Se Schopenhauer tivesse lido Darwin - um contraste entre a filosofia moral de Schopenhauer e de Darwin

May 22, 2017 | Autor: L. Aguiar de Sousa | Categoria: Moral Philosophy, Arthur Schopenhauer, Darwin
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Se Schopenhauer tivesse lido Darwin – um contraste entre a filosofia moral de Schopenhauer e de Darwin

Schopenhauer morreu no ano 1860, um ano depois de ter sido editada a Origem das Espécies de Charles Darwin. Apesar de esta obra ter sido editada ainda durante o último ano de vida do filósofo, ele não a leu. Este facto seria muito pouco relevante, caso se tratasse de outro filósofo moderno. Tratando-se de Schopenhauer, não, pois para além de ter estudado ciências naturais na sua juventude, manteve, durante toda a sua vida um interesse por elas, em especial pela biologia. Este interesse de Schopenhauer pela biologia nunca foi mera curiosidade intelectual. De facto, os conhecimentos que possuía nessa área têm um lugar relevante no seu sistema filosófico, ao ponto de ter editado um livro, Sobre a Vontade na natureza, no qual procura extrair confirmações empíricas, a partir das ciências, para a sua metafísica. Schopenhauer pensava que a filosofia tinha um lugar mais elevado que as ciências no edifício do conhecimento humano, mas, apesar disso, não considerava a melhor ciência do seu tempo como dispensável na reflexão filosófica. Não só os problemas últimos, que a ciência deixava sem resposta, eram para ele a melhor formulação disponível do enigma filosófico como o próprio desenvolvimento da reflexão filosófica teria de bater à porta das ciências, caso aspirasse à completude da sua solução e, simultaneamente, para evitar tornar-se um mero artifício de abstracções sem fundamento. Schopenhauer chega mesmo a criticar Kant, provavelmente o filósofo que mais admirava, por a sua reflexão transcendental não ter sido complementada por aquilo que ele chamava o ponto de vista objectivo, que partia, já não da consciência transcendental, mas da própria interpretação que as ciências proporcionam do dado. Contudo, para além destas motivações de carácter mais formal, existe outro ponto de interesse sobre a possível reacção de Schopenhauer a Darwin. Trata-se do facto de Schopenhauer ter sido dos filósofos que mais tentou inscrever o homem na natureza, não o tratando como um ser à parte dos outros, mas numa relação de continuidade com os restantes, o que provoca um efeito de antecipação daquilo que viria a ser o darwinismo. Por tudo isto, julgamos que valeria a pena estudar as relação entre Darwin e o darwinismo e Schopenhauer, tal como já tem sido feito, de resto, com a relação entre Darwin e mais famoso discípulo de Schopenhauer, Nietzsche. Contudo, dado o âmbito

extremamente vasto de uma investigação desse género, focaremos aqui apenas um domínio particular dessa relação, a moral. Iniciaremos o nosso percurso por uma resenha das principais teses de Schopenhauer a respeito da moral. Para tal efeito, tomaremos como base o texto, publicado pela primeira vez em 1840, Sobre a fundamentação da moral.

Schopenhauer distingue entre o fundamento da moral e o princípio da moral. A este último corresponde a proposição que exprime a regra da conduta dita moral. Em contrapartida, a investigação acerca do fundamento da moralidade é a procura de um facto, que pode ser tanto interior como exterior, isto é, presente na percepção interna ou na externa, que, é a origem desse tipo de acções. Esta concepção de fundamentação da moral resulta da ideia de que qualquer acção tem uma razão suficiente, em particular, um motivo. Por outras palavras, fundamentar a moralidade significa para Schopenhauer descobrir um motivo em virtude do qual se segue que os homens possam agir moralmente. Em conformidade com esta concepção, Schopenhauer inicia a sua reflexão no texto com uma crítica arrasadora da fundamentação kantiana da moral, nomeadamente da ideia segundo a qual a moral tem essencialmente uma forma imperativa, a forma de uma lei e de que o seu fundamento não é baseado em nenhum dado empírico, nem num facto de consciência nem em nenhum tipo de observação das acções dos homens e da sua natureza, tal como ela é dada na experiência, mas numa proposição a priori. A própria ideia de dever ou obrigação só tem sentido, segundo esta crítica, por referência a um castigo ou uma recompensa, ainda que implícitos. As concepções kantianas de obrigação e dever pressupõem implicitamente os próprios postulados da razão prática, nomeadamente o de uma vontade divina que, ao mesmo temo, distribui a recompensa conforme o mérito de cada um e castiga a desobediência. Para além de o princípio estabelecido por Kant não ter nenhuma base real, verificável na experiência, Schopenhauer revela a sua origem como sendo o egoísmo. O agente, que procura uma máxima para conduzir a sua acção, relativamente à qual possa querer que ao mesmo tempo que esta valha como lei universal para todos os seres racionais, pensa-se ao mesmo tempo como elemento passivo; as acções justas e filantrópicas não são praticadas por si mesmas, mas tendo em vista a possibilidade de este mesmo agente poder vir a ser objecto delas. É este raciocínio implícito que constitui a motivação última do princípio da moralidade estabelecido por Kant. O

imperativo não é categórico, mas sim hipotético. Pelo contrário, o princípio da moral, a proposição que a moral, enquanto disciplina filosófica, tem de procurar explicar, o dado moral por excelência, é segundo Schopenhauer: “Não leses ninguém, pelo contrário procura ajudar toda a gente tanto quanto puderes”. Refira-se, desde já, que, apesar de a formulação assumir uma forma imperativa, o princípio da moral não é um imperativo, mas antes um critério de definição daquelas acções que são entendidas como morais, ou melhor, da própria disposição subjectiva de quem as pratica. É evidente que aqui Schopenhauer apenas procura explicitar, de resto tal como Kant, aquilo que estaria supostamente implícito nas nossas intuições morais. Ele pressupõe que a moralidade é algo que toda a gente imediatamente sabe o que é, a dificuldade residindo apenas na expressão clara do seu princípio e na sua fundamentação em algum facto de consciência ou na própria natureza humana. Obviamente que este procedimento pode, do ponto de vista filosófico, ser tão contestável quanto o de Kant, ainda que Schopenhauer pudesse argumentar que a sua fundamentação visa precisamente fornecer a razão suficiente desta proposição, isto é, demonstrar porque é que precisamente esta proposição, e nenhuma outra, é a expressão da conduta moral. De qualquer modo, julgamos que não o poderia fazer sem algum risco de circularidade, uma vez que, como veremos, a sua fundamentação terá sempre de recorrer a um motivo fundamental que possa influenciar a acção dos homens. A circularidade reside na própria explicação que recorre a tal motivo com exclusão de qualquer outro: o motivo, fundamento ou origem da moralidade – para Schopenhauer os três conceitos significam o mesmo – teria de ser ele mesmo legitimado como moral. O que opera como pressuposto fundamental da investigação moral para Schopenhauer é a procura de um fundamento da acção que não tenha como finalidade a condição do próprio eu que age. Por outras palavras, a moralidade é sempre entendida como o oposto do egoísmo. Neste aspecto formal, ironicamente, Kant e Schopenhauer não diferem. A diferença reside sim no carácter daquilo que poderá ser considerado como não egoísta. O respeito racional por um imperativo formal no primeiro, o sentimento de compaixão no segundo, como veremos. Daqui decorre, e este aspecto será importante quando confrontarmos Schopenhauer com Darwin, que, do ponto de vista de Schopenhauer, não é suficiente que a sociedade observe certas leis, isto é, que exista um estado ou que se aja apenas para satisfazer preceitos inculcados por determinadas superstições ou religiões. Acções que se fundam no medo da pena secular ou do castigo divino ou, ainda, no próprio

prestígio social que delas advém, não têm qualquer valor moral. Portanto, pelo menos de um ponto de vista schopenhauriano, o destino da moral joga-se na existência de acções genuinamente não egoístas. Caso elas não existam, o conceito de moralidade torna-se completamente vazio. Considerando que o egoísmo e o valor moral das acções se excluem mutuamente, são morais apenas aquelas acções (ou possivelmente omissões) em que o impulso da acção não é referido ao bem ou mal próprios, mas aos de um outro. Nestas circunstâncias, diz Schopenhauer o que é determinante para a realização ou omissão de uma acção é a identificação imediata de um eu com um outro eu, um não-eu por referência ao primeiro, através da qual se sente o mau estar (em sentido lato – quer físico quer mental) do outro como se fosse o próprio e se é movido a suprimi-lo tal como se costuma ser, quando é o si próprio que se encontra em causa. Schopenhauer designa o fenómeno aqui descrito por Mitleid – que traduziremos por compaixão, embora tendo a precaução de a entender em sentido mais lato do que é habitual em português, como algo que designa a capacidade de sentir o sofrimento actual ou possível de um outro como se fosse o próprio que motiva uma conduta conforme a esse estado. É importante ainda fazer notar que Schopenhauer interpreta este processo como algo que exclui a possibilidade de ser ilusório. Segunda a sua análise, o facto de eu sentir precisamente o estado de sofrimento de um outro e não o meu, que pode até ser contrastante com o dele, implica que a compaixão não é uma ilusão ou um produto da imaginação. Embora, do ponto de vista puramente fenomenológico, nos pareça correcta a análise, é evidente que pode ser bastante discutível, sobretudo no debate com alguém que, assumindo uma posição de cepticismo moral, negasse a possibilidade de relações intersubjectivas deste tipo, nomeadamente de processos de empatia. Não é no entanto relevante entrar nesta discussão para os nossos actuais propósitos. É, portanto, da compaixão, desta motivação fundamental presente na natureza humana, que decorrem, segundo Schopenhauer, as duas virtudes principais, que já se encontram expressas no princípio da moralidade: “Não leses ninguém, pelo contrário, procura ajudar toda a gente tanto quanto puderes”. Estas virtudes são a justiça e o altruísmo. À primeira corresponde a primeira parte do princípio: “Não leses ninguém”. À segunda corresponde a segunda parte: “ajuda toda a gente quanto puderes”. O papel que a compaixão desempenha na justiça, enquanto esta é um efeito daquela, é meramente negativo e portanto corresponde ao grau menor dela – trata-se

aqui de uma motivação que contraria o egoísmo natural de cada um, levando à contenção dos efeitos negativos que este poderia provocar nos outros. Refira-se que se trata aqui de um conceito de justiça inteiramente natural, quer dizer, independente do estabelecimento das leis positivas de um Estado. É importante também mencionar que a razão joga aqui um papel fundamental, enquanto faculdade de apreender conceitos em abstracto. A tese de Schopenhauer não implica que sempre que alguém se coíbe de interferir na esfera do outro, de lhe causar sofrimento físico ou mental, directa ou indirectamente, isso se dever à influência presente da compaixão. A razão, tendo sempre por base determinadas experiências passadas de compaixão, guia a conduta do indivíduo, evitando que este se deixe conduzir pelo impulso egoísta momentâneo. Nela não reside, portanto, a origem da justiça, enquanto virtude moral, tal como em Kant, mas é condição necessária para a sua eficácia, de modo mais ou menos constante, no quadro das relações entre os homens. A razão não pode por si mesma ser prática, tal como pretendia Kant, ela é uma potência de segunda ordem, relativamente à intuição, e está destinada a ser um instrumento das motivações fundamentais de cada um. O egoísta usá-la-á tanto quanto o justo ou altruísta. Ela é para Schopenhauer fundamentalmente o que era para David Hume: uma escrava das paixões. Na origem desta reapreciação da função da razão na vida moral está a tese de fundo, que é bastante importante para o propósito de uma confrontação com Darwin, de que o conceito de uma alma racional, isolada de um organismo, é uma hipótese completamente fictícia. A razão não só está subordinada à intuição, não podendo os conceitos ser senão uma generalização e abreviação de uma pluralidade de experiências diferentes, como é, em última análise, apenas uma função do organismo. Como dissemos, o grau mais elevado de manifestação da compaixão são as acções altruístas. Nestas, a compaixão não actua de modo meramente negativo. Aqui ela é um impulso para acções, cujo denominador comum é a supressão do sofrimento alheio. Em correspondência com o maior grau de influência da compaixão, o indivíduo não se limita a refrear o seu ímpeto egoísta, mas sacrifica também, em maior ou menor grau, o seu próprio bem por mor de outrem.

Depois de esta breve resenha da moral de Schopenhauer, vamos ver o que se encontra na investigação de Darwin acerca da origem da moral nos homens. A análise será feita essencialmente a partir do quarto e quinto capítulo de The Descent of Man1. Nesta obra, como o título indica, Darwin tenta explicar como a espécie humana é o resultado de um processo de evolução através dos mesmos mecanismos anteriormente estudados por Darwin na Origem das Espécies, em especial a selecção natural e sexual. Neste quadro, um dos principais intentos de Darwin é demonstrar como todas as características até aí consideradas como exclusivas do ser humano são, na verdade, o produto último de um processo evolutivo. É neste contexto que encontramos a análise dos sentimentos morais. A tese principal é a seguinte: «A seguinte proposição parece-me ser provável em alto grau – nomeadamente, que qualquer animal, dotado de instintos sociais bem definidos, incluindo afectos parentais e filiais, adquiriria inevitavelmente um sentido moral ou consciência assim que as suas capacidades intelectuais se tivessem tornado tão bem desenvolvidas, ou quase tão bem, como no homem. Pois, em primeiro lugar, os instintos sociais levam o animal a sentir prazer na companhia dos seus companheiros, a sentir empatia e a realizar várias actividades em seu auxílio. Estas actividades podem ser de uma natureza definida e evidentemente instintiva; ou pode existir apenas um desejo ou uma prontidão, tal como nos restantes animais superiores, para ajudar os companheiros de certa formas em geral.»2 O primeiro ponto sobre o qual nos temos de debruçar é que Darwin tenta explicar o surgimento daquilo a que chamamos moral nos instintos sociais dos animais. Isto desde logo indicia que não é na razão que a moralidade tem a sua origem. Ela apenas é condição do seu desenvolvimento. O outro ponto muito importante a reter é que os instintos sociais primitivos nos animais não só permitem desenvolver a sociabilidade como levam a sentir prazer nela, isto é, a desenvolver um determinado sentimento de empatia. A palavra que Darwin utiliza para a designar é sympathy. Como veremos este conceito designa um fenómeno muito semelhante àquele que Schopenhauer designa por Mitleid (compaixão). Este sentimento é tanto mais importante quanto, para Darwin, ele está na base de toda a moralidade, tal qual ela tem lugar na espécie humana.

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DARWIN, Charles, The Descent of Man, Penguin Books, London, 2004, pp.119-172. The Descent of Man, pp.120-121.

O mero instinto social animal não é, no entanto, suficiente para explicar a vida moral dos homens. O desenvolvimento de outras faculdades mentais permite um grande grau de desenvolvimento por comparação ao que se pode verificar na escala animal nãohumana: «Em segundo lugar, assim que as faculdades mentais se tornaram altamente desenvolvidas, as imagens de acções e motivos passados passam incessantemente pelo cérebro de cada indivíduo; e aquele sentimento de insatisfação e infelicidade, que invariavelmente resulta de qualquer instinto não satisfeito, ocorreria, tantas vezes quantas se verificasse que o, permanente e sempre presente, instinto social cedia perante um outro instinto, mais forte nesse momento, mas que por natureza não é duradouro e não deixa atrás de si uma impressão muito vívida. (…) Em terceiro lugar, depois da faculdade da linguagem ter sido adquirida, e os desejos da comunidade pudessem ser expressos, a opinião pública relativa ao modo como cada indivíduo deveria agir pelo bem público, tornar-se-ia, em grau primordial, guia da acção. Mas, deve-se ter presente que, qualquer que seja o grau de importância que se atribua à opinião pública, a nossa consideração pela aprovação ou desaprovação dos nossos semelhantes depende da empatia, que, como veremos, forma uma parte essencial do instinto social, e é realmente a sua pedra basilar. Em último lugar, o hábito no indivíduo teria, em última análise, um papel muito importante a desempenhar na conduta de cada membro; pois, o instinto social, conjuntamente com a empatia, é, como qualquer outro instinto, grandemente fortalecido pelo hábito, e consequentemente assim também o seria a obediência aos desejos e juízos da comunidade.»3 Através deste excerto, podemos verificar que Darwin considera a empatia a raiz fundamental da moralidade. A razão tem um papel, tal como o que lhe Schopenhauer lhe dá, de comparação de motivos presentes com motivos passados, permitindo assim à acção ser consonante com motivações mais duradouros no homem que a do instante passageiro. É verdade que Darwin atribui um papel decisivo ao processo de socialização, que Schopenhauer praticamente ignora por completo na caracterização da verdadeira moralidade, reduzindo o papel das acções decorrentes da moral social dominante ao de acções decorrentes do egoísmo. Ainda assim, a empatia para Darwin está na base, como vimos, da atribuição de relevância às opiniões prevalecentes na comunidade. Não é pelo facto de na comunidade dominar um determinado código de conduta que o seguimos, seguimo-lo porque, antes de mais, existe um processo de

3

The Descent of Man, pp.121-122.

empatia com os restantes indivíduos. Ainda que Schopenhauer não tenha razão, mesmo que haja um lugar para imperativos morais, estes não são puros, tal como pretendia Kant, mas satisfazem, e têm como na sua raiz, uma motivação inerente à espécie enquanto tal. Mas como se originam estes imperativos morais no homem? Os homens primitivos terão adquirido, tal como as outras espécies, instintos sociais, através da selecção natural e de hábitos transmitidos à descendência (embora hoje esta última explicação já não seja válida). Eles sentiriam algum grau empatia pelos seus companheiros, fidelidade e teriam também coragem para se sacrificarem na sua defesa. Assim que a linguagem foi sendo desenvolvida, os instintos sociais seriam também mais promovidos, pois os homens agiriam em função do que seria tido por louvável ou reprovável na comunidade, na base da empatia ou identificação com os companheiros. Gera-se assim um código de conduta, que pode incluir todo o tipo de acções que nos parecem hoje imorais e que tem como referência o bem da própria comunidade enquanto tal na luta com as circunstâncias naturais externas e com as tribos rivais. Através da razão e da experiência, o homem vai pensando cada vez mais nas consequências remotas das suas acções e vão surgindo virtudes que já não têm uma relação directa com a comunidade, como a temperança ou a castidade. Decorre de tudo isto que quando duas tribos de homens primitivos competiam, a que dispusesse de um maior grau de sentimentos de empatia, fidelidade e coragem teria mais probabilidades de absorver a outra. Com o progresso do padrão de moralidade, a disponibilidade de cada indivíduo se sacrificar pelo bem comum seria também maior, permitindo não só a selecção natural destas normas morais mais refinadas, como a sua progressiva expansão. Darwin não levanta apenas a questão da origem da moralidade no homem, mas pretende também perceber como a cedência do impulso moral a outros instintos pode gerar a insatisfação inerente ao arrependimento ou até um grau elevado de culpa ou má consciência. Isto porque a moralidade tende a ser instintiva tal como, por exemplo, a auto-preservação. Em primeiro lugar, diz Darwin, é claro que a força dos instintos variará em conformidade com o indivíduo, mas em qualquer caso em que o instinto de auto-preservação é preterido em função de um instinto social, por exemplo, o de um jovem que se lança água para salvar um homem que se está afogar, a acção não é fruto de deliberação, mas é quase imediata, impulsiva. É curioso que, aqui em contraste com Schopenhauer, Darwin chega a afirmar que nesse caso também não é a satisfação ou

insatisfação que move o indivíduo, embora não se exclua a possibilidade de, mais tarde, reflectindo, se sinta insatisfação na forma de arrependimento, por não se ter cedido a um instinto social. Aliás, relativamente à questão de se poder classificar tais actos impulsivos como morais, Darwin julga que não é possível traçar uma linha de fronteira clara entre um acto deliberado e um proveniente de um impulso. Em todo caso, não há, segundo ele, nenhuma razão para não se chamar moral a uma acção impulsiva, na qual, por exemplo, um indivíduo se sacrifica por outro, sem deliberação prévia, até porque a repetição de acções deliberadas tende a gerar um hábito e portanto uma acção que inicialmente não tinha esse carácter imediato tende a adquiri-lo. Darwin chega a dizer que: «Pelo contrário, sentimos que um acto não pode ser considerado perfeito ou desempenhado do modo mais nobre, se não o for impulsivamente, sem deliberação ou esforço, tal qual como no homem, no qual as qualidades requeridas são inatas.»4 Contudo, continua a levantar-se a questão de saber porque é que o homem sente arrependimento naqueles casos em que seguiu mais o instinto de auto-preservação do que um instinto social. A explicação que Darwin fornece é que os instintos sociais são muito mais presentes em nós do que os restantes, que apesar de serem parte fundamental de nós, não estão tão constantemente presentes na mente como a vida social. A fome ou o desejo de vingança são por sua natureza instintos temporários e depois de satisfeitos são estados difíceis de recordar com nitidez, o instinto de autopreservação só é sentido no momento de perigo efectivo, mesmo o desejo de uma propriedade alheia, embora mais presente, é rapidamente extinto pela posse. Pelo contrário, mesmo quando estamos facticamente isolados, damos por nós a pensar nos outros, a sentir satisfação ou insatisfação conforme imaginamos que somos motivo de aprovação ou reprovação aos olhos dos outros, assim também a empatia e até o amor pelos outros ocorrem sem nenhum estímulo específico. Darwin explica assim o arrependimento como o produto da memória, que ao manter extremamente viva a recordação de uma determinada motivação não satisfeita, por comparação à motivação passageira que foi satisfeita, mas cuja memória já é evanescente, gera insatisfação e com esta uma resolução de agir de modo diferente no futuro. Refira-se que num contexto de uma civilização mais avançada, onde a sociedade já gerou determinadas proposições sobre aquilo que é correcto ou incorrecto, muitas vezes fortalecidas por fortes crenças de cariz religioso, a motivação moral preterida em

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The Descent of Man, p.135.

função de outra mais imediata não tem de ser de todo natural, isto é, pode não ter qualquer vigência noutro tipo de sociedades. Contudo, não deixa de ser a empatia, que leva à identificação com a moral vigente na comunidade, ou, em alternativa, o medo, quer dirigido a entidades sobrenaturais quer da eventualidade de qualquer forma de punição exercida por outros indivíduos ou pela comunidade sobre o agente. O homem instigado pela consciência e treinado pelo hábito adquirirá autodomínio, de tal modo que as suas acções submeter-se-ão docilmente aos instintos mais sociais. O homem com fome não pensará em roubar, o vingativo não pensará em vingança. Darwin ainda pensava que o hábito, poderia ser hereditário, concluindo a partir daí a existência de uma progressiva moralização dos homens como resultado do processo evolutivo. De qualquer modo, a consciência moral não é para Darwin universal no homem, podendo verificar-se casos raros de indivíduos, nos quais a sua presença é nula ou quase nula. No entanto, e mais importante que o grau de sensibilidade moral que difere de indivíduo para indivíduo, é a consideração da diferença daquilo que é o objecto da moral entre várias sociedades. Ao contrário de Schopenhauer, que estabeleceu um princípio da moralidade, inteiramente natural, que pretendia ser extensivo a toda a espécie humana e, além dela, também aos animais, para Darwin não só não há uma proposição universal, que seja expressão de uma moral universal, como a aplicação de cada código de conduta pode ser bastante limitada, podendo valer muitas vezes apenas para um número consideravelmente reduzido de indivíduos, como os de uma tribo. Esta ideia não contraria a ideia exposta anteriormente, segundo a qual, a moralidade corresponderia a um desenvolvimento de instintos sociais primitivos, pelo contrário, é congruente com ela, pois, originalmente os impulsos morais não eram dirigidos a uma espécie inteira, mas a pequenas comunidades tribais, assim como estes instintos nos animais podem reflectir-se apenas em determinadas relações, como aquelas entre mãe e crias. Para Darwin, as acções morais não têm origem no princípio da felicidade do maior número de indivíduos, concepção que estava em voga no seu tempo. Este princípio pode funcionar como um padrão ou critério de moralidade, de modo muito semelhante ao princípio schopenhauriano, mas não como motivo de conduta, pois, como vimos maior parte das acções morais acabam por ser impulsivas, quer derivadas do instinto quer do hábito, sem nenhuma consciência explícita de qualquer tipo de satisfação. O que motiva as acções morais é o instinto social. Além disso, este instinto,

segundo Darwin, foi preservado nos animais por contribuir para o bem geral da comunidade e não para a felicidade geral, isto é, por contribuir para a criação da maior quantidade possível de indivíduos em perfeita condição e saúde relativamente às suas condições de vida. Aliás, dentro de certas limitações, Schopenhauer propõe que se use o mesmo conceito de bem comum relativamente ao homem, embora admita que neste caso o princípio da felicidade do maior número pode, sob certas condições de desenvolvimento, ser efectivo. Finalmente, a ideia de uma empatia universal, do reconhecimento de obrigações morais perante o homem enquanto tal, independentemente de tribos, comunidades ou raças, assim como a empatia sentida por outras espécies, é, segundo Darwin, muito tardia, só sendo possível através de um grau de desenvolvimento intelectual e condições civilizacionais muito avançados.

Posto isto, levanta-se a questão de saber o que é que a investigação de Darwin poderia implicar relativamente à filosofia moral de Schopenhauer. Antes de mais, parece-nos claro que Schopenhauer opera com um pressuposto fundamental,

que

ainda

não

mencionámos,

cuja

anulação,

poderia

alterar

significativamente a sua análise. Este pressuposto é o da existência de um natureza humana, de um carácter do homem enquanto homem, decorrendo daí a ideia de compaixão enquanto um sentimento último e irredutível, que seria o fundamento da moralidade. De facto, uma vez que não se operasse com esta noção, que, no fundo, em Schopenhauer, coincide com a tese relativa à eternidade das espécies, enquanto Ideias Platónicas, tornar-se-ia necessária uma investigação acerca da sua origem, por outras palavras, uma genealogia da própria compaixão. Este tipo de investigação genealógico foi algo que Schopenhauer, dada a sua concepção de história e desenvolvimento, não entreviu e como tal está ausente da sua teoria da fundamentação, uma vez que não poder ser redutível a nenhuma das quatro configurações do princípio da razão suficiente que tinha analisado. O que a investigação de Darwin põe em evidência é que precisamente a ideia de uma compaixão universal só poderia surgir no fim de um desenvolvimento, não podendo qualquer sentimento desse género ser pressuposto nas tribos dos homens primitivos. Este problema é tanto maior quanto a filosofia de Schopenhauer, ao contrário da de Kant, não pretender encontrar um imperativo categórico a priori, isto é, abdicar da ideia de um dever absoluto, mas apoiar-se num facto, numa motivação inerente à natureza humana.

Em segundo lugar, Schopenhauer acaba por ser vítima do ímpeto que o leva a criticar Kant. A ideia de afastar a fonte da moralidade o mais possível de um conteúdo proposicional, o que por si mesmo não é condenável como veremos, e recolocá-la na intuição, no sentimento, leva-o a não considerar de todo o papel que o processo de socialização poderá ter desempenhado no próprio surgimento da moral. A partir do momento em que surge a linguagem, o instinto social primitivo cruza-se necessariamente com as teses que vão ocorrendo acerca do que é bom ou mau, ajudando, assim, a configurar o desenvolvimento da moral. Ainda que, também para Darwin, a origem da moralidade seja o instinto social ou o sentimento de empatia, a moral tal como existe hoje, já não pode ser compreendida independentemente do desenvolvimento da razão, cujo papel não pode ser limitado a reunir a diversidade de experiências e a abstrair um conteúdo comum a todas elas, mas tem interferência nele, alterando-o radicalmente. Se nos recordarmos que Schopenhauer considerava maior parte das acções, ainda que morais na aparência, como egoístas, por serem praticadas por referência ao agente e não a outrem, poderíamos dizer que do ponto de vista de Schopenhauer, muitas das acções que Darwin descreve como morais, não mereceriam essa qualificação, pois advêm de motivações não redutíveis à empatia ou compaixão. O problema é que Darwin parece ter previsto esta crítica. Ele responde que este tipo de acções podem ser qualificadas de egoístas, caso se pretenda qualificar de egoísta toda a satisfação que um animal sente quando segue os seus instintos ou toda a insatisfação que sente quando é impedido de lhes dar seguimento. É verdade que Schopenhauer certamente qualificaria de egoísta este tipo de acções, mesmo no domínio dos animais não humanos. É incerto, contudo, que tenha legitimidade para o fazer, pois, a prática do altruísmo, por exemplo, caracteriza-se por gerar satisfação naquele que o pratica. Se esta satisfação tem uma origem animal, não há motivo para a separar ou opor a outro tipo de satisfações que partilham essa origem. Para terminar, vamos mencionar um último ponto. Apesar de termos dito que a compaixão para Schopenhauer era um facto último, isto não é totalmente verdade, tendo em conta o seu sistema no seu todo. Schopenhauer pensa ser possível uma explicação, já não empírica, mas metafísica da compaixão enquanto algo que faz parte da natureza humana. Para Schopenhauer só a metafísica poderia elucidar a compaixão. Este carácter transcendente da compaixão deriva, segundo ele, da circunstância de ser incompreensível que alguém sinta a dor de um outro.

Não vamos analisar aqui detidamente a metafísica que, segundo Schopenhauer, pode explicar o mistério da compaixão, até porque, o ponto de vista de Darwin é totalmente empírico, como se sabe, mas apenas aflorá-la nos seus traços principais. O pressuposto fundamental da metafísica de Schopenhauer é a doutrina do idealismo transcendental de Kant. Isto significa, em primeiro lugar, segundo Schopenhauer, a tese segundo a qual espaço, tempo e causalidade, e com eles toda a pluralidade, expressam meras relações entre fenómenos, isto é, não caracterizam nada daquilo que pretensamente existe em si, independentemente destas relações; em segundo lugar a ideia de que estes sistemas de relações têm um estatuto ideal, inerem meramente à representação de um sujeito cognoscente, não existindo fora dela. Em conformidade com esta doutrina, Schopenhauer interpreta as acções justas e filantrópicas, e até o carácter individual dos homens que as praticam, como o resultado no plano prático do conhecimento intuitivo desta doutrina. A distinção entre o eu e o não-eu deixou de ser, para o homem compassivo, ao contrário do egoísta, absoluta. Ele reconhece novamente no outro a sua própria essência e assim ele sente dor com o outro, isto é compaixão. Refira-se que não é necessário que ele esteja consciente desta metafísica prática, trata-se, segundo Schopenhauer, de um sentimento que guia a sua conduta e só o filósofo o pode descrever em abstracto da forma que acabámos de fazer. O que resulta de tudo isto é que o sujeito compassivo deixa, pelo menos em parte, de ser um indivíduo, passa a identificar-se com a coisa em si, enquanto aquilo que é a essência real de todas as coisas; ou, para usar uma formulação proposta por um comentador, o sujeito que está em causa na acção compassiva não é o eu empírico, mas sim um eu transcendental ou trans-individual. A questão importante para nós agora é saber se Schopenhauer consideraria a explicação darwinista dos fenómenos morais suficiente para explicar o fenómeno da compaixão, isto é, se esta poderia ser vista como um fenómeno passível de uma explicação meramente empírica e, portanto, se seria suficiente para abandonar o ponto de vista metafísico. A resposta a esta questão não é inequívoca. Por um lado, cremos que o ponto de vista genealógico de Darwin põe seriamente em causa a ideia de que muitos dos fenómenos que Schopenhauer considerou originários ou últimos o sejam realmente, pelo menos no que diz respeito à ideia de haver espécies eternas com naturezas próprias. Se nos parece que há uma consequência decorrente do darwinismo para uma filosofia da natureza é a de não se pode pensar mais qualquer organismo como dotado de uma

natureza essencialmente diferente de um outro. Hoje, temos de perspectivar genealogicamente o organismo enquanto tal e não como a expressão de uma essência particular. A haver um dado último no mundo orgânico que requeresse interpretação filosófica, no sentido de uma metafísica schopenhaueriana, este seria o próprio fenómeno da vida enquanto tal. Assim, tal como os diversos tipos de organismos não correspondem a outras tantas essências últimas, a compaixão e outros sentimentos que caracterizam a vida humana, devem ser caracterizados de um ponto de vista genealógico, isto é, como traços que apareceram e foram preservados no curso da evolução pelo valor que têm na promoção da sobrevivência e reprodução de indivíduos e espécies inteiras. Por outro lado, a metafísica de Schopenhauer pode ser vista a uma nova luz se a considerarmos como descrição, ainda que hoje, para nós, detenha um carácter quase metafórico, de parte daquilo que Darwin elucidou empiricamente. Nesta perspectiva é curioso que Schopenhauer não tenha recorrido na sua fundamentação da moral a mecanismos conceptuais que dispunha e que aplicou noutras análises. Referimo-nos, em particular, à ideia de génio da espécie. O filósofo introduz esta ideia a propósito da análise do fenómeno da sexualidade. O que sucede aí pode resumir-se sucintamente do seguinte modo: o indivíduo que procura satisfazer os seus interesses sexuais ou amorosos pensa estar a perseguir fins individuais, quando na verdade está a ser, segundo Schopenhauer, vítima de uma ilusão, pois serve os fins da espécie, nomeadamente da sua perpetuação e correspondente selecção da geração seguinte. Assim como através da sexualidade se promovem os interesses gerais da espécie, poderíamos estender esta ideia à compaixão. Este seria um sentimento que, enquanto individual, corresponderia a uma ilusão do indivíduo, mas na medida em que é a espécie a agir em nós, serviria para promover a sua conservação.

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