em dose mínima, textos e documentos de teatro medieval português semelhantes aos que provêm dos outros países da Europa. Luciana Piccio, em História do Teatro Português, Portugália Editora,1964

A verdade é que, no território português, houve teatro desde pelo menos o século I, ou ainda antes: o Teatro Romano de Lisboa está aí para o provar. E sabe-se que, mesmo durante as invasões suevas e visigóticas, e posteriormente durante a dominação árabe, foram sempre surgindo actividaes esporádicas ligadas às artes cénicas. Duarte Ivo Cruz, História do Teatro Português

Aceita-se que Gil Vicente haja sido o primeiro a dar uma forma e um conteúdo literários a elementos rudimentares até então dispersos; mas não se aceita, por cientificamente inverosímil, que tenha criado ex nihilo o teatro português. Luiz Francisco Rebelo, Breve História do Teatro Português

Gil Vicente aproveitou-se de fontes diversas, que os investigadores se têm empenhado em identificar. 12

Paul Théssier, Gil Vicente, o autor e a obra

António José Saraiva é talvez menos entusiástico, mas reconhece e enuncia várias formas de teatro pré-vicentino: pequenos mistérios da Natividade e Paixão, Sermões Burlescos, parecendo muito mais céptico relativamente aos momos e arremedilhos. A única coisa que se pode afirmar legitimamente é que são escassos os vestígios de um teatro pré-vicentino. Não quer isso dizer que eles não existam e que muitos não tenham sido avaliados indevidamente. António José Saraiva, Gil Vicente e o fim do Teatro Medieval

Para António José Saraiva, o teatro, tal como, por exemplo, a arquitectura ou a escultura religiosa, tem de ser entendido numa escala europeia, e nunca numa escala nacional. Esta posição irá ser desenvolvida por José Augusto Cardoso Bernardes, como veremos. Quem quer que queira demonstrar a inexistência ente nós de um teatro medieval tem que provar que, contra o que seria normal, e previsível, se dá o caso muito excepcional de realmente existirem fortes razões para pensar que fomos entre os países de cultura europeia na Idade Média o único que não teve o seu teatro religioso, coisa tanto mais extraordinária, quanto é certo que, a nosso lado, a Espanha, com quem o nosso intercâmbio cultural era tão íntimo, não escapou à regra geral. António José Saraiva, Gil Vicente e o fim do Teatro Medieval

Saraiva já reconhece as limitações teatrais de algum do chamado teatro primitivo: Certas apresentações encontramos, chamadas “momos” em Portugal, que são puramente plásticas, feitos só para olhos gulosos de cor, nas quais se despendem com magnificência cenários maravilhosamente coloridos, trajos sumptuosamente ricos castelos ameiados e brilhantes, palácios, planícies, mares com ondas azuis, desfiles de monstros, gigantes alimárias, algumas vezes baleias em cujo ventre cabiam quarenta homens vivos” António José Saraiva, Estética dos Autos de Devoção

Observamos facilmente que a maioria acredita na existência de um teatro primitivo em Portugal, anterior a Gil Vicente, e que essas representações medievais podem ter tido alguma influência no teatro do autor. Regressemos aos autores citados.

João Salgado, no seu livrinho Historia do Theatro em Portugal, refere aquilo a que chama “jogos scenicos”, excomungados pela igreja desde o século V, o que evidenciaria a sua existência. E apresenta ainda como argumento a existência de arremedilhos e de outras práticas documentadas, que designariam de facto representações teatrais. Teophilo Braga na Historia do Theatro Portuguez começa por referir o Concílio de Arles, de 452, que excomungava aqueles que se entregassem a jogos cénicos, para provar que nunca na Europa desapareceram as representações dramáticas. Depois percorre a nossa história, passando pelos arremedilhos21, pelos jograis e pelos menestréis, pelos cantares medievais com

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O documento escrito mais antigo que se conhece, que comprova representações pré-teatrais, data de 1193, e é relativo a uma doação de terras de D. Sancho I a um jogral e a seu irmão, em paga por um arremedilho, que eles teriam de representar na corte real. E como quitação, como nos informa Duarte Ivo Cruz, escreveram os dois jograis: Nós mimos acima referidos, /devemos ao Senhor nosso Rei um /arremedilho para efeito de compensação. 13

influência provençal, pelo teatro no paço, pelos diversos entremeses/momos na corte de D. João II22, pelo Cancioneiro Geral23 e o teatro castelhano de Juan de Encina. Luciana Pichio na sua História do Teatro Português parece reconhecer a existência de um teatro litúrgico, dos jograis, dos momos e apresenta alguns textos do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende como evidências desse teatro anterior. Mário Martins, em Representações Teatrais em Lisboa no ano de 1451, disseca o diário de Nicolau Falkenstein, como principal evidência de terem sido representadas pequenas peças nos festejos de 1451, e escreve que o facto de não existirem textos literários das representações “nada prova contra a sua existência”. Andrée Crabbé da Rocha defende em 1951, numa conferência intitulada Esboços Dramáticos no Cancioneiro Geral, que haveria no Cancioneiro vários textos, que seriam “autênticas farsas representáveis” e isso leva-a a deduzir que, antes de Gil Vicente, um outro autor, esquecido e ignorado, Anrique da Mota, escrevera textos dramáticos, precisamente do género farsa, que teriam certamente servido de inspiração ao grande dramaturgo. Alguns argumentos serão frágeis, outros até discutíveis, mas levam-na a concluir que “a grande montanha (Gil Vicente) não está sozinha na planície; existe pelo menos um outeiro (Anrique da Mota) ao seu lado”. E se leva mais longe, talvez demasiado longe a sua argumentação, ela não está só na defesa do papel de Anrique da Mota. Hoje, estudiosos como Rodrigues Lapa, Andrée Crabbé Rocha, António José Saraiva, são unânimes em reconhecer a natureza teatral da contribuição prestada por Henrique da Mota ao Cancioneiro Geral. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Luiz Francisco Rebello parece também reconhecer, a importância de Anrique da Mota, antecessor, também segundo ele, de Gil Vicente, ainda que, antes de Vicente, estivéssemos em regiões ainda fora da literatura dramática pura. Estamos, no entanto, ainda em regiões circum-vizinhas da literatura dramática propriamente dita. Nem D. Francisco de Portugal nem Pêro de Sousa Ribeiro, nem Fernão da Silveira nem o Rui de Sousa «fazedor de momos» lembrado por Álvaro Barreto, poderão ser considerados verdadeiros dramaturgos, ainda que hajam colaborado em manifestações artísticas cuja potencial teatralidade não se afigura susceptível de controvérsia. Nas páginas do Cancioneiro Geral surge-nos, porém, um autor para quem a poesia se estrutura dramaticamente, para quem o diálogo é o modo natural de expressão: queremos, já se deixa ver, aludir a Henrique da Mota. [...] Mota dá-nos a impressão – como justamente observa Andrée Crabée Rocha – de «uma criança que balbucia primeiro e depois articula». Na verdade, o teatro português, balbuciante desde o início da

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O Entremez do Anjo que teria sido representado em 1471, é apresentado por Teophilo Braga como um exemplo de representações na corte de D. João II. Seria da autoria do Conde Vimioso e teria quatro personagens; a alma, o diabo, o anjo e a dama, e o autor apresenta textos (lidos?) pelo anjo e pela alma. 23 É muito curioso um pequeno poema de Duarte de Brito, do Cancioneiro Geral, e que é apresentado por Teophilo Braga na sua publicação, e que nos fala de Autos, que teriam acontecido em 1451 nas festas nupciais de D. Leonor, a Imperatriz, irmã do rei D. Afonso V, e que, curiosamente, são o tema do diário que traduzimos, como referimos, e que nos guiou nesta aventura: “Eram vossos tempos Autos, / nas festas da Imperatriz, /Mas agora calar chys, /Nem é tempo de crisautos”. 14

nacionalidade até aos fins do século XV, começa a articular com Henrique da Mota e só adquire com Gil Vicente o pleno uso da fala. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Nas palavras do historiador o «processo de Vasco Abul», teria sido mesmo representado em Almada ante a Rainha D. Leonor em 1510. É certo que é uma data posterior a 1502, mas Luiz Francisco Rebello atreve-se a afirmar, tal como Andrée Crabbé Rocha afirmara, que Anrique da Mota foi anterior a Gil Vicente na fundação de um teatro português literário. Antecipando-se a Gil Vicente – que imediatamente anuncia -, é com ele [Anrique da Mota] que o teatro português começa verdadeiramente a ter existência literária. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

José Augusto Cardoso Bernardes, pelo contrário, aponta as limitações dos textos de Anrique da Mota no Cancioneiro Geral. Pouco tem a ver com a intriga multivocal que sustenta as referidas farsas [...] Não podemos deixar de ter em conta a ausência de acção, atributo essencial da farsa. José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

Luiz Francisco Rebello, no seu belo livrinho O primitivo teatro português apresenta mesmo alguns exemplos de cantigas de amigo com “estrutura lírico-dramática”: de Bernardo de Bonaval, de Pero Meogo e de D. Dinis. Depois disseca um conjunto de situações que, segundo ele, corresponderiam a formas dramáticas primitivas: os arremedilhos, as representações litúrgicas e um teatro áulico ou aristocrático, consubstanciado em entremeses e momos. Desenvolve ainda outras linhas de investigação sobre textos dramáticos primitivos, como sejam as laudes de André Dias, que considera terem influenciado peças religiosas de autores dramáticos de Quinhentos24, os textos dramáticos no Cancioneiro Geral e os “entremeses” de Anrique da Mota. Em todas essas formas de representações dramáticas, ele coloca à frente dos olhos do leitor um conjunto de documentos, um manancial de informações que, ainda que nalguns casos escassas e de interpretação subjectiva, parecem confirmar a sua linha de pensamento. Afirma Luís Francisco Rebelo que “Gil Vicente não é um fenómeno isolado e nem sequer improvisado; a sua cultura é fruto de uma longa maturação… Mas só com Gil Vicente o teatro português adquire o pleno uso da fala... Ele é ao mesmo tempo o derradeiro dramaturgo medieval e o primeiro dramaturgo moderno… Gil Vicente fez com que o teatro português passasse directamente da infância à maioridade”. Perante o conjunto de argumentos que suportam em tantos autores a existência de um teatro primitivo em Portugal, podemos começar por estranhar a pouca importância que a referência ao teatro Ibérico, nomeadamente castelhano, parece ter para a maioria deles, quando se sabe que havia teatro na Península Ibérica, anterior a Gil Vicente, e que o dramaturgo deveria conhecer. É o caso de Juan del Encina25 e de Lucas Fernández. É de notar que Gil Vicente dominava o castelhano, língua de prestígio na corte portuguesa; todas as rainhas casadas com D. Manuel I eram castelhanas, e que Gil Vicente inclusive escreveu muitas das suas peças nessa 24

Luiz Francisco Rebello afirma não ser certo que Gil Vicente conhecesse as laudes de André Dias, mas que elas certamente influenciaram autores posteriores. 25 A primeira peça de Juan del Encina terá sido representada na noite de Natal de 1492, no palácio do Duque de Alba em Salamanca. 15

língua. Sabemos também que Gil Vicente conheceu e até colaborou com Juan de Encina, pois os dois autores terão escrito um tema musical em conjunto26. Poderemos estar neste “esquecimento” em presença ainda de reminiscências do que poderíamos chamar um nacionalismo serôdio, que nos levou tantas vezes a entender a nossa história em oposição às histórias de outros povos ibéricos, em particular de Castela? De facto, só encontramos um estudo aprofundado das influências do teatro castelhano em Gil Vicente em José Augusto Cardoso Bernardes, como veremos. Luiz Francisco Rebello, apesar de referir essa ligação, não a desenvolve. Como aceitar, por exemplo, que, não obstante a interdependência das literaturas lusitana e espanhola (de que é expressivo testemunho o lirismo galaico-português dos nossos primeiros Cancioneiros), os ecos do teatro medieval castelhano não tivessem repercutido em Portugal? Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Perante a maior de todas as fragilidades, o facto de não serem conhecidos textos de representações teatrais anteriores a 1502, a menos de curtos extractos, os historiadores que defendem a existência de teatro primitivo em Portugal sustentam a tese de que os textos primitivos ou não existiam, por serem as representações de tradição oral, muitas vezes com textos curtos, ou então que os textos se extraviaram. Não menos falacioso é o argumento que se funda na ausência (meramente relativa aliás) de textos anteriores aos primeiros autos vicentinos. Gaston Baty e René Chavance, na sua Vida da Arte Teatral, das Origens aos Nossos Dias (Paris, 1932), lembram muito judiciosamente que o facto de ter perdido a maior parte dos monumentos da literatura dramática francesa anterior ao século XV não significa que ela inexistisse, assim como ao longo hiato que se verifica no teatro espanhol entre o Auto dos Reis Magos (datado da segunda metade do século XII) e os esboços dramáticos de Gomez Manrique (século XV) também não pode atribuir-se igual significado. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

E contra-argumentam que existem várias outras evidências, de diversos tipos de representações teatrais, muitas elas indirectas, como é o caso do diário por nós traduzido e de outras que mencionámos atrás. A ideia de que existe um teatro medieval anterior a Gil Vicente parece então dominante, desde o século XIX até aos tempos de hoje. Todos os autores que citámos a sustentam, com mais ou menos convicção, é certo. José Augusto Cardos Bernardes, que como veremos se distancia deste unanimismo, confirma-nos que assim acontece. A ideia de que o teatro de Gil Vicente tem antecedentes remotos na tradição portuguesa vem prevalecendo junto da maioria dos estudiosos [...] Por isso nenhuma das histórias do Teatro Português (de Teófilo Braga a José Barata) começa com Gil Vicente. José Augusto Cardos Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

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A maioria das peças de Gil Vicente teriam temas musicais, grande parte deles cantados. AS didascálias na Copilaçom referem-no, mas quase sempre de uma forma vaga, o que poderá dever-se a assumir-se que os temas tocados ou cantados eram conhecidos. É o caso do tema Pardeos bem andou Castella (vilancete) gravado pelos Segréis de Lisboa (direcção de Manuel Morais), que seria da autoria de Gil Vicente e de Juan del Encina e que seria cantado na peça Templo de Apolo de 1526. 16

José Augusto Cardoso Bernardes parece de facto, de todos os autores que mencionámos, aquele que questiona de uma forma mais frontal essa onda positiva. Afirma, logo ao abrir a sua tese de doutoramento, Sátira e Lirismo, referindo-se às supostas representações teatrais medievais, “Os indícios existentes não são suficientes para configurarem uma verdadeira tradição”. Reconhecendo a existência “manifestações de espectacularidade e histrionismo” e que algumas formas de teatro europeu eram conhecidas em Portugal em certos meios, o autor parece contestar a ideia de uma tradição que mereça o nome de teatral, não só em Portugal, mas na Península. O autor encontra, em vez disso, explicações sociais, económicas e políticas, para o teatro aparentemente só ter aparecido em Espanha no fim do século XV, com Juan del Encina e Lucas Fernández, e em Portugal um pouco mais tarde na corte de Manuel I, com Gil Vicente, ao contrário do que acontecera, por exemplo, em França ou na Itália. Desta forma, segundo José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente só poderá ser verdadeiramente entendido se o observarmos à escala das transformações europeias. Tal como a ficção medieval dos séculos XIII e XIV nos obriga a olhar para o contexto europeu, sob pena de perdermos a ideia de ciclo e de não compreendermos a forma como romances constituintes desse ciclo chegaram a Portugal27, algo de semelhante poderia acontecer com o teatro. Esta perspectiva parece poder ser nova e quiçá revolucionária, pois o foco deixaria de estar no chamado teatro primitivo, para se recentrar em movimentos teatrais a percorrer a Europa ocidental. José Augusto Cardoso Bernardes alerta-nos que talvez valha apena alargar o nosso olhar na Europa. É do teatro medieval francês que Gil Vicente extrai nomeadamente o conceito e o esquema formal da farsa e da moralidade [...] A mestria que revelou neste domínio justificaria inclusivamente que o dramaturgo português ocupasse lugar marcante em qualquer história do teatro europeu. José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente

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Ver diagrama seguinte, onde se pode observar que o ciclo romanesco em prosa, chamado ciclo PseudoBoron, que chegou a Portugal no início século XIV, nos obriga, para o estudarmos completo, a juntar romances com versões portuguesas e castelhanas. E a compreensão da sua história força-nos a percorrer a Europa Ocidental, pelo menos, Inglaterra, França, Espanha e Portugal. 17

Figura 1 - Diagrama de evolução do romance arturiano © Renato Roque

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A perspectiva de José Augusto Cardoso Bernardes pode implicar diminuir o peso da tradição nacional, mas ao mesmo tempo aumentar a importância de um movimento global e como tal diminuir também a ideia de um teatro fundacional em Gil Vicente. Tentemos um mergulho rápido no volume Sátira e Lirismo. O autor apresenta com grande detalhe o panorama das chamadas representações litúrgicas na Península, defendendo a inexistência de uma tradição em Portugal, contestando as provas “a contrario”, para concluir que o teatro de Gil Vicente parece estar muito mais marcado por intenções artísticas do que por intenções doutrinais puras. Prossegue o autor com o arremedilho, como possível tradição teatral profana, que também desvaloriza em absoluto como manifestação teatral, em face dos registos documentais conhecidos. José Augusto Cardoso Bernardes aborda por fim o caso dos momos e dos entremeses, designação que, como vimos por vezes se confunde28, e observa precisamente que “momo” é uma designação abrangente que pode designar espectáculos bastante diferentes, sendo por exemplo também usado muitas vezes em disposições sinodais, ainda que pareça ter sido associada a partir de determinada altura a um espectáculo histriónico aristocrático, “transformado em criação individual mais ou menos ajustada a determinadas circunstâncias... a corte quatrocentista transforma-se, de facto, num palco, onde têm lugar as mais diversas manifestações de teatralidade, numa prática de encenação permanente que abrange circunstâncias fixas, como o Natal, Carnaval ou Páscoa, comemorações de vitórias guerreiras, circunstâncias móveis, como casamentos, nascimentos, etc.”. Os momos teriam então um carácter essencialmente celebrativo, associados normalmente a outro tipo de festas/jogos, como desfiles, torneios, justas, como acontece nos momos descritos no diário por nós traduzido. Nestes momos participavam elementos da corte e até o próprio rei; associam jogos, música e bailados e muitas vezes parecem conter ligações óbvias a histórias de cavalaria, apesar de já não estarmos perante um contexto social cavalheiresco. José Augusto Cardoso Bernardes refere diversas fontes, que relatam diversos momos, e dá destaque aos momos da noite de Natal de 1500, descritos pela carte de Ochoa de Ysásaga, onde alguns dos textos recitados (lidos?/ entregues?) parecem revelar “um certo sentido de estruturação retórica”. Os momos permitem reforçar a relação convivial hierarquizada no seio da corte e, no caso de serem públicos, pressupõem a participação massiva do povo, com manifestações de júbilo perante os monarcas, reforçando os laços e a identidade nacionais. Correspondendo a uma moda europeia, parece fazer sentido, na opinião do autor, interpretar também os momos no quadro europeu. Gil Vicente incorpora a estética dos momos nalgumas das suas peças: Cortes de Júpiter, Nau de Amores, Templo de Apolo e Frágua d’ Amor, confirmando a interpenetração de géneros e muito provavelmente a vontade de Gil Vicente de corresponder ao gosto cortesão, conseguindo combinar assim a espectacularidade dos momos com a riqueza e a literalidade textual.

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José Augusto Cardoso Bernardes distingue no seu trabalho, que temos referido, momos e entremeses e percorre os principais documentos conhecidos que registam uns e outros, verificando-se que também nessas fontes as duas designações nem sempre aparecem como claramente distintas. 19

A obra de Gil Vicente, e aquilo que dela sabemos em termos de contexto de produção e de apresentação, realiza pela primeira vez em Portugal (e também na Península Ibérica) a síntese operativa entre um conjunto diversificado de planos da comunicação como a literatura, o teatro, a prática doutrinal e devocional, a festa celebrativa e o jogo. José Augusto Cardos Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

José Augusto Cardoso Bernardes reconhece ainda vestígios do momo nas obras: Lusitânia, Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra e o Auto de Fadas. Mas aponta uma diminuição progressiva da sua influência, face ao que chama “a comédia”, distinguindo em Gil Vicente entre “comédia de fantasia” e “comédia romanesca”. A influência da comédia revela uma clara intenção de Gil Vicente de conseguir “um estilo mais elevado que se adeque melhor ao gosto renovado do público áulico [...] em momento nenhum conseguimos abstrair da centralidade que neles ocupa a palavra, ao serviço da sátira e do lirismo”. O aparato e a alegoria próprios dos momos são praticamente subsumidos numa tessitura retoricamente estruturada, que, ao mesmo tempo que lhes subtrai potencialidades teatrais, lhes confere possibilidades literárias. ... Dizer que Gil Vicente aproveitou a tradição ritualizada para a transformar em criação dramática, significa reconhecer, não uma solução de continuidade, mas um desígnio recreativo e inovador. José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

Gil Vicente promove a palavra “de elemento ancilar a vector subordinante de toda a representação.”, transformando um teatro primitivo da imagem num teatro do discurso, através de um processo de absorção retórica e literária, que pode ser observado num período tardomedieval em toda a Europa. Mas mesmo José Augusto Cardoso Bernardes parece acabar por reconhecer a teatralidade dos momos. O diálogo não constitui, por si só, critério seguro de teatralidade. O teatro resulta da conjugação de uma série de factores que pode inclusivamente, como no caso dos momos, chegar a dispensar a existência de textos, dialogados ou não. José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

Quanto à influência do entremês em Gil Vicente, há alguns autores que afirmam encontrar entremeses em várias obras do dramaturgo, correspondendo a episódios com uma relativa autonomia, grande autonomia ou até completamente independentes, relativamente à acção principal. É possível descobrir esses episódios em várias peças. O entremês seria, como refere José Augusto Cardoso Bernardes, “um recurso técnico-compositivo, a combinar com muitos outros”, que Gil Vicente usava. É no entanto difícil concluir, de acordo com o autor, que esses episódios com autonomia resultam da influência do entremês e não de soluções técnicodramáticas, que Gil Vicente utilizaria para conseguir impacto garantido, através de contrastes introduzidos ao longo da acção. A avaliação do significado dos entremeses poderá ser importante, sobretudo naquilo que José Augusto Cardos Bernardes chama “autos compósitos”, criticando a obsessão dos exegetas vicentinos de descobrir sempre “uma unidade oculta” em todos os autos, que se caracterizam muitas vezes por um princípio de sobreposição, numa “arte da alternância”, num “polifonismo dramático”, num cenário de multiplicidade discordante”, não

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obedecendo ao principio da unidade da acção aristotélico e podendo deixar confusos muitos leitores nossos contemporâneos. Mas José Augusto Cardoso Bernardes acaba por concluir: Mais do que um cultor de entremeses, pode dizer-se que Gil Vicente aproveitou essencialmente do género as suas virtualidades combinatórias e integrativas. À partida parece pouco provável que esse aproveitamento tenha sido inspirado no contacto directo com princípios explícitos de doutrinas estéticas. Nesse caso, como noutros, a explicação que mais parece colher relaciona-se com a extraordinária diversidade do teatro vicentino em termos de linhas de ascendência, em termos de 29 públicos potenciais e mesmo em teremos de intencionalidade artística e ideológica. José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

Os momos parecem desaparecer no reinado de D. João III e por isso Sá de Miranda os evoca com nostalgia numa carta a D. Fernando de Meneses. Ao estudar as influências em Gil Vicente, José Augusto Cardoso Bernardes é o único dos investigadores que lemos que valoriza o teatro castelhano, francês e catalão, permitindo assim, parece-nos que pela primeira vez, vislumbrar uma perspectiva europeia no estudo da obra. A ligação de Gil Vicente com Juan del Encina e Lucas Fernández, que pertenciam a um movimento dramático homogéneo em Castela-Leão, que se desenvolveu, “por circunstâncias sociológicas muito particulares”, no final do século XV, foi sempre reconhecida, pois é impossível ignorar as palavras, já por nós evocadas, de Garcia de Resende na célebre trova 186, onde Encina aparece como inventor do auto pastoril30. Será também possível reconhecer muitas similitudes em aspectos composicionais, nas personagens e no desenvolvimento da acção. Mas, como afirma José Augusto Cardoso Bernardes, “a proximidade entre Gil Vicente e os dois autores castelhanos tem sido quase sempre examinada de forma pontual”, e repetindo comparações entre os

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Este comentário parece também contrariar a ideia de as obras de Gil Vicente serem destinadas exclusivamente à corte, ideia repetida à frente. 30

Segundo José Augusto Cardoso Bernardes, em Juan del Encina e depois em Lucas Fernández, o pastor, figura de longa tradição na Península, deixa de ser uma personagem lírica e passa a ser dramática. Gil Vicente herda-a mas vai “expandir consideravelmente” o âmbito da personagem, com” todas as virtualidades de uma personagem aberta”, afastando a personagem dos estereótipos líricos e introduzindo, na opinião do investigador, a componente satírica. É curiosa a forma como José Augusto Cardoso Bernardes liga as transformações vicentinas às diferenças sociológicas entre as duas cortes, onde a portuguesa primaria por uma considerável heterogeneidade, “e é por isso que, apesar de tudo, se afigura redutor aplicar ao caso do dramaturgo português a designação genérica de «poeta de corte». Andrés José Pociña López parece fazer uma chamada de atenção semelhante no seu interessante artigo Gil Vicente y la Literatura Popular, alertando quanto à tentação de alguns de classificar a poética de Gil Vicente como popular. O autor estremenho defende que o carácter popular de alguma da sua escrita se deve à sua pretensão de satisfazer o gosto da corte, “Es lo que se conoce como el proceso de dignificación renacentista de la lírica popular.” E por isso “Gil Vicente sería el más importante representante (o, por lo menos, el iniciador) de la dignificación de la poesía tradicional en Portugal”. La gran reflexión de base es la siguiente: antes de cualquier otra cosa, Gil Vicente es, y debe ser considerado como, un Poeta de Corte. Esta constatación, sin duda, nos induce a tomar las debidas precauciones en relación a la posible influencia, en nues-tro autor, de la cultura popular, o, por lo menos, a la autenticidad de los elementos populares empleados reiteradamente en su obra[...] ressalta el carácter «culto» de la lírica vicentina, lírica «de autor» que aprovecha los recursos propios de la poesía popular para recrear un ambiente, pero undamentando un discurso poético propio, donde los elementos extraídos directamente de la lírica popular se mezclan con otros, pro-cedentes de la poesía cortés trovadoresca, de origen áulico. Andrés José Pociña López, Gil Vicente y la Literatura Popular

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mesmos passos das obras, e, portanto, se todos reconhecem a influência, não se sabe exatamente que dimensão ela teve. Depois de evocar os dois autores salmantinos, José Augusto Cardoso Bernardes evoca também Torres Naharro, poeta e dramaturgo estremenho, que teria vivido algum tempo em Itália, onde teria contactado com o teatro de Ariosto ou Bernardo de Bibiena e até com o teatro de Plauto. O pastorilismo de Gil Vicente denuncia parte importante das suas matrizes diretas. Refiro-me sobretudo a Juan del Encina e Luca Fernández...Num momento posterior , Vicente haveria ainda de acolher o magistério de um outro dramaturgo espanhol, o estremenho Torres Navarro, bom conhecedor dos meios artísticos italianos e autor de comédias celebrativas e fantasiosas. José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente

Este autor marcará a possibilidade concreta de contacto do teatro castelhano, e consequentemente do português, com o teatro em Itália no início do século XVI, contribuindo para a definição de um novo género na Península, a comédia. A recepção por parte de Gil Vicente desta teoria da comédia tem sido desenvolvidamente referida por todos os estudiosos que se têm ocupado do assunto. José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

Mas José Augusto Cardoso Bernardes mostra ser necessário ir mais longe nesta viagem à volta do teatro vicentino, ao encontro do teatro catalão e francês31, para além dos Pirenéus, para eventualmente se compreender a grande evolução do teatro em termos europeus nos séculos XV e XVI, muito provavelmente, aqui sim, a partir de um teatro litúrgico. Foi no Norte de França que a chamada “sottie” adquiriu papel de relevo. Em paralelo desenvolve-se a farsa. A primeira farsa de que há registo é Le Garçon et l'Aveugle do século XIII. Estes géneros, que nascem no norte de França, vão espalhar-se rapidamente pelo sul. Segundo José Augusto Cardoso Bernardes, também a “moralidade”, tão importante em Gil Vicente, teria vindo dos lados de França. José Augusto Cardoso Bernardes justifica este fechar de olhos a França por uma preocupação nacionalista de garantir a originalidade Peninsular. Nós poderíamos acrescentar que, no caso português, valorizar a influência castelhana também não parece ser de bom tom. De Castela, nem bom vento nem bom casamento. E o preconceito nacionalista justificaria uma obsessão no enquadramento de Gil Vicente numa pura tradição dramática nacional, embora a ligação a França, como o autor reconhece, seja difícil de provar. É muito difícil encontrar elementos que comprovem de forma factual uma vinculação da arte vicentina ao teatro francês. José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

A dificuldade reconhecida na obtenção de provas factuais de contacto entre os dois teatros obrigará a um trabalho difícil, minucioso, de descoberta de provas de afinidades, que substituam as provas de contacto, difíceis ou até impossíveis de encontrar. Tanto quanto possível impõe-se proceder a um estudo comparativo entre o teatro vicentino e as formas do teatro europeu que lhe estão cronologicamente próximas. Esse estudo situa-se

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Como refere José Augusto Cardoso Bernardes, a ligação ao teatro salmantino apenas chega para encontrar raízes para as églogas e conclui: “não parece arriscado supor que a farsa de ascendência francesa, estrutural e tematicamente delimitada, surja na Península com Gil Vicente. Como aliás, sucederá com a sottie e a moralidade”. 22

essencialmente no domínio virtual da gramatica das formas e dos temas e, por conseguinte, não visa provar, de forma inquestionavelmente factual, o contacto de Gil Vicente com a cena e os textos do teatro da Europa medieval. José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo, modelos de Síntese no Teatro de Gil Vicente

Concluindo: há, portanto, autores/investigadores que valorizam o carácter genuinamente teatral das representações/jogos pré-vicentinos em Portugal e outros que os negam ou desvalorizam por motivos vários: • • •

Por falta de texto Por falta de acção teatral Por falta de conflitos dramáticos

A posição de recusa parece poder alicerçar-se fortemente numa tradição ocidental aristotélica do conceito de teatro que sobrevaloriza o texto literário. Todas as tragédias têm igualmente espectáculo, caracteres, enredo, elocução, canto e pensamento. O mais importante entre essas partes é o arranjo das acções, pois a tragédia é mimese não de homens, mas de uma acção e da vida. Aristóteles, Poética

O mais importante seria então o arranjo das acções, ou seja, o texto; o espectáculo, a elocução, o canto podem nem sequer existir. Luiz Francisco Rebello baseia-se neste argumento para rebater os descrentes do teatro primitivo. É um erro, em que muitos incorrem ainda com frequência, conceber a história do teatro como um simples capítulo da história da literatura. As raízes desse erro remontam à antiguidade clássica, quando Aristóteles na sua Poética considerou o espectáculo a parte menos importante do teatro, «pois a tragédia subsiste inteiramente sem a representação e sem o jogo dos actores», concepção esta que os teorizadores da Renascença entronizaram em dogma absoluto. ... Qualquer estudo, pois, que se pretende empreender de uma dada época da história do teatro, terá de atender a estas duas coordenadas: terá de considerar o teatro dessa época como um fenómeno sócio-cultural, isto é, não como um facto puramente literário, nem desligado das circunstâncias materiais de produção que caracterizam o período estudado. Luiz Francisco Rebello, O primitivo teatro português

Vimos, no entanto, que José Augusto Cardoso Bernardes, em vez de se ficar na polémica estreita de discutir o teatro ou o não-teatro nas representações portuguesas pré-vicentinas, alarga os horizontes da polémica sobre as origens e as fundações do teatro em Portugal para a Europa. Ao alargarmos a visão da investigação, poderemos resolver talvez a questão da “creatio ex nihilo”, sem ter de forçar a teatralidade em manifestações anteriores a Gil Vicente.

4.

O diário de Nicolau Falkenstein

O ponto de partida para este nosso pequeno e humilde ensaio foi um diário escrito em latim por um clérigo alemão chamado Nicolau Langmann de Falkenstein, que viajara até Lisboa como Embaixador do imperador Frederico III, para o representar nos festejos nupciais do matrimónio entre D. Leonor, filha de D. Duarte e irmã do rei de Portugal, e o imperador germânico, no ano de 1451. Soubemos da existência desse diário num texto de Mário Martins, Representações Teatrais em Lisboa no ano de 23

1451, que referimos anteriormente, onde o autor descreve os entremeses realizados nessas grandiosas festas32. Mário Martins utiliza como fonte esse diário de Nicolau Falkenstein. E é particularmente incisivo ao concluir, a partir do que está escrito nesse texto, que as representações feitas em Lisboa, cerca de cinquenta anos antes da apresentação do Auto da Visitação, constituíam teatro, e que, portanto, seria um erro considerar Gil Vicente como o fundador do teatro em Portugal. O artigo de Mário Martins é afinal mais um contributo a favor daqueles que defendem a tese de que havia um teatro com significado em Portugal, anterior a Gil Vicente, um contributo neste caso alicerçado na natureza dos entremeses/momos33 realizados na corte dos reis de Portugal, mesmo antes de Gil Vicente ter nascido. Inscreve-se na grande onda de opiniões de quem procura as raízes do teatro vicentino em representações medievais em território português. O texto original do diário, em latim, fora publicado por António Caetano de Sousa, como uma das provas que sustentavam a sua Historia Genealógica da Casa Real Portuguesa. Nesse diário, o emissário de Frederico III descreve a sua viagem, que inclui um relato, dia a dia, com algum pormenor, das festividades comemorativas do casamento da casa real. O texto é endereçado ao próprio imperador e pressupõe-se que se destinaria a servir de informe minucioso da viagem, e em particular da estadia do embaixador na corte portuguesa e das cerimónias organizadas para festejar o matrimónio régio. No seu artigo, depois de descrever com algum pormenor as várias cenas34, em que realça o seu carácter de representação teatral - a acção decorre “com discursos e cartas” - Mário Martins termina esse seu pequeno texto, “atrevendo-se” a escrever: Agora o leitor pegue nas obras de Gil Vicente e leia o Auto Pastoril Castelhano. Verá que este monólogo, considerado ainda por alguns como o começo do nosso teatro, é uma representação dramática bem mais pobre do que os entremeses descritos por Langmann e citados por Rui Pina. E foi isto e 1451, quer dizer, mais de 50 anos antes do monólogo do vaqueiro.

Para além das 7 cenas, que são “representadas” no dia 14 de Outubro de 1451, em vários locais de Lisboa, a determinada altura, Mário Martins refere uma outra cena das festividades nupciais, que teria acontecido, uma semana mais tarde, no dia 21 de Outubro, onde participam o rei de Tróia e os seus três filhos, Heitor, Priamo e Ajax35, que pareceria poder constituir um dos mais fortes argumentos da existência de uma representação, pois nas sete cenas descritas pelo autor pontificam

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Também Luiz Francisco Rebello dá destaque aos momos de 1451 e à descrição feita no diário de Nicolau Falkenstein, que, aliás, aparecem referidos noutros documentos, por exemplo, na Crónica de D. Afonso V de Rui de Pina. Rui de Pina, na realidade, descreve também na sua Crónica de D. João II outros momos esplendorosos no reinado deste rei. Um elemento que poderá reforçar a opinião de Mário Martins é o facto de também um dos poetas do Cancioneiro Geral, Duarte de Brito, evocar os «autos» apresentados «nas festas da Imperatriz». 33 Existem outros documentos que fazem descrições pormenorizadas de momos como, por exemplo, a carta do embaixador dos Reis Católicos em Lisboa, Ochoa Ysásaga, onde ele descreveu com algum detalhe cada um dos momos realizados nas festividades do Natal de 1500, em que cada fidalgo e o próprio rei se disfarçaram. 34 São sete os quadros descritos no diário e referidos por Mário Martins: 1) a eleição de Frederico como imperador; 2) a sua nomeação pelo Bispo de Colónia e pelos eleitores alemães; 3) a coroação do Imperador e da Imperatriz pelo Papa e pelos cardeais; 4) a benção do bispo, com um anjinho que entrega a coroa, a cantar; 5) a cena dos antigos reis de Portugal; 6) os três anjos que exortam D. Leonor às três virtudes teologais; 7) os treze profetas que auguram um destino feliz ao casamento (ver secção segunte). 35 Os nomes dos três filhos do rei de Troia parecem incongruentes. Heitor era filho de Príamo, rei de Tróia, e Ajax era um dos heróis gregos que participou na guerra contra a cidade. 24

personagens da vida real: o imperador, a princesa, bispos, o papa, etc. e portanto, em rigor, parecem ser, mais do que representações teatrais, uma simples reprodução mimética de rituais, para que possam ser testemunhados pela corte e pelo povo, como uma espécie de ratificação simbólica do casamento real. Mas, estranhamente, Mário Martins diz-nos que tal não é importante, “Pedimos ao leitor para não ligar importância de maior a esses heróis troianos”. Esta foi uma das razões por que a nossa curiosidade foi desperta e nos propusemos traduzir a parte do diário de Nicolau Falkenstein que se refere aos dias de festividades matrimoniais, do dia 13 ao dia 25 de Outubro de 1451. Apresentamos o resultado desse trabalho em anexo. 4.1 Análise do texto de Nicolau Falkenstein que traduzimos A tradução, da parte do diário de Nicolau Falkenstein que fizemos, contempla um período de13 dias, entre o dia 13 de outubro, uma segunda-feira, e o dia 25 de Outubro, sábado da semana seguinte, no ano de 1451. Durante estas quase duas semanas decorrem as celebrações em Lisboa das núpcias entre Frederico III e D. Leonor. São ao mesmo tempo os festejos de despedida da princesa, que era irmã do rei e, de acordo com Nicolau Falkenstein, muito querida pelo seu povo. De facto, no último dia das festas, dia 25 de Outubro, a recém-imperatriz embarca e zarpa para ir ao encontro do seu esposo, abandonando a corte portuguesa. Olhemos com alguma atenção para o conteúdo do diário, depois de o termos traduzido, e ao mesmo tempo não percamos de vista o texto referido de Mário Martins. Nicolau Falkenstein era um representante do Imperador Frederico III e era com certeza uma pessoa letrada e culta, pois escreve o seu diário em latim. O latim é correcto, mas o clérigo aparenta estar longe de ser um notável escritor. A sua escrita parece-nos ser um pouco arrastada e repetitiva. Roubando uma expressão a Carolina Michaelis, que curiosamente ela usa acerca da qualidade do latim de Gil Vicente – o que a leva a concluir que Gil Vicente não teve formação universitária mas teria frequentado alguma escola conventual36 - poderíamos dizer que o latim do clérigo alemão seria “latim da Igreja e não latim de humanista”37. Na tradução que fizemos, procurámos ser, tanto quanto possível, fiéis ao texto original, tal como ele foi publicado por António Caetano Sousa, evitando alterações por razões de gosto, mesmo se tal opção resulte num texto que pareça ser menos elegante. Por outro lado, algumas vezes, o texto do diário não nos pareceu muito claro; o leitor ficará sem perceber o que realmente aconteceu e porque aconteceu38. Por exemplo, nos tantos torneios de que fala, e que se prolongaram ao longo de vários dias de festejos, ficamos a conhecer os prémios, mas sem saber quem venceu. Nicolau Falkenstein organiza o seu texto como um diário e descreve as festividades nupciais dia a dia. Vejamos resumidamente o conteúdo das grandiosas festas durante esses 13 dias.

36

A educação universitária e os conhecmentos de latim de Gil Vicente são de facto mais um campo para polémicas entre os investigadores. 37 Não sabemos se a apreciação de Carolina Michaelis acerca do latim vicentino era justa. 38 A falta de clareza pode não se dever a menor qualidade do texto, mas ao facto de ele ter sido escrito para pessoas do século XV, que poderiam eventualmente conhecer muito bem alguns dos jogos descritos. 25





• • •

• • • •

• • • •

No dia 13 de Outubro há uma ceia, apresentações oficiais, desfiles e bailados. Não há portanto 39 representações, a que se possa atribuir o epíteto de teatrais, ainda que o autor fale de jogos (ludi ) diversos. O que mais se poderia aproximar de uma representação seria “algo construído para parecer um dragão”, que Etíopes e Mouros trouxeram à presença da Imperatriz. No dia 14 de Outubro concentram-se as sete cenas que são descritas com bastante exactidão por Mário Martins. De facto, são oito os quadros descritos no diário do prelado, no dia 14 de outubro: 1) a eleição de Frederico como imperador; 2) a sua nomeação pelo Bispo de Colónia e pelos eleitores alemães; 3) a coroação do imperador e da imperatriz pelo Papa e pelos cardeais; 4) a benção do bispo, com um anjinho que desce de uma alta torre por engenho humano e entrega, a cantar, a coroa à Imperatriz, e outro anjinho que “voa” pelo ar com um açafate dourado de rosas que lança sobre D. Leonor; 5) a cena do discurso em louvor dos Imperadores, com o desfile dos antigos reis de Portugal e o discurso em louvor dos seus feitos; 6) 40 os três anjos que exortam D. Leonor às três virtudes teologais; 7) a fonte que jorrava água rósea ; 8) os treze profetas que auguram um destino feliz ao casamento. No dia 15 do mês de Outubro há de novo bailados e há um espectáculo com touros. No dia 16 de Outubro, há desfiles com carros engalanados e com música; há anúncios de torneios. No dia 17 de Outubro há danças e cantares de Cristãos, Sarracenos e Selvagens. Há desfiles em que participa uma serpente artificial horrível de pescoço levantado. Há anúncios com arautos e com tocadores de trombeta e há torneios com a participação do rei D. Duarte e de D. Fernando. E participa na festa um grande elefante que lidera um desfile de vários cavalos mascarados de vários bichos. No dia 18 de Outubro há mais festejos e danças, tocadores de tuba e tocadores de trombeta, e um dragão transportado por 40 homens. Há torneios e prémios aos vencedores. No dia 19 de Outubro há mais torneios e mais bailados. No dia 20 de Outubro há danças diversas e demonstrações de caçadas, de lutas e de combates. No dia 21 de Outubro foram retomados os torneios. Nesses torneios participam nobres de vários países e personagens que se identificam como o Rei de Tróia e por três dos seus filhos. O primeiro filho chamava-se Heitor, o segundo Príamo e o terceiro Ajax, todos vestidos com fatos reais. O rei de Tróia anuncia-se com os seus arautos e justifica a sua viagem em louvor de tão ilustre rei e rainha. No dia 22 de Outubro, um cavaleiro atravessa a cidade com um grande livro e através do seu Arauto chama todos os reis e os príncipes para o lado da justiça e as demonstrações de combates continuam. No dia 23 de Outubro regressam as danças de vários grupos: cristãos, sarracenos, judeus e selvagens, e depois desfiles militares e novos combates. No dia 24 de Outubro há uma grande ceia animada por danças e cantares. No dia 25 de Outubro há cerimónias religiosas na Igreja de S. Vicente e depois a Imperatriz é conduzida em procissão ao porto de mar, onde embarca. A partida da esquadra ainda demorou alguns dias e no dia da partida o rei veio a bordo para dar ordens à tripulação e se despedir da sua irmã.

Verificamos facilmente que só no dia 14 e no dia 21 parece haver “jogos” que possam receber o epíteto de teatrais. Confirmamos a ideia de que esses entremeses de rua se inserem em festas muito mais amplas com carácter celebrativo. Nos restantes dias há celebrações diversas – danças, desfiles, lutas, combates, torneios – mas que não parecem, de forma nenhuma, corresponder a teatro. Apenas as sete cenas citadas por Mário Martins e a participação do rei de Tróia e dos seus filhos no torneio do dia 21 parecem ser relevantes para discutir o teatro nos festejos nupciais de 1451. Como interpretar então as palavras do autor: “Pedimos ao leitor para não ligar importância de maior a esses heróis troianos”. Compreende-se por um lado que Mário Martins desvalorize estas quatro personagens, porque elas se limitam, de acordo com o diário, a anunciar-se e a justificar a sua presença no torneio, mas, por outro lado, elas poderiam ser significativas, por constituírem personagens fantasiosas, enquanto quase todas as personagens do dia 14 parecem representar

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Esta palavra latina é usada indiscriminadamente para jogos diversos, desfiles, para danças ou para representações. 40 Mário Martins descarta a fonte no seu texto, por esta não ser manifestamente uma representação. 26

personalidades verdadeiras e contemporâneas41 – o papa, os cardeais, os bispos, os eleitores, o Imperador, a Imperatriz, etc. - parecendo por isso todas essas cenas constituir sobretudo uma representação simbólica de actos reais, validando perante o povo e a corte a entronização da Imperatriz e do Imperador.

5.

Conclusões

Tentaremos aqui retirar conclusões, por um lado da nossa tradução do diário de Nicolau Falkenstein, e por outro lado da polémica sobre o teatro pré-vicentino em Portugal, que procurámos espelhar neste nosso modesto ensaio. Verificamos que a tradução do texto do diário, tendo constituído uma experiência interessante, não trouxe nenhum elemento novo muito relevante, para além dos que são realçados no ensaio de Mário Martins. Era um risco que sabíamos ser provável de ocorrer. Há apenas sete cenas no dia 14 e a participação do rei de Troia no dia 21 que podem ser objeto de discussão sobre o seu carácter de representação teatral e a descrição de Mário Martins é fiel ao texto. Restará a dúvida sobre a cena do rei de Tróia. Na tradução que fizemos encontrámos sobretudo duas dificuldades: 1) o recurso pelo autor a léxico latino medieval, que não consta de dicionários de latim, e inclusive algum léxico que nos parece ser apenas usual no latim medieval germânico; 2) alguma falta de clareza em algumas passagens do texto original, que nos impede de compreender o que realmente aconteceu nalguns dos “jogos (ludi)” descritos. De qualquer forma, a nossa tradução aí está, talvez imperfeita, mas disponível para quem a quiser utilizar. No que diz respeito à polémica sobre a existência de teatro em Portugal, anterior a Gil Vicente, é manifesto que a polémica existe e se materializa na maior, menor ou nenhuma importância dada, por cada um dos autores, a manifestações de representação anteriores ao século XVI, em Portugal, e numa argumentação e contra-argumentação sobre se será lícito considerá-las como teatro. Todos os autores/investigadores abordam o problema e propõem uma visão pessoal. Como confirmámos, poucos acreditam na existência de um teatro adulto, um teatro na verdadeira acepção da palavra, e também poucos parecem defender a inexistência de qualquer tipo teatro antes de Gil Vicente; a grande maioria acredita na existência de um teatro medieval incipiente ou primitivo, que aconteceria no campo litúrgico, no espaço da corte, ou em ambientes populares, podendo cada um dar maior ou menor realce a cada uma destas variedades de espectáculo histriónico. No fim desta nossa viagem através de tantos autores diferentes, atrevemo-nos a afirmar que nos parece que a polémica poderia/ deveria ser duplamente recentrada, pois ela parece ser, tal como se define, uma polémica sem grande horizonte. Senão, vejamos: 1. Aqueles que defendem que Gil Vicente fundou realmente o teatro em Portugal e que antes do dramaturgo não havia teatro no nosso país, reconhecem, no entanto, que havia representações incipientes de vários tipos, e, pelo contrário, aqueles que valorizam essas 41

Poderíamos excluir talvez as personalidades da história de Portugal e os profetas. 27

representações como teatro, ainda que primitivo, reconhecem a ruptura que o teatro de Gil Vicente representou. Como afirma Luiz Francisco Rebello, com Gil Vicente, o teatro “sai da pré-história para entrar na sua história propriamente dita”. Assim, esta polémica parece ter como foco apenas determinar se é legítimo dar às representações primitivas - litúrgicas, arremedilhos, entremeses e momos - o epíteto de teatro. Mas tal determinação depende, como é óbvio, da definição de teatro, do conceito de espectáculo teatral que aceitarmos à partida. De facto, se há num ou noutro autor diferenças relevantes na importância atribuída a uma ou outra evidência de teatro medieval anterior a Gil Vicente, como é o caso de Andrée Rocha com Anrique da Mota ou de Mário Martins com os entremeses de 1451, não nos pareceu no âmbito global encontrar diferenças significativas, pois afinal todos concordam em que se tratava de representações muito incipientes, onde o texto era pouco relevante e onde a acção dramática era praticamente inexistente, ou muito limitada. Perante esta realidade, porque não centrar a polémica e a reflexão, em torno do chamado teatro primitivo nacional pré-vicentino, não sobre se era ou se não era teatro, mas sim sobre se as diferentes formas existiram, que importância assumiram, e se essas formas de representação tiveram alguma influência no teatro escrito por Gil Vicente; e, se tiver havido influência, qual foi, em que peças e de que forma. 2. Por outro lado, em vez de situar a polémica na teatralidade ou não-teatralidade das representações primitivas nacionais, parece fazer mais sentido discutir se o teatro de Gil Vicente é fundamentalmente o resultado de um processo literário português ou de um processo de transformação de dimensão europeia. O trabalho de José Augusto Cardoso Bernardes parece poder justificar a necessidade de fazer essa inflexão, abrindo a discussão a um espaço mais largo. A relação de Gil Vicente com o teatro em Castela e porventura com o teatro de outras europas parece-nos poder ser muito relevante e, quem sabe, poder explicar alguns mistérios insolúveis, para quem não alarga os horizontes geográficos. Talvez apenas um nacionalismo estreito, tão característico na interpretação da nossa história, nos tenha impedido de compreender até hoje a natureza ibérica e europeia do teatro vicentino, tal como durante tantos anos nos impediu de perceber a natureza ibérica e até europeia da poesia e ficção medievais corteses. Em virtude de preconceitos nacionalistas, envolvendo a Língua e a Cultura, nem sempre se tem sublinhado esta inclusão de Gil Vicente num espaço mais amplo. Como se a dimensão europeia puder fazer diminuir a vertente nacional que tanto nos habituámos a prezar José Augusto Cardoso Bernardes, Gil Vicente

Esta segunda perspectiva de investigação pode ser claramente complementar da que referimos em primeiro lugar, permitindo conjugar influências europeias e nacionais no teatro vicentino, sobre a duplicidade da história do teatro nacional/ europeu.

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Bibliografia

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