\"Se você escrever essa oração ela não vai funcionar mais\": Escritas e oralidades em um terreiro Amazônico

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Anais do Congresso da SOTER 27º Congresso Internacional da SOTER Espiritualidades e Dinâmicas Sociais: Memória – Prospectivas.

“Se você escrever essa oração ela não vai funcionar mais”: Escritas e oralidades em um terreiro amazônico

Hermes de Sousa Veras1∗ Agenor Sarraf Pacheco2∗

Resumo: No presente ensaio problematizo alguns dados etnográficos oriundos de minha pesquisa de campo no Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo, localizado na cidade de Ananindeua, região metropolitana de Belém-PA. Sob a perspectiva da Antropologia da Religião busco problematizar a relação entre tradições orais e escritas dentro do universo afro-religioso, mais especificamente como o sacerdote da casa Álvaro Pizarro consome e compreende a literatura especifica do tema afrobrasileiro. Para tanto, apresento breves dados sobre a história e localização do terreiro e analiso algumas situações etnográficas que envolveram a questão, tais como a indicação do próprio sacerdote para o pesquisador de uma bibliografia básica a respeito do tema religioso e a forma como o sacerdote considera presente o mundo oral e escrito na iniciação nesses experimentos afro-religiosos. Finalmente, concluo o presente ensaio compreendendo que, ao menos no terreiro em questão, coexistem os mundos orais e escritos, fazendo com que os sujeitos traduzam essas percepções a partir de sua experiência religiosa, não existindo, a priori, nenhuma antinomia entre esses dois mundos e sim uma relação complexa e contextualizada. Palavras chave: Mina-Nagô. Oralidade. Escrita. Antropologia da Religião. Abertura Nesse texto trago alguns elementos sobre a escrita e a oralidade no Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo, sobretudo referente ao seu “zelador de santo”3. Realizo minha pesquisa de mestrado nesse terreiro orientado por Agenor Sarraf Pacheco, coautor desta comunicação. Os dados aqui apresentados me interpelaram em trabalho de campo, ainda em ação, desde meados de fevereiro de 2013. Ocorrendo 1

∗ Mestrando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA-UFPA). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

2

Doutor em História (PUC-SP, 2009). Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA-UFPA). E-mail: [email protected]. ∗∗

3 Os termos zelador de santo, zelador de orixá e sacerdote nessa comunicação são sinônimos. Adotarei as notações etnográficas utilizadas por Ahlert (2013) em sua tese de doutorado. As expressões em aspas duplas são citações de autores. Aspas duplas e itálico são categorias ‘nativas’ ou falas ‘nativas’. Aspas simples em uma palavra demonstram necessidade de relativização da mesma. Os termos terreiro, zelador de santo e orixá não estarão em aspas duplas nem itálico por conta de sua maior difusão e pela necessidade de repeti-las muitas vezes no presente ensaio. 1288

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de forma menos sistemática no ano passado, e mais intensamente no presente ano de 2014. Inicialmente trarei alguns elementos etnográficos a respeito do “terreiro”, da história de vida de seu sacerdote e da minha inserção no trabalho de campo, principalmente referente ao empréstimo sistemático de livros, empreendimento iniciado pelo sacerdote que, até o presente momento, deu-se apenas em via única: deste para mim. Depois tentarei interpretar esse material etnográfico de acordo, sobretudo, com os trabalhos de Lisa Castillo (2010), Sérgio Ferretti (1992 e 2009) e Vagner Gonçalves da Silva (1993 e 2006). Também utilizarei falas ‘nativas’, em grande medida, para explicar ou iluminar determinado assunto. Portanto, as citações de falas ‘nativas’ neste trabalho, conjuntamente com as citações de autores e autoras, terão caráter analítico e efeitos de aprendizagem, isto é, ambas terão algo a nos ensinar sobre o tema em questão.

1. Alguns elementos etnográficos

O Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo está localizado em Ananindeua, cidade da região metropolitana de Belém do Pará. Seu bairro é o Floresta Park, zona de “ocupação” existente na altura do quilômetro oito da BR 316. Foi fundado em 1988 por Álvaro Pizarro4 e em 1992 registrado na Federação

Espírita Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará (FEUCABEP). A matriz, ou nação, como costuma dizer seu sacerdote, é a Mina Nagô. O zelador de orixá conta que a Umbanda, no terreiro, é um núcleo onde a Mina Nagô se agrega. Essa interpretação do sacerdote possui suas semelhanças com a de Gabriel (1985), que ao estudar a Umbanda na Cidade de Manaus percebeu que aquela entra em um processo de assimilação mútua com os cultos regionais e locais, havendo assim uma dupla transformação entre a umbanda e os cultos regionais. O zelador de santo conta que a Mina, na sua casa, representa a simplicidade, a cura e a reza. A umbanda está muito próxima desta, principalmente porque ambas trazem cânticos em português. Já os elementos nagô aparecem apenas nos rituais de iniciação e mais secretos da casa, além dos poucos cânticos que surgem em yorubá. Reduzir a linguagem ritual nagô ao espaço mais reservado do terreiro é uma escolha consciente do sacerdote, pois prefere que a assistência saiba o que está sendo feito na “gira”: “[...] na saída do santo então a gente já canta em português mesmo. Que é para todo mundo saber o que está acontecendo, para quem a gente está cantando e o que se está cantando”5.

4 Com exceção do nome do sacerdote todos são fictícios. Escolhemos conjuntamente deixar apenas o seu nome por entender que seria crucial a divulgação de sua trajetória de sacerdócio, fundação e manutenção do Mina Deus Esteja Contigo. O restante sendo possível manter suas intimidades totalmente. 5

Entrevista etnográfica, 25 de junho de 2014.

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A comunicação entre a “gira” e a sua assistência é importante. Seu Álvaro ao comentar outras casas que cantam exclusivamente em yorubá, analisa: “Aí o povo do jeito que entra, sai [...] Às vezes tem uma denominação do orixá, então se sabe que se está cantando para aquele orixá. Mas o que está pedindo [...] não sabe, porque está em outra linguagem”6. Adiante comentarei a respeito da necessidade de compreensão entre gira e assistência como um efeito oral de comunicação. 1.1 O sacerdote

Álvaro Pizarro, fundador e sacerdote do Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo é paulista. Mudou-se para Belém do Pará, e posteriormente, para Ananindeua, quando tinha aproximadamente 38 anos. Suas primeiras vivências religiosas foram em São Paulo, obtendo suas primeiras “incorporações” na adolescência. Conheceu pela primeira vez um terreiro por influência de seu irmão, o qual frequentou por um tempo, até Dona Isaura, zeladora da casa, mudar-se para o interior. Seu Álvaro não possuía o apoio dos pais. Apesar de católicos, levaram-no para igrejas evangélicas e outras denominações cristãs com intuito de resolver seu problema, pois aquilo que o filho estava metido “não era religião”7. O sacerdote,

então, passou por diversas igrejas, dentre elas, Igreja do Evangelho Quadrangular e Testemunha de Jeová. A partir do contato com frequentadores desses espaços religiosos Seu Álvaro conheceu o terreiro de Pai Hélio. Era bem longe. E além de não ter condução a gente ia a pé, caminhava bem uns três ou quatro quilômetros para chegar no terreiro desse homem, que era o Pai Hélio. E ele fazia na umbanda os índios. Recebia Seu Sultão da Mat. Era bastante jovem e o terreiro dele era bastante famoso. Também era tudo naquela história de esconde esconde. Aí eu larguei as religiões cristãs e vim de novo para a umbanda. Já tinha uns 20, 22 anos, 23, 24. E a minha mãe sempre era contra, nunca foi a favor.8

Após alguns anos a frequentar este terreiro outro fato marcante interrompeu sua relação com a umbanda: o falecimento da mãe. Nesse período Seu Álvaro conheceu um “dirigente de budismo” e pela curiosidade, e provavelmente marcado pela morte da mãe – que pedia para o filho não participar mais de nenhum terreiro – converteu-se ao budismo. Passou 14 anos dentro do budismo, acumulando conhecimento e chegando em cargo importante. Tornou-se numa espécie de “zelador de santo” budista, pois era dirigente de uma casa: “Tudo se corria ao meu redor. Ali tinha vários grupos, senhoras, jovens, adultos, eram vários grupos de pessoas

6 7 8

Idem

Entrevista etnográfica, 21 de maio de 2014. Idem.

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dentro daquele grupo e eu era assim a pessoa importante dentro daquilo”9.

Para a inserção nessa religião a leitura foi crucial. Seu Álvaro revela seu gosto pela prática da leitura, conforme diz, se conseguiu elevar-se dentro do budismo foi por causa desse hábito. O que nos revela que até o momento, ao menos provisoriamente, o elemento que se sobressai nesse período de sua vida é a tradição escrita. É também nessa época que o sacerdote se formou em farmácia. Tanto no budismo quanto na umbanda, mina, ou mina nagô10, o zelador de santo expressa sua apreciação pela leitura e a valorização desse ato. Quando disse que seu cargo no budismo era quase um “zelador de santo” não exagerei, pois o próprio sacerdote confessa: “Não sabia que naquela época, dentro do Budismo, praticamente eu praticava a umbanda”11. Seu Álvaro quando analisa o passado budista revela estar quase sempre em conexão com as religiões afro-brasileiras, preferencialmente a umbanda. Ao relatar que dentro do budismo praticava mesmo era outro culto, confessa, ao repensar o passado, que no budismo ele fazia tudo através de “magias” e “pensamentos”. Até os objetos rituais eram parecidos: haviam velas e incensos, além de “oferendas” (frutas, por exemplo) para o “objeto de adoração”. Após uma década de budismo umbandizado (FURUYA, 1994) nosso sacerdote se encontra novamente em situação de mudança. Conhece em São Paulo, Marcelo e sua mãe, Mãe Marajó. Essa senhora, natural de Salvaterra, era “mineira”. Ela que iniciaria, posteriormente, Seu Álvaro no mundo da tradição oral, dos “caruanas” e “caboclos” da mina paraense, da mina nagô. Quando se encontraram, encantaram-se ambos com as suas respectivas “mediunidades”. Então “ela fez o convite: - Vamos pra Belém, que lá eu preparo o senhor”12. Seu Álvaro aceitou. Ao se despedir dos altos dirigentes do budismo foi questionado se ainda continuaria na religião, respondeu que era o que pretendia. Só sairia do budismo se fosse para retornar a sua antiga religião, a umbanda. Chegando em Belém se defrontou com diversas dificuldades. Não conseguiu continuar no budismo. Na nova cidade os praticantes dessa religião eram em sua maioria japoneses e empresários que tinham dificuldade de compreender o português. Primeiramente morou em um apartamento na cidade de Belém. Mas com o girar do relógio e o passar dos dias, ficou sem renda e endividado. Diante dos problemas financeiros e precisando pagar aluguel e suas necessidades, Seu Álvaro, percebendo que não estava progredindo lembrou-se do que havia dito sobre voltar 9 10

Idem.

11 12

Entrevista etnográfica, 17 de fevereiro de 2014.

Seu Álvaro utiliza todos esses termos para falar de sua religião. Embora às vezes explique a diferença que cada um desse termo carrega, mostrando que para uma religião diversa, múltiplo também é a sua mancha semântica de categorização. Idem.

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para a sua antiga religião. Por intermédio de Mãe Marajó e Marcelo, únicas pessoas conhecidas do sacerdote que participavam do mundo afro-paraense, conheceu Pai Ketu, candomblecista. A partir desse encontro fez algumas “obrigações” para suas “entidades”. Foi também no terreiro de Pai Ketu que Seu Álvaro vivenciou um marcante dia:

[...] eu me incorporei novamente com a minha Entidade, que foi no dia 21 de abril e ela chegou e disse: “Olha, se ele quiser tudo que ele perdeu nós vamos ter que vim fazer a caridade aqui pro povo de Belém”. Ai eu pensei, bom se é por causa disso, né, pela tanta necessidade que na época estava se passando, que nós fomos despejados do apartamento onde a gente vivia, onde a gente morava e viemos morar aqui, numa área da qual a gente tinha mal acabado de comprar, ainda não tinha residência nenhuma. Eu fui praticamente o primeiro morador aqui dentro da mata.13

O ente espiritual citado pelo sacerdote é “Maria Padilha”, sua principal “entidade”, a qual considera a dona de sua casa de santo. Portanto, nessa fala encontramos alguns fatos primordiais para a compreensão do Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo e o seu sacerdote: a “incorporação” de sua principal “entidade”; a sua missão de caridade para o povo de Belém passada por “Maria Padilha” e a sua mudança para o bairro Floresta Park, “no meio do mato”. A partir do conselho de “Maria Padilha” resolveu se iniciar com Mãe Marajó. Foi inserido na tradição oral dos “caruanas”. Passou aproximadamente oito anos de iniciação e aprendizagem com ela. Peço ao leitor que se atente ao tempo que Seu Álvaro dedica para suas experiências religiosas14. Alguns anos vivenciados em terreiros de São Paulo, em igrejas evangélicas, 14 anos no budismo e oito anos de aprendizagem com Mãe Marajó, analisaremos esse ponto mais adiante. Em sua iniciação, o sacerdote se confrontou, talvez, com uma realidade religiosa diferente da que se acostumou a vivenciar, pois sendo um leitor, foi proibido de anotar os ensinamentos: Porque oração, reza, benzimento, banho, essas coisas todas vinham dela. E ela nunca me deixou escrever nada. Ela falou: - Coisa de caboclo, coisa de entidade, de caruana – ela usava muito esses nomes assim, foram aprendidos e só escutado. Que tanto ela falava assim: - Se você escrever essa oração, ela não vai funcionar mais. Tanto é que quando a gente fazia a oraçãozinha que às vezes ela ensinava, se eu escrevia pra poder decorar, automaticamente eu tinha que apagar, e a forma de apagar era tacar fogo.15

Mesmo nesse conflito entre oralidade e escrita Seu Álvaro reconhece em Mãe Marajó a pessoa que ensinou praticamente tudo que ele sabe sobre o mundo afro13 Idem. 14 Trajetórias de líderes afro-religiosas constantemente são ricas em trânsitos e experiências religiosas.

Para o conhecimento de uma delas, consultar Chiesa (2012).

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Entrevista etnográfica, 17 de fevereiro de 2014.

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paraense. O novo saber foi incorporado com suas experiências anteriores, ambas a se ressignificarem. Por isso o sacerdote é exemplo das traduções que ocorrem entre oralidades e escritas. Entretanto, ao relembrar da proibição imposta por Mãe Marajó em anotar qualquer elemento litúrgico, Seu Álvaro considera esse comportamento do passado: “Ela não deixava eu escrever nada. Falava ‘escreveu, esqueceu’. Mas isso era coisa de índio que podia passar o dia todo memorizando. Nós não podemos, temos muitos afazeres”16.

A explicação do sacerdote revela a sua percepção do tenso relacionamento entre tradição e mudança, entre a criatividade oral (GOODY, 2012, p. 63-67) e a dinâmica da sociedade envolvente. Essa fala do “zelador de orixá” foi, poderei chamar assim, um choque cultural (WAGNER, 2012, p. 48), esse momento em que o antropólogo é interpelado pela cultura ‘nativa’ e questionado por ela. Isso aconteceu porque a minha subcultura de antropólogo em formação (OLIVEIRA, p. 23, p.172) estava configurada para romantizar a tradição oral. O sacerdote, ao se afastar de alguns elementos mais desvalorizados pela literatura afro-brasileira, como a cidade grande do sudeste (SILVA, 1993, p. 65) e se aproximar mais do “meio do mato” e da iniciação ritual da tradicional Mina paraense, fazia-me seguir uma boa parte da literatura dos estudos afro-brasileiros ao valorizar os elementos mais lúdicos, ou pode-se dizer, com toda a ingenuidade antropológica inclusa, das características mais puras e africanas (idem). Enquanto percebia a trajetória do sacerdote se aproximar mais dos elementos ‘tradicionais’ valorizados pelos antropólogos, o trabalho de campo me sacudiu, mostrando que não seria romantizando o ‘no meio do mato’ que compreenderia algo da experiência religiosa do sacerdote Álvaro Pizarro. Porém, antes de esboçar e acrescentar algumas interpretações em diálogo com Seu Álvaro comentarei mais alguns de nossos encontros etnográficos. 1.2 O empréstimo de livros

Em 25 de março de 2013 tive o primeiro encontro etnográfico significativo com o sacerdote do Mina Deus Esteja Contigo. Nesse dia Seu Álvaro rezou a “espinhela caída” de um rapaz. Depois de atender ao aflito, me emprestou o livro de Napoleão Figueiredo (1979), Rezadores, pajés & puçangas. Brincando, mandou eu ler para virar rezador. Aqui, poderíamos apontar o triunfo da escrita diante da oralidade segundo a percepção do “zelador de santo”. Porém, Seu Álvaro diz que apesar do livro trazer uma reza para “espinhela caída” ele reza outra, uma que foi passada pela dona da casa, “Maria Padilha”. Encontramos então em um ensinamento elementos de 16

Conversa informal obtida em 19 de maio de 2014.

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tradição oral e de agência de ‘objetos’ (LATOUR, 2012, p. 106-122)17, demonstrando

ser a relação entre tradição escrita e oral é sempre contextualizada. Mesmo que por ventura desejasse tornar-me rezador pela leitura daquele livro, certamente ela não seria tão eficiente quanto a do sacerdote, essa transmitida por sua “Entidade” e reforçada pela fé. Em entrevista etnográfica, Seu Álvaro confessou que não é possível desenvolver a “mediunidade” com apenas leitura. Outros atributos são essenciais como a fé e até mesmo relações sociais com outros afro-religiosos. Entretanto, ele não condena a busca por conhecimento religioso através da leitura, diferenciando-se assim de muitos líderes religiosos (CASTILLO, 2012). O sacerdote chega mesmo a criticar os sacerdotes que não buscam leitura. Porque não procura um livro para ler, não procura ter diálogo com outras pessoas por achar que é o bom. Ele acha que tudo que sabe já é o suficiente mas às vezes não, falta muita coisa. Então eles estão ali, não sabem nem o que estão fazendo. Estão sendo joguete de espíritos. Às vezes não tem nada para ser esclarecido para eles, eles acham que estão certos. [...] Eles se deixariam levar porque sempre receberam aquele espírito, desde 3, 4, 5, 7 anos de idade e continuou com aquilo. Não houve mudança. Não procurou estudar, não procurou sair daquela situação. Porque eu acho que dentro da nação, a nação é uma transformação [grifo meu]. Você tem que transformar18.

Nessas circunstâncias, a aprendizagem e o desenvolvimento religioso se desdobram em um emaranhado complexo de práticas orais e escritas, de relações sociais e revelações místicas. Chegando até mesmo o momento em que é preciso desenvolver o próprio conhecimento para superar determinada “Entidade” e não ser um “joguete de espíritos”. Quando perguntei para Seu Álvaro porque na gira eram entoados cânticos nagôs, visto que ele havia me dito existir predominância dos cânticos em português, sua resposta foi direta e concisa: “As entidades são imprevisíveis”. Revelou que repentinamente elas podem alterar a forma da “gira”, impelindo o religioso a executar o ritual de uma forma totalmente diferente da que aprendeu. Entretanto, na sua insistência em relação a busca do conhecimento e a necessidade de não ser um “joguete de espíritos”, Seu Álvaro revela tanto a possiblidade de aprendizagem com a “Entidade” como a necessidade de se estar bem fundamentado para não existir a simples manipulação da “Entidade” sobre o indivíduo. Acredito que é, mais ou menos, nesse sentido que devemos caminhar para compreender o que significa aquilo que Seu Álvaro disse, logo acima, “a nação é uma transformação”. A experiência religiosa está intimamente ligada à imprevisibilidade das “Entidades” e da capacidade de interagir com elas 17 Presumindo que o ensinamento de sua entidade foi passado de ‘cabeça’ e ele captou de ‘ouvido’. Aqui, longe de chamar a entidade de ‘objeto’, mas utilizo a citação de Latour como uma iluminação provisória. Utilizo a agência do não-humano em um sentido menos tecnológico do que aquele exemplificado por Latour.

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Entrevista etnográfica, 24 de junho de 2014.

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diante dessa constante instabilidade. O sacerdote me emprestou outros livros, como o Cartografia social dos afrorreligiosos em Belém do Pará (DO VALLE et al, 2012), no qual o Mina Deus Esteja Contigo foi pesquisado, fornecendo diversas informações importantes para a obra e o livro de um sacerdote-autor (CASTILLO, 2012), A hereditariedade Divina dos Seres, de Rubens Saraceni. A respeito deste último, Seu Álvaro me alertou, dizendo ser complicada a sua leitura. E realmente pouco entendi. Alguns meses depois, em conversa etnográfica, Seu Álvaro tornou a falar sobre esse sacerdote-autor, elogiando-o como o escritor, na atualidade, de mais fundamento. 2 Alguma análise

Comentei aqui esses empréstimos de livros alinhavando-os com a presença da tradição oral e a imprevisibilidade das “Entidades” para argumentar justamente

que a presença da escrita não degenera o ethos religioso afro-religioso, assim como também não é dicotômica com a oralidade no Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo, onde ambas são sempre relações situacionais e contextualizadas. É necessário enfatizar as traduções que ocorrem entre essas duas tradições. Logo após a nossa primeira entrevista etnográfica, levei para o sacerdote a transcrição da conversa. Esta fiz tentando ser fiel à oralidade do momento, porém Seu Álvaro perguntou por que as palavras estavam repetidas, parecendo não haver ‘lógica’ no que eu tinha transcrito. Então pediu para que ajeitasse pois ele gostaria de reler, quando necessário, a entrevista. Reconheci que era preciso traduzir o seu discurso, percebendo até um ato ‘etnocêntrico’ meu ao negar-lhe a mesma lógica discursiva escrita que o corpo textual etnográfico teria. A respeito da complexidade da questão, trago outro episódio que a invoca. Em entrevista etnográfica perguntei ao sacerdote se ele indicava alguma leitura para o desenvolvimento de suas filhas e filhos de santo e sua resposta foi afirmativa, enfatizando sugerir com frequência, embora raramente fosse atendido. No mesmo dia me explicou que a preparação das filhas e filhos estão, basicamente, separada em quatro partes, com duração total de sete anos: “batismo”, “coroação”, “cruzamento” e “confirmação”, dizendo que isso estava inclusive no estatuto da Federação19. Mais uma vez o registro em estatuto não anula os aspectos orais e ‘tradicionais’ da Mina Nagô encontrados no terreiro. Conjuntamente com essa preparação há a feitura dos “remédios”, os “amacis”20 para fortificar a cabeça do “médium”, as orações na 19 Federação Espírita Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiro do Estado do Pará. No corrente ano a Federação está completando 50 anos. Para um estudo primoroso sobre essa instituição e sua relação com as religiões afro-paraenses consultar Vergolino (1976). 20

Sobre os remédios e os banhos feitos para fortificar a cabeça do médium consultar Figueiredo (1983).

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“camarinha”, inclusive em “dialeto” conforme nos conta Seu Álvaro. Isso nos aponta que independentemente da aprendizagem ser oral ou escrita, nas religiões afro brasileiras, ou no Mina Deus Esteja Contigo, o conhecimento é embodied, encarnado, multissensorial (CSORDAS, 2008; CASTILLO, 2010; ESTEBAN, 2013), e sobretudo, imprevisível. Como veremos, a escrita, e também os registros audiovisuais estão presentes nas religiões afro-brasileiras desde, praticamente, sempre (CASTILLO, 2012; FERRETTI, 1992, p .10). Aqui, peço para citar um caso meta-etnográfico ocorrido conosco, mais uma vez relatando aquele primeiro empréstimo de livro, o de Figueiredo (1979). Essa foi uma das primeiras visitas ao campo e não havia ainda tido acesso a essa obra. Foi da boa vontade do sacerdote que tive oportunidade de ler essa obra clássica do campo afro-paraense. Nela, encontra-se a passagem: É muito comum encontrarmos nas estantes dessas pessoas que receitam as plantas que curam, para as doenças naturais e não naturais, ao lado de livros e folhetos populares que tratam do assunto, e que são vendidos nas portas dos mercados e nas feiras, como igualmente nas casas de artigos de Umbanda, publicações de cientistas sociais brasileiros e estrangeiros e até mesmo de botânicos, que escreveram sobre esse tema. Essa literatura é interpretada por esses agentes dentro de seu mundo ideológico e é reformulada de tal forma que, salvo as receitas que são memorizadas, o conteúdo da mesma exteriorizada por eles, não guarda mais o seu significado de origem (FIGUEIREDO, 1979, p. 27).

O autor aponta o uso da escrita e da leitura nas religiões afro-brasileiras no Pará, embora aqui, no lugar de “Essa literatura é interpretada por esses agentes dentro de seu mundo ideológico” (idem), diria que essa literatura é interpretada de acordo com as epistemologias dessas religiões. Silva (2006, p. 146) aponta as etnografias das religiões afro-brasileiras como possibilidade de sistematizar o saber afro-religioso e a transmissão escrita da tradição oral. Em nosso trabalho de campo vimos que isso é possível, porém, de acordo com as epistemologias afro-brasileiras a utilização da escrita é diferente da ‘sociedade envolvente’. O sacerdote do Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo é exigente para com os escritos científicos sobre sua religião. Quando tentei quebrar o empréstimo de livros em via única - dele para mim, emprestei um dicionário sobre o tema afro-brasileiro. Depois de alguns dias Seu Álvaro comparou os escritos do autor – não direi seu nome aqui, apenas que é de renome dentro de nossa área, tendo mais de 30 anos de pesquisa de campo acumulada; com um popular escritor brasileiro: “Porque o Paulo Coelho tira as coisas da Bíblia e coloca nos livros dele achando que ninguém vai saber. Aqui ele escreveu três páginas sobre a figa e não disse nada. Não tem fundamento”21. Instigado ainda pela polêmica que teve recentemente no Brasil envolvendo um juiz, a Igreja Universal 21 Conversa informal, 28 de abril de 2014. 1296

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e as religiões afro-brasileiras22, Seu Álvaro dissertou sobre as razões de não existir escrita nas religiões afro-brasileiras. Ele nos diz que não tem ‘nada’ escrito por conta da perseguição que a religião e seus seguidores sofreram. Ainda criticando o livro do pesquisador que emprestei para ele, terminou “Não tem nada escrito porque não aparece ninguém capacitado para escrever”, indicando a antropóloga Anaíza Vergolino23 como umas das poucas que tiveram essa capacidade. Pelas conversas que tive com o sacerdote, acredito que além da capacidade do autor, há diversos agenciamentos imprevisíveis, envolvendo os pesquisadores, ‘nativos’, as Entidades e outros instáveis. que conforma determinado escrito com “fundamento” ou não. “O controle que se tem sobre as recepções a que estão sujeitos nossos trabalhos é mínimo” (VELHO, 1994, p. 14), ou nulo. Então, se você escrever essa oração ela não vai funcionar mais...se ela não for inserida na forma religiosa afro-brasileira de apreciação e preparação das coisas. Da mesma forma quando Nina Rodrigues perguntou a um africano se Ogum não era apenas um objeto de ferro e teve como resposta “sim, um simples pedaço daquelle trilho de bond, que ali está, é ou pode ser Ogun, mas somente depois que o pai do terreiro o tiver preparado” (2006, p.48, grifos no original e edição fac-símile). Assim também o são os escritos, precisam de preparo, apreciação, e leitura multissensorial. Últimas palavras A relação entre oralidade e escrita nas religiões afro-brasileiras, assim como é em outras áreas, é complexa. Como vimos, a escrita (quase) sempre esteve presente nessas religiões. No caso afro-paraense, temos atualmente a sacerdote-autora Zeneida Lima (1991) escrevendo sobre a encantaria amazônica e Francelino de Shapanan (2004, 2008). Quando os pesquisadores de religiões afro-brasileiras se surpreendem com os usos da escrita pelo povo de santo não deixa de ser ainda resquício de nossa busca pela pureza africana e a exaltação da tradição oral (Dantas, 1988, Silva, 1993). Nossa análise não deve se atentar em divisões bem definidas entre essas duas esferas da vida humana. Para concluir, gostaria de relembrar o tempo investido por Seu Álvaro em seu desenvolvimento espiritual. Pois certamente falar de escrita e/ou oralidade é falar de tempo. Independentemente da maior influência ou menor das matrizes africanas no Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo a trajetória de seu sacerdote implica em outra relação com o temporalidade. Se a nossa ‘ocidental’ relação com o tempo é combativa, 22 Depois da denúncia de intolerância religiosa pronunciada em vídeos de pastores da Igreja Universal, o juiz responsável resolveu não retirar os vídeos de circulação online, alegando que as religiões afro-brasileiras não seriam religiões por não possuírem um Deus único nem um livro escrito. 23 Anaíza Vergolino é antropóloga, foi orientada por Napoleão Figueiredo na graduação e por Peter Fry no seu mestrado. Pioneira em pesquisa do campo afro-paraense. 1297

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sendo ele “vivido para nós como destruição, ou ao menos como descontinuidade”, nas estruturas de civilização africana o tempo seria o mundo do diálogo, continuidade e complementariedade (BASTIDE, 1992, p. 9). Quando Seu Álvaro nos diz que mesmo no budismo estava fazendo a umbanda estamos diante de uma relação contínua com o tempo de experiência religiosa, ou seja, a totalidade de suas inserções espirituais constituíram a sua experiência religiosa anterior e atual, nos entrelugares (CASTILLO, 2010) da oralidade e da escrita. Referências

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