Se você não me falasse, eu nem saberia! A territorialização do diagnóstico de TDAH em uma instituição federal de educação

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

THIAGO BOGOSSIAN PORTO

“SE VOCÊ NÃO ME FALASSE, EU NEM SABERIA”: A territorialização do TDAH em uma instituição federal de Educação

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação.

Professora Orientadora:

Zoia Ribeiro Prestes

Niterói 2016

THIAGO BOGOSSIAN PORTO

“SE VOCÊ NÃO ME FALASSE, EU NEM SABERIA”: A territorialização do TDAH em uma instituição federal de Educação

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Educação da Universidade Federal

Fluminense

como

requisito

parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________ Professora Orientadora: Profa. Dra. Zoia Ribeiro Prestes Universidade Federal Fluminense

____________________________________________ Professor Co-Orientador: Prof. Dr. Jader Janer Moreira Lopes Universidade Federal Fluminense

____________________________________________ Prof. Dr. Rossano Cabral Lima Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Aos meus alunos passados, atuais e futuros

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AGRADECIMENTOS

À professora Zoia Prestes, minha orientadora, que também se tornou grande amiga e companheira pelo carinho, apoio e “intermináveis discussões” que tivemos ao longo do trabalho. Ao professor Jader Janer, meu co-orientador, por todo o auxílio nas minhas inquietações e dúvidas, pela parceria, amizade e força. Ainda espero um dia que possamos trabalhar juntos. Ao professor Rossano Lima por ter aceitado o convite para participar da banca e por contribuir com o trabalho. Ao meu companheiro Phylipp, pelo amor, apoio, suporte e presença em todos esses anos e por ter compreendido minhas ausências durante o curso desse Mestrado. À minha grande amiga Bruna que, além de ter me apoiado em momentos de fraqueza, disponibilizando carinho e atenção, me deu de presente a revisão criteriosa deste texto. Você não sabe quanto é especial! Aos meus colegas de turma, em especial Marcela e Higor, amigos que carregarei para a vida inteira e com quem compartilhei alegrias, tristezas e decepções em meio as cervejas pelos bares de Niterói. À professora Maria Aparecida Moysés, que me despertou para o interesse nessa temática. Aos meus amigos que entenderam minhas ausências e protelações no período de escrita deste texto. Ao professor Jairo Werner, cujas colocações durante o Exame de Projeto permitiram ao texto achar o seu rumo. Aos professores e professoras que marcaram minha trajetória: Maria Lucia, Marisol, Rogério, Leon, Marli, Maria Tereza, Nelson, Nina, Amélia, Marcelo e tantos outros. À minha mãe Cristina e ao e meu pai Otavio, ao Eduardo e ao Antônio. Aos meus irmãos Gabriel, Pedro e Matheus. Aos professores do Colégio Pedro II que participaram da pesquisa: Isabel, Fátima, Eduardo, Robson, Bárbara, Luís Fernando e Laís. Ao Jesen e ao Eduardo que permitiram que a pesquisa ocorresse. Aos funcionários do PPGEd, sempre prestativos e solícitos.

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'Cause I'd rather stay here With all the madmen Than perish with the sadmen roaming free. David Bowie (in memoriam)

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RESUMO PORTO, Thiago Bogossian. “Se você não me falasse, eu nem saberia”: A territorialização do TDAH em uma instituição federal de Educação. Dissertação de Mestrado Acadêmico. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2016, 98 p. O presente trabalho tem como objetivo discutir a territorialização do diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em uma instituição federal de educação. Com base em referenciais teóricos do pensador soviético Lev Semionovitch Vigotski, debates da ciência geográfica e entrevistas realizadas com o corpo docente, o texto analisa a forma como o TDAH transforma-se em elemento da paisagem do Colégio Pedro II – Unidade Tijuca II. Valendo-se da análise e da triangulação dos relatos dos professores, esta pesquisa evidencia que a escola acaba por reforçar os estereótipos ao classificar certos alunos, tendo por base diagnósticos que os marginalizam e os excluem. Além disso, discuto o trabalho realizado pelo Núcleo de Apoio a Pessoas com Necessidades Específicas (Napne) da escola, criado para auxiliar alunos que necessitam de Atendimento Educacional Especializado, mas também trabalham com os que possuem diagnóstico de transtornos diversos, entre eles os com o de TDAH. Percebi, ao longo da pesquisa, que esses alunos passariam sem ser notados pelos professores, mas acabam ganhando visibilidade por meio do diagnóstico que recebem, o que revela a problemática da generalização expressiva deste suposto transtorno. Os professores apontam ainda para o problema do excessivo uso de medicamentos em apoio a movimentos da sociedade civil contra a medicalização. Nas considerações finais, aponto para a necessidade de uma profunda reforma na escola no sentido de valorizar mais a diversidade e a liberdade. Palavras-chave: TDAH na escola, inclusão, Vigotski, território.

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ABSTRACT PORTO, Thiago Bogossian. “If you didn’t said, I wouldn’t know: The territorialization of ADHD in a federal institution of Education. Dissertação de Mestrado Acadêmico. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2016, 98 p. This work aims to discuss the territorialisation of the diagnostic of Attention Deficit and Hyperactivity Disorder in a federal school. Using the theoretical referentials of the soviet thinker Lev Semionovitch Vigotski and the debate of the geographic science, this text will analyse the way that ADHD transforms itself in an element of the Pedro II – Unidade Tijuca II landscape’s based on interview with teachers of the institution. Using analyse and triangulation of the reports of the teachers, this work will demonstrate that school ends reinforcing stereotype based on a classification of the students diagnosticated, marginalizing and excluding their students. Besides that, the work realyzed by the Centre of Support to People with Special Needs (Napne, in Portuguese), that supports students with deficiency as well as with syndromes, ADHD would pass unnoticed however ends apprehended trough the dyagonise, which demonstrate the problematic of generalization of this syndrome. Still, the teachers appointed to the issue of excessive use of medications, in support to the civil society movement against medicalization. In final considerations, I point towards the necessity of a deep reform in the school, in order to valorize the diversity and freedom. Keyword: ADHD in school, inclusion, Vigotski, territory.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 8 1. VIGOTSKI E A GEOGRAFIA: DIÁLOGO POSSÍVEL? ....................................... 23 1.1. O ESTADO DA ARTE DO TDAH NA ESCOLA ................................................ 25 1.2. VIGOTSKI ............................................................................................................. 28 1.3. O TERRITÓRIO DA/NA ESCOLA ...................................................................... 38 2. O TERRITÓRIO E O CAMINHO DA PESQUISA ................................................. 45 3. TDAH NO CP2: VISIBILIDADE E MARGINALIZAÇÃO ................................... 63 3.1. A VISIBILIDADE DO INVISÍVEL: A TERRITORIALIDADE DO TDAH NA INSTITUIÇÃO .............................................................................................................. 65 3.2. A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO E AS DIFERENTES FORMAS DE APRENDER .................................................................................................................. 86 A TÍTULO DE CONCLUSÃO ..................................................................................... 92 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 95 ANEXO: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ................... 98

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Introdução Descemos num subúrbio de Argel. A praia não fica longe do ponto de ônibus. Mas foi preciso atravessar um pequeno planalto que domina o mar e descer, em seguida, para a praia. Estava coberto de pedras amareladas e de abróteas todas brancas, em contraste com o azul duro do céu. Marie divertia-se espalhando as pétalas das flores, batendo nelas com a bolsa de praia. Caminhamos entre fileiras de pequenas casas de praia com cercas verdes ou brancas, algumas com as suas varandas escondidas por arbustos, e outras, nuas, no meio das pedras. Antes de chegar à beira do planalto, já se podia ver o mar imóvel e, mais adiante, uma faixa de terra, maciça e sonolenta na água clara. Chegou até nós, no ar calmo, um ligeiro ruído de motor. Vimos, muito longe, uma pequena traineira que imperceptivelmente avançava no mar brilhante. Marie colheu alguns cristais de rocha. Da encosta que descia para o mar, vimos que já havia alguns banhistas na praia (CAMUS, 2004, p. 53)

Em O Estrangeiro, Albert Camus conta a história de Mersault: um argelino que foi condenado à morte por assassinar um árabe na praia a troco de nada. Em seu julgamento, o homem é descrito pelo juiz como alguém introspectivo, incapaz de se comunicar com o dono do restaurante onde almoçava todos os dias e que manteve, por exemplo, uma postura de indiferença em relação à morte da própria mãe. Suas ações eram consideradas como as de um indivíduo esquisito e desajustado, o que intensificou o desejo do juiz de condená-lo pelo crime. No entanto, o homem levava uma vida banal e sua história pode ser lida como um drama de qualquer um ao se deparar com uma situação absurda. Nessa e em outras obras, Camus aborda angústias, dilemas e conflitos humanos. Por isso, é considerado um dos mais importantes autores da literatura existencialista de língua francesa. Com base em fatos inusitados ou absurdos, o autor – associado por diversos pesquisadores a uma corrente denominada filosofia do absurdo – constrói profundas e delicadas reflexões a respeito da vida e da morte, da subjetividade, do amor e do humano, temáticas duras para muitos professores e pesquisadores. No momento em que este texto está sendo escrito, estou acumulando as duas funções, o que torna a literatura, a música e a arte em geral um importante ponto de apoio para manter meu equilíbrio em um contexto de ritmo intenso de trabalho e de dedicação ao prosseguimento dos estudos. Sorte minha é que a ciência, em geral, e a educação, em particular, vêm realizando avanços no sentido de superar tradições epistêmicas do passado baseadas na filosofia positivista. Não estamos mais no terreno da suposta neutralidade ou da objetividade absoluta, das hipóteses fechadas ou na uniformidade e previsibilidade dos 8

fenômenos. Aos poucos, os novos pesquisadores foram incorporando novos elementos para as suas investigações, ampliando as suas possibilidades metodológicas, formulando questões complexas, abertas e amplas, sobre as quais não temos respostas prontas, mas provisórias, e expandindo os horizontes em busca de novos sujeitos e novas questões de pesquisa. A escola é um dos privilegiados campos de investigação atualmente para quem deseja interpretar e compreender o humano, sobretudo por meio das relações sociais. Essa instituição passou a ser tema de estudo entre as chamadas ciências humanas e sociais, notadamente a Antropologia e a Sociologia, mas também a Geografia, a História, a Pedagogia e a Saúde, no intuito de compreender a cultura da sociedade. Muitas críticas foram feitas a ela, mas a escola vem se transformando e sobrevivendo com o passar das décadas, mantendo algumas qualidades e defeitos, superando e/ou criando novos entraves. A sociedade passou, nos últimos anos, por inúmeras transformações e, em alguns momentos, é possível observar um esforço de adaptação dessa instituição. Não obstante, nota-se ainda uma resistência à incorporação de novos valores ao cotidiano escolar. Todas as instituições sociais são assim: evidenciam-se como espaços onde os diferentes agentes sociais atuam e entram em conflito em interface com o espaço social mais amplo. Por isso, expressam as contradições presentes na sociedade. Além disso, também podem ser consideradas como uma das arenas de luta para a construção de uma nova sociedade. Em outras palavras, como instituição construída e mantida por sujeitos sociais, ora a escola se apresenta como locus de reprodução das relações sociais, ora como espaço de resistência e de transformação da sociedade, e até mesmo dela própria. Apesar de ter recebido inúmeras críticas – tanto de pesquisadores progressistas quanto de conservadores1 – ela, por vezes, resiste a mudanças; em outros momentos, mantémse “com uma nova roupagem” e, em alguns casos, sofre redefinições com base em novas reflexões produzidas por/sobre ela. Uma dessas transformações pelas quais a sociedade passou nas últimas décadas foi a crescente expansão de diagnósticos de síndromes e transtornos diversos em 1

Não é meu objetivo aqui reduzir todo o pensamento educacional brasileiro de forma dicotômica a duas categorias de pesquisadores. Apenas chamo atenção para o fato de que indivíduos das mais diversas correntes políticas, como o marxismo, o anarquismo e o ultraliberalismo, fazem críticas severas à instituição escolar. Ela ou é acusada de representante de violência simbólica estatal, ou de simples formação de mão-de-obra capitalista e, nos dias atuais, até mesmo de lavagem cerebral por meio de ideologia marxista-leninista supostamente difundida por parte dos professores.

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crianças em idade escolar. Com a profusão de pesquisas a respeito dos chamados transtornos de aprendizagem, cada vez mais meninos e meninas que tiravam notas baixas passaram a ser diagnosticados como portadores de déficits de fala, de escrita ou de atenção, o que levou muitos responsáveis a procurar psiquiatras e outros profissionais da área médica que receitem drogas para evitar o comprometimento dos seus rendimentos escolares. Com o advento da legislação a respeito da Educação Especial, crianças diagnosticadas com deficiências foram obrigadas a frequentar as escolares regulares. Isso causou transformações e adaptações nos territórios dos diversos estabelecimentos de ensino. Em virtude da chegada de um público novo, que antes ficava fora da escola, as instituições adotaram estratégias variadas para reorganizar o espaço e para recebê-las, garantindo a “inclusão” desse público na rotina escolar. Entre todas as deficiências e síndromes presentes na escola, chama atenção o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). É tipo de diagnóstico de maior prevalência em crianças e adolescentes em idade escolar nas escolas pelas quais passei. Assim, o problema que será abordado neste texto pretende discutir a forma como a escola lida com as crianças e adolescentes identificados com esse tipo de transtorno. Como elas convivem no cotidiano do espaço escolar? O que a instituição escolar tem feito depois da chegada do diagnóstico? Como esse diagnóstico se territorializa nos estabelecimentos de ensino? Quais discursos e práticas surgem ou se modificam após a entrada do laudo na instituição de ensino? Contudo, antes de adentrar com mais profundidade a respeito das problemáticas da pesquisa, apresentarei o caminho que explica o que me levou a me interessar por essa temática. Trata-se de trazer a história e a geografia da minha vida para entender a história e a geografia desse texto. Sentir-se diferente, estranho ou estrangeiro – como no romance de Albert Camus – fez parte da minha própria trajetória escolar e isso explica, em grande parte, minha tentativa de compreender os considerados “desajustados” das escolas de hoje – muitos deles meus alunos. O meu percurso

Nasci em 23 de maio de 1990. Durante alguns anos, achei que tinha nascido no primeiro ano da década de 1990. Depois, ao estudar a contagem dos séculos e das décadas nas aulas de História, percebi que, na verdade, sou filho dos anos 1980. De 10

qualquer forma, foi aquela década que marcou minha infância. De fato, grande parte da minha memória dos meus anos de criança carregam os elementos da década de 90: o Super Mario da Nintendo, a volta da sequência de Star Wars e a primeira leva de desenhos japoneses que chegaram por aqui, como Cavaleiros do Zodíaco e, mais tarde, Pokémon. Nem tenho memória das moedas que vieram antes do Real. Muito menos tive costume de brincar na rua. No máximo frequentava, aos domingos, com meus primos, algum parquinho. Tinha gosto mesmo era pelo vídeo game, pelos jogos de tabuleiro e pelas histórias em quadrinhos. Assim como o jovem adulto da obra de Albert Camus, também tenho bastantes motivos para me considerar um estrangeiro. Terceiro filho de um casal de médicos, sempre tive medo de sangue. Meus pais também são estrangeiros nesse sentido. Minha mãe é homeopata e meu pai está trabalhando com gestão hospitalar há alguns anos, portanto não atende pacientes. Desde pequeno, contudo, já identificava o discurso médico presente na minha própria família. Alguns amigos achavam o máximo poder procurar os próprios pais ao menor sinal de mal-estar, sem precisar se deslocar para outro espaço ou ter que aguardar algumas horas para aliviar as suas dores. Eu mesmo nunca pensei naquilo como algo ruim e também sempre entendi que, da boca dos meus pais, saía a verdade – pelo menos quando se tratava dos problemas de saúde. Meus pais sempre tiveram gosto para a literatura, para as artes e para as humanidades – ao contrário do que muita gente poderia pensar: afinal, “são médicos!” – o que fez com que eu crescesse rodeado de livros. Uma das obras que mais marcou minha infância, Maria-vai-com-as-outras, de Sylvia Orthoff, conta a história de uma ovelha que não tinha opinião própria e apenas seguia as outras ovelhas. Se as ovelhas iam para baixo, a Maria também ia para baixo... Quando as ovelhas iam para cima, a Maria também ia para cima... A Maria ia sempre com as outras Um dia, todas as ovelhas foram para o Polo Sul. A Maria também foi. Ai, que lugar tão frio! As ovelhas ficaram todas com gripe. A Maria apanhou gripe também... Atchim!

Maria sempre ia atrás das ovelhas, ainda que isso significasse algo ruim para ela no final, como uma doença. Em outro trecho do livro, as ovelhas foram para o deserto, e Maria pegou até uma insolação. Até que um dia, as ovelhas subiram o Cristo Redentor e decidiram pular lá de cima. Uma a uma, elas iam quebrando as patas e chorando ao cair 11

no rochedo. Maria, ao olhar para o que estava acontecendo, tomou uma decisão drástica: decidiu que seria feliz sem precisar seguir os outros! Decidiu que só iria para onde levasse o seu pé. A história termina por aí, com um final feliz, mas sem narrar os dilemas e conflitos de uma ovelha que não copia as outras, que rema contra a corrente e acaba sendo uma estrangeira. Por causa da preocupação dos meus pais com minha formação, eles optaram por me matricular no Centro Educacional Anísio Teixeira (CEAT), uma escola privada humanista e progressista do Rio de Janeiro, com viés crítico e com um projeto pedagógico um tanto alternativo. A educação desenvolvida lá é uma mistura de construtivismo com pedagogia histórico-crítica. A formação dos jovens não está pautada apenas no ensino conteudista, limitado à troca de conhecimentos dentro da sala de aula; pelo contrário, vai muito além graças a ações pedagógicas criativas, como elaboração de oficinas promovidas em todas as séries que envolvem música, artes visuais, expressão corporal e teatro. Gostava de estudar no CEAT, especialmente quando entrava em contato com crianças de outras escolas. Sabia que estava tendo uma formação bastante diferenciada, não só porque o ensino oferecido estava acima da média, mas também porque estava preocupado com a transformação social e com a emancipação humana. Reconhecia-me como um estrangeiro, em uma sociedade marcada pelo conservadorismo e pela baixa qualidade da educação. Era na escola, no entanto, que acontecia um dos momentos mais terríveis da minha semana: a aula de Educação Física. Diferente da maior parte dos meninos da minha idade, eu não jogava futebol. Não tinha muita habilidade e também não via a menor graça em ficar correndo atrás de uma bola. Na divisão do time, eu sempre era um dos últimos a serem escolhidos, já que minha destreza era reconhecida pelos colegas. Por vezes, o professor sugeria que eu jogasse com as meninas para ter um grupo mais equilibrado, o que, evidentemente, gerava piadas e risos por parte de alguns colegas. Reconhecia-me como um estrangeiro, em uma sociedade marcada por violentos estereótipos de gênero. Esse episódio me remete a outra história infantil, O sapato novo, de Mary França e Eduardo França. José ganhou um bonito sapato vermelho de sua mãe, mas logo descobriu que não deveria sair para brincar com as outras crianças porque não podia sujar o seu sapato novo. Os amigos andavam na rua, pulavam poças, brincavam na terra, e José nunca podia ir junto com eles por causa de seu tênis vermelho. O sapato 12

novo, junto com as histórias da Bruxa Onilda, de E. Larreula e R. Capdevila, marcaram a minha infância, mostravam-me personagens que eram bastante diferentes do que era considerado “normal”, ora valorizando a diversidade, ora mostrando os desafios de se afirmar perante o grupo ou o restante da sociedade. Quando os meninos começaram a conhecer seu próprio corpo e a olhar para outras meninas, eu me descobri olhando para outros meninos. Tinha muita vergonha e sempre evitava conversar sobre esses assuntos. Um dos eventos mais desesperadores do ano, durante a minha infância, era a música “com-quem-será”, que era cantada depois da “parabéns para você”2. Mais tarde, com um pouco de custo, consegui encontrar um grupo de amigos que pudesse me reconhecer e gostar de mim da forma como eu era. Mesmo nessa escola “avançada”, sofri bastante preconceito dos colegas da sala a ponto de, uma vez, a contracapa do meu caderno da escola ter sido rabiscada com os dizeres “sua bicha de merda” por um colega que permaneceu no anonimato. Reconhecia-me e era

reconhecido

como

um

estrangeiro,

em

uma

sociedade

marcada

pela

heteronormatividade e pela homofobia. Um pouco depois, meu senso de autopreservação me tornou uma pessoa um pouco mais distante e introspectiva. Inspirando-me em alguns colegas, comecei a utilizar roupas pretas, camisetas de banda de rock, correntes e cordões, afastei-me do estilo mais recorrente entre as pessoas da minha faixa etária e classe social e me apropriei de símbolos de tribos urbanas julgadas como estranhas pela grande maioria. Era eu me reconhecendo, afirmando a minha identidade de estrangeiro. A despeito dos questionamentos de alguns parentes, escolhi fazer faculdade de Geografia, em grande parte inspirado por professores muito interessantes que tive no Ensino Médio na escola. Na faculdade, a partir do 3º período, entrei em contato com as disciplinas da área de Educação. Enquanto uma parte dos meus colegas achava essas matérias repetitivas ou desimportantes, eu as via com bastante interesse, o que me fazia, mais uma vez, um estrangeiro. Dentro da Geografia, era um dos poucos que gostava da área de Educação. Um dos aspectos que despertou minha curiosidade quando cursei disciplinas relativas ao campo da Educação – tanto na graduação quanto no Mestrado – é a preocupação com o espaço da sala de aula. Na Geografia, aprendemos que não basta 2

Com-quem-será é uma música cantada após o parabéns para tentar formar um casal de brincadeira. Sua letra diz: “Com quem será, com quem será, com quem será que o Thiago vai casar. Vai depender, vai depender, vai depender, se a ... vai querer!”, sempre incluindo alguma menina da escola na letra.

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que o espaço esteja organizado de maneira democrática, é importante que seu uso também seja. Por isso, o espaço geográfico não é apenas o substrato material, isto é, a forma, mas também as relações desenvolvidas entre os seres humanos e entre eles e o espaço – a função. Espaço é forma e função, matéria e utilização. É claro que a disposição das carteiras em círculo não define o caráter democrático das relações professor-aluno e aluno-aluno automaticamente. É importante que a prática nesse espaço também seja democrática. Por outro lado, a organização espacial também é condição sine qua non para a efetivação da prática que desejamos 3 . Na Geografia, poucas vezes, “cartografamos” a sala em círculo. Tive a oportunidade de ser monitor de um projeto relacionado à disciplina de Didática na Faculdade de Educação. Paralelamente, cursava as disciplinas de Pesquisa e Prática de Ensino (PPE) que debatiam o Ensino de Geografia nas escolas. Estas eram as de que mais gostava. Durante uma dessas PPEs, foi possível entrar em contato com um campo de estudos pouco conhecido no Brasil: a Geografia da Infância. Foi nessa época que eu e mais sete amigos da graduação formamos o “Geo B”. Nós, que havíamos entrado no mesmo período, andávamos juntos, fazíamos trabalhos juntos e tentávamos, quando possível, cursar disciplinas juntos. Prosseguíamos discussões iniciadas em sala de aula e criávamos as nossas no intervalo das aulas ou em espaços informais. Também organizávamos, a cada final de ano, o “sebo oculto”, uma variação do “amigo oculto”. Presenteávamo-nos com livros comprados em sebos e ainda tínhamos uma comunidade no site de relacionamento Orkut. Nossa socialização, por meio do grupo Geo B, reunia pessoas que, de alguma forma, não se identificavam com o estilo e com a personalidade padrão que encontramos no curso de Geografia, especialmente na nossa turma. Reuníamos uma grande variedade de personalidades sob o guarda-chuva desse nome, mas acionávamos a identidade “geobeiana” quando fosse necessário nos diferenciar do grupo hegemônico da nossa turma, cujo perfil era demasiadamente preconceituoso ou limitado ao senso comum.

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Geógrafos como Haesbaert e Porto-Gonçalves já nos esclarecem que um dos grandes motivos para os fracassos dos regimes “socialistas” na União Soviética e no Leste Europeu, além do óbvio desenvolvimento de contradições internas muito agudas, foi ter negligenciado a reconfiguração espacial das nações. Buscava-se transformar a sociedade (pré-) capitalista em socialista sem transformar o espaço, ou pior, copiando os modelos urbanos, por exemplo, dos regimes capitalistas. O espaço é produzido pela sociedade e produz a sociedade, de maneira dialética. Reorganizar a sociedade sem reorganizar o espaço é uma luta quixotesca contra moinhos de vento.

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Nessa mesma época, com 19 anos de idade, saí da casa da minha mãe e me mudei para Niterói para morar com meu namorado, que era de São Paulo. Depois de um relacionamento à distância de dois anos, ele estava se mudando para cá e nós estávamos começando a construir nossa vida juntos. Sentia-me, novamente, um estrangeiro, já que fui o primeiro dos meus amigos da minha idade a sair de casa, ainda mais para formar uma família (mesmo que ainda não reconhecida pela legislação brasileira). Em 2011, comecei a participar, como aluno de Iniciação Científica, do projeto “Crianças e Espaços Desconhecidos”. A proposta de estudo estava vinculada ao Grupo de Pesquisas e Estudos em Geografia da Infância (GRUPEGI) 4 . Nesse grupo, são desenvolvidas atividades e produzidas investigações cujo foco está centrado na relação das crianças com o espaço geográfico (e seus desdobramentos como o território, o lugar e a paisagem). O objetivo era contribuir para as recentes reflexões no campo da infância. Um geógrafo estudando a infância é, sem sombra de dúvidas, um estrangeiro. Não é comum a Geografia estudar as crianças. Essa temática, assim como outras que envolvem a subjetividade, a cultura, a imaginação e a brincadeira, muitas vezes, são negligenciadas pela Geografia e só recentemente têm sido consideradas relevantes, talvez porque esses assuntos foram, durante algum tempo, entendidos como temas não “científicos”. Isso se deve ao fato de só recentemente a Geografia ter começado a se esforçar para olhar os sujeitos, incluindo aí as crianças. Essa ciência esteve, durante muito tempo, excessivamente preocupada com seu “objeto” essencial, sua categoria-mãe, que é o espaço concreto, material ou simbólico, referindo-se ao espaço como produto social, mas quase nunca buscando entender esses sujeitos que o produzem. Pesquisas são produzidas a respeito do espaço agrário, do espaço urbano e do espaço industrial sem se lembrar de quem produziu esse espaço. Quem são esses sujeitos que produziram esse espaço? Não há crianças entre eles? Não há crianças trabalhadoras nas fábricas? Não há sem-terrinhas? Não há crianças moradoras de rua ou em áreas vulneráveis como encostas de morros? Não há crianças estrangeiras que, ao imigrarem, precisam se readaptar às novas dinâmicas territoriais encontradas?

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Grupo de Pesquisas UFF/CNPq coordenado pelo professor Jader Janer Moreira Lopes. Conferir o blog do grupo: http://geografiadainfancia.blogspot.com.br/.

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É importante destacar, contudo, que esse movimento não foi um “privilégio” apenas da Geografia. Diversos saberes acadêmicos invisibilizaram esse momento da vida humana e sua presença na produção e na construção das sociedades. A ciência não se importava com as crianças, elas não produziam nada de relevante e estudá-las seria “perda de tempo”. Minha percepção, com o passar do tempo da investigação, no entanto, foi diametralmente oposta. Quando entrei na Creche-UFF 5 , pude perceber quanta vida aquelas crianças possuíam. Como pode tanta energia criativa, imaginativa, intensa e expansiva em seres tão pequenos? Cheguei a esse espaço totalmente aberto para aprender e observei que as crianças têm um enorme potencial, que pouco ainda se sabe sobre suas lógicas de funcionamento, sobre suas formas de instrução e de comunicação, sobre seus interesses e desejos. Consegui entender a infância como um momento da vida que detém significado em si mesma, é, pois, constituída de uma totalidade própria, não limitada apenas aos seus projetos de adultização. Ao mesmo tempo em que ia desenvolvendo minha pesquisa empírica, comecei a ler a fundamentação teórica que meu orientador me indicou. Da Creche-UFF, minha pesquisa deslocou-se para uma outra unidade municipal de educação infantil na cidade de Niterói, onde, já com o instrumental teórico-metodológico mais adequado, desenvolvi uma investigação de caráter qualitativo sobre a construção de conceitos científicos com crianças pequenas. Minha monografia de conclusão de curso de graduação foi sobre essa experiência, baseada nos teóricos da Sociologia da Infância, da teoria histórico-cultural e da Geografia da Infância. Enquanto terminava a monografia, comecei a cursar uma pós-graduação lato sensu a nível de especialização em Educação Básica (Ensino de Geografia), na Faculdade de Formação de Professores, em São Gonçalo, e iniciei meu trabalho como professor de Geografia no Nível Fundamental. As discussões desenvolvidas na pósgraduação me permitiram ser um professor mais cuidadoso e refletir mais sobre a minha prática, incentivaram-me ainda mais para prosseguir meus estudos a nível de Mestrado, obviamente na área de Educação. Em 2014, ingressei no Programa de Pós-Graduação da UFF com um projeto sobre Cartografia com crianças, com base na vivência delas dentro do espaço urbano. No começo do segundo semestre do curso, contudo, dei uma guinada em direção ao 5

Unidade federal de Educação Infantil vinculada à Universidade Federal Fluminense.

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tema da presença dos diagnósticos na escola, que já chamava minha atenção há um tempo, mas que somente havia se tornado mais evidente assim que comecei minha carreira no magistério. Três meses depois que me formei, comecei a trabalhar em uma escola privada de Niterói, município localizado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, escola onde continuo lecionando até hoje. Dois meses depois, fui chamado para assumir uma vaga de professor de Geografia na Secretaria Municipal de Educação de Maricá, também na mesma Região Metropolitana, onde fiquei um ano. No final de 2014, fui convocado para assumir um contrato temporário de professor substituto no Colégio Pedro II, renomada instituição federal de ensino na capital carioca, espaço onde se desenvolveu esta pesquisa. Em todas as escolas pelas quais passei, notei, durante os conselhos de classe, uma forte presença de diversos adjetivos nas falas das orientadoras pedagógicas e das coordenadoras para se referir a certos estudantes: “hiperativo”, “TDA”, “DDA”, além da utilização de expressões como “tem déficit de atenção”, “toma Ritalina”, “toma conserta”. Nunca questionei abertamente o uso desses termos nesses espaços, mas me perguntava: por que tantas crianças de apenas 11 ou 12 anos tinham tantos diagnósticos e tomavam tantos remédios? Percebi que há um número considerável de estudantes diagnosticados com uma série de transtornos. Esses jovens são acompanhados por especialistas da psicologia, psiquiatria, neurologia, entre outros profissionais da área da saúde, e tomam medicamentos. Esse fato muito chamou minha atenção e, com a ajuda da minha orientadora, construí um novo projeto para estudar o que a escola faz com os alunos diagnosticados com o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Outro episódio que contribuiu para que eu prosseguisse com esse tema de pesquisa foi uma palestra a que assisti da Dra. Maria Aparecida Moysés na UFF em 2013, pediatra e professora da Unicamp. Em sua apresentação, ela nos relatou casos de crianças que foram diagnosticadas com TDAH. Seus estudos investigam, com riqueza de detalhes, as histórias de vida dessas crianças, trajetórias marcadas pelo abandono, pelos constantes abusos e pelos mais variados tipos de violência. Sua exposição nos faz despertar para as causas sociais da desatenção e da desobediência e para a dificuldade que as escolas apresentam na compreensão desses casos. A instituição acaba, em algumas vezes, por se desresponsabilizar frente a esse problema e passa a enxergar a criança como a culpada pelo seu próprio fracasso escolar. 17

Diante desse cenário, criei a nova questão que buscaria responder em minha pesquisa de Mestrado: como a escola lida com as crianças que recebem diagnósticos. Cabe ressaltar que o lugar da minha fala não é o de médico ou o de qualquer outro profissional da área de saúde. Sou professor de Geografia da Educação Básica e o lugar de onde eu falo é o de quem está na escola e vem observando algumas movimentações que vêm ocorrendo nos últimos anos. Foi apenas minha trajetória profissional que me pôs em contato com essa temática. Nunca tive uma discussão semelhante no curso de Licenciatura em Geografia, nem mesmo no curso de Especialização em Educação Básica (o que já evidencia a carência de conversas desse tipo na formação de professores). Não tinha debate acumulado a esse respeito e nem formação direcionada para o campo da saúde. Nesse sentido, não pretendo (e nem posso) discutir, em pormenores, questões orgânicas como os efeitos do medicamento que é ministrado para os considerados hiperativos ou desatentos. Faltam-me elementos – formação, leituras, pesquisas empíricas, linguagem – para essa empreitada. Minha observação, assim, centrar-se-á no espaço escolar. Meu foco será a escola – como esses diagnósticos se territorializam nessa instituição? Como é possível notar, parto da ideia de que o TDAH existe, o que já é polêmico na visão de alguns estudiosos. Escolhi não entrar na polêmica, pois não é meu objetivo fazer um debate ontológico do Transtorno. Pontuo, contudo, que, na medida em que ele é utilizado como ponto de partida para a medicação, que pesquisas científicas são realizadas para estudar crianças com essa síndrome, que ele é utilizado como embasamento para diversas ações e práticas da escola e que até os próprios estudantes utilizam o diagnóstico como estratégia de sobrevivência no ambiente escolar, ele passa a existir. Em outras palavras, ao reorganizar o espaço da escola, o enunciado torna-se fato. Não posso afirmar que existe ou que não existe enquanto “disfunção” orgânica, neurológica ou do sistema nervoso. Existe, contudo, como construção social. É possível afirmar, como será visto adiante, que a escola, por focar, de forma demasiada, na aprendizagem como resultado final, acaba por deixar de lado o processo de desenvolvimento. Favorece, assim, a multiplicação dos diagnósticos de TDAH. Uma pequena comparação com um debate estabelecido na Geografia, área da onde venho, pode esclarecer essa questão. Diversos geógrafos brasileiros já debateram se a região Nordeste existe. Alguns deles buscaram criticar as elites políticas dos estados dessa parte do território nacional que se uniram para reivindicar mais recursos do Governo Federal. Essa oligarquia afirmava que seus Estados estavam penalizados 18

pelo flagelo da seca, da fome e da miséria e que, por isso, deveriam receber mais verbas da União. Na década de 1950, inclusive, foi criada a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), com o objetivo de superar a condição de “subdesenvolvimento” e de pobreza dessa região. Embora a crítica desses geógrafos continue extremamente válida, pode-se afirmar, sem nenhum receio, hoje, que o Nordeste existe. Decisões foram tomadas, pessoas se reconheceram e foram reconhecidas, criaram-se identidades regionais – com base na música, na literatura e no cinema por exemplo – usando como base a existência do Nordeste. De categoria de análise, virou espaço vivido. É que, antes de existir como dado concreto, o Nordeste existiu enquanto apropriação intelectual, enquanto categoria construída por um indivíduo ou grupo de indivíduos.

Não há humanização do planeta sem uma apropriação intelectual dos lugares, sem uma elaboração mental dos dados da paisagem, enfim sem uma valorização subjetiva do espaço. As formas espaciais são produtos de intervenções teleológicas, materializações de projetos elaborados por sujeitos históricos e sociais. (MORAES, 1991, p.16).

É fundamentalmente a capacidade dos seres humanos de imaginar o objeto antes de construí-lo que nos distingue dos demais seres vivos. É a consciência – também socialmente determinada – que nos define como homens e mulheres. Os objetos e as formas espaciais criadas pelos seres humanos, por sua vez, podem alterar nosso modo de ver e de se relacionar com o mundo, construindo novos discursos, novas ações e práticas, em um movimento incansável e dialético entre a consciência individual e a sociedade. Nesse debate, aparece outro autor que também servirá, além da Geografia, como importante referencial teórico da minha investigação e que será explorado mais detalhadamente no próximo capítulo. Vigotski afirma que a imaginação permite criar novos instrumentos culturais que vão interferir no mundo e em outros indivíduos. Assim, ao adquirir uma concretude material, essa imaginação “cristalizada”, que se fez objeto, começa a existir e a influir sobre outras coisas. Essa imaginação torna-se realidade. (...). Ao se encarnarem, retornam à realidade, mas já como uma nova força ativa que a modifica (VIGOTSKI, 2009b, p. 29-30).

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Faço essa pequena digressão para reforçar que não busco discutir a existência ou não do TDAH. Reconheço que há muitas pesquisas sendo desenvolvidas a respeito dessa temática no campo da psiquiatria. Sua existência, no entanto, é inquestionável para quem enxerga esse fenômeno dentro da escola: ele já é um dado do nosso cotidiano. O que busco entender é de que maneira ele se territorializa na instituição. Por quais espaços ele passa? De que modo ele interfere nos discursos e nas ações de pedagogos, professores e outros especialistas? Como esses alunos são enxergados no dia-a-dia da escola? Como os próprios estudantes se identificam ao tomarem conhecimento de seu diagnóstico? Compreendo que os pais que levam seus filhos para um médico estão preocupados ou com um possível baixo rendimento ou com um problema de comportamento, sempre pautados em um tipo “ideal” de rendimento ou de comportamento. A escola é, muitas vezes, a responsável por solicitar ao responsável o encaminhamento para um especialista, pois é, por meio dela, que surgem as primeiras “suspeitas” de algum tipo de transtorno de desatenção ou hiperatividade que compromete o desenvolvimento escolar. Esse aspecto da pesquisa será desenvolvido com mais detalhes no último capítulo. O texto a seguir se estrutura de maneira bastante habitual. No segundo capítulo, apresentarei os principais referenciais teóricos que usei como ponto de partida para a pesquisa. Farei um balanço das Teses e Dissertações produzidas a respeito do TDAH na escola com base no Banco de Dados da CAPES e nos Grupos de Trabalho sobre Psicologia e Educação e Educação Especial da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd). Em seguida, serão apresentados os principais autores que foram base para a minha reflexão sobre essa problemática. Nesse momento, serão analisadas as ideias de Vigotski, leituras fundamentais durante a primeira etapa do Mestrado em Educação, além da temática do território, momento em que trato especificamente das contribuições decorrentes de minha formação na área da Geografia. No segundo capítulo, caberão as considerações metodológicas da pesquisa. Pretendo demonstrar as opções epistêmicas que escolhi para o desenvolvimento da investigação, notadamente as entrevistas com os professores. Em seguida, esclarecerei quem são os sujeitos entrevistados e como é o lugar da pesquisa. Nesse trecho, apresento o estabelecimento Colégio Pedro II em seus pormenores. Além disso, discutirei, entre outros temas, as implicações de fazer pesquisa no meu próprio local de

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trabalho; as estratégias de entrevistas empregadas na investigação e seus respectivos valores; por fim, as escolhas feitas no curso dos seis meses de coleta de dados. No terceiro capítulo, o mais extenso e importante, serão apresentados os resultados do trabalho empírico desenvolvido. Serão expostos relatos, notas de campo, registro de observações, entrevistas transcritas – um conjunto de dados que dialogam constantemente com o referencial teórico abordado anteriormente. Farei a triangulação entre as entrevistas realizadas, comparando as narrativas dos professores entre si e buscando identificar a origem dos discursos desses profissionais. Nesse capítulo, exponho os resultados da investigação, chamando atenção para as especificidades encontradas no decurso da pesquisa. Nas considerações finais, enfim, revelo as implicações do trabalho desenvolvido. Proponho, então, um posicionamento da escola no sentido de enxergar seu corpo discente com um olhar mais humano, tomando como base a diversidade de formas de desenvolvimento, e evitando categorias como “normalidade” ou “padrão”, pois ele reforça a exclusão e a marginalização. Além disso, aponto para a necessidade de uma discussão sobre essa temática nos cursos de formação de professores, hoje inexistente. A presente introdução busca traçar os parâmetros gerais que norteiam esta investigação. Da minha trajetória pessoal e profissional, chego ao meu tema e aos objetivos de pesquisa e apresento, em linhas gerais, algumas ideias que aprofundarei daqui em diante. Entendo que essas experiências pelas quais passei não são apenas informações, mas marcas de um percurso. É o que nos acontece, nossa própria existência particular. Larrosa defende que a educação seja compreendida com base no par experiência/sentido. O sujeito que aprende é o sujeito da experiência. Ele é um território de passagem, por onde essa experiência passa e deixa suas marcas.

A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida. (BONDÍA, p. 27).

Apresentar-me como Estrangeiro, como o jovem adulto da obra de Albert Camus, é uma manifestação que compartilho em virtude da sensação de “desencaixe” ou de não pertencimento que muitas crianças sentem no espaço escolar. Cada um de nós é único, mas, muitas vezes, a escola se organiza de forma a solapar e a ignorar a multiplicidade de indivíduos com vivências singulares, buscando um padrão uniforme. 21

No entanto, essas crianças que são taxadas como deficientes ou que ouvem dizer que possuem um déficit também podem encontrar o seu lugar. Às vezes, essa visão nasce na própria escola, quer por motivação própria quer por pressões externas – não importa. Há um movimento dialético e contraditório nessa instituição ao perceber essas diferenças e ao colaborar para que as crianças diferentes compartilhem do mesmo mundo que as ditas “normais”. Contudo, nem sempre compartilhar o mesmo mundo implica respeitar a diversidade de personalidades possíveis. É sobre isso que esse texto vai se debruçar.

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Vigotski e a Geografia: diálogo possível? Já se passaram dias e noites. A piroga não parou de avançar, às vezes por si mesma, empurrada molemente pelo vento oblíquo, às vezes com a ajuda dos remos. Os homens e as mulheres têm a pele queimada pelo sol, enrugada pela água do mar. (...) Certa manhã, ao alvorecer, Matantaré se empertiga. Estão todos dormindo no fundo da piroga, a vela bate, frouxa, ao vento intermitente. E lá longe, no horizonte, nítida e negra como a luz do sol nascente, ela vê uma ilha, depois outra, os picos das montanhas que parecem emergir do oceano. Ela nada diz por enquanto. Põe-se de pé no piso de bambu, estreitando Matankabis na esteira, e fica olhando. Logo um grupo de pássaros brancos atravessa o céu acima da piroga, grasnando, e os viajantes saem do torpos. Ficam de pé e gritam com uma voz aguda, como se estivessem chamando na floresta: aiiiiiiiii! (...) Raga vai-se parecer com um longo corpo negro deitado no mar. Raga a silenciosa, com suas colinas cobertas de fetos e árvores, Raga a muralha de lava com seus picos cobertos pelas nuvens. Raga a misteriosa, onde eles abrirão caminhos novos, tremendo de medo, entre os túmulos dos antepassados. (LE CLÉZIO, 2011, p. 24-25)

Raga¸ título da obra de Le Clézio, é o nome dado pelos habitantes locais de uma das inúmeras ilhas da Oceania, continente praticamente sem chão firme, paradoxo geográfico sem precedentes. O autor aventura-se a compreender a conquista e a colonização desse território sem-terra por meio da literatura. “Um continente antes feito de mar que de terra” – diz ele – “que não foi visto ao ser atravessado pelos primeiros viajantes europeus. O continente do sonho” (LE CLEZIO, 2011, p. 12). Um professor de Geografia investigando os estudantes diagnosticados com TDAH na escola. Trata-se não só de um Estrangeiro, mas também de uma aventura rumo a um oceano desconhecido, onde se procura o que nunca viu, sem saber o que vai encontrar. Meu percurso tem sido semelhante ao da história contada por Le Clézio. Do que julgo que já entendo bem, afasto-me, perco o interesse. Procuro novos mares. Depois, ao retornar ao velho, acabo descobrindo o novo, pois o que conhecia era só uma pontinha. Como a viagem a Raga, que ainda mantém vários mistérios6.

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Os mistérios em Raga parecem que ganharam força após a massificação das viagens aéreas. Os oceanos que ficam por baixo das rotas, como no caso do Pacífico, estão cada vez menos integrados aos “mercados mundiais”. A globalização não é tão homogênea quanto parece, ela também deixa seus buracos. Massey,

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No capítulo anterior, relatei minha narrativa pessoal, em interface com a obra de Camus, isto é, tentei justificar os caminhos que me levaram à investigação sobre a temática do TDAH na escola. No presente capítulo, apresentarei os referenciais teóricos que me serviram de base para a pesquisa empírica: o estado da arte sobre TDAH na escola, a teoria histórico-cultural de Vigotski e a discussão territorial no âmbito da Geografia. O capítulo estrutura-se de modo a permitir o encontro do “velho” (a Geografia) com o “novo” (Vigotski) e com o “novíssimo” (o TDAH na escola), se considerarmos um sentido estritamente cronológico da minha narrativa. A imensidão do oceano de Raga só faz sentido quando analisada à luz do lugar de origem, isto é, da terra firme, do nosso próprio território. Nesse contexto, contudo, o velho interage com o novo e com o novíssimo, tornando o conhecimento ainda mais vivo, entrelaçado e que demonstrará sua força nas páginas seguintes. Esse capítulo está dividido em três seções. Na primeira, faço um levantamento do que já foi falado sobre TDAH na escola nos últimos anos nas pesquisas de Mestrado e de Doutorado na área de Educação. Para tanto, fiz uma busca no Banco de Teses e Dissertações da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e também nos diretórios dos Grupos de Trabalho da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Em seguida, apresento dois referenciais teóricos fundamentais para a minha pesquisa. A terceira seção diz respeito aos estudos desenvolvidos por Lev Semionovitch Vigotski, autor soviético referenciado como principal representante da teoria históricocultural. As principais ideias desse autor permitem um diálogo com a investigação em tela. Em seguida, pretendo trazer aquilo que parece ser a maior contribuição para quem em “um sentido global de lugar”, afirma que a globalização aparentemente reduziu as distâncias e conectou pessoas de forma ágil, mas isso não aconteceu de maneira homogênea. A sensação de compressão “espaço-tempo” (nas palavras do geógrafo David Harvey) não está acontecendo para todos, em todas as esferas de atividade: o Boeing aproximou o Japão dos Estados Unidos, a costa Leste de Ásia a Costa Oeste da América mas os habitantes das pequenas ilhas da Oceania ficaram menos integrados com a nova tecnologia. Afirma Birkett: “Os jumbos permitem que consultores de computação coreanos visitem o Vale do Silício como se batessem na porta ao lado, e que os empresários de Cingapura cheguem a Seattle em um dia. As fronteiras do maior oceano do mundo estão ligadas como nunca. E o Boeing une essas pessoas. Mas o que dizer daqueles povos sobre os quais eles voam, em suas ilhas situadas oito quilômetros abaixo? De que maneira o poderoso 747 traz para eles uma maior comunhão com aqueles cujas praias são lavadas pela mesma água? É claro que não traz. O transporte aéreo pode permitir que os homens de negócio atravessem velozmente o oceano, mas o declínio concomitante do transporte marítimo só aumenta o isolamento de muitas comunidades insulares... Pitcaim, como muitas outras ilhas do Pacífico, nunca se sentiu tão distante de seus vizinhos”. (BIRKETT, 1990, citado por MASSEY, 2000, p. 179).

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estuda a temática do TDAH na escola: o olhar da Geografia. Como dito anteriormente, minha formação pertence a esse campo do conhecimento. Acredito que a discussão sobre o conceito de território pode ajudar a compreendermos de que maneira o diagnóstico é recebido e compreendido pela instituição escolar. Ademais, não posso desbravar um novo oceano sem fazer referência ao meu próprio território. Por isso, trago à tona as contribuições acerca desse termo trazidas por geógrafos brasileiros e estrangeiros.

1. O estado da arte sobre TDAH na escola

Uma busca, realizada em outubro de 2015, no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, utilizando o termo “TDAH na escola”, encontrou dezenove resultados7, sendo catorze dissertações de Mestrado Acadêmico, uma de Mestrado Profissional e quatro teses de Doutorado. Das quatro teses de Doutorado, duas foram realizadas em Programas de Pós-Graduação em Psicologia, uma em Educação e a última em Distúrbios do Desenvolvimento. Dentre as duas teses realizadas no campo da Psicologia, a primeira delas propõe uma leitura do TDAH pautada na psicanálise de Freud e Lacan com base em casos clínicos atendidos pelo Serviço de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. A segunda discute a adaptação e a validação de um teste denominado “Bateria de Habilidades Cognitivas Woodcock-Johnson III”. O estudo compara crianças diagnosticadas com Epilepsia Benigna da Infância com Pontas centro-temporais (EBICT) a crianças com diagnóstico de TDAH. Na primeira pesquisa, o termo escola só aparece em referência ao Serviço de Psicologia, chamado de “clínica-escola” (escola para os estudantes da graduação), enquanto que, na segunda, o público são crianças de escolas públicas. Mais nenhuma menção à Educação aparece no resumo das duas teses. No caso do Doutorado em Educação, a pesquisadora descreve o modo como professores de uma escola pública no município de José Pessoa têm trabalhado pedagogicamente com alunos que recebem o diagnóstico de TDAH. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com professoras do Ensino Fundamental, cujo intuito era 7

Lembrando que, para aparecer como resultado no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, é necessário que todos os termos pesquisados apareçam ao menos uma vez no resumo do texto. Além disso, artigos, pronomes e preposições não são considerados para fim da busca.

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descobrir o conhecimento delas a respeito do transtorno e se essas profissionais utilizavam alguma estratégia específica com as crianças. Na tese de Doutorado em Distúrbios

do

Desenvolvimento,

o

pesquisador

utilizou-se

da

Análise

do

Comportamento e do Manejo Comportamental para compreender, sob método comparativo, se os professores que promovem, ou não, essas técnicas conseguiam amenizar os comportamentos relacionados à desatenção e à hiperatividade em suas salas de aula. Oito estudantes com TDAH foram observados durante o período da sala de aula nessa pesquisa, quatro deles com professores que realizaram o treinamento sobre manejo comportamental, e os outros quatro com professores que não realizaram o treinamento. Já a pesquisadora que realizou a dissertação de Mestrado Profissional em Educação Matemática revelou as contribuições adquiridas em encontros ocorridos em horários extraclasse, ao longo de seis meses, com alunos diagnosticados com TDAH. A pesquisa comprova a melhora do rendimento do grupo que recebe esse tipo de apoio e confirma a necessidade de que se promovam mais ações como essa. Os Mestrados Acadêmicos foram realizados em diferentes Programas de PósGraduação: quatro em Educação, dois em Psicologia, dois em Distúrbios do Desenvolvimento, um em Análise do Comportamento, um em Ciências da Saúde, um em Educação e Saúde na Infância e Adolescência, um Saúde do Adulto e da Criança, um em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde e um em Letras. Três, das quatro dissertações do campo da Educação, investigaram a prática docente e as representações sociais e percepções dos professores da Educação Básica sobre as políticas públicas de inclusão e sobre os estudantes que são diagnosticados com TDAH em sua própria escola. A quarta dissertação debruçou-se sobre dois estudos de caso. A pesquisa mostrou a existência de ações que auxiliavam no resgate efetivo das condições de eficiência e de identidade das crianças – condições, por vezes, perdidas após o diagnóstico de TDAH. As dissertações dos Programas de Psicologia dedicaram-se ao entendimento das visões que psicólogos e mães têm sobre as crianças diagnosticadas com TDAH. A dissertação do Mestrado em Análise do Comportamento, também na área da Psicologia, ocupou-se de famílias com filhos diagnosticados, visando compreender o papel dos responsáveis na organização e na realização das tarefas escolares. Enquanto isso, a primeira, das duas dissertações do campo Distúrbios do Desenvolvimento, investigou as “funções executivas” em crianças sem domínio da linguagem escrita, já a segunda 26

realizou avaliações neuropsicológicas e comportamentais em 78 crianças entre 6 e 11 anos para identificar o comprometimento, ou não, da atenção, comparando os testes tradicionais e os computadorizados. O trabalho realizado no âmbito do Mestrado em Educação em Ciências: Química da Vida e da Saúde avaliou a importância da metodologia de aulas práticas para o efetivo aprendizado das crianças com TDAH. Segundo a autora, a existência de laboratórios e experimentos auxiliam a compreensão pelos jovens diagnosticados com o transtorno dos conceitos científicos. A pesquisa apresentada à luz do Programa de PósGraduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência, por sua vez, ocupou-se em analisar o desenvolvimento das habilidades do Processamento Sensorial de crianças diagnosticadas com esse transtorno. Segundo a autora, as crianças com TDAH apresentam prejuízos significativos no processamento e modulação sensorial, bem como nas respostas comportamentais e emocionais. O Mestrado em Letras buscou compreender as práticas discursivas dos meios de comunicação na subjetivação dos alunos hiperativos. Baseando suas análises na obra de Michel Foucault, o autor analisou revistas de circulação nacional, concluindo que o biopoder do saber médico se institui enquanto verdade nessas publicações, primeiro como forma de exclusão e marginalização das crianças, mas depois como visibilidade e atenção. A dissertação de Mestrado em Ciências da Saúde aborda a Síndrome de Asperger. Verificou-se que a criança é, muitas vezes, primeira e erroneamente diagnosticada com TDAH. Segundo a autora, é necessária uma atenção e um cuidado maior na hora de realizar o diagnóstico, pois corre-se o risco de administrar estratégias ineficientes prejudicando a vida do jovem. Finalmente, o texto produzido no âmbito do Mestrado em Saúde do Adulto e da Criança faz um levantamento quantitativo sobre prevalência de TDAH em escolares de São Luís do Maranhão, com base na epidemiologia. A autora concluiu que o transtorno é predominante no sexo masculino e do tipo desatento, e muitos alunos com Transtorno Opositor Desafiador também possuem déficit de atenção e hiperatividade. Como é possível notar, poucos textos se referem à questão da Educação, de forma mais geral, ou da escola mais especificamente. Muitos resumos citam os estabelecimentos de ensino para justificar os prejuízos trazidos pelo TDAH em termos de atenção, de comportamento ou de rendimento do aluno. A investigação sobre o dia-adia desses estudantes nas escolas só é feita, de fato, em pesquisas da área de Educação,

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que totalizaram apenas 4 Dissertações e 2 Teses. Estas sim tratam direta e simultaneamente do TDAH e da escola. A Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd), por sua vez, possui dois Grupos de Trabalho (GTs) que podem se aproximar da discussão sobre o TDAH na escola: o de Psicologia (20º GT) e o de Educação Especial (15º GT). No entanto, nenhum dos dois dedica-se, efetivamente, aos alunos diagnosticados com TDAH. Os trabalhos do 15º GT estão voltados, em sua maioria, aos estudantes com deficiências, abordando as problemáticas das dificuldades de inserção de crianças e jovens com baixa visão, audição, mobilidade reduzida etc mas sem se aprofundar na temática dos transtornos. O 20º GT, por sua vez, propõe-se a estudar a representações sociais de docentes, a Educação Infantil, a violência, a construção identitária, o processo de aprendizagem e tantas outras temáticas. Na análise dos trabalhos dos dois GTs, desde a 32ª reunião nacional da ANPEd, isto é, nos últimos 6 anos, foram encontrados apenas três trabalhos cujos títulos citam o TDAH, a desatenção, a hiperatividade ou, mais genericamente, a medicalização. Tratase de um trabalho do 15º GT (Educação Especial) na 34ª reunião, em 2011, um outro trabalho do mesmo GT na 36ª reunião, em 2013, e um pôster do 20º GT (Psicologia da Educação) na 32ª reunião, em 2009. Todas as demais reuniões não tiveram um trabalho ou pôster sequer sobre o TDAH ou com palavras correlatas. Esse breve conjunto referencial é resultado de uma pesquisa intensa, realizada graças à CAPES, único órgão responsável por reconhecer e avaliar os cursos de pósgraduação stricto sensu, e à ANPEd, maior entidade da sociedade civil de pesquisa na área de Educação, o que confirma o quão ainda é incipiente o debate a respeito das crianças diagnosticadas com TDAH no âmbito escolar.

2. Vigotski

Lev Semionovich Vigotski (1896-1934) foi um pensador soviético que trabalhou boa parte da sua vida em Moscou (Rússia) e em Gomel, Bielorrússia. Lecionou em escolas primárias, instituições de educação especial e em centros universitários. Com formação ampla em Direito, História e Filosofia, Vigotski popularizou-se, no mundo e no Brasil, em virtude de suas contribuições no campo da Psicologia.

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Apesar de sua vida ter sido breve, uma vez que foi acometido pela tuberculose, Vigotski deixou para o mundo uma vasta obra, entre livros, artigos, palestras transcritas, relatos de experimentos, ensaios literários, revistas científicas e muitos outros documentos. Seu interesse esteve voltado para as temáticas da infância, da brincadeira, do desenvolvimento atípico, da formação das funções psicológicas superiores, da psicologia da arte, dentre outras. Para se ter uma ideia da amplitude do campo de investigações desse autor, em seu trabalho monográfico de final de curso, propôs uma análise psicológica da tragédia Hamlet, de William Shakespeare. Vigotski viveu e produziu suas primeiras obras no calor da Revolução Bolchevique. A defesa de sua monografia aconteceu no mesmo ano do triunfo revolucionário, em 1917. Deu aulas de Literatura Russa, de Psicologia Geral, Infantil e Pedagógica e organizou o gabinete de Psicologia em Gomel, cidade onde passou a infância e parte da vida adulta. Em Moscou, produziu dois livros e formou um grupo de estudos na área da Psicologia. Realizou inúmeras pesquisas e escreveu diversos artigos e relatos científicos, mergulhando de corpo e alma no fluxo das transformações trazidas pela Revolução de Outubro. O objetivo de Vigotski foi colocar a psicologia em bases materialistas e transformar a escola em um espaço para formar o homem da nova sociedade socialista (PRESTES, TUNES e NASCIMENTO, 2013). Uma das mais importantes contribuições desse pensador para o estudo da Psicologia, sem dúvida, foi a introdução do conceito cultura como aspecto fundamental para a compreensão do desenvolvimento humano. Desvendar a natureza social das funções psíquicas, especificamente humanas, tornou-se sua preocupação, já que, para ele, as funções, como o pensamento lógico, a memória consciente e a vontade não estavam prontas ao nascer. Com isso, o autor soviético acabou afastando-se de visões maturacionistas ou inatistas, predominantes à época, no campo dos estudos científicos do desenvolvimento humano. Quando pesquisou sobre a fala, por exemplo, Vigotski afirmou que não bastava a maturação orgânica do aparelho fonador para o surgimento dessa função psíquica. Como a fala é essencial para as relações sociais no meio em que os indivíduos vivem, ela surge por conta da necessidade de as pessoas conviverem e de se comunicarem. Vigotski era, certamente, um estranho no ninho. Isso porque muitas das principais ideias aceitas nesse período estavam pautadas em uma concepção evolucionista e inatista do desenvolvimento, que reduzia, ao mínimo, a influência

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externa do meio. Isso não quer dizer, contudo, que Vigotski não dava importância para o aspecto biológico do desenvolvimento. Segundo Prestes (2012):

Vigotski não negava a importância do biológico no desenvolvimento humano, mas afirmava que é ao longo do processo de assimilação dos sistemas de signos que as funções psíquicas biológicas se transformam em novas funções, em funções psíquicas superiores. Para ele, todo processo psíquico possui elementos herdados biologicamente e elementos que surgem na relação e por influência do meio. (PRESTES, 2012, p. 21).

É nesse sentido que o autor defende, referindo-se aos estudos de Pavlov, que, na personalidade, tudo é construído sobre a base genética do indivíduo. Ao mesmo tempo, tudo nela também é supraorgânico e social. As forças motrizes do desenvolvimento do caráter8 – segundo ele – estão atreladas à necessidade de viver em um meio histórico e social, fazendo emergir funções orgânicas de acordo com as exigências apresentadas por esse meio. Não há organismo humano sem uma unidade social (VIGOTSKI, 2006, p. 280-281, grifo do autor). O conceito de meio é fundamental para a compreensão da teoria vigotskiana e também um dos pontos em que a Geografia e a obra desse autor dialogam. Como não é possível compreender o desenvolvimento humano sem a consideração do contexto histórico-cultural e geográfico, Vigotski e a teoria do espaço se entrecruzam. Em outras palavras, o meio torna-se também peça-chave do desenvolvimento infantil. Com base em uma abordagem dialética, ele entende que o meio não é simplesmente um palco ou um mero assistente ao desenvolvimento, mas a fonte direta desse processo. Dependendo da idade da criança e de como está organizado o seu meio, o desenvolvimento dela ocorrerá de forma diferente. Sobre isso diz Vigotski:

Chegamos à conclusão de que o meio não pode ser analisado por nós como uma condição estática e exterior com relação ao desenvolvimento, mas deve ser compreendido como variável e dinâmico. Então o meio, a situação de alguma forma influencia a criança, norteia o seu desenvolvimento. Mas a criança e seu 8

Ao utilizar a expressão caráter, Vigotski não está se referindo à índole ou a um posicionamento individual frente a questões éticas que, normalmente, enfatizamos quando usamos essa palavra nos dias atuais. Apesar de não se referir explicitamente ao significado desse termo o autor demonstra, em outros momentos do texto, que o está entendendo como um conjunto de aspectos sociais e psicológicos do indivíduo, que não são mais dados estáticos, definidos pela biologia ou pelos “traumas de infância”, – uma crítica ao pensamento freudiano – mas que são dinâmicos e estão em constante redefinição. É nesse texto que ele faz uma das mais importantes defesas da educação em sua obra.

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desenvolvimento se modificam, tornam-se outros. E não apenas a criança se modifica, modifica-se também a atitude do meio para com ela, e esse mesmo meio começa a influenciar a mesma criança de uma nova maneira. Esse é um entender dinâmico e relativo do meio – é o que de mais importante se deve extrair quando se fala sobre o meio na pedologia. (VIGOTSKI, 2010a, p. 691).

Ao contrário do que foi propagado na década de 1970, quando as ideias de Vigotski chegaram ao Brasil por meio de traduções indiretas e/ou contaminadas ideologicamente, para esse autor, o desenvolvimento humano não se dá exclusivamente por meio da interação com o meio. Com isso, não é possível classificá-lo como sendo interacionista ou sociointeracionista como foi feito durante anos. O pensamento dialético presente em sua teoria nos convida a pensar e a estudar os fenômenos humanos em termos de unidade. Meio e indivíduo são indivisíveis: não há desenvolvimento humano sem se considerar o meio, e não há meio sem a figura do humano para interpretá-lo. Nesse sentido, é rica a contribuição que esse pensador traz para uma visão relacional de espaço geográfico. Há um paralelo possível entre o conceito de meio e o de espaço visto que o contexto espacial não é absoluto, mas é abordado por meio de uma dimensão relativa. Vigotski estabelece, assim, o conceito de vivência como unidade fundante do humano, condição própria das crianças de serem/estarem no mundo sempre inseridas em seu contexto histórico-cultural. As palavras e as ações de crianças e adultos estão intimamente arroladas em seus espaços e tempos, com vivências que marcam cada uma das experiências (LOPES e MELLO, 2016).

Existe assim um meio/contexto geográfico ofertado que se modificaria a cada momento para a criança, em suas diferentes idades e existe uma criança que se encontra com esse meio/contexto geográfico, não num processo de interação mecânica, onde cada um situa-se num lado, mas num uno, pois [...] a criança não está no espaço, não está no território, não está no lugar, não está na paisagem; ela é o espaço, ela é o território, ela é o lugar, é a paisagem, é uma unidade vivencial. (LOPES, 2012, p. 221).

Uma das mais significativas contribuições da teoria vigotskiana diz respeito ao desenvolvimento da fala ─ para ele, uma das funções psicológicas superiores. O autor faz uma leitura crítica dos postulados de Jean Piaget. Este considerava que os fatores biológicos geravam formas universais de desenvolvimento cognitivo. As origens do desenvolvimento, segundo a visão piagetiana, já estariam presentes no organismo, 31

estruturadas de maneira inata. A teoria histórico-cultural não ignora a existência de mecanismos psicológicos universais, todavia não os compreende fora da cultura. Desta forma, o contexto geográfico da criança também pode influenciar no surgimento ou não da fala. Ainda que o conceito de linguagem apareça em obras que chegaram até nós (como em Pensamento e Linguagem, uma das mais conhecidas de Vigotski), Prestes afirma que, na verdade, o autor está se referindo à fala. Esta é uma categoria da linguagem, está contida nela, e, para Vigotski, é a primeira neoformação da infância em humanos. Ele entende que, quando a criança está aprendendo a escrever, ela primeiro escreve exatamente o que ela fala. Assim, diferencia a fala oral da fala escrita, quase nunca utilizando a ideia de linguagem, que também está presente em outros animais (PRESTES, 2012, p. 215-217). A respeito do problema das traduções, é importante notar que há bem pouco tempo tínhamos acesso restrito às obras de Vigotski, pois muitas traduções que chegaram ao Brasil tiveram suas compilações cotejadas de material traduzido para outras línguas, sobretudo do inglês. Essas traduções indiretas não permitiam um estudo aprofundado e preciso da obra desse autor. O livro Mind in Society, conhecido no Brasil como A Formação Social da Mente, muito famoso entre estudantes de Pedagogia no Brasil, por exemplo, não foi escrito por Vigotski, mas organizado por autores norteamericanos que compilaram textos diversos do autor, o que, evidentemente, acarretou interpretações imprecisas dos escritos originais.

Os organizadores [do livro] explicam também que fazem uma junção de obras do pensador russo que, originalmente, estão separadas e pedem ao leitor que não leia o livro como uma tradução literal, mas sim editada "da qual omitimos as matérias aparentemente redundantes e à qual acrescentamos materiais que nos pareceram importantes no sentido de tornar mais claras as ideias de Vygotsky" (p. XIV). Em seguida, já no final do prefácio, explicita-se uma problemática ética. Os organizadores do volume deixam claro que tinham perfeita noção de que, "ao mexer nos originais poderiam estar distorcendo a história" (p. XV). Porém, preferem fazê-lo e consideram que a simples referência a essa ação absurda deixa-os livres de qualquer crítica, pois, como eles mesmos dizem, "deixando claro nosso procedimento e atendo-nos o máximo possível aos princípios e conteúdos dos trabalhos, não distorcemos os conceitos originalmente expressos por Vygotsky" (p. XV). (PRESTES, 2012, p. 174)

Aparentemente, a tradução realizada de forma direta poderia significar uma fidelidade maior à obra original. Prestes afirma que isso não ocorreu no caso de 32

Vigotski. Até títulos de obras foram alterados e saíram com edições diversas no Brasil. Segundo a autora, mesmo as traduções diretas não permitiram fazer um estudo aprofundado da teoria vigotskiana, o que também contribuiu para o surgimento de equívocos teórico-conceituais. Por isso, faz-se necessário acompanhar as novas traduções dos conceitos vigotskianos da língua russa para o português, como também verificar se esses termos estão referenciados na visão geral da teoria desse autor; do contrário, corre-se risco de distorcer ou mal interpretar seus enunciados (PRESTES, 2012). Essas informações nos ajudam a perceber um pouco alguns problemas que envolvem a tradução. O surgimento do pensamento de Vigotski estabeleceu-se, no Brasil, na década de 70, quando o mundo estava organizado de acordo com a ordem internacional polarizada entre os Estados Unidos e a União Soviética. A produção a que tivemos acesso nos foi trazida por meio de fontes secundárias e foi apropriada por diversos grupos que sequer questionaram as possíveis alterações e intervenções em seus estudos. Prestes afirma que as traduções tinham intenção “de apresentar um Vigotski menos marxista, menos comprometido com o regime socialista” (PRESTES, 2012, p.115) Contudo, mesmo algumas traduções realizadas de forma direta do russo para o português, possuem inconsistências, imprecisões e confusões teóricas, além de contradições em relação ao pensamento vigotskiano. Um dos conceitos mais difundidos entre estudantes de Pedagogia e das Licenciaturas em geral, por exemplo, foi o de zona de desenvolvimento proximal ou imediato (de acordo com diferentes traduções). Prestes critica a utilização dessas palavras, pois proximal e imediato não transmitem a relação existente entre instrução e desenvolvimento e a ação colaborativa ativa do outro.

Quando se usa zona de desenvolvimento proximal ou imediato não está se atentando para a importância da instrução como uma atividade que pode ou não possibilitar o desenvolvimento. Vigotski não diz que a instrução é garantia de desenvolvimento, mas que ela, ao ser realizada em uma ação colaborativa, seja do adulto ou entre pares, cria possibilidades para o desenvolvimento (PRESTES, 2012, p. 190).

Pelo fato de a característica essencial da zona de desenvolvimento, trazida pela teoria de Vigotski, ser de possibilidade, a autora propõe a utilização do termo zona de desenvolvimento iminente. Com essa expressão, é possível entender que o nível de desenvolvimento atual representa, na criança, o que já está amadurecido, aquilo com o 33

que ela opera de forma independente, e uma zona de desenvolvimento iminente compreende, em si, processos ainda não amadurecidos, mas que já se encontram a caminho e que poderão se desenvolver. A boa instrução é aquela que se adianta ao desenvolvimento, atuando nessa área. Com a ajuda de um adulto, essa nova função pode desabrochar. (Idem, p. 204-205). A expressão instrução, aqui, não é utilizada sem cuidado. Trata-se de outra das tantas palavra e expressões escritas por Vigotski traduzida, de forma equivocada, normalmente por aprendizagem. Muitas edições brasileiras trazem esse conceito, o que comprometeu o rigor de muitos estudos e interpretações sobre esse autor. Em A construção do pensamento e da linguagem (2009), por exemplo, o tradutor afirma ter escolhido traduzir a palavra obutchenie, do russo, como aprendizagem.

Partindo da elasticidade semântica dessa palavra e do fato de que Vigotski cria toda uma teoria da educação, mas o faz menos como pedagogo e mais como psicólogo, traduzimos obutchenie quase sempre por aprendizagem e só raramente por ensino, porque o autor trata muito mais dos processos cognitivos, da aquisição de conteúdos e sistematização dos conhecimentos (VIGOTSKI, 2009a, p. VIII [Prólogo do tradutor])

No entanto, ao utilizar a palavra obutchenie, em russo, Vigotski não estava se referindo apenas ao processo de obtenção, aquisição e assimilação de conceitos e conteúdos – o que é comumente referido como o processo psicológico de aprendizagem. Além disso, a aprendizagem é um processo pessoal, individual. De acordo com a visão vigotskiana, educação é a transformação do indivíduo por meio das relações com outros indivíduos, ou seja, ocorre em coletividade. Nessa perspectiva, o resultado final não é o mais relevante, mas a forma como a atividade colaborativa intencional, ou não, de instrução pode impulsionar o desenvolvimento do indivíduo. Por isso, traduzir obutchenie como aprendizagem é simplificar todo o complexo processo de desenvolvimento humano ao aspecto cognitivo, sem considerar a teia de relações sociais toda vez que há um conhecimento novo sendo construído. Além disso, a maioria das teorias da aprendizagem trata o ambiente como neutro, isto é, sem considerar a especificidade do meio para cada idade da criança, o que vai de encontro ao pensamento de Vigotski (PRESTES, TUNES e NASCIMENTO, 2013). Prestes (2012) também revela a complicação que envolve a palavra russa obutchenie. Segunda a autora, a discussão é controversa, na medida em que tradutores

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norte-americanos também tiveram dificuldade de encontrar um significado para esse termo. Em primeiro lugar, porque se trata de uma atividade e não de um processo psicológico. Não importa apenas o resultado, mas as ações, que contêm os elementos que promovem o desenvolvimento. Segundo Prestes, Vigotski está se referindo ao estudo, a aprender por si mesmo.

Para Vigotski, obutchenie é uma atividade, atividade essa que gera desenvolvimento [...]. Nesse sentido, o termo aprendizagem, no nosso entender, não consegue transmitir a ideia em obutchenie – atividade que leva em conta o conteúdo e as relações concretas da pessoa com o mundo. (Idem, p. 219-220, grifos da autora).

Em segundo lugar, o verbo utilizado por Vigotski nos textos originais permite o uso reflexivo. Uma vez adotada a palavra aprendizagem como tradução, teríamos algo como “aprender-se”, portanto um vocábulo inexistente na língua portuguesa. Partindo desses dois problemas, Prestes (2012) identificou que a tradução mais apropriada para a palavra obutchenie seria instrução, que, na forma reflexiva, vira instruir-se, isto é, estudar e aprender por conta própria. Isso se deve ao fato de que essa a atividade de instrução é, para Vigotski, uma das “atividades-guia”, aquela que orientará o desenvolvimento do indivíduo em determinada fase de sua vida e possibilitará a emergência de neoformações. Trata-se de um conceito-chave do pensamento do autor e não pode ser confundido com o processo psicológico da aprendizagem (PRESTES, TUNES e NASCIMENTO, 2013). A relação entre a instrução e a zona de desenvolvimento iminente é um dos pontos basilares da teoria Vigotskiana que, infelizmente, foi mal interpretada durante muitos anos no Brasil. Ao invés de entender que a aprendizagem vem antes do desenvolvimento e que, por isso, o professor deve atuar na zona de desenvolvimento proximal para auxiliar o aluno a se desenvolver, com base nas novas traduções e interpretações da teoria histórico-cultural, entende-se que a instrução (ação consciente e induzida) do professor pode ou não auxiliar o desenvolvimento do indivíduo. “Somente é boa a instrução que ultrapassa o desenvolvimento da criança”, quando está à sua frente, diz Vigotski. “Para criar a zona de desenvolvimento iminente, ou seja, para gerar uma série de processos internos de desenvolvimento, são necessários processos de instrução escolar corretamente estruturados” (VIGOTSKI, 2010b, p. 283) Mais do que simplesmente uma mudança de nomenclatura, trata-se de uma transformação paradigmática sobre o papel da escola no desenvolvimento das crianças e 35

dos adolescentes. A ação consciente e colaborativa do professor (que não é um “mediador”) pode ou não auxiliar no desenvolvimento do indivíduo. Ao invés de entender que o desenvolvimento é dado a priori, Vigotski assume a posição de que desenvolvimento é uma possibilidade. Em outras obras, o autor se posiciona novamente a respeito da educação como prática consciente, intencional e relacional – no sentido de relação social. Assim sendo, mais uma vez afasta-se das ideias maturacionistas ou organicistas acerca do desenvolvimento. No 2º capítulo de Pensamento e fala9, Vigotski críticas à teoria de Jean Piaget. Segundo ele, a concepção piagetiana deriva da teoria de que o pensamento da criança é egocêntrico pois sua fala é egocêntrica. Ainda segundo Piaget, a fala egocêntrica não cumpre função comunicativa e nem mesmo qualquer função útil, apenas imprime ritmo às suas ações. É uma fala para si, espécie de devaneio verbal. Segundo Piaget, é a forma primeira, fundamental e direta do egocentrismo do pensamento infantil. Ocorre, pois, que a criança não possui vida social durável até os sete ou oito anos, por isso, diz Piaget, a fala egocêntrica desaparece no processo de desenvolvimento da criança. (VIGOTSKI, 2009a, p.27-51). Além de outras afirmações problemáticas, Vigotski destaca fato de Piaget acreditar que a fala egocêntrica simplesmente desaparece. Do ponto de vista do desenvolvimento, tratar-se-ia de uma aprendizagem que se reduz ao simples campo cognitivo. De acordo com os pressupostos da teoria histórico-cultural, contudo, o desenvolvimento humano pode ser estudado e compreendido por meio das relações sociais. Nos experimentos conduzidos por Vigotski, por exemplo, o coeficiente de fala egocêntrica nas crianças aumentava quando os adultos introduziam dificuldades e complicações. Essas perturbações levavam-nas a tomar consciência de sua atividade. Diante disso Vigotski formulou sua tese: a fala egocêntrica não é vazia de sentido e muito menos associal. Ela é uma etapa de transição da fala exterior para a interior, da social para a individual, serve, pois, ao pensamento e possibilita o planejamento das ações (Idem, p. 52-65). Essa aparente digressão acerca do pensamento vigotskiano visa apontar a relevância que o social adquire para o entendimento do desenvolvimento humano. De acordo com o pensamento do autor, instigar a criança a solucionar um desafio ou 9

A obra “Pensamento e fala” teve edições diferentes traduzidas para a língua portuguesa, inclusive com alterações no título. Para uma discussão a respeito do título da obra de Vigotski no Brasil, conferir Prestes (2012).

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problema, retirá-la de uma situação passiva e promover seu pensamento autônomo de forma a ampliar, ao máximo possível, a visão de mundo é o caminho para a formação de homens e mulheres livres.

Portanto, a ideia de “aprendizagem” não deve ser um

conceito central da teoria histórico-cultural, já que Vigotski está se referindo a uma atividade e não a um processo psicológico (PRESTES, TUNES e NASCIMENTO, 2013). É verdade que o termo instrução também carrega uma enorme polêmica: é uma categoria comumente usada como a de diferenciação para quem é escolarizado e não é, muitas vezes, de maneira pejorativa. O não instruído, nessa concepção, é visto como inábil e ignorante. O próprio conceito de instruir, por vezes, é relacionado a uma visão tradicional de educação, em que os professores transmitem conteúdos e valores para os alunos. Instruir adquire o sentido de doutrinar e adestrar, o que certamente é bastante diverso do que Vigotski quis dizer. Apenas uma noção ampla da teoria vigotskiana permite-nos compreender qual sentido ele dá para as palavras que usa. Além disso, nenhuma tradução é perfeita e existem certas palavras que simplesmente não carregam o mesmo significado que as da língua original. Apesar de meu objetivo não ser o aprofundamento da discussão a respeito dos desafios e dos dilemas das traduções, cabe destacar, contudo, que nenhuma tradução conseguirá transmitir exatamente o que o autor disse. Dentre as palavras disponíveis no nosso léxico, instrução apresentar-se como mais adequada, pelos motivos abordados anteriormente – especialmente pelo fato de se tratar da espinha dorsal do pensamento vigotskiano. A apresentação que se seguiu não pretende esgotar todos os aspectos do pensamento desse importante autor. Busca, no entanto, apontar para as novas possibilidades que o campo da Psicologia e da Pedagogia podem encontrar com base em novas traduções mais cuidadosas da obra desse autor. Infelizmente, muitos textos importantes ainda não foram traduzidos, como os escritos sobre a defectologia. É necessário, portanto, localizar traduções referenciadas em outras línguas e que façam sentido de acordo com a teoria mais ampla de Vigotski. A obra de Vigotski representa uma contribuição para problematizar, entre muitas outras questões, a demasiada importância que a escola dá para o fenômeno da aprendizagem como finalidade, e não do desenvolvimento como processo. Com isso, perdem-se as muitas possibilidades que uma concepção ampla, incluindo o contexto histórico-cultural, permite para pensar sobre o público que frequenta a escola. É 37

possível afirmar que, com a estrutura rígida que a maioria das escolas existentes hoje em dia possui, a teoria de Vigotski não pode sequer ser aplicada. Todavia, ela permite pensar sobre uma nova possibilidade, o que pode significar (ou não) uma transformação do território da escola. Nas palavras de Marx (e Vigotski era um leitor voraz de suas obras): sem teoria revolucionária, não pode haver prática revolucionária.

3. O Território da/na Escola

A Geografia é reconhecida, nos dias atuais, como uma das ciências que se interessa pelos fenômenos sociais. Ao buscar compreender a sociedade, a categoria analítica mais importante é o “espaço geográfico”. No entanto, outros conceitos como território, lugar, região e rede também são utilizados por essa ciência no intuito de desvelar diversas esferas da sociedade. Cada um desses conceitos é mais apropriado para nos debruçarmos sobre os aspectos sociais como a esfera política, econômica ou cultural. Dentre os principais conceitos da Geografia, o território é o de maior interesse para o curso dessa investigação. As diferentes possibilidades de compreender a relação entre escola e território revelam distintas linhas de pensamento acerca desse conceito (e de escola). Duas dessas visões destacam-se nas pesquisas acadêmicas de que tomei conhecimento no Banco de Teses e Dissertações da CAPES: a primeira refere-se ao território como espaço ocupado pela comunidade escolar, e a segunda à escola como um dos territórios da sociedade. O primeiro caso está ligado a discursos que afirmam que a escola deve se “relacionar com o território”, isto é, ela deve participar das decisões que dizem respeito à comunidade ou servir de espaço para reuniões, debates, assembleias, a serviço da comunidade. Nessa concepção, o território é a área contígua à escola: trata-se do espaço adjacente, onde vivem e/ou trabalham os familiares dos estudantes. O problema dessa interpretação é que, muitas vezes, essa instituição não é vista como parte integrante desse ou mesmo de nenhum território. Ao propor que ela se ‘relacione’ com o território, entende-se que ela não faz parte dele, como se fosse uma entidade autônoma em relação à comunidade e não parte dela. A segunda abordagem problematiza a primeira em dois aspectos. Primeiro porque entende que a escola é parte de algum território, e não uma entidade a-histórica 38

ou associal, o que permite identificar que há regras e dispositivos particulares que regem seu funcionamento, como de qualquer território. Depois, porque, além de ser um território em si mesma, ela também é um espaço dentro da comunidade, pertencente a ela. Carrega, pois, a possibilidade de multiterritorialidade. Ainda que essa perspectiva seja interessante para uma série de investigações, meu interesse na interface escolaterritório caminha para outa direção: entender a escola como possuidora de múltiplos territórios. Trata-se de uma abordagem em uma escala ainda mais local, que se utiliza como referência apenas o espaço de um estabelecimento de ensino. Dentro de cada escola, territórios diferenciados se entrecruzam em momentos distintos: a sala da Direção, a sala dos professores, os corredores, o pátio, a cantina, as salas de aula, a sala de música, os banheiros – enfim, todos os espaços presentes no cotidiano dos estabelecimentos de ensino são também territórios. É importante ressaltar que espaço geográfico não é a mesma coisa que território. Embora alguns autores tenham aproximado os dois conceitos, hoje em dia, temos um debate razoavelmente superado na teoria geográfica em termos de distinção epistemológica da natureza e da função dos dois conceitos. Enquanto o espaço é qualquer área ou zona apropriada material ou simbolicamente por uma pessoa ou grupo de pessoas, o território é um espaço definido e delimitado por relações de poder. Em outras palavras, o território é um espaço mais definido, uma categoria de análise mais precisa, útil para se entender espaços em que o poder é categoria fundante. Já o espaço geográfico é uma categoria ampla na qual cabem diversos conceitos como região, paisagem, lugar e o próprio território. Nesse sentido, em Geografia podemos propor “espaço” como categoria, nosso conceito mais geral, e que se impõe frente aos demais conceitos — região, território, lugar, paisagem... Esses comporiam assim a “constelação” ou “família” (como preferia Milton Santos) geográfica de conceitos. Numa leitura metafórica bastante simples, mas didática, essa constelação seria composta por uma espécie de conjunto de planetas girando em torno de uma estrela, cuja luz seria o espaço — cada astro-conceito só existindo na medida em que compõe o mesmo sistema (aberto), devendo seu movimento (“translação”) e seu potencial de esclarecimento (sua “luz” ou capacidade de iluminação) à relação que mantém com a categoria central, o espaço. (HAESBAERT, 2014, p. 22)

Na verdade, o conceito de espaço sofreu inúmeras transformações ao longo da trajetória do pensamento geográfico. Em um sentido amplo, espaço possui pelo menos 39

duas grandes formas de abordagem: ora é entendido enquanto espaço absoluto, ora enquanto espaço relativo. Na primeira visão, o espaço existe independente dos sujeitos e de outros objetos. Preocupados com suas lógicas matemáticas, os pesquisadores que se utilizam dessa abordagem o fazem segundo uma concepção idealista do conceito. Dessa abordagem tivemos, nas análises geográficas, a caracterização do espaço como planície isotrópica, espaço matricial para a instalação de unidades produtivas, de consumo etc. Já o sentido relativo, ou também chamado de relacional, abrange as ideias de espaço como movimento, com base na relação entre os objetos e até mesmo nas relações sociais contidas nos próprios objetos. Dessa abordagem, aproximam-se tanto as análises marxistas da Geografia ─ como o espaço produto das relações sociais de classe ─ , quanto tratamentos fenomenológicos e culturais, como nos espaços simbólicos e nos espaços de representação10. O território, por sua vez, apesar de também ter sofrido diversas transformações ao longo do desenvolvimento histórico do conceito, sempre esteve referenciado, em maior ou menor grau, a relações sociais de poder. De acordo com o senso comum, por exemplo, o território tem sido caracterizado, com mais frequência, por meio da figura do Estado-Nação. O território brasileiro, assim, é aquela área diretamente vinculada à lógica estatal através das relações de poder. Diferencia-se, portanto, do território da Bolívia, da Argentina ou do Paraguai na medida em que outros Estados são responsáveis pelo controle e pelo domínio do seu território. A figura jurídica do EstadoNação pode existir até mesmo sem povo, mas é impossível existir sem um território. Ainda que seja uma das possíveis formas de constituição de um território, certamente não é a única. Na perspectiva científica, o território nasceu como conceito geográfico quando foram publicadas as primeiras obras de Geografia Política. Antes disso, era um termo utilizado principalmente pela etologia para demonstrar uma zona ou área ocupada por alguma espécie vegetal ou animal. A origem desse conceito esteve vinculada aos estudos de naturalistas do século XVIII e, de tal modo, ao comportamento de espécies vegetais e animais dominando determinada área da superfície terrestre. Por esse motivo, Sack (1986) dá à sua principal obra o nome de “Territorialidade Humana”. A territorialidade humana, segundo esse autor, é completamente diferente daquela associada a instintos naturais, utilizada pelos biólogos. Para ele, ela é a 10

Os limites desse texto impedem uma análise mais detalhada das visões de espaço adotadas por cada uma das correntes da Geografia. Cabe ressaltar, apenas, que a maioria delas parte de uma visão do espaço como conceito mais geral e amplo do que território.

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estratégia espacial para atingir, influenciar, afetar ou controlar recursos e pessoas sobre uma área geográfica. A propriedade privada da terra, por exemplo, é a forma de territorialidade mais familiar, mas que pode ocorrer em diferentes esferas e contextos sociais. Raffestin (1993), entretanto, tem uma noção bem mais ampla a respeito do território. Seu ponto de partida é que o espaço apropriado por um indivíduo ou grupo social, concreta ou abstratamente, é um território. O território é resultado da ação humana sobre um espaço, é um espaço onde se projeta trabalho. “O território é uma produção a partir do espaço” (p.144), seja por meios concretos ou a partir de representações. Esse autor, inclusive, aponta o nascimento da cartografia moderna, sua capacidade de representação que preserva todo um sistema de apropriação simbólica dos diferentes espaços, por exemplo, das terras a serem colonizadas, demonstrando um viés territorial desses espaços. Diferentemente de Raffestin, Sack (obra citada) acredita que circunscrever coisas em um mapa, quando, por exemplo, um geógrafo delimita uma área para ilustrar onde ocorre a cultura do milho ou onde está concentrada a indústria, não cria, por si mesmo, um território 11 . Essa delimitação só se torna um território quando suas fronteiras são utilizadas para afetar o comportamento de pessoas pelo controle do acesso. O autor ainda aponta que o território pode ser usado tanto para conter ou restringir, quanto para excluir, e que os indivíduos controladores não precisam nem estar dentro do território nem, ao menos, próximos a ele. Sack (idem) identifica que a definição de territorialidade pressupõe três relações interdependentes. Em primeiro lugar, toda territorialidade envolve uma área. Em segundo lugar, deve haver uma forma de comunicação pelo uso de uma fronteira. Finalmente, a territorialidade deve envolver uma tentativa de manter o controle sobre o acesso a uma área e às coisas dentro dela, ou às coisas que estão fora através da repressão àquelas que estão no seu interior. De acordo com essa percepção, o autor se desprende da ideia de território estritamente vinculada ao espaço do Estado-Nação, permitindo que diferentes grupos sociais possam criar diversos territórios. Souza (1995) 11

O debate a respeito de onde termina o espaço e começa o território é bastante frutífero. Representantes de uma corrente que vem sendo chamada de Cartografia Social apontam que, quando um geógrafo delimita coisas em um mapa há, sim, uma relação de saber-poder adjacente. Esse grupo vem chamando a atenção para a importância de indígenas, ribeirinhos, camponeses e outros grupos subalternos produzirem seus próprios mapas para criarem novas relações de apropriação e poder sobre os seus espaços vivos. Ainda que não seja o objeto desse texto, é importante fazer essa ressalva.

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caminha na mesma direção da recusa em limitar o território ao espaço estatal. Para ele, outras escalas e outros agentes sociais podem delimitar territórios, de forma sobreposta e dinâmica, características que não se aplicariam à ideia de território como base geográfica do Estado.

A bem da verdade, o território pode ser entendido também à escala nacional e em associação com o Estado como grande gestor (se bem que, na era da globalização, um gestor cada vez menos privilegiado). No entanto, ele não precisa e nem deve ser reduzido a essa escala ou à associação com a figura do Estado. Territórios existem e são construídos (e desconstruídos) nas mais diversas escalas, da mais acanhada (p. ex., uma rua) à internacional (p. ex., a área formada pelo conjunto dos territórios dos países-membros da Organização do Atlântico Norte – OTAN). (SOUZA, p. 81).

Outrossim, esse autor traz uma grande novidade sobre a discussão do território a partir do desprendimento da lógica zonal. Afastando-se de Sack, para quem o território necessariamente existe enquanto área, Souza entende que o território pode ser descontínuo, assumindo a possibilidade de ser formado de nós e arcos. Ele ainda aponta que pode haver superposições e contradições entre os respectivos poderes, muito diferente da concepção senso comum de território como base do Estado-Nação. Além disso, os territórios podem ter um caráter permanente ou uma existência periódica ou cíclica (Idem, ibidem), o que permite acrescentar análises dinâmicas ao exercício do poder. Milton Santos (1996) aponta um caminho semelhante ao de Souza, ao identificar a formação de territórios transnacionais para além da escala dos Estados nacionais. Territórios que só podem se constituir quando ocorre a consolidação do meio técnico científico informacional, sobretudo com o advento da “mundialização”. Por outro lado, para Santos, território usado é sinônimo de espaço humano, aproximando-se da concepção de Raffestin, para quem basta a apropriação (uso) de um espaço para configuração de um território. A visão de território que mais se aproxima do nosso objeto de estudo está presente na obra de Haesbaert (2014). Segundo esse autor, quando cita Lefebvre, território tem a ver com o poder, não só no sentido de dominação, mas também de apropriação simbólica ou implícita. A territorialidade carrega ambos os aspectos: o material (controle físico) e o imaterial (controle simbólico através de, por exemplo, uma identidade territorial), aquilo que é propriamente vivido. De todo modo, a 42

territorialidade, segundo o entendimento do autor, de alguma forma, finca raízes no aspecto material, o que diferencia a análise geográfica das demais ciências. Resumidamente, Haesbaert afirma que território deve ser definido como: (...) a partir da concepção de espaço como híbrido – híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e “idealidade”, numa complexa interação tempo-espaço, como nos induzem a pensar geógrafos como Jean Gottman e Milton Santos, na indissociação entre movimento e (relativa) estabilidade –, recebam estes os nomes de fixos e fluxos, circulação e “iconografias” [na acepção de Jean Gottman], ou o que melhor nos aprouver. (...) o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômicopolíticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural (HAESBAERT, 2004, p. 79, citado por HAESBAERT, 2014, p. 67).

De modo parecido, trava-se o debate sobre territorialidade. Se o território é espaço definido e delimitado por relações de poder, a territorialidade é uma estratégia para criar e manter um território. Trata-se de uma abstração, condição genérica para a existência do território, antes de tudo uma intenção. Um dos exemplos mais discutidos na ciência geográfica é o da “terra prometida” dos judeus, antes uma territorialidade do que um território (HAESBAERT, 2014, p. 57-62) De maneira geral, é possível afirmar que a escola é um território constituinte das sociedades ocidentais modernas. Trata-se de um espaço identificado e nomeado, onde o seu acesso é limitado e controlado, com regras de funcionamento próprias e agentes investidos de relações de poder reconhecidas pela maioria dos grupos sociais. A escola não possui apenas uma localização material, mas também é definida simbolicamente com base em discursos dos diversos grupos que fazem parte dela: estudantes, professores, funcionários administrativos etc. O mesmo pode ser dito a respeito dos territórios constituintes do espaço escolar mais amplo. A sala da direção, a sala dos professores, os banheiros delimitados por gênero e o pátio só podem ser ocupados por cada um dos grupos sociais que fazem parte do cotidiano escolar de acordo com as regras estipuladas pela instituição, o que evidencia o caráter dinâmico dos territórios. Logo, é possível entender o território escolar de forma mais simbólica. A solicitação de uma consulta com um especialista ou a chegada de um novo diagnóstico de uma síndrome ou transtorno na escola territorializa o discurso, transformando ações e práticas pedagógicas. Em outras palavras, a construção social dos diagnósticos, como o 43

TDAH, finca raízes na escola, transformando as relações de saber-poder entre os indivíduos. De acordo com essa perspectiva, os diagnósticos de transtornos diversos na escola, como o TDAH, apesar de não serem territórios, apresentam-se enquanto territorialidades. Isso ocorre porque o diagnóstico não possui a priori uma dimensão material concreta na escola – o que por si só definiria um território – mas denota uma intenção em produzir um controle simbólico, sobretudo através de uma identidade territorial comum. Busquei não fazer uma exposição exaustiva ou esgotar o debate sobre o conceito de território ou territorialidade, mas mostrar como a discussão é importante para o curso do trabalho empírico do último capítulo. Na realização da coleta dos dados, foi importante entender o diagnóstico de TDAH tendo em vista a materialização no território escolar com base na transformação de discursos, ações e de práticas pedagógicas. O diagnóstico – construção social – finca raízes e transforma-se em um espaço de efetiva disputa de poder, notadamente no campo cultural-simbólico, mas também se alastra através dos campos político, em maior grau, e econômico, em menor. Temos, então, um diagnóstico que delimita, influencia, controla o acesso e cria identidades, assim como faz os demais territórios. As opções teóricas de um pesquisador guiam a busca do entendimento de uma questão. Logo, as temáticas trazidas neste capítulo servem para antecipar as discussões sobre os dados reunidos no trabalho de campo. Parte do debate voltará a ser objeto de exposição no último capítulo. Busquei, dessa forma, apresentar o estado da arte das produções teóricas de TDAH na escola, as contribuições de Vigotski para o debate que se pretende fazer e os estudos sobre o território de modo a buscar o lugar da investigação realizada na escola. Espero, com isso, clarificar ainda mais o ponto da onde busquei empreender o trabalho: como educador e geógrafo, antes de tudo.

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O território e o caminho da pesquisa “Mas eu não quero me encontrar com gente louca”, observou Alice. “Você não pode evitar isso”, replicou o gato. “Todos nós aqui somos loucos. Eu sou louco, você é louca. ” “Como você sabe que eu sou louca? ”, indagou Alice. “Dever ser”, disse o gato, “ou não estaria aqui” (Lewis Carrol – Alice no País das Maravilhas)

Elaborar uma investigação com rigor e profundidade na escola exige participação ativa nesse espaço. Para entender o que se passa nessa instituição, é necessário estar dentro dela, conhecer seu funcionamento, seu território, sua organização, sua rotina, seus códigos, é estar junto. Conforme explicitado na introdução, as indagações para a temática de pesquisa que concluo com esse texto surgiram com base na minha própria prática profissional. Isso significa que o dia-a-dia do meu trabalho como professor e minha pesquisa de Mestrado estão entrelaçados, assim como muitas pesquisas na área da Educação vêm apontando: apesar de relativamente autônomas, nossas trajetórias acadêmicas, pessoais e profissionais não são caminhos totalmente independentes. As vias se entrecruzam, criando confusões, obstáculos e rupturas, mas também produzindo questionamentos, indagações e problemáticas, que auxiliam o nosso caminhar. Nesse sentido, este capítulo aborda simultaneamente duas questões: os pressupostos epistemológicos e metodológicos da investigação e o lugar em que realizei a pesquisa. Apresentarei, em linhas gerais, a instituição, o percurso que realizei dentro dela e as estratégias adotadas no curso da investigação. Discutirei também o surgimento das abordagens qualitativas tendo como base a crítica ao paradigma da ciência moderna. Optei por não fazer uma separação esquemática em dois subitens por julgar que elas estão entrelaçadas. O Colégio Pedro II é uma instituição Federal de Educação localizada no Rio de Janeiro. Apesar de, recentemente, começar a oferecer cursos de pós-graduação e algumas modalidades de curso técnico, o segmento em que ele possui uma tradição enraizada e mais reconhecimento é a Educação Básica. A escola foi fundada em 1837 e batizada com o nome do jovem imperador do Brasil. Ocupando, durante os primeiros anos, um prédio localizado no Centro do Rio de Janeiro, o colégio, com o passar do tempo, expandiu-se através do espaço carioca e, posteriormente, fluminense,

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inaugurando novas unidades. Atualmente, a escola possui catorze campi, oferecendo ensino público gratuito para cerca de doze mil estudantes. A escola foi criada com o objetivo de disponibilizar serviços de ensino para as elites da, então, capital do Brasil. Ela também tinha uma finalidade explícita de servir como escola modelo para instituições privadas laicas que estavam sendo criadas no território nacional. Para que os colégios particulares tivessem seus exames validados, era necessário que seus programas de ensino fossem iguais aos do Colégio Pedro II. Essa obrigação vigorou somente até a década de 1950, no entanto a escola continua sendo tratada como instituição de prestígio por pais, estudantes, professores e pela sociedade carioca em geral. Foi através de grande mobilização – especialmente através da campanha Para Sempre Federal – que pais, professores e estudantes, durante os debates da Assembleia Constituinte, conseguiram aprovar que o Colégio Pedro II fosse incluído na Constituição Federal. O parágrafo 2º do artigo 242 assegurou a permanência da instituição na esfera da administração federal como autarquia pública. Todas essas características servem para ilustrar o reconhecimento e a importância dessa instituição para a educação brasileira. A Unidade Escolar Tijuca II do Colégio Pedro II, onde a pesquisa foi realizada, foi fundada em 1957 e localiza-se na Rua São Francisco Xavier, no bairro da Tijuca na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Outras escolas de prestígio, localizadas nas proximidades, como o Colégio Militar e o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, e muitas outras instituições privadas fazem com que a região seja considerada uma espécie de polo da excelência acadêmica na Educação Básica.

Figura I: Fachada do Colégio Pedro II – Unidade Tijuca. Fonte: Site da instituição

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A unidade Tijuca II atende a 1057 alunos12 de Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e Médio, além de estudantes da Educação de Jovens e Adultos no período noturno; enquanto a unidade Tijuca I atende aos estudantes do 1º a o 5º ano do Ensino Fundamental 13. A escola, além disso, conta com curso técnico profissionalizante em Informática atrelado ao ensino regular. Possui quadra poliesportiva, biblioteca, laboratório de informática, de ciências naturais, sala de artes, de línguas estrangeiras, sala de música, entre outras. O espaço escolar funciona em três turnos. As aulas regulares são ministradas nos turnos da manhã e da tarde. O 2º segmento do Ensino Fundamental, no ano de 2015, possuía quatro turmas para cada ano de escolaridade, com exceção do 9º ano, que possuía seis. Já no Ensino Médio, tivemos dezesseis turmas no total, distribuídas pelas três séries de escolaridade, algumas delas com Ensino Profissionalizante em Informática. Apesar de, a cada ano, a escola fazer ajustes em relação à quantidade de turmas em cada série, o número total de estudantes não se altera muito. Os alunos são acompanhados mais diretamente pelo SESOP (Serviço de Supervisão e Orientação Pedagógica) e pelo Napne (Núcleo de Apoio aos Estudantes Portadores de Necessidades Especiais)14. Os alunos sabem que estudam em uma escola de excelência e prestígio. Aqueles que entraram na escola no 6º ano do Ensino Fundamental ou na 1ª série do Ensino Médio fizeram parte de um concorrido processo de seleção, com provas de matemática, de língua portuguesa e de redação. Os que entram no 1º ano do Ensino Fundamental o fazem por meio de um disputado sorteio, mas, desde pequenos, vão sendo confrontados com situações que demonstram o prestígio do Colégio Pedro II frente aos familiares, aos amigos de outras escolas e à sociedade em geral. A seleção, por meio de provas discursivas, faz com que a instituição selecione os alunos mais bem preparados para fazer parte do corpo discente, o que quase sempre significa ter uma base educacional boa e fazer parte das elites cultural e/ou socioeconômica do País. Com o surgimento da primeira unidade I, em São Cristóvão, em 1984, e em outras unidades na década de 1980, o Colégio instituiu o acesso por meio de sorteio na 12

BRASIL. Colégio Pedro II. Nota Oficial No. 7, 2015. Apesar de estarem subordinadas a órgãos e de receberem nomenclaturas diferentes, as duas unidades dividem o mesmo prédio físico. No relato dos professores, também é comum que eles se refiram às unidades I como “Pedrinho”, enquanto as unidades II são referidas pelo público das I como “Pedrão”. 14 A sigla anteriormente significava Núcleo de Apoio ao Portador de Necessidades Especiais. Mesmo com a queda legal do termo ‘portador’, a sigla permanece. Desde Julho de 2015, a terminologia considerada apropriada é “pessoa com deficiência”. A sigla permanece a mesma. 13

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então 1ª série do Ensino Fundamental, medida que se mantém até hoje. O sorteio foi uma importante forma de auxiliar na maior democratização do corpo discente, permitindo o ingresso de estudantes das classes populares na escola. No entanto, a criação das unidades I e o ingresso por meio de sorteio não permitiu a democratização de forma plena: muitos dos estudantes pobres ficavam reprovados mais de duas vezes na mesma série e eram expulsos da escola em virtude da prática do jubilamento. Uma pesquisa comparou a média de renda familiar e de nível de escolaridade dos pais entre os estudantes que estavam na 1ª série do Ensino Fundamental com os formandos do 3º ano do Ensino Médio e concluiu que os estudantes pobres tinham muito mais dificuldade de se formar na escola que os das classes média e alta (GALVÃO, s/d). A portaria que extingue o jubilamento é do ano de 2015, por isso ainda não foi possível avaliar seu impacto sobre a permanência dos estudantes de classes baixas na escola. Na justificativa para o fim da medida, o Reitor do Colégio se referiu ao Napne como uma importante ferramenta de permanência dos estudantes na escola, assunto ao qual retornarei no último capítulo15. É importante frisar que tanto o Colégio Militar quanto o Colégio Pedro II são instituições de excelência, mesmo sendo mantidas pelo Estado. No nosso País, a maioria esmagadora das escolas privadas é de qualidade superior se comparadas às públicas municipais ou estaduais. Isso demonstra a imensa desigualdade de classes no Brasil que se evidencia por meio do acesso a uma educação de qualidade. Ainda que se tenha extinguido o jubilamento, a permanência do processo seletivo de alunos permitenos afirmar que o Colégio Pedro II continua excluindo boa parte da população pobre que busca uma escola de excelência, mas que não possui condições de pagar por ela. Essa renomada instituição de ensino foi escolhida como espaço de minha pesquisa por ser um dos locais onde atualmente eu trabalho, conforme explicitado na Introdução. Como minhas indagações para realização de uma pesquisa a nível de Mestrado estão relacionadas à minha prática profissional, entendi que minha investigação deveria se desenvolver nesse espaço. Trata-se não de uma reflexão sobre a própria prática, mas sobre as possibilidades que meu local de trabalho oferece para uma maior reflexão a respeito desta problemática. Apesar de estar firme na minha escolha,

15

CPII institucionaliza o fim do jubilamento, 28 de Abril de 2015. Disponível em: http://www.cp2.g12.br/ultimas_publicacoes/211-noticias2015/2828-cpii-institucionaliza-o-fim-dojubilamento.html. Acesso em 11 de Nov. de 2015.

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estou ciente de que certas visões de ciência não legitimariam uma pesquisa realizada nesse ambiente. Cabe, portanto, uma discussão a respeito dessa escolha. Durante muitos anos, no campo científico, acreditava-se que, para se realizar uma boa investigação, era necessário que pesquisador, sujeito da pesquisa, se afastasse ao máximo do seu objeto. Investigações empíricas realizadas em laboratório, onde fosse possível controlar as variáveis eram desejáveis para se obter um resultado “verdadeiro”, “real” e “objetivo”. O paradigma científico da modernidade assumia, desse modo, que a obtenção de dados por observação e experimento eram os métodos mais adequados para a realização de pesquisas nas áreas de ciências naturais e humanas. De acordo com essa concepção, denominada positivista, era necessário haver uma rigorosa separação entre pesquisador e objeto. O pesquisador devia manter-se neutro, não “interferir” no objeto da pesquisa e nem o conhecer previamente, pois seus resultados estariam contaminados por essa aproximação. Diante dessa visão de pesquisa científica, o investigador devia permanecer o mais distante possível, evitando envolvimentos e garantindo a objetividade de sua pesquisa. Além disso, os trabalhos deveriam utilizar métodos quantitativos e estatísticos para se chegar a um resultado verdadeiro. Trabalhos legítimos e sérios eram recheados de gráficos e tabelas, o que representava a força do discurso matemático.

A matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria (...) conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objecto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. (SANTOS, 2004, p. 27-28).

Santos mosta que o paradigma científico moderno fragmentou a teoria da prática, os diversos campos científicos e a relação entre a sociedade e a Natureza. De acordo esse pensamento, vivemos em um período de transição. O paradigma científico moderno, hegemônico nos dias de hoje, dá-nos seus sinais de crise e será substituído por um paradigma novo, que possui uma visão integral e que compreenda as totalidades orgânicas, baseado no desenvolvimento da ciência para uma vida melhor (SANTOS, 2004). Mesmo não havendo concordância em como será o novo paradigma (será apenas um?), há diversos movimentos que propõem novas leituras sobre o fazer 49

científico. Apesar de não possuírem um arcabouço epistemológico homogêneo, pois estão inspirados em concepções de conhecimento diversas, essas ideias visam superar a objetividade, a neutralidade, a estabilidade e a previsão dos fenômenos que marcaram as investigações tradicionais. Além disso, essas novas formas de interpretação começaram a não se utilizar apenas de dados matemáticos, mas coletar informações com base em registros fotográficos, vídeos, relatos, narrativas e outras representações sociais, com bastante profundidade e riqueza de detalhes. No caso das ciências sociais, em geral, nota-se o surgimento de um método de investigação que vem sendo denominado de “qualitativo”. Apesar de haver muitas contradições em relação ao significado desse conceito, de maneira geral ele possui algumas características que o diferenciam dos métodos da ciência moderna. Não se trata apenas de substituir o quantitativo e não trabalhar mais com dados numéricos. A investigação qualitativa parte de pressupostos epistemológicos distintos que a pesquisa quantitativa. A obra de Bogdan e Biklen (1994) já é considerada um clássico sobre o método qualitativo em Educação. Segundo esses autores:

Os dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais e conversas, e de complexo tratamento estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objectivo de investigar os fenómenos em toda a sua complexidade e em contexto natural. Ainda que os indivíduos que fazem investigação qualitativa possam vir a seleccionar questões específicas à medida que recolhem os dados, a abordagem à investigação não é feita com o objectivo de responder a questões prévias ou de testar hipóteses. Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação. As causas exteriores são consideradas de importância secundária. Recolhem normalmente os dados em função de um contacto aprofundado com os indivíduos, nos seus contextos ecológicos naturais (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 16).

Notadamente inspirada nos métodos utilizados pela Antropologia e pela Sociologia – algumas pesquisas que tinham como objetivo direto entender o funcionamento da transmissão de valores de uma geração para outra por meio da educação – a investigação qualitativa possui cinco características básicas, de acordo com esses autores (Idem, p. 47-51):

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1.

A fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o

instrumento principal. O pesquisador precisa ter contato direto com a realidade pesquisada, mesmo que utilize cadernos, anotações, gravações em vídeo ou áudio. Os fenômenos são melhor compreendidos se observados em seus espaços habituais de ocorrência. Como o humano é o interesse maior na pesquisa qualitativa, os investigadores assumem que o comportamento é influenciado significativamente pelo contexto em que ocorre. 2.

A investigação qualitativa é descritiva. Os dados recolhidos não são

numéricos, mas palavras ou imagens. Notas de campo, transcrições de entrevistas e relatos, documentos pessoais, memorandos, vídeos, fotos e outros resultados servem para subsidiar a argumentação. Essa abordagem exige que o mundo seja observado como se nada fosse trivial, portanto tudo torna-se uma possível pista para o entendimento do contexto mais amplo. 3.

Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que

simplesmente pelos resultados ou produtos. A pesquisa qualitativa busca mais entender do que explicar, a ênfase encontra-se no modo em que os processos ocorrem. Entender o percurso é mais importante que o resultado final. 4.

Os investigadores qualitativos tendem a analisar seus dados de forma indutiva.

O objetivo da pesquisa qualitativa não é testar hipóteses construídas previamente. A pesquisa é construída “de baixo para cima”, ou seja, o quadro vai ganhando forma à medida em que se recolhem as partes. Algumas questões só surgem depois de recolher alguns dados e de passar algum tempo com os sujeitos. 5.

O significado é de importância vital na abordagem qualitativa. Compreender

qual é o sentido que as pessoas dão às suas ações ou aos fenômenos investigados é tão importante quanto as próprias ações e os próprios fenômenos. A significação e a experiência dos sujeitos envolvidos na pesquisa são fundamentais para se tomar em consideração a perspectiva do informador. Nessa mesma linha segue Godoy (1995), ao afirmar que os estudos quantitativo e qualitativo partem de pressupostos distintos. Enquanto o método quantitativo conduz seu trabalho com base em um plano definido a priori, o qualitativo parte de questões ou focos de interesse amplos, que vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve. Além disso, este não procura enumerar variáveis, medir os eventos estudados ou utilizar instrumentais estatísticos. Os dados sobre pessoas, lugares e processos interativos são

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obtidos de forma descritiva e sempre a sob a perspectiva dos participantes da situação em estudo. Como é possível perceber, não há procedimentos padrão ou homogêneos, mas uma intenção geral, baseada em um ponto de partida epistemológico que se afasta da concepção positivista de ciência e se aproxima de visões dialéticas, dos estudos culturais, fenomenológicas, humanistas, entre outras matrizes filosóficas. Bogdan e Biklen afirmam, inclusive, que investigação qualitativa é apenas uma denominação ‘guarda-chuva’, sob a qual ficam diversas formas de se fazer pesquisa na área de Educação. Entendo que a maior contribuição da pesquisa qualitativa na Educação se dá no sentido de compreender com profundidade as significações que os próprios sujeitos dão às ações e aos eventos que acontecem nas escolas. Os dados levantados por esse tipo de investigação não são mais ou menos ricos que aqueles com os quais as estratégias quantitativas trabalham, mas permitem apreender outras esferas do humano: as relações simbólicas, as apropriações, os discursos, os códigos – alguns muito discretos – e os significados que os indivíduos atribuem às suas próprias atitudes. A Antropologia, uma das primeiras ciências que se utilizou dos métodos qualitativos, e seu método etnográfico provocam reflexões com o objetivo de apreender ao máximo a visão do outro sobre o seu próprio contexto social. Assim, Da Matta define o bom pesquisador, imerso na realidade que está pesquisando, como aquele que consegue entender, por exemplo, que um movimento físico de contração de pálpebras é uma “piscada marota” (DA MATTA, 1978). Assim, aproximamo-nos das motivações e dos interesses dos sujeitos pesquisados, que não se comunicam apenas por meio da linguagem verbal, mas também quando fazem uso de gestos, movimentos e de expressões corporais. O aprendizado dessa técnica, a que Rostistolato e Pires do Prado se referem como o “treinamento do olhar”, inclui “ficar atento aos atos, gestos, expressões e silêncios”

presentes

na

interação

entre

investigador

e

grupos

pesquisados

(ROSISTOLATO e PIRES DO PRADO, 2012, p. 4). Ao mencionarem um trabalho que envolvia a aplicação de um questionário, os autores afirmam que não se deve ficar atento apenas ao resultado do que é gravado, mas às impressões, ao que não é dito e observado e que também deve fazer parte do relatório da pesquisa. Além disso, toda pesquisa qualitativa é também interferência na realidade, é transformação – e isso gera impactos diretamente no campo da Educação. Não só o 52

produto do trabalho – neste caso, a dissertação – vai abrir novas possibilidades de reflexão e pesquisa, mas também no próprio fazer da pesquisa, pessoas e instituições problematizam novas questões, (se) indagam e (se) transformam. A pesquisa qualitativa implica algum nível de novas reflexões. Em uma das entrevistas realizadas, um professor me deu uma pista e, a partir daquele momento, os alunos diagnosticados com TDAH serão vistos por ele de forma diferente, o que mostra uma implicação da pesquisa no curso de seu desenvolvimento.

Isso é uma análise que eu tô (sic) fazendo, você levantou o questionamento sobre esses dois. Se você refizesse as perguntas daqui a um tempo, daqui a um mês, por exemplo, eu começaria a observar os dois de outra forma. Eu te daria um outro parecer, talvez diferente do que eu acabei de falar. Tô (sic) te dando uma análise crua. O que você perguntou foi o que saiu de fato da análise (Robson, Física).

Feitas essas breves considerações, explico, a seguir, o percurso que desenvolvi dentro da escola após decidir que ela seria o espaço da pesquisa. Meu contato com o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade no Colégio Pedro II aconteceu durante a primeira reunião pedagógica do ano, no primeiro dia letivo de 2015. Na ocasião, os professores novos da instituição, eu entre eles, apresentaram-se juntamente com os diretores e os chefes de cada setor da escola. Entre esses chefes, apresentou-se Fátima do recém-criado Núcleo de Apoio aos Estudantes Portadores de Necessidades Especiais (Napne). Ela explicou brevemente o trabalho do núcleo e enfatizou que a equipe recebe muitos estudantes com transtornos e necessidades diversos, entre eles o TDAH. Após esse primeiro contato, houve mais duas ocasiões em que informações sobre o Napne chegaram a mim antes de eu começar a buscá-las. A primeira foi quando o coordenador da equipe de Geografia apresentou, em uma reunião pedagógica, uma demanda do núcleo aos professores da disciplina. Segundo ele, alguns estudantes atendidos pelo setor estavam estudando para as provas do 1º trimestre e precisavam do apoio de algum professor especialista, pois os profissionais que lá atuavam estavam tendo dificuldade em ajudá-los plenamente e não tinham um bom conhecimento do conteúdo da Geografia em si. Não manifestei interesse na ocasião. Decidimos que nós todos, professores de Geografia, faríamos um rodízio para auxiliar aqueles estudantes. A segunda ocasião foi quando recebi um e-mail da Fátima, em 2 de abril de 2015, com informações a respeito dos estudantes atendidos pelo Napne. Tratava-se de 53

um documento na forma de tabela – chamado pela instituição de “caródromo” – com a fotografia 3x4, o nome do estudante, a turma a qual ele pertencia, suas dificuldades, seu perfil (sic) e estratégias pedagógicas que deveriam ser adotadas pelo corpo docente, uma vez que o núcleo as considerava importantes.

Figura 2: Exemplo de "caródromo" divulgado pelo Napne16

De posse dessas informações, decidi que o Colégio Pedro II, em geral, e o Napne, em particular, seriam um bom espaço para a realização da pesquisa. Lá entraria em contato com um trabalho específico realizado para atender à demanda dos estudantes diagnosticados com TDAH, supostamente, por meio de suas próprias necessidades. Assim, aproximei-me da Fátima e fiz uma entrevista informal com ela, com o intuito de entender o que é o núcleo, quem são os estudantes atendidos por ele e qual é o trabalho realizado por lá. A criação do Napne está vinculada à uma resolução do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2009) que institui diretrizes para o Atendimento Educacional Especializado (AEE) na Educação Básica. Em termos amplos, trata-se da política nacional de inclusão. De acordo com o texto legal, os sistemas de ensino:

(...) devem matricular os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino regular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), ofertado em salas de recursos multifuncionais ou em centros de Atendimento Educacional Especializado da rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos. (BRASIL, 2009, art. 1º).

De acordo com o texto legal, o AEE tem como função complementar a formação do aluno por meio de estratégias, recursos de acessibilidade e serviços que eliminem 16

A primeira coluna, com o nome e a fotografia, foi retirada para preservar a identidade do estudante.

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barreiras para sua participação plena na sociedade e para o desenvolvimento de sua aprendizagem. Esses recursos devem assegurar condições de acesso dos alunos com deficiência ou mobilidade reduzida ao currículo, promovendo a utilização de materiais didáticos, espaços, equipamentos, sistemas de comunicação e informação e demais serviços (Idem, art. 2º). Apesar de a resolução datar de 2009, o Núcleo de Apoio a Pessoas com Necessidades Específicas (Napne) só foi criado nas unidades II do Colégio Pedro II, responsáveis pelos anos finais do Ensino Fundamental e pelo Ensino Médio, no início de 2014. As unidades começaram este ano letivo com o novo setor e, aos poucos, ele foi se incorporando à estrutura organizacional dos campi. O objetivo do núcleo é dar condições às pessoas com necessidades específicas de conviver nas classes regulares de ensino, garantindo-lhes a aprendizagem efetiva. Os estudantes atendidos pelo Napne são classificados em dois grupos: os AEE e os que possuem transtornos. Os que fazem parte do AEE também são chamados de “alunos do Censo” ou da Educação Especial, cobertos pela legislação, o que obriga a instituição a oferecer o atendimento especializado nas classes regulares de ensino. São alunos

diagnosticados

com

espectro

autista,

com

transtornos

globais

do

desenvolvimento, com altas habilidades, com deficiência auditiva, visual, intelectual, física, múltipla etc. No segundo grupo, estão os que possuem transtorno, que não estão incluídos no Censo: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), dislexia, discalculia, Transtorno Opositor Desafiador (TOD), Dificuldade de Aprendizagem quando severa (sic), Processamento Auditivo Central alterado, desenvolvimento psicomotor alterado, entre outros. De acordo com informações cedidas pelo Napne, 45 alunos da unidade Tijuca II são atendidos pela equipe, o que representa cerca de 4% dos estudantes da escola. Dentre eles, 21 alunos são diagnosticados com TDA ou TDAH (sic)17, o que equivale a 46,6% dos alunos, e alguns com comorbidades, isto é, a mesma pessoa que pode ter, ao mesmo tempo, diferentes transtornos. O TDAH é a “anormalidade” com maior

17

No caródromo disponibilizado pelo Napne para os professores há “perfis” com TDA e TDAH como transtornos distintos. No entanto, não há essa distinção no principal documento com a listagem das síndromes mentais produzido pela Associação Americana de Psiquiatria, o DSM. Segundo este documento, o que existe são três tipos de TDAH, um predominantemente desatento, outro predominantemente hiperativo/impulsivo e o combinado. Essa distinção será apresentada com mais detalhes a seguir.

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prevalência entre os estudantes que são atendidos pelo Núcleo. Mas o que é exatamente o TDAH? O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade é considerado uma síndrome neurobiológica de causas variadas que aparece na infância e geralmente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. As causas precisas do TDA-H ainda não são conhecidas, mas a versão mais recente do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-V), documento elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria e considerado por muitos como a “bíblia” dessa especialidade médica (LIMA, 2005; FRANCES, 2014), possui um capítulo sobre esse transtorno e ele também estava presente em versões anteriores. De acordo com Rohde e Halpern, as crianças com TDAH são facilmente reconhecíveis em clínicas, escolas e em casa. São caracterizadas pela tríade desatençãohiperatividade-impulsividade, mas o transtorno é uma patologia bastante heterogênea. A maioria dos estudos apresenta uma influência de fatores genéticos e ambientais no seu desenvolvimento. Seu diagnóstico é fundamentalmente clínico, baseando em critérios operacionais

provenientes

de sistemas

classificatórios

adotados

nacional

ou

mundialmente (ROHDE e HALPERN, p. S65). Citando Barkley, os autores Graeff e Vaz (2008), definem o TDAH como um transtorno no desenvolvimento do autocontrole, marcado por déficits referentes aos períodos de atenção, ao manejo dos impulsos e ao nível de atividade. Crianças com esse transtorno são descritas como desligadas, aborrecidas, desmotivadas, bagunceiras, sem força de vontade e desorganizadas. São crianças agitadas e barulhentas e tendem a fazer coisas fora de hora. Muitos fracassos escolares podem estar relacionados, segundo os autores, a essa patologia, bem como dificuldades emocionais e de relacionamento. Já Couto e outros (2010) afirmam que o TDAH é a principal causa do fracasso escolar. Segundo esses autores, a dificuldade de aprendizagem está presente em 20% das crianças com esse transtorno. De acordo com o DSM-V, o TDAH é um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade que interfere no funcionamento ou no desenvolvimento do indivíduo.

A desatenção manifesta-se comportamentalmente no TDAH como divagação em tarefas, falta de persistência, dificuldade de manter o foco e desorganização – e não constitui consequência de desafio ou falta de compreensão. A hiperatividade refere-se a atividade motora 56

excessiva (como uma criança que corre por tudo) quando não apropriado ou remexer, batucar ou conversar em excesso. Nos adultos, a hiperatividade pode se manifestar como inquietude extrema ou esgotamento dos outros com sua atividade. A impulsividade refere-se a ações precipitadas que ocorrem no momento sem premeditação e com elevado potencial para dano à pessoa (p. ex., atravessar uma rua sem olhar). A impulsividade pode ser reflexo de um desejo de recompensas imediatas ou de incapacidade de postergar a gratificação. Comportamentos impulsivos podem se manifestar com intromissão social (p. ex., interromper os outros em excesso) e/ou tomada de decisões importantes sem considerações acerca das consequências no longo prazo (p. ex., assumir um emprego sem informações adequadas) (DSM, 2014, p. 61).

Ainda de acordo com o DSM, o Transtorno começa na infância e é necessário um olhar clínico “substancial” durante esse período da vida do indivíduo. Memórias de adultos sobre a época em que eram crianças não são confiáveis e os sintomas devem aparecer em mais de um contexto (casa, escola e trabalho, por exemplo). O documento ainda aponta que os sintomas variam dependendo do espaço, podendo ainda serem mínimos ou até mesmo desaparecerem se a criança estiver sob supervisão muito próxima de um adulto, recebendo recompensas por comportamento apropriado ou envolvido em atividades de interesse especial (como jogos eletrônicos). Para ser considerado uma criança com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, ela precisa se encaixar em cinco critérios, expostos a seguir.

A. Um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade que interfere no funcionamento e no desenvolvimento, conforme caracterizado por (1) e/ou (2): 1. Desatenção: Seis (ou mais) dos seguintes sintomas persistem por pelo menos seis meses em um grau que é inconsistente com o nível do desenvolvimento e têm impacto negativo diretamente nas atividades sociais e acadêmicas/profissionais: Nota: Os sintomas não são apenas uma manifestação de comportamento opositor, desafio, hostilidade ou dificuldade para compreender tarefas ou instruções. Para adolescentes mais velhos e adultos (17 anos ou mais), pelo menos cinco sintomas são necessários. a) Frequentemente não presta atenção em detalhes ou comete erros por descuido em tarefas escolares, no trabalho ou durante outras atividades (p. ex., negligencia ou deixa passar detalhes, o trabalho é impreciso). b) Frequentemente tem dificuldade de manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas (p. ex., dificuldade de manter o foco durante aulas, conversas ou leituras prolongadas). c) Frequentemente parece não escutar quando alguém lhe dirige a palavra diretamente (p. ex., parece estar com a cabeça longe, mesmo na ausência de qualquer distração óbvia). d) Frequentemente não segue instruções até o fim e não consegue terminar trabalhos escolares, tarefas ou deveres no local de trabalho (p. ex., começa as tarefas, mas rapidamente perde o foco e facilmente perde o rumo).

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e) Frequentemente tem dificuldade para organizar tarefas e atividades (p. ex., dificuldade em gerenciar tarefas sequenciais; dificuldade em manter materiais e objetos pessoais em ordem; trabalho desorganizado e desleixado; mau gerenciamento do tempo; dificuldade em cumprir prazos). f) Frequentemente evita, não gosta ou reluta em se envolver em tarefas que exijam esforço mental prolongado (p. ex., trabalhos escolares ou lições de casa; para adolescentes mais velhos e adultos, preparo de relatórios, preenchimento de formulários, revisão de trabalhos longos). g) Frequentemente perde coisas necessárias para tarefas ou atividades (p. ex., materiais escolares, lápis, livros, instrumentos, carteiras, chaves, documentos, óculos, celular). h) Com frequência é facilmente distraído por estímulos externos (para adolescentes mais velhos e adultos, pode incluir pensamentos não relacionados). i) Com frequência é esquecido em relação a atividades cotidianas (p. ex., realizar tarefas, obrigações; para adolescentes mais velhos e adultos, retornar ligações, pagar contas, manter horários agendados). 2. Hiperatividade e impulsividade: Seis (ou mais) dos seguintes sintomas persistem por pelo menos seis meses em um grau que é inconsistente com o nível do desenvolvimento e têm impacto negativo diretamente nas atividades sociais e acadêmicas/profissionais: Nota: Os sintomas não são apenas uma manifestação de comportamento opositor, desafio, hostilidade ou dificuldade para compreender tarefas ou instruções. Para adolescentes mais velhos e adultos (17 anos ou mais), pelo menos cinco sintomas são necessários. a) Frequentemente remexe ou batuca as mãos ou os pés ou se contorce na cadeira. b) Frequentemente levanta da cadeira em situações em que se espera que permaneça sentado (p. ex., sai do seu lugar em sala de aula, no escritório ou em outro local de trabalho ou em outras situações que exijam que se permaneça em um mesmo lugar). c) Frequentemente corre ou sobe nas coisas em situações em que isso é inapropriado. (Nota: Em adolescentes ou adultos, pode se limitar a sensações de inquietude.) d) Com frequência é incapaz de brincar ou se envolver em atividades de lazer calmamente. e) Com frequência “não para”, agindo como se estivesse “com o motor ligado” (p. ex., não consegue ou se sente desconfortável em ficar parado por muito tempo, como em restaurantes, reuniões; outros podem ver o indivíduo como inquieto ou difícil de acompanhar). f) Frequentemente fala demais. g) Frequentemente deixa escapar uma resposta antes que a pergunta tenha sido concluída (p. ex., termina frases dos outros, não consegue aguardar a vez de falar). h) Frequentemente tem dificuldade para esperar a sua vez (p. ex., aguardar em uma fila). i. Frequentemente interrompe ou se intromete (p. ex., mete-se nas conversas, jogos ou atividades; pode começar a usar as coisas de outras pessoas sem pedir ou receber permissão; para adolescentes e adultos, pode intrometer-se em ou assumir o controle sobre o que outros estão fazendo) B. Vários sintomas de desatenção ou hiperatividade-impulsividade estavam presentes antes dos 12 anos de idade. C. Vários sintomas de desatenção ou hiperatividade-impulsividade estão presentes em dois ou mais ambientes (p. ex., em casa, na escola, no trabalho; com amigos ou parentes; em outras atividades). D. Há evidências claras de que os sintomas interferem no funcionamento social, acadêmico ou profissional ou de que reduzem sua qualidade. 58

E. Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o curso de esquizofrenia ou outro transtorno psicótico e não são mais bem explicados por outro transtorno mental (p. ex., transtorno do humor, transtorno de ansiedade, transtorno dissociativo, transtorno da personalidade, intoxicação ou abstinência de substância). Tabela 1 Critérios diagnósticos do TDAH (DSM, 2014)

De acordo com o DSM e com a literatura sobre o TDAH, o Transtorno pode ser de três tipos, de acordo com a predominância de determinados critérios: ele pode ser do tipo predominantemente desatento, predominantemente hiperativo/impulsivo ou combinado, diferente do apontado no “caródromo” divulgado pelo Napne, que aponta para uma aluna diagnosticada com TDA. Em todos os casos, recomenda-se intervenções familiares,

escolares

e

psicofarmacológicas.

Em

relação

às

intervenções

medicamentosas, Rohde e Halpern defendem que os estimulantes devem ser a primeira escolha para o transtorno, notadamente o metilfenidato (conhecido pelo nome comercial de Ritalina) (ROHDE e HALPERN, p. S68). Em relação as intervenções familiares, os autores defendem que o pediatra eduque a família sobre o transtorno, trazendo informações objetivas e claras sobre o que a literatura atualmente disponibiliza. É importante que os pais conheçam melhores estratégias para se relacionarem com seu filho na organização e no planejamento de atividades. Os autores sugerem técnicas de reforço positivo, ambientes silenciosos para estudar, diminuição dos estímulos visuais que podem desviar a atenção da criança, entre outras estratégias. (Idem, Ibidem). Em relação a escola, as salas de aula que atendem esses estudantes devem estar bem estruturada e com poucos alunos para um atendimento individualizado. Os professores devem manter um ambiente constante, previsível e com uma rotina consistente, ajudando a manter o controle emocional. Além disso, as tarefas propostas não devem ser longas e precisam ser explicadas passo a passo.

É importante que o aluno com TDAH receba o máximo possível de atendimento individualizado. Ele deve ser colocado na primeira fila da sala de aula, próximo à professora e longe da janela, ou seja, em local onde ele tenha menor probabilidade de distrair-se. Muitas vezes, crianças com TDAH precisam de reforço de conteúdo em determinadas disciplinas. Isso acontece porque elas já apresentam lacunas no aprendizado no momento do diagnóstico, em função do TDAH. Outras vezes, é necessário um acompanhamento psicopedagógico centrado na forma do aprendizado, como, por exemplo, nos aspectos ligados à organização e ao planejamento do tempo e das atividades. O tratamento reeducativo psicomotor pode

59

estar indicado para melhorar o controle do movimento. (Idem, Ibidem).

Como os sintomas precisam aparecer em mais de um contexto, e considerando que a escola é o único espaço de frequência obrigatória de crianças e adolescentes, é comum que professores, orientadores e coordenadores pedagógicos preencham questionários encaminhados por psiquiatras ou outros profissionais da área de saúde para avaliar o comportamento das crianças e dos jovens na escola. Muitas dessas inquirições possuem perguntas objetivas que reproduzem os sintomas da listagem do DSM. O educador que dá respostas positivas para a maioria das questões do formulário respalda, juntamente com a visão dos pais e do próprio psiquiatra, a existência do transtorno naquele aluno. Após ter feito a aproximação inicial com a coordenadora do Napne, comecei a realizar entrevistas abertas com os professores, a principal estratégia utilizada no curso dessa pesquisa. Foram entrevistados seis professores das disciplinas de Física, Biologia, Geografia, Sociologia e História. Essas entrevistas foram gravadas. Meu propósito era compreender como eles enxergavam os alunos que tinham diagnóstico de TDAH no cotidiano da sala de aula. Para atingir esse objetivo, fiz perguntas em 3 níveis de profundidade diferentes. Primeiramente, comecei indagando sobre a avaliação que eles tinham sobre o trabalho realizado pelo Napne e sobre inclusão na escola. Em seguida, fiz questionamentos a respeito da turma com que eles estavam envolvidos diretamente e, finalmente, perguntei a respeito de como os alunos diagnosticados com TDAH se comportam dentro das turmas em que eles ministram as aulas. Os professores escolhidos foram os de uma turma de 1ª série do Ensino Médio, uma classe que possui elevado número de alunos atendidos pelo Napne. São 10 jovens em uma turma de 30 incluídos na lista daqueles que precisam de Atendimento Educacional Especializado ou na dos que, segundo o Napne, possuem transtornos, distúrbios ou dificuldades de aprendizagem. Esse fato justifica a participação desses estudantes nos encontros semanais promovidos pelo Núcleo. Além disso, como é comum entre esses alunos na escola, eles fazem as provas em sala de mediação – uma sala em que os funcionários do Napne, acompanhados por um professor da área, tiram as dúvidas dos estudantes que pedem ajuda – e possuem, entre outras especificidades, 30 minutos a mais para sua realização. A entrevista aberta possui algumas vantagens importantes. Em primeiro lugar, porque os relatos se encontram com a concepção mais ampla de pesquisa qualitativa, 60

em que os significados que os sujeitos dão para suas experiências são mais importantes do que os fenômenos vivenciados em si. As pesquisas de História Oral e Antropologia, que realizam entrevistas com frequência, ensinam que deixar as pessoas mais livres para falar de sua experiência, de seus gostos, de suas concepções, de suas visões e de seu ambiente é mais frutífero do que fazer uma listagem de perguntas objetivas com respostas diretas (DUARTE, 2002, p. 146). Apesar de a entrevista ser aberta, delineei, previamente, para mim, temáticas que dariam o tom da conversa, para atingir os objetivos da minha investigação. Assim, quando necessário, fiz intervenções ao perceber que estávamos desviando do assunto. Busquei interagir com os entrevistados o máximo possível para que eles se sentissem confortáveis como em uma conversa relativamente informal, mas, ao mesmo tempo, tentei conduzir a conversa de forma a não os influenciar. Não era pertinente que os relatos fossem construídos de modo a satisfazer pura e simplesmente as minhas expectativas. Esse limite nem sempre é muito viável, mas procurei respeitá-lo com cuidado para manter o rigor da pesquisa científica. É importante ter clareza de que a temática nem sempre é interesse direto do entrevistado e nem ele é o pesquisador-autor. Assim, o distanciamento deve se dar de forma a compreender que a triangulação dos relatos e o texto final são de responsabilidade minha, e não de meu entrevistado. Com base nas ideias do antropólogo Gilberto Velho, Duarte afirma que

(...) o uso de depoimentos colhidos nesse tipo de investigação implica a produção de um texto no qual os recortes das falas, os indivíduos privilegiados, os temas destacados e tantas outras formas de intervenção expressam menos as dúvidas e opiniões dos informantes que o posicionamento do pesquisador-autor. A preocupação teórica particular deste, referida à formação e aos interesses próprios, estabelece o distanciamento necessário para que seu discurso nunca se confunda com o de seus interlocutores (DUARTE, 2002, p. 148).

Dessa forma, Duarte chama a atenção para um problema comum que muitas pesquisas que fazem entrevistas acabam enfrentando: a confusão entre autor e informante. Não é contraditório identificar que os entrevistados são sujeitos da pesquisa enquanto eu mesmo possuo a autoria do trabalho. A investigação seria impossível sem a participação deles. No entanto, as motivações e as indagações são minhas, assim como quem faz a análise do material recolhido e as correlações entre os relatos. A questão, no entanto, não é uma barreira: o pesquisador deve ser capaz de ultrapassar essa 61

(im)posição e assumir outras posições responsáveis. Dessa forma, Lopes e Mello afirmam que todo movimento de pesquisa é um movimento instituinte, por isso pesquisador torna-se responsável por aquilo que pesquisa (LOPES e MELLO, 2015). É nesse sentido também que o estudo em tela não possui objetivo de ser conclusivo a respeito de todos os estabelecimentos de ensino e muito menos de apontar para respostas definitivas que podem se encaixar em qualquer caso para o problema que pretendo levantar. Esse é justamente o vício de certas correntes positivistas vinculadas à ciência moderna que fazem excessivo uso de modelos e generalizações. Toda investigação é um retrato da realidade e todo retrato é um recorte, estabelecido com base em critérios intencionais da pesquisa que está sendo realizada. Assim, não pode e nem deve se propor a dar conta de explicar a realidade como um todo. No entanto, todo recorte também é uma peça importante e fundamental do funcionamento do mundo. Penso que o estudo realizado conseguiu levantar discussões, de forma geral, sobre o impacto da territorialização do TDAH em uma grande escola. Se servir de inspiração para as futuras discussões nas outras, já terei a sensação de missão cumprida.

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O TDAH no CPII: visibilidade e marginalização Eles se comportam na sala de uma maneira igualitária e é muito interessante porque talvez, se o colégio não me dissesse que eles têm um atendimento diferenciado, eu não perceberia neles alunos que têm necessidades especiais pela postura deles. Porque eles são muito responsáveis e eles se comportam em igualdade de condições com os outros e, em momento algum, pedem para ter privilégios. (Luís Fernando, História)

O filósofo alemão Axel Honneth afirmou, em entrevista à Folha de S. Paulo no ano de 2003, que não há construção de identidade estável e personalidade sem uma primeira forma de reconhecimento: a da autoconfiança possibilitada pelo amor e pela assistência. Em sua obra Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais, esse pensador afirma que a vida social só pode se reproduzir por meio do reconhecimento recíproco porque os sujeitos só podem chegar a uma autorrelação prática quando aprendem a se conceber como seus destinatários sociais (HONNETH, 2003, p. 155) As relações sociais dentro da escola não devem se construir de forma diferente. Utilizando como base a reflexão de Honneth, apenas a possibilidade de reconhecimento existente entre indivíduos em posições distintas – como no caso de alunos e professores – pode criar uma situação de vida escolar. Dessa maneira, lutar por reconhecimento é a única forma de (sobre)viver frente às adversidades pelo caminho, e meninos e meninas se utilizam de estratégias as mais diversas para continuar suas trajetórias escolares. O recorte do relato do professor de História possui ao menos duas interpretações bastante distintas, que servem para antecipar a discussão que se seguirá neste capítulo. Na primeira delas, coloca-se em questão o diagnóstico de TDAH atribuído a alguns estudantes. Nesse caso, fica evidente que, sem a validação por meio do laudo, não haveria porque diferenciá-los dos demais colegas de classe considerados “normais” ou dos que ainda não foram diagnosticados com TDAH. Podemos, de certa forma, considerar que, caso não houvesse o documento atestando a presença de um suposto transtorno, alguns professores sequer o levariam em conta em suas atividades. Aliás, é o que aparece na maioria das falas. Isso põe em xeque a própria existência do diagnóstico não somente porque ele reforça a busca por um padrão de comportamento na escola, como também põe em dúvida sua utilidade, já que a postura dos estudantes “com

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diagnóstico” em nada se distingue na sala de aula, segundo a maioria dos professores entrevistados. Na segunda interpretação, podemos levantar a hipótese de que o professor parece ser incapaz de enxergar as dificuldades que qualquer estudante pode apresentar, tratando todos de forma igual, sem levar em consideração as especificidades de cada um. Então, novamente, o diagnóstico não possui importância, pois as causas dessa falta de um olhar cuidadoso não estão relacionadas especificamente aos alunos que possuem algum diagnóstico. Trata-se de um problema que atinge a apreensão do professor sobre todos os estudantes. Suas razões podem ser variadas: o docente pode ser descuidado e ter um olhar superficial sobre os alunos, a turma pode ter problemas demais que ele próprio não consegue perceber o que são consideradas síndromes mais sutis ou as condições de trabalho adversas não permitem um contato aprofundado ou mais individualizado do professor com os alunos da classe. Na verdade, as duas interpretações não são excludentes. Veremos, neste capítulo, que as formulações acima se entrecruzam nas falas dos docentes. Como já afirmei na introdução, considero a escola uma instituição heterogênea, que abriga olhares diversos. Dessa forma, em alguns momentos os professores procuram observar os estudantes por meio do reconhecimento de seus valores e de suas qualidades e, em outros, reforçam os estereótipos e o preconceito sobre esses alunos. Este capítulo está dividido em duas seções que emergiram como categorias de análise com base nas falas dos entrevistados. Na primeira trataremos do “diagnóstico” que dá visibilidade a “algo” que certos estudantes têm. Caso não houvesse o “diagnóstico” esse “algo” não entraria no rol de preocupações dos professores. Então, o “diagnóstico” passa, na maioria dos casos, a guiar as ações e as observações que os professores fazem e revelam em suas falas. Isso se evidencia com o fato de que, quando o Napne envia o “caródromo” para os docentes, os estudantes começam a ser lembrados como aqueles que pertencem ao grupo do Napne. Então, podemos dizer que, ao falar que o diagnóstico serve à inclusão, na verdade, ele gera, como será visto adiante, uma segregação dentro da escola, criando um grupo específico cuja representatividade encontra-se no Napne. Na segunda seção, trataremos de uma temática que não estava presente no nosso rol de preocupações no início da pesquisa, mas que adquiriu relevância a partir da análise dos relatos. Trata-se de compreender a relação professor-aluno, por meio do que se entende que são características importantes para avaliar aqueles que seriam 64

considerados bons estudantes, na visão dos professores, e verificar como o diagnóstico pode ou não contrinuir para diferenciar os bons dos maus alunos. Também farei considerações sobre a visão de aprendizagem trazida pelos docentes, o que mostrará como a escola continua centrada em aspectos cognitivos do indivíduo sem considerá-los em sua totalidade, ao mesmo tempo em que compreende que a educação deve ser avaliada a partir de suas finalidades, e não de seus processos.

1. A visibilidade do invisível: A territorialidade do TDAH na instituição

Tentando compreender de que maneira o TDAH se territorializa e se materializa no Colégio Pedro II – Unidade Tijuca II, indaguei aos professores a respeito do que conheciam e sabiam sobre o assunto, se sabem que certos estudantes são “diagnosticados”, se os reconhecem como tais e se sabem quem são eles e como avaliam esses alunos no cotidiano da sala de aula. Todos os professores relataram que sabem que o TDAH tem a ver com desatenção e hiperatividade, mas nem todos souberam precisar o significado da sigla. Eles relatam que sabem que estudantes com esse diagnóstico estão presentes em suas turmas, mas não sabem dizer exatamente quem são eles. Com uma turma com tantos alunos “diagnosticados”, os professores passam a ter pleno domínio dessas informações apenas quando recebem o “caródromo”.

Não consigo perceber... Numa aula média, assim, numa aula normal eu não consigo perceber isso. E aí eu tava até pensando: tem uns alunos mais claramente, (...) eu percebo quando ele tá viajando, quando ele não tá prestando atenção, mas os alunos que têm diagnóstico de TDAH não dá pra perceber. Você acha às vezes que eles estão prestando atenção... Aquela coisa, a conversa também é normal. Tem um limite ali que a gente não sabe... do normal, entre aspas, muitas aspas... Não consigo perceber no dia-a-dia, de que forma isso afeta no rendimento ou no aprendizado dos alunos. (...) Tem alguns alunos ali que eu sei que são do Napne mas eu não sei exatamente qual é a questão deles. Eu sei quais são, mas qual é a necessidade específica no dia-a-dia, eu não lembro. (Bárbara, Sociologia) Uma pessoa leiga... Por exemplo, se não vem pra mim dizendo que eles têm um transtorno, eu colocaria na posição de igualdade como qualquer outra. Não veria nenhuma diferença dele em relação a outros meninos ou dela com relação a outras meninas. Não vejo nenhuma diferença. Tentando ver o grupo que fica em volta dela... O grupo que 65

fica em volta dele. Não vejo nenhuma diferença. (Luís Fernando, História) A equipe toda, todos os professores, no início do ano, nós soubemos quem iria ser assistido. Mas só que esse acompanhamento a gente só faz na aula, nessas aulas específicas18 e na prova. Agora detalhamento de quem é ou não é eu não consigo observar. Só fiquei sabendo no início e agora que você perguntou sobre esses dois. [...] No início do ano, a gente fica sabendo pela listagem, mas te confesso que eu, assim, não teria suspeita. Não tô desconfiando da deficiência, tá, Thiago? Não é isso, mas não suspeitaria. (Robson, Física) Individualmente eu não tenho precisão da patologia de cada um... (Posso chamar assim, né?) Não tenho certeza exatamente de cada um. O que eu vejo é a partir da expressão deles, como eles conseguem introjetar o que tá sendo discutido. Então eu sei que o José, por exemplo, requer eu chegar perto dele e falar algumas palavras centrais pra ele entender. Pra outros, é fazer com que o centro da atenção esteja na minha fala. Então colocando o aluno como exemplo de algum personagem em alguma situação. (Eduardo, Geografia) Os com TDAH talvez de todas as questões que a gente tem, seja a menos grave, digamos assim. (...) Mas no TDAH é uma questão de ficar atento. Eu vejo uma diferença muito grande. Esses dois eu mantenho eles em aula muito como eu mantenho os que não são diagnosticados mas são altamente dispersivos. É uma coisa que a gente lida muito melhor, muito mais fácil com o que a gente já faz, [que é] ficar atento. (...) Na outra turma, eu tenho uma aluna que tem uma dificuldade grande em Biologia e metade dessa dificuldade é de concentração, não tem nada diagnosticado. Ela senta, ela não consegue, ela fala “vou assistir a aula”. Quando você olha pra ela, ela tá viajando. São alunos dispersos. (Laís, Biologia)

Nos dois primeiros relatos acima, Bárbara e Luís Fernando demonstram não se importarem com o diagnóstico ou com o documento do Napne. Eles sabem que os estudantes receberam algum “diagnóstico”, mas isso não muda as práticas realizadas no dia-a-dia da sala de aula. Nenhuma nova atividade é proposta ou realizada para atender especificamente os estudantes considerados “especiais”. Então, podemos já pôr em dúvida a utilidade do diagnóstico, pois qual seria a intenção de comunicar aos professores a existência dele? Já no penúltimo caso, do professor Eduardo, a experiência do professor fala mais alto. Com base na “expressão” dos estudantes, segundo ele, o docente reavalia o seu caminho pedagógico. Também, para ele, o documento diz pouca coisa. A professora Laís lida com os alunos que possuem diagnóstico de TDAH da mesma forma que com os que não são diagnosticados, mas são 18

O professor se refere a aulas de apoio organizadas pelo Napne mas ministradas pelo professor apenas com os alunos acompanhados pelo núcleo.

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“altamente dispersivos”. No caso dessa professora, o diagnóstico não serve mesmo para nada, de forma que ela compara uma aluna que tem dificuldade de concentração com os alunos com diagnóstico de déficit de atenção. As dificuldades que os alunos possuem, segundo ela, são tratadas de forma equivalente, independentemente da presença de um diagnóstico de transtorno ou não. Mesmo entre alunos com o diagnóstico de TDAH, a professora afirma realizar um tratamento diferenciado por causa de suas personalidades distintas. O professor Robson, por sua vez, só ficou sabendo dos dois alunos com diagnóstico de déficit de atenção no momento da entrevista, o que quer dizer que, em alguns casos, o professor não dispõe de uma preocupação extra ou mesmo procura obter qualquer conhecimento sobre esses alunos, ou ainda simplesmente esquecem, conforme ele mesmo confessou. Chama atenção, também, o fato de ele já apresentar um discurso defensivo, como se “desconfiar da deficiência”, ou melhor, do diagnóstico da deficiência fosse uma posição problemática que ele não deveria assumir. Isso demonstra o peso do saber médico sobre a escola, assunto que será retomado mais a frente. Esse mesmo docente também afirmou que, no início do ano, os colegas sabiam quem dos estudantes iria ser assistido pelo Napne. Ele estava se referindo ao “caródromo”. Conforme apresentado no capítulo anterior, trata-se de um documento disponibilizado pelo Napne, que contém os nomes, a turma e os rostos dos estudantes, bem como suas supostas deficiências ou síndromes, além da sugestão de estratégias que devem ser adotadas pelos professores em sala de aula para auxiliar esses alunos. Segundo a coordenadora, geralmente os alunos já chegam ao Fundamental II diagnosticados porque a maioria vem do Fundamental I. Por ter mais tempo semanal com as crianças, os professores do outro segmento já possuem um olhar e, geralmente, orientam os pais a buscarem a avaliação de um especialista. Para ela, ainda existe a dificuldade dos pais de aceitarem o problema de seus filhos.

Geralmente as famílias têm pouca sacação de olhar para seu próprio umbigo. É difícil o pai reconhecer que seu filho tem problema. Até porque você acaba se acostumando. Até quando ele é pequeno. É muito difícil você aceitar que seu filho tem problema, é muito difícil você se desvincular do emocional pra uma coisa de fora. E às vezes quem fala de fora é até mal visto. Eu também sou fonoaudióloga e tive consultório muitos anos. Um dos grandes problemas é a aceitação da família. Geralmente é a escola que indica. Os pais já ficam assim: ‘O que que meu filho tem?’. ‘Meu filho não tem nenhum problema!’. ‘Mas meu filho não tem nada!’. Eles ficam assim. Ninguém quer problema. Qualquer um de nós, a gente se assusta. Eu sou mãe. Se [a 67

escola] me chamar, vou pensar “o que tá acontecendo com minha filha”. A família toma um susto. Porque você tá numa zona de conforto. (Fátima, coordenadora)

Em outras palavras, é a própria escola que, em muitos casos, força o encaminhamento para o psiquiatra. Isso significa que o diagnóstico é ‘solicitado’ pela instituição à família que, por sua vez, o obtém por meio do médico. Com a chegada do diagnóstico na instituição, no caso do TDAH, a escola cria um documento, o “caródromo”, que rotula, classifica e padroniza os estudantes, mas pouco transforma as relações sociais dentro da sala de aula por parte dos professores. Veremos os relatos dos docentes mais adiante, mas, além deles, vale uma análise mais detalhada do “caródromo”. As estratégias e as dificuldades apontadas pelo documento são as mesmas para todos os estudantes que possuem diagnóstico de TDAH sem comorbidades, por exemplo. Portanto, a normatização e a classificação da síndrome homogeneízam os alunos de acordo com as recomendações do campo da psiquiatria e da neurologia. Abaixo, é possível observar informações sobre três estudantes de turmas diferentes que possuem o “diagnóstico” de TDAH. Os nomes também foram retirados para preservar a identidade dos estudantes19.

19

Uma alteração na forma do documento foi realizada com o intuito de adequá-lo às normas de apresentação e formatação deste trabalho. Nenhuma alteração no conteúdo foi feita.

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NOME DO ALUNO

TURMA

DIFICULDADES

PERFIL

ESTRATÉGIAS

(Aqui estariam os nomes completos e uma fotografia 3x4 de cada aluno)

601

Atenção e concentração em tarefas longas

TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade)

Rotina e organização são fundamentais. Sentar na sala num lugar que suas anotações possam ser verificadas Necessita de acompanhamento do NAPNE semanalmente Avaliação em Sala com Mediação

602

Atenção e concentração em tarefas longas

TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade)

Rotina e organização são fundamentais. Sentar na sala num lugar que suas anotações possam ser verificadas Necessita de acompanhamento do NAPNE semanalmente Avaliação em Sala com Mediação

701

Atenção e concentração em tarefas longas

TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade)

Rotina e organização são fundamentais. Sentar na sala num lugar que suas anotações possam ser verificadas Necessita de acompanhamento do NAPNE semanalmente Avaliação em Sala com Mediação

Tabela 1: Comparação entre três estudantes com diagnóstico de TDAH.

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Atenção e concentração em tarefas longas são as dificuldades que os três estudantes acima possuem de acordo com o documento. Rotina e organização são fundamentais e sentar na sala em um lugar onde suas anotações possam ser verificadas são estratégias que funcionam para os três estudantes, ainda segundo o caródromo. São exatamente as medidas apresentadas pelos psiquiatras Rohde e Halpern, apontadas no capítulo anterior. Segundo os autores, o aluno com TDAH “deve se sentar na primeira fileira”, “precisam de reforço de conteúdo em determinadas disciplinas”, “é necessário um acompanhamento (...) nos aspectos ligados à organização”, entre outros (ROHDE e HALPEN, 2004, p. S68). Assim, é possível notar que as medidas recomendadas pelos psiquiatras para o suposto transtorno delineiam um conjunto de expectativas construído em relação ao comportamento que esses alunos diagnosticados devem assumir. Diante disso, a escola acaba privilegiando uma perspectiva orgânica do campo da psiquiatria em detrimento do entendimento de qualquer outro traço de personalidade desses estudantes, de suas histórias de vida, de sua situação familiar, de contextos socieconomicos em que estão inseridos ou de qualquer outra esfera. E, além disso, em nada altera a prática do professor, pois, como vimos pelas falas, a maioria dos entrevistados dizem não fazer atividades diferenciadas para os “alunos do Napne”. É nesse sentido que Tunes (2010) apresenta uma visão crítica sobre a deficiência. Segundo a autora, a ideia de deficiência significa falta de habilidade, de capacidade ou de inteligência para realizar alguma tarefa que se espera que seja feita de determinada forma. Assim, a deficiência articula-se com a ideia de expectativa social (p. 51-52). Nessa mesma direção, caminha Vigotski. Segundo o autor, a deficiência precisa ser avaliada do ponto de vista das consequências sociais para a pessoa. As causas orgânicas não atuam por si mesmas, mas de forma indireta (p. 18). É importante considerar que Vigotski está se referindo à deficiência e não aos supostos transtornos ou síndromes. Na realização de seus estudos sobre crianças com desenvolvimento atípico, o autor colecionou dados e experimentos com meninos e meninas com deficiências visual, auditiva ou física. No entanto, o que o Napne faz com os alunos, como será visto, é equiparar o transtorno, criado em função de uma determinada organização do trabalho escolar, à deficiência. O que é possível notar, com base nos relatos dos professores, é que, em muitos casos, há uma surpresa no momento em que o suposto transtorno é divulgado por meio do “caródromo”. Conforme apresentado pelo professor na epígrafe desse capítulo, bem como nos relatos acima e em outros seguintes, o TDAH só passa a existir, ou seja, somente se materializa para os professores quando esses estudantes recebem diagnósticos e quando o 70

Napne envia, por e-mail, aos professores o “caródromo”. Pois, para a maioria dos professores, não há diferença entre os alunos com “caródromos” enviador pelo Napne e os da listagem normal de cada sala de aula e, por vezes, os docentes revelaram que se esquecem, como disse o professor Robson, que ficou sabendo apenas no início do ano letivo e quando, ao longo da entrevista, eu perguntei sobre os alunos em questão. Surge, então, um questionamento: para que serve o “caródromo”? Ou melhor, a quem ele serve? Com base nos relatos dos professores entrevistados, foi possível notar que os professores têm pouca informação a respeito do que é denominado de TDAH e, às vezes, nem mesmo concordam com as descrições da Associação Americana de Psiquiatria. Quando li os sintomas de desatenção e hiperatividade para me referir a uma aluna, todos os professores discordaram da definição.

Ela não parece ter isso, não, pra te ser sincero, cara. Pelo nome... [Perguntei se ele a achava desatenta, se ela deixava escapar detalhes ou se era hiperativa] Pô, cara... Talvez. Não é algo significativo. Pra mim, se fosse algo significativo eu ia te relatar. Outros que são assistidos pelo Napne são mais significativos do que ela, pra te ser sincero. A parte do “com frequência” que eu não sei. O termo “com frequência” na maioria dos itens que eu questionaria, não sei se é tão frequente assim, entende? Isso eu não sei. Não sei se “com frequente”, entende, Thiago? Não sei, teria que me aprofundar mais. Passar a observar mais ela. Como são trinta alunos, não justifica mas ajuda a gente... Eu tô conhecendo esses meninos esse ano. Eu tenho um tempo semanal e dois no sábado. Com um tempo semanal... eu questionaria isso: “com frequência”? Não sei se é tão frequente assim. Talvez seja minha análise, talvez seja pobre nesse sentido... [Li os sintomas de hiperatividade e impulsividade] Pra ela? Não acho, não... Não acho, não... Não, essa moça, não. Eu não acho que ela é assim, não. Nunca percebi o comportamento dela nesse sentido. (Robson, Física)

Se hiperatividade for aquela coisa de não ficar parado, de falar muito, de não conseguir ficar sentado, eu não caracterizaria ela dessa maneira. Pela visão que eu tenho. Pelo que eu observo ela em sala... (...) Desatenção... ? Ela não é uma pessoa que participe muito da aula. Não levanta o tempo inteiro, senta, fica quietinha, na dela... [Li os sintomas de desatenção do DSM.] Se pegar o caso que eu te falei, do exercício que eu passei pra casa e o fato dela ter feito um texto muito bom e pensar nesses sintomas que você tá falando aí... e faz com muito capricho. A letra, como te falei, é uma letra muito pequena, mas faz é muito bem organizado... um negócio que ela tava incomodada que ela não sabia se ela tava explicando da maneira correta... Ela é muito séria, faz as coisas com seriedade, não me parece que faz de qualquer maneira. Texto bom, não foi uma coisa de qualquer maneira, só pra dizer que fez. Não vejo hiperatividade e nem impulsividade... Senta, quieta, se você não for até a mesa dela talvez ela não... É até um momento interessante essa coisa de passar nas mesas pra ver o dever de casa é um momento interessante, de chegar nesse pessoal mais calado até pra 71

perceber... Ela escreve muito bem! Fez uma prova muito boa. Não foi só um dever de casa. Ela estuda pra prova. (Luís Fernando, História)

A Ana Luiza da Iniciação Científica. Não que ela precisasse, assistências a mais são bem vistas sempre. Mas ela não parece do Napne. Eu acho que identifico um perfil no Napne de dificuldade de aprendizado dos alunos, mas, por exemplo, a Ana Luiza eu não sei, eu olho pra ela e falo “ela não precisa desse apoio extra”, mas é claro que é bom. Qualquer aluno ia ficar melhor com apoio extra. [...] A Ana Luiza é a melhor aluna do Napne. Ela tem uma situação social um pouco ruim, de ter pouco acesso à Internet, ao computador. Mas ela é muito dedicada. Ela pergunta, ela vai além, coisa que alunos que não são do Napne não fazem. (Isabel, Geografia, realce feito pela professora durante a entrevista)

É interessante observar a ideia de alunos que “parecem do Napne”, como referido no relato da professora Isabel. É possível notar, em sua fala, que os alunos que frequentam os encontros do Napne possuem uma “cara”, isto é, uma identidade que os une, o “caródromo”e são agrupados tendo por base suas supostas deficiências, supostos transtornos e supostas síndromes, o que revela uma carga potencial de preconceito muito grande. Apesar de as considerações serem normalmente as de afirmar que a cara dos alunos do Napne é de ser “bonzinho”, “organizado”, “interessado” e “tranquilo”, essas características não seriam marcas da igualdade com os demais alunos. A construção de uma ideia de estudantes que parecem ser do Napne revela que o processo de inclusão é extremamente problemático e contraditório nessa instituição. Apesar desses alunos não serem efetivamente excluídos do processo educativo, eles são fortemente segregados (ou precariamente incluídos20), inclusive espacialmente. A posição do indivíduo à margem, vítima de segregação, é a de sofrer processos de controle, vigília e também assistência. O poder se institui duplamente, tanto no sentido de separar grupos de indivíduos por categorias quanto no de criar saberes sobre os marginalizados. Diz Guatarri:

No fundo, tudo o que não entra nas normas dominantes é enquadrado, classificado em pequenas prateleiras, em espaços particulares, que podem até mesmo ter uma ideologia teórica particular. Há, portanto, processos de 20

Analisando a popularização do conceito “excluído” para se referir à massa de trabalhadores precários ou desempregados pobres nas grandes cidades periféricas após a década de 1980, Martins propõe chamá-los de ‘incluídos precariamente’. Não há nenhum grupo que seja de fato totalmente excluído de um ambiente ou de uma sociedade: “(...) rigorosamente falando, não existe exclusão: existe contradição, existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes” (MARTINS, 1997, p. 14, citado por HAESBAERT, p. 316-317).

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marginalização social na medida que a sociedade se torna mais totalitária, e isso para definir um certo tipo de subjetividade dominante, à qual cada um deve se conformar. Isso ocorre em todos os níveis: desde a roupa que você usa, até suas ambições, suas possibilidades subjetivas práticas (GUATARRI, 1996, p. 122).

No caso do diagnóstico do TDAH, a segregação não se dá apenas em nível de produção de conhecimento sobre o grupo, apesar de esse processo também fazer parte da política do Napne. A marginalização também se dá, entretanto, no âmbito dos espaços permitidos e proibidos da escola, isto é, de forma material. A realização de provas em salas separadas, as aulas de apoio exclusivas para esse grupo, o atendimento semanal realizado pelo Napne que não inclui os alunos ditos normais revela o peso dado pela instituição aos diferentes, realizando ela própria o processo de reclusão. Trata-se da ‘inclusão por exclusão’, conforme identificada por Foucault (2003). Afirma Haesbaert, citando Foucault: Na moderna reclusão de “inclusão por exclusão”, ao contrário da exclusão em sentido estrito, vigora uma concepção de clausura temporária, dita “de sequestro” por implicar sempre a perspectiva de recuperação do indivíduo e seu posterior “resgate” para a sociedade normatizada ou “dos normais”. (HAESBAERT, p. 195).

Uma das professoras disse que não pode dar aula “só para os alunos incluídos”, e que precisa manter o interesse dos alunos “que não são incluídos” (Laís, Biologia). No entanto, a política da escola é promover a existência de espaços reservados para os alunos com diagnóstico frequentarem, bem como para realizarem seus exames. Tais medidas revelam o caráter segregador no maior sentido material que pode ser dado a esse conceito. Um grupo social, aquele que possui o “caródromo”, é territorializado (de fora para dentro). Os espaços que esses jovens frequentam são instituídos de uma verdadeira lógica de poder dentro da escola, pois eles são vigiados, controlados e classificados de acordo com a presença ou não do diagnóstico e de sua suposta intensidade. Além disso, os de fora do Napne são diferenciados dos alunos de dentro do Napnee, portanto, diante disso, moldam-se ações, discursos e práticas marginalizantes. Um dos dados relevantes desta pesquisa é o fato de alguns alunos não desejarem participar dos encontros semanais do Napne para não serem vistos como doentes pelos colegas. Em outras palavras, é possível notar que a transformação da síndrome em uma deficiência e o consequente tratamento dado a ela pela instituição reforça a estigmatização e o 73

preconceito. Isso pode ser observado pelo registro no “caródromo” de um aluno do 6º ano do Ensino Fundamental que traz uma informação sobre um estudante:

Júlio Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxx (605) – Foi encaminhado pelo SESOP/NAPNE do Pedrinho, porém a mãe, Rosely, informou por telefone que não deseja que o filho participe das atividades do NAPNE Apesar de não ser muito comum a opção do estudante ou da família de não frequentar o grupo do Napne, ela está presente na escola, conforme o relato da coordenadora do Napne, Fátima, e também o da professora Isabel revelam:

Não é porque a pessoa tem uma determinada síndrome que você não pode aspirar coisas na vida. E aí você também acaba diminuindo essa distância, da visão de aluno doentinho... Eu acho que ainda tem, que precisa diminuir, mas que tem alguns... Em alguns pais, em alguns alunos... Em professor tem menos. [...] Teve uma professora no conselho que falou que tem um aluno com baixa visão que disse que não quer participar do Napne porque ele vai ser considerado doentinho pelos colegas. O próprio aluno... (Fátima, coordenadora). Discriminação é muito o que você vê, como você recebe... Ele não recebe bem o fato de ser visto como um cara diferenciado pro negativo, que seria. Se você tá no Napne tem um déficit... ele chama pra ele o quê, que eu não quero ser visto assim, independente se falam pra mim ou não. (...) Mas o José não quer ser visto assim. (Isabel, Geografia).

A visão de que estar no Napne é ter um déficit está presente no cotidiano da escola, o que acarreta no reforço ao preconceito, ao estigma e à marginalização. Raad e Ximenes discutem que a matriz teórica sobre Psicologia do Desenvolvimento que dá suporte a essas práticas são aquelas que se encaixam na matriz naturalista. Essas concepções carregam ideias como progresso, determinismo natural, universalidade, padrão, entre outras que tratam o desenvolvimento por meio das condições biológicas. As funções das crianças e dos jovens, por exemplo, já estariam prontas ao nascer e seriam apenas expandidas pela força do ambiente social (RAAD e XIMENES, p. 102). Vigotski apresentava argumentos para não tratar uma pessoa com deficiência como alguém que possui menos já no início do século XX. Em seus escritos sobre defectologia, nome dado à ciência que estudava crianças e jovens com deficiências, ele afirma que o desenvolvimento é possível para todos e guarda relação tanto com as especificidades de cada um como em sua relação com o meio. Vigotski tinha por base uma perspectiva qualitativa das especificidades e não analisava o desenvolvimento com base em pressupostos quantitativos. 74

A purely arithmetical conception of a handicapped condition is characteristic of an obsolete, old-school defectology. […] a child whose development is impeded by a defect is not simply a child less developed than his peers but is a child who has developed differently. […] defectology has voiced the view that a child’s retardation is a particular variety of special type of development, and not a quantitative variant of the normal type 21 (VYGOTSKY, 1993, p. 30).

É importante considerar, também, que Vigotski está se referindo à deficiência física, auditiva ou visual e não aos transtornos, como o TDAH. Contudo, as abordagens do Napne tratam o TDAH como deficiência, por isso o diagnóstico de déficit de atenção se territorializa da mesma forma que um diagnóstico de uma deficiência. A coordenadora do Núcleo revela em sua fala que diferencia os dois tipos de atendimento realizados. Mas a forma como a escola lida com o diagnóstico é igual.

Nós temos duas vertentes: aqueles que fazem parte do Censo e os que não fazem. Quem é AEE, aluno de atendimento especial, (...) que ele é coberto pela lei. Você tem que ter todas as adaptações, enfim. Nós temos os alunos autistas, do espectro autista, os alunos com transtornos globais de desenvolvimento, nós temos os alunos com altas habilidades, nós temos deficiente auditivo, deficiente visual, múltiplos, deficiente intelectual, deficiente físico... só. Acho que é só. Então são essas deficiências. São consideradas alunos da Educação Especial. Agora, a gente também atende no Napne quem tem transtorno. Que aí a gente nem inclui no Censo que a gente atende aqui no Napne. São os alunos com Transtornos diversos. Temos o TDA, o TDAH, dislexia, discalculia, opositor-desafiador, Dificuldade de Aprendizagem, quando ela é severa, PAC alterado, desenvolvimento psicomotor alterado. (Fátima coordenadora)

Apesar de enfatizar que existem duas vertentes, o retorno dado pela escola para esses alunos é o mesmo. O TDAH, portanto, é equiparado a uma deficiência biológica: os dois grupos mencionados pela Coordenadora participam dos encontros semanais do Napne, ambos fazem a prova em “sala de mediação” – com apoio do professor ‘especialista’ da disciplina bem como apoios moral e psicológico –, além de se gozarem de trinta minutos a mais para a realização da prova. Não é à toa que os professores equiparam os transtornos relacionados a

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Uma concepção puramente aritmética da condição da deficiência é uma característica de uma defectologia obsoleta. […] Uma criança cujo desenvolvimento é impedido por um defeito não é simplesmente uma criança menos desenvolvida que seus colegas, mas uma criança que se desenvolveu de forma diferente. [...] A defectologia exprimiu a visão que um retardo mental em uma criança é uma variação particular de um tipo especial de desenvolvimento e não uma variação quantitativa do tipo normal. (Tradução livre)

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supostas dificuldades de aprendizagem na escola às deficiências, não tendo conhecimento sobre a diferença entre os dois. Isso pode ser visto, entre outros, no relato do professor abaixo.

Isso só se tornou mais forte de dois anos pra cá, com a institucionalização do Napne em cada campus... É recente, dois ou três anos... Com esse novo setor, as iniciativas começaram a ser mais desenvolvidas. Tinha um grupo em São Cristóvão que fazia desenvolvimento pra deficiente visual, essa iniciativa não foi deixada de lado. Mas as outras deficiências, os transtornos, eu não lembro de ter uma iniciativa tão marcante quanto a gente tem agora. (Robson, Física)

A própria coordenadora do Napne afirma que o tratamento dado aos estudantes com os dois tipos de diagnóstico é o mesmo, como a realização de avaliações na sala de mediação ou os encontros semanais, a organização da rotina e dos estudos etc. Então, tem a sala de mediação. Pra alguns acham que “Ah, lá eles vão dar as respostas”. E não é nada disso. Quem participa, sabe. Então é uma forma deles se defenderem, também. Até porque se fosse isso todo mundo tirava dez. e não é o caso. Eles têm trinta minutos a mais pra fazer as provas. Por exemplo, se, em testes, eles sentirem que vão precisar de um tempo a mais, ou, se eles não tiverem entendendo, se eles quiserem mandar pra cá a gente continua o teste. Isso é garantido por lei e aqui na escola o professor sabe disso. E mesmo nos casos que não são garantidos por lei, a gente faz isso. Porque, por exemplo, dislexia não é garantido por lei, nem TDAH. Mas a gente faz isso pra todo mundo. Garantido por lei é só o AEE. (...) Na hora da prova, tem sempre um professor da matéria lá. Se eles não tão entendendo a forma, o professor explica de uma outra maneira. Se ele estudou – no geral eles estudam muito, ele vai entender aquilo e vai marcar ou escrever aquilo que [entendeu]. (Fátima, coordenadora)

A sala de mediação é uma das joias da coroa do trabalho do Napne, e isso pode ser percebido nos relatos dos professores. Todos eles destacam que a realização da prova em uma sala separada com a ajuda de profissionais do Núcleo e professores especialistas é um diferencial. Os docentes, de maneira geral, avaliam que o trabalho realizado na Sala de Mediação é suficiente para garantir o atendimento especializado que o público dito do Napne precisa.

Eu faço a prova da 3ª série, mas, como sou vice-coordenador, sei como é a prova da 1ª também. Não tem uma preparação, não vou botar uma questão diferente, a prova é a mesma. O diferencial dos alunos do Napne é que você tem um quadro de profissionais, uma coordenadora, uma fonoaudióloga, outro profissional e mais dois professores de Física pra fazer a leitura daquela prova. Eles têm muita dificuldade pra interpretar, alguns. Alguns 76

tem dificuldade pra interpretação, outros pra conta. Essas particularidades são assistidas na hora da avaliação. (Robson, Física) Fica lá, a gente conversa, a gente lê a questão com eles. O que eu já fiz em provas que eu sabia que tinha uma quantidade de texto que eu sabia que não precisava da questão. Eu disse ‘não precisa ler isso, vamos passar pra cá’. Por quê? Porque aquilo era um desafio para aquele aluno além do que ele tava preparado naquele momento. (...) De ajudar a ter um norte naquela questão, uma coisa de interpretação, de fazer alguma conexão com ele, que leve ele a... Às vezes, quando eles leem o enunciado, aquilo pode ser qualquer coisa. ‘Vamos ler, o que você acha que tá dizendo aqui?’ É uma leitura direcionada. Eu nunca faço ‘Tá vendo, isso tá falando sobre mitocôndria’. Eu falo “Do que você acha que tá falando aqui? De que processo?’ Aí ele responde. ‘Qual organela responsável?’ Aí ele responde. É uma leitura direcionada daquele enunciado. Se errar, errou. Também não vou falar assim ‘tá errado’, também não faço isso. É mais uma ajuda na interpretação da questão do que qualquer outra coisa. Tem uma questão discursiva que tem cinco a dez linhas para escrever, ele escreve uma. Eu falo ‘você acha que isso daqui tem tudo que a pergunta, a questão tá pedindo pra descrever ou comparar’. A gente não faz na sala regular. (Laís, Biologia) Tem aluno que quer fazer prova na sala de música pra receber maior apoio na prova. Você dá quase a resposta pro aluno. Eles querem a resposta da prova. Claro que você acaba dando a prova pro pessoal do Napne. Você dá a resposta pra ele só que de outra forma. E as pessoas, alguns malandros querem isso. Acho que também dá uma carência dessa malandragem que quer também ter esse apoio. E tem alguns alunos que se candidatam, nem são chamados, mas eu não sei te dizer nessa amostragem quem é malandro e quem não é... Mas enfim, são todos carentes. Tem um tempo maior, recebem praticamente a resposta da prova. O apoio moral, de ter três ou quatro pessoas, você levanta o dedo, a pessoa tá lá te apoiando “não, calma, pensa, vai beber uma água”. Esse apoio psicológico faz uma diferença muito grande. (Isabel, Geografia)

Com base nas entrevistas realizadas, é possível observar que o trabalho desenvolvido durante a prova na sala de mediação é bastante diferente do que ocorre nas salas regulares. Se os alunos que são atendidos pelo Napne, além de contarem com trinta minutos a mais para a realização do exame, têm apoio moral, podem levantar o dedo para receber a resposta da prova, por outro lado, os estudantes que fazem as avaliações nas salas regulares são tratados de forma completamente diferente. Em muitos momentos de aplicação de provas em que estive presente e tomei conta em salas regulares, o papel da prova trazia um recado dos docentes nos cabeçalhos: afirmava que nenhuma dúvida seria tirada durante a prova, pois a interpretação fazia parte das questões. Não seria válido indagar: por que os alunos que não são diagnosticados não podem receber apoios na hora da realização das provas? Uma constatação que se evidencia nessa questão é que o que guia as atividades escolares em sala de aula é o conteúdo e a nota obtida e 77

não o conhecimento como meio para o desenvolvimento dos adolescentes. Isso mostra que a escola, infelizmente, ainda está presa à ideia de apreensão de conteúdos como finalidade, logo não atribui valor à atividade que pode impulsionar o desenvolvimento do indivíduo, além de suas relações sociais, como será visto na próxima seção. Apenas a professora Isabel afirmou que os docentes na sala de mediação dão as respostas das provas. A coordenadora, conforme apresentado anteriormente, diz que os especialistas explicam de outra maneira. Já o professor de Física afirma que eles são conduzidos ao que é certo, por meio de uma releitura das questões, o que, na visão dele, é diferente de dar a resposta.

Eu sou vice-coordenador de Física, então eu sei como eles ficam na sala de mediação. A Fátima fica [junto com eles], que é a responsável, coordenadora, ela que dá essa base para os professores de Física para que eles tirem as dúvidas dos alunos. A coordenação orienta pra não dar a resposta, conduzir o aluno, fazer uma leitura... uma releitura do que tá escrito para que o aluno possa entender e traduzir como resposta. (...) O aluno é levado, é conduzido a obter a resposta. Eu entendo que isso é inclusão. Não é você dar a resposta pro cara. (Robson, Física)

Mesmo com interpretações divergentes sobre a resposta dada na sala de mediação, é possível notar o peso que a instituição dá para as avaliações formais. Tudo isso tem a ver com a expectativa dos docentes em relação aos estudantes, que será discutido na próxima seção. Importante frisar é que o Napne possui uma política de documentação, registro e classificação dos alunos, inclusive a respeito da realização da prova na sala de mediação ou mesmo da frequência dos encontros semanais. Isso transparece no relato de um docente a respeito de um aluno que tem maior risco de retenção. O tratamento dado a esse caso, que possui ausências, falta de motivação e uma repetência do ano anterior é bem diferente. Nesse caso, o fato de fazer parte do Napne não é lembrado pelo professor, pois ele afirma que o estudante diverge dos alunos do Núcleo – mais uma vez reforçando a ideia de que existe uma “cara” dos alunos com déficits, deficiências ou síndromes. O ‘diagnóstico’ do professor, nesse caso, é o desinteresse e a falta de compromisso com a escola e o suposto transtorno só é acrescentado à lista dos problemas escolares que ele já enfrenta. O Gabriel eu nem lembrava que ele é assistido pelo Napne. Ele diverge do grupo do Napne. Ele não é interessado, não vejo nenhuma motivação por parte dele... Ele eu vejo hiperatividade. Nele eu observo isso. Se mexe muito, talvez desatenção também... Não tem atenção nenhuma. É aquela coisa: é talvez um julgamento que eu vou fazer aqui: não vejo uma motivação dele em vencer o transtorno, tá entendendo? Ele é faltoso, um 78

aluno que tem uma deficiência, você não pode ser faltoso. Mas esse rapaz é faltoso. Que mais? Não sei se é mais pelas faltas ou pela falta de motivação mesmo na escola, eu não saberia diferenciar. Eu não saberia diferenciar se o transtorno de atenção dele é por uma deficiência, por uma patologia, ou se é por desinteresse mesmo, entende? Não sei diferenciar, no caso desse rapaz. (...) Se eu não tiver enganado, tem aluno que dorme em sala... Acho que até ele, ele inclusive já dormiu em sala de aula. Aí fica difícil, entende? No meu entendimento fica difícil... Por exemplo nesses encontros22, foram três pra 2ª certificação e hoje foi o 4º. Ele não foi em nenhum. [...] Então são quatro encontros que ele não vem. A Fátima documenta tudo isso. Isso é um dado importante: a escola tem toda uma movimentação, todo um quadro de profissional pronto pra ajudar e se o aluno não vem... [...] Ele eu te daria o diagnóstico que eu percebo nesse rapaz: falta de compromisso com a escola, total desinteresse, faltoso, mas não sabia que tava por trás um transtorno (Robson, Física, grifos meus)

No começo do relato, o professor faz uma opção por “encaixar” os sintomas em um estudante que ele relata ter mal rendimento. Em seguida, porém, ele evita justificar as dificuldades do rapaz pela síndrome, inclusive fazendo a ressalva que ele deveria ter uma motivação maior para “vencer o transtorno”. Ao final, o docente indica as características que complicam a vida escolar do estudante, inclusive apontando para a possibilidade de retenção, apesar do transtorno. O relato mostra que o comprometimento das atividades escolares, nesse caso é tão grave que a presença do diagnóstico não pode salvá-lo da reprovação. O realce que dei no relato do professor Robson ao afirmar que a coordenadora do Napne documenta as presenças e as ausências, as participações, o comportamento e acompanha o rendimento dos estudantes revela a importância do controle, da vigilância e da manutenção do poder sobre esses alunos, conforme já mencionado anteriormente. A escola reforça, desse modo, seu papel de instituição disciplinadora, negando toda a possibilidade de liberdade e criação aos estudantes. Pensava o educador Paulo Freire que a escola deveria fazer a opção entre uma educação para a domesticação e a alienação e uma educação para a liberdade (FREIRE, 1967).

Toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ou acomodado. E é por isso que, minimizado e cerceado, acomodado a ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora. (FREIRE, 1967, p. 42).

Apesar do diagnóstico do TDAH reforçar ou até mesmo criar uma identificação com a deficiência, três professores apresentaram visões críticas ao posicionamento mais comum “Encontros” são as aulas extras que o professor dá apenas a estudantes atendidos pelo Napne, geralmente num período próximo a uma avaliação trimestral. No dia da entrevista, aconteceu um desses encontros. 22

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sobre o déficit de atenção e hiperatividade. Uma professora fala em relação ao diagnóstico, e dois docentes a respeito de medicalização 23 , o que acontece, geralmente, ao final da entrevista, em um momento mais descontraído. Percebi nesses professores um interesse e uma curiosidade a respeito da temática da Educação e da leitura científica sobre alguns temas da área, especialmente entre os professores das chamadas Ciências Humanas e Sociais. Poucos tiveram leituras aprofundadas ou sistematizadas, mas demonstram o início de um posicionamento problematizador a respeito da neuropatologia do Transtorno. Em todo caso, não desenvolvem muito o tema, talvez porque buscam evitar desagradar o pesquisador. Você já viu um artigo que saiu dizendo que na França não tem TDAH? Não tem esse diagnóstico. Achei super interessante. São essas doenças de socialização, né. Tem muito a ver com o processo de socialização. Eu acho que a emergência das tecnologias digitais fez a gente avançar muito [na quantidade de diagnósticos]. Eu tenho essa impressão... (Bárbara, Sociologia). Eu acho que hoje muitas crianças são realmente muito agitadas, muito hiperativas. Acho que a vida de hoje tá propiciando isso. A gente tem uma vida muito corrida. Eu acho que a sociedade propicia tanto o olhar quanto o desenvolvimento. Acho que isso aí pipocou, foi um boom em relação aos outros. Acredito eu. Eu fiquei assustada. A gente tem (...) determinados alunos que são diagnosticados com TDAH que você diz assim ‘nossa, como ele foi diagnosticado com TDAH?’ Você sequer imagina que ele... Nossa, a gente fica duvidando do diagnóstico. Será que ele tá medicado? Porque quando ele tá medicado ele fica diferente, né. E aí você pergunta, ‘você tá medicado?’. E ele diz ‘não’. E você fica meio sem saber... Enfim, não sou eu que vou me meter. (Fátima, coordenadora)

O relato da coordenadora Fátima evidencia que o saber médico se infiltra na escola e não encontra resistências. As dúvidas que aparecem quanto à veracidade do diagnóstico não são enfrentadas nem mesmo pela coordenação que opta por “não se meter”. Todavia, sua percepção, assim como a da professora de Sociologia, aproxima-se da abordagem de Lima (2005), que busca se afastar de uma concepção universalista e a-histórica do TDAH. Esse autor procura compreender de que maneira as transformações recentes da nossa sociedade, especialmente em relação à identidade, ao consumismo e ao mundo do trabalho, alteram a forma como nos posicionamos em relação ao mundo. A constituição da família, das relações sociais, das identidades, bem como as categorias de “saúde” e de “atenção” foram sendo adaptadas às novas demandas do Capitalismo, em um mundo em constante transformação.

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“A medicalização consiste na busca de causas e soluções médicas, em nível organicista e individual, para problemas de origem eminentemente social (Moysés e Collares, 1985, citado por Werner Jr., 2008).

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Em outras palavras, o autor identifica as transformações sociais e históricas como causas da explosão de diagnósticos de TDAH e de outros transtornos relacionados aos contextos sociais. Apoiado principalmente em Zygmunt Bauman e Richard Sennett, pensadores renomados do campo das ciências humanas e sociais, quando não até mesmo da filosofia, Lima identifica que o corpo tem sido procurado como local de refúgio frente a um mundo em constante desenraizamento. A insegurança e a incerteza da nossa sociedade flexível trouxeram mudanças nos padrões culturais, contexto no qual o TDAH se encaixou perfeitamente. As referências sólidas, estáveis e duradouras, que auxiliavam os indivíduos como pontos de referência deixaram de existir ou foram profundamente transformadas por uma lógica de organização dos processos sociais baseada nas experiências sensoriais fugazes, na renovação constante e no consumismo. No mundo do trabalho, a disciplina e a hierarquia do período de regulação fordista foram substituídas por um sistema que simula democracia, transparência e horizontalidade. Na verdade, as relações de poder ainda existem, mas não há figuras claras que as representam. As equipes se rearranjam constantemente sem possibilitar a existência de relações duradouras, compromissos profundos ou cultivo de confianças. Segundo Lima, baseado em Sennett:

Nas instituições empresariais do novo capitalismo o que mais chama a atenção é a ausência, por obsolescência, do sentimento de “longo prazo”. O preço da sobrevivência no mercado globalizado é a permanente disposição das empresas e de seus trabalhadores de não se fixar em papéis ou em uma única habilidade, de nunca se fazer a mesma coisa da maneira que se fazia anteriormente. O valor de uma carreira construída passo a passo ao longo dos anos decai à medida que, para cada tarefa, uma nova habilidade é requerida, a qual não costuma se somar à anteriormente aprendida e sim apagá-la da memória. A rotina tornou-se a principal inimiga nos ambientes de trabalho (LIMA, 2005, p. 32).

No campo da identidade, o autor recorre ao conceito de “identidade de palimpsesto”, de Bauman, para se referir à falta de recursos dos indivíduos para lidar com frustrações e desafios ao longo do nosso desenvolvimento. A queda das grandes narrativas que eram portos seguros no passado (Capitalismo x Socialismo, Atraso x Avanço etc.) transforma nossos modos de vida que buscam se atrelar ao consumismo. As experiências humanas fragmentadas fazem com que as pessoas busquem aventuras de prazer, sem necessariamente desfrutá-las com profundidade, no momento em que rapidamente podem se deslocar sem compromissos ou dependências. Assim, vão acumulando sensações que extraem de episódios cada vez

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menos duradouros, exibindo uma facilidade de adaptação e flexibilidade demandada pelos novos tempos. É partindo do entendimento das transformações que a liquidez do mundo atual provoca nas subjetividades que Lima identifica o surgimento das “comunidades do corpo” como formas de refúgio e segurança frente à instabilidade do mundo exterior. Assim, ele entende que a aparência passa a definir o ser, com a explosão de dietas, o surgimento de academias de ginástica, as terapias, os cosméticos e os medicamentos que prometem o retardamento da velhice e a promoção da saúde, do bem-estar e do cuidado com o corpo.

É a saúde e o cuidado com o corpo individual que redimem a pessoa e criam identidades coletivas. Num mundo inconstante, marcado pelo esvaziamento das instituições de referência e pertencimento, a concretude do corpo próprio e os parâmetros da biologia tornam-se uma das poucas fontes de certeza, segurança e estabilidade a qual recorrer. (Idem, p. 43).

A medicação tem um papel relevante nessa comunidade do corpo, e isso ganhou destaque em alguns relatos dos professores. Eles não se aprofundam muito nessa temática, mas já trazem algum indício de problematização. Ainda que não seja nosso interesse direto neste trabalho, a fala dos docentes trouxe o problema, o que evidencia a necessidade de discussões a esse respeito no âmbito da escola e da formação de professores.

Eu não tenho nenhuma queixa de hiperatividade ou agitação nessa turma... (...) Na verdade é aquela linha bem tênue que você acaba se posicionando... Às vezes um aluno é desatento ou tem déficit de atenção? Qual é esse limite que estabelece isso? Às vezes é desatento porque tá com déficit de sono... São razões que seriam corrigidas não necessariamente precisando de um medicamento ou de uma atenção especial, mas resolvendo elementos até mesmo externos à escola. Eu vejo muito isso, aluno com muito sono. São vários (...) O medicamento não deveria ser a única forma. Acredito que os problemas estão muito centrados no tempo em que essa ideia da inclusão chegou até a escola. Os pais desses alunos não frequentaram o ambiente escolar que tinha todo esse movimento. Simplesmente eram taxados com palavras que só agrediam a autoestima deles e eram excluídos. Hoje em dia a gente já tem uma escola diferente de 20 anos atrás e isso não é só aqui. A escola que procura observar um pouco o aluno. Ela já sabe que tem que enxergar de modo diferente os que são diferentes. Às vezes, é desleixo dos pais, ou falta de percepção do pai, às vezes não consegue entender que [não] é o medicamento que vai resolver, mas algumas medidas do cotidiano do aluno que vai fazer ele deixar de ser desatento. Que às vezes o pai colabora [a deixar o filho com esses problemas]. Que que é o pai ligar na hora pro filho pra saber algo que não é importante no horário que o filho tá na escola? Aí depois falam que ele tem que tomar remédio porque o filho é desatento. (...) Caminhos que se distanciam e se convergem em determinados momentos que fazem o sujeito parar numa situação medicamentosa sem ter 82

necessidade. Eu não sei se todos que tomam remédio tem necessidade de tomar, mas é difícil de avaliar. (Eduardo, Geografia) Porque eu sempre sou contra a esses adolescentes a tomarem remédio. Uma opinião particular: remédio é muleta. Quando você não consegue andar, ele pode até servir. Acho muito ruim um aluno tomar remédio tarja preta, pra atenção, colocar ele na linha, umas Ritalinas da vida. (Isabel, Geografia)

Os dois professores aproximam-se de um movimento que está ganhando corpo no Brasil e em outros países, tanto pela comunidade científica quanto pela sociedade civil, contra o uso indiscriminado de medicamentos em crianças e adolescentes em idade escolar. Profissionais da área da Educação, da Psicologia e também da Psiquiatria têm alertado para este problema, enquanto diversas entidades civis se reuniram no Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade, que realiza Seminários anuais com uma perspectiva crítica, contrária ao abuso de remédios para controlar problemas que considera não médicos24. Até mesmo o Ministério da Saúde publicou um boletim, em outubro de 2015, com recomendações para prevenir a excessiva medicalização de crianças e adolescentes25. Além disso, o professor Eduardo apresenta uma visão crítica sobre o limite entre o que seria o TDAH e a simples desatenção. Segundo ele, há uma “linha tênue” separando os estudantes com uma síndrome propriamente dita dos que possuem uma personalidade desatenta. De acordo com o docente, a desatenção pode estar relacionada a um fator externo, não necessariamente biológico, como o sono ou a desorganização da rotina no dia-a-dia. Para ele, nem todos os casos precisariam de um medicamento. A concepção de Eduardo revela uma proximidade com uma literatura crítica ao TDAH, que aponta para um número excessivo de diagnósticos e de medicalização. Uma das principais críticas a esse respeito vem de dentro da própria área da psiquiatria. Allen Frances foi responsável pela elaboração do DSM-IV, a penúltima versão da lista dos transtornos mentais e, nos dias de hoje, faz uma autocrítica ao que considera uma transformação de problemas simples do cotidiano em deficiências mentais. O autor se vale do conceito de homeostase para defender que os problemas cotidianos não devem ser tratados como problemas psiquiátricos ou com medicamentos. Segundo ele, transtornos mentais só devem ser diagnosticados quando suas manifestações são muito claras, graves e é evidente que eles não vão se recuperar por si mesmos. Sobre isso, afirma Frances: 24

Conferir a webpage do Fórum: http://medicalizacao.org.br/. Acesso em 21 de nov. de 2015. Ministério da Saúde publica recomendações para restringir o uso de Ritalina por crianças. Empresa Brasileira de Comunicação. Disponível em: http://www.ebc.com.br/infantil/para-pais/2015/10/ministerio-da-saudepublica-recomendacoes-para-restringir-o-uso-de. Acesso em 21 de nov. de 2015. 25

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Recurrir prematuramente a la medicación supone evitar los caminos tradicionales de la curación natural: buscar el apoyo de la familia, los amigos y la comunidad, hacer los cambios vitales necesarios, descargarse de tensiones excesivas, practicar aficiones e intereses, hacer ejercicio, descansar, distraerse y cambiar de ritmo. Superar los problemas por ti mismo normaliza la situación, te enseña nuevas habilidades y te acerca a la gente amable. Tomar una pastilla te etiqueta como diferente y enfermo, incluso aunque no lo estés realmente. La medicación es esencial cuando es necesaria para restablecer la homeostasis en aquellos que padecen un auténtico trastorno psiquiátrico, pero interfiere con la homeostasis en aquellos que sufren los problemas del día a día. (FRANCES, 2014, p. 53-54).

No caso especificamente do TDAH, Frances discute que se trata de um ‘modismo’ dos dias atuais. Segundo ele, esse transtorno está sendo utilizado cada vez mais como uma explicação para todos os problemas de comportamento, tanto em crianças quanto em adultos. Problemas de atenção que antes se consideravam parte da variedade individual hoje são diagnosticados como transtornos mentais. O autor afirma que a força da indústria farmacêutica que convence médicos e pacientes com publicidade comercial apresentando receitas milagrosas para resolução de problemas tem um papel fundamental na popularização do diagnóstico. Além disso, os próprios pais e professores pressionam o uso para controlar crianças rebeldes ou inquietas, e o medicamento surge como uma resposta para esses problemas. (Idem, p. 169-172). O medicamento produz a diminuição da inquietação e da atividade motora e a maior possibilidade de concentração, mas isso ocorre tanto com crianças que recebem diagnóstico quanto com as que não recebem. Também por isso essa droga tem sido usada por estudantes universitários como estimulante para melhorar seu rendimento em épocas de exames, seminários ou trabalhos exaustivos. Em todo o caso, trata-se de uma intervenção biopolítica para transformar ‘corpos indisciplinados’ em ‘corpos dóceis’, nos termos de Foucault. Tratase da perpetuação de uma das principais funções que esse autor já identificava na escola como objetivos das instituições disciplinares.

A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço. Para isso, utiliza diversas técnicas. 1) A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechados em si mesmo. [...] 2) Mas o princípio de “clausura” não é constante, nem indispensável, nem suficiente nos aparelhos disciplinares. Estes trabalham o espaço de maneira muito mais flexível e mais fina. E em primeiro lugar segundo o princípio da localização imediata ou do quadriculamento. Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as 84

pluralidades confusas, maciças ou fugidas. [...] Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos (FOUCAULT, 1983, p. 130-131, grifos do autor).

Nesse sentido, o autor mostra que os lugares individuais permitiram observar o trabalho simultâneo de todos. O espaço escolar adquire uma economia do tempo de aprendizagem. Cria-se, assim, uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, hierarquizar e compensar. A escola também se organiza pelo controle da atividade através dos horários rígidos, do corpo disciplinado, de sanções e, sobretudo, de exames (FOUCAULT, 1983). Além das escolas, o autor identifica que hospitais, fábricas, asilos, quartéis e prisões são instituições disciplinares, que buscam formar o indivíduo produtivo, portanto sadio e dócil. Debruçando-se sobre as medidas realizadas na Europa Ocidental no período da lepra e da peste, Foucault identifica importantes aspectos espaciais das ações biopolíticas executadas. Segundo ele, para corrigir os problemas de saúde da sociedade, populações inteiras eram isoladas e/ou confinadas para garantir que não houvesse contaminação dos cidadãos sadios. A vigilância precisa fazer parte dos hospitais, asilos, manicômios e outros espaços de doentes, onde eles são classificados e compartimentados de acordo com os sintomas, a intensidade e outros métodos racionais (FOUCAULT, 1977, p. 45-46). Nasce a ideia de padrão e de normalidade em oposição ao deficiente, que é desequilibrado, desajustado ou perturbado. A ciência moderna se volta

para a normatização das pessoas, para a constituição e a reprodução de relações sociais [...] [estabelecendo] um padrão desejado a ser perseguido. Ela elabora os conceitos de normalidade e patologia, equilíbrio e desvio, harmonia e perturbação. [...] A estrutura epistêmica da racionalidade científica, suas características teóricas básicas e sua forma de modelar o mundo instituem a razão médica. A crença absoluta na ciência médica desenvolve a medicalização da vida (RAAD e XIMENES, 2011, p. 104).

Assim, medicamentos e terapias são consumidos para corrigir defeitos corporais e aumentar a produtividade dos indivíduos. Os procedimentos técnicos da clínica se ampliam, e o médico perde o caráter de artesão que tinha no passado, transformando-se em aplicador de “fórmulas mágicas” produzidas pela indústria farmacêutica. A preocupação com a prevenção de doenças e distúrbios torna as pessoas eternos clientes, buscando a longevidade, o corpo sadio e o bem-estar (RAAD e XIMENES, 2010).

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2.

A relação professor-aluno e as diferentes formas de aprender

A correção que o saber médico e as drogas se propõem a realizar também fazem parte do cotidiano da escola, ainda que caminhe em um sentido um pouco diferente. A ideia de corpos docilizados aparece como uma das duas características de maiores expectativas docente em relação ao que é considerado um bom aluno: o comportamento. Nesse sentido, o diagnóstico e a consequente medicalização produzem um resultado considerado ótimo na perspectiva dos professores em termos de comportamento dentro de sala de aula. Em alguns casos, ter um bom comportamento é melhor até do que tirar boas notas, como se pode verificar nos relatos dos professores abaixo sobre alunas que possuem diagnóstico de TDAH em turmas que eles lecionam.

Mas uma análise dela, ela é uma menina bem tranquila, presta atenção na aula, uma aluna normal, não é uma aluna que grita, que precisa de muita ajuda. Nos encontros ela foi poucas vezes a minhas aulas extras, então, assim, diria que uma aluna média. Pra mim, ela é bem bacana, interessada... Média. (Robson, Física) Ana Carolina é boazinha, dedicada, tá sempre vindo falar comigo sobre tudo. Se justifica sobre tudo. “Professora não fiz o trabalho por causa disso, disso e daquilo”, “professora o que você vai passar hoje”, tá presente. É boa aluna, se esforça. Consegue aprender. Não é agitada em sala. Ela toma alguma coisa, essa menina? Muito tranquila. Extremamente tranquila. Não sei até que ponto vai a dificuldade dela de aprendizado, ela tem alguma, não sei. Ela é aluno exemplo. Se eu fosse te dar quais são os bons alunos, independente da nota, ela seria uma delas. (...) Ela é responsável, traz o material, copia, faz a maioria dos trabalhos. (Isabel, Geografia)

Um docente com certeza pode achar que uma turma de trinta estudantes inquietos, agitados e que se movimentam muito é difícil de trabalhar. Entretanto, se uma aprofundada análise histórica e social da escola for feita, veremos que a instituição vem sendo utilizada como ferramenta de controle do Estado e de formação de indivíduos produtivos para o sistema capitalista. O nascimento da escola está muito atrelado à necessidade de formação de mão de obra após a Revolução Industrial. Era importante que os operários fossem alfabetizados e tivessem conhecimento das operações lógicas e matemáticas. O estudo de História e de Geografia, por sua vez, serviriam para a formação de uma identidade nacional, no bojo da constituição do Estado Moderno. Dessa forma, melhor é aquele aluno que se aquieta – o oposto do inquieto – e não é capaz de problematizar ou questionar práticas autoritárias. Crianças e jovens que se mexem demais ou recusam as normas da instituição 86

escolar são considerados perigosos para a manutenção do sistema. Utilizando uma metáfora que se aproxima de forma magnífica do nosso objeto de estudo, afirma Freire:

Criam instituições assistenciais, que alongam em assistencialistas. E, em nome da liberdade “ameaçada”, repelem a participação do povo. Defendem uma democracia sui generis em que o povo é um enfermo, a quem se aplicam remédios. E sua enfermidade está precisamente em ter voz e participação. Toda vez que tente expressar-se livremente e pretenda participar é sinal de que continua enfermo, necessitando, assim, de mais “remédio”. A saúde, para esta estranha democracia, está no silêncio do povo, na sua quietude. Está na “sociedade fechada”. No imobilismo. (FREIRE, 1957, p. 54)

Dessa forma, a medicalização possui um resultado ótimo para a escola-fábrica, aquela oposta à escola democrática, aberta e livre. A instituição, aliada ao saber médico e a indústria farmacêutica, culpabiliza os estudantes para não precisar rever suas próprias normas e preceitos. Desconsidera, portanto, os determinantes sociais, econômicos e políticos do desenvolvimento dos indivíduos (WERNER Jr., 2008). É um movimento conservador, no sentido de não se abrir para as transformações que podem abalar as estruturas da sociedade. Os alunos inquietos vão se aquietando, os desencaixados vão se encaixando e os agitados vão se acalmando.

A maioria dos sinais de desatenção, hiperatividade e impulsividade refere-se a habilidades exigidas pela escola, sem que se levem em consideração tipos de interação e de interlocução que permeiam as relações que se desenvolvem no espaço escolar. Habitualmente, sequer se considera que comportamentos semelhantes podem resultar de processos subjacentes diferentes. (WERNER Jr., 2008, p. 25).

A outra característica importante de um bom aluno é ter um bom rendimento, que se traduz no padrão de notas nos exames. Ela aparece como o objetivo principal da escola nos relatos dos professores. Segundo eles, isso também é um ponto positivo do trabalho do Napne que conseguiu melhoria nos rendimentos dos alunos atendidos. Isso pode ser lido nos relatos abaixo.

É um grupo bem bacana de trabalhar, os que estão efetivamente participando das aulas extras. É muito prazeroso trabalhar com esses caras, eles têm um comportamento bacana, tão ali porque querem de fato aprenderem o conteúdo. É muito prazeroso trabalhar com esse público. (...) Você vê, o resultado das provas é um resultado muito bom. Os alunos frequentes que levam com seriedade tem notas muito boas. (Robson, Física) 87

Porque, muitas vezes, o Napne atende um problema que vá gerar um diagnóstico, mas, às vezes, é um problema de organização, de distribuição do tempo, de rotina. Se a gente for colocar como parâmetro do sucesso escolar como nota, às vezes o aluno não tem nota porque não tem rotina. Então, o Napne tem papel de oferecer esse serviço extra ao aluno tentando fazer com que o aluno crie a rotina de estudo que é fundamental. Não é necessariamente o aluno que tem um problema bioquímico ou patológico. (Eduardo, Geografia)

A preocupação com o resultado nos exames que se traduz na nota está relacionada à ideia de finalidade ainda presente na escola. Está presente no relato de muitos professores a referência a como “anda o conteúdo” na turma que possui alunos com diagnóstico, muito mais do que as atividades propostas em cada sala de aula ou o caminhar pedagógico. Os professores valorizam aspectos formais das avaliações, a acumulação (ou “absorção”) de conteúdo e o reflexo que isso têm no rendimento dos alunos. Isso pode ser verificado nas falas abaixo. Então eles, muitas vezes, tão sabendo do conteúdo, mas não sabem o que responder na pergunta. Então, as respostas, às vezes, são sobre o conteúdo, mas não atendem o que a questão tá pedindo. O que mostra que o aluno tá estudando, que é o lado perverso da situação, você vê que ele tá estudando porque ele tá sabendo, mas, ao mesmo temp,o não respondeu a questão. Na verdade, eu acabo, muitas vezes, não zerando a pontuação por entender que ele tá sabendo. Especialmente nessa turma. (Eduardo, Geografia) Eu acho que essa turma rende mais. As notas são melhores. O conteúdo é o mesmo, os professores são os mesmos, eu acho até melhor. Ano passado eu demorava mais pra andar com o conteúdo. Esse ano flui melhor. São mais disciplinados... Tem aluno indisciplinado? Toda turma tem aluno indisciplinado, em qualquer escola. Mas, assim, eu sinto que eles são mais disciplinados, são mais imaturos... Assim, ano passado eles eram mais maduros (sic), já se achavam, achavam que sabiam de tudo. Na verdade não sabiam nada, a nota refletiu isso: não sabiam nada. (Robson, Física) Às vezes ele fala “entendi, ok”, mas depois o conhecimento não fica com ele. (...) [Já o José] consegue absorver tudo. Você fala, fica com ele. (Isabel, Geografia) (...) eu acredito que esteja [atingindo os objetivos], porque ano passado de fato ela [a Fátima] conseguiu que eles melhorassem seu rendimento, que alcançassem seus objetivos (Bárbara, Sociologia)

O peso do “saber o conteúdo” ou o resultado da aluna que apresenta, segundo o professor, “dificuldade danada” em Matemática são evidências da escola presa à ideia de finalidade, desconsiderando o processo, o que é exatamente o oposto daquilo que Vigotski preconizava. Para esse autor, conforme apresentado no primeiro capítulo desta pesquisa, a principal tarefa do professor, tendo por base os estudos a respeito da zona de desenvolvimento 88

iminente dos estudantes, é elaborar atividades que criem possibilidades para que a criança ou o jovem se desenvolva. No caso dos relatos sobre as notas, o que transparece é que o objetivo da escola limita-se em fazer verificações de aprendizagem repetidamente, sempre levando em conta o que o estudante já sabe. Em outras palavras, o processo de ensinar e aprender está sempre voltado para o passado do estudante, ao invés de se pautar pelas possibilidades que são infinitas e estão fora do controle do outro. Para Vigotski, o ensino (ou estudo) deve ser orientado para as possibilidades do desenvolvimento do indivíduo, e a atividade é que poderá criar e possibilitar a emergência do novo. Trata-se de uma visão de ser humano como dinâmico, em constante movimento, permanentemente inacabado, em transformação. “A perspectiva psicológica do futuro é a possibilidade teórica da educação” (VIGOTSKI, 2006, p. 287). Felizmente, foi possível localizar em um dos relatos uma crítica ao tempo corrido da escola, por parte da mesma professora que apontou que não existe TDAH na França. Ela afirma que deveríamos ter uma carga horária direcionada para conhecer melhor esses estudos, dar atenção a casos individuais e fazer um trabalho diferenciado. Segundo a professora, isso é “culpa da escola”, como pode ser visto abaixo.

Acho que ter uma carga horária pra formação sobre como... estratégias pedagógicas, conhecer as diversas necessidades específicas dos alunos, a gente não tem tempo pra isso. A gente não consegue fazer um trabalho diferenciado, é sempre uma correria. O trabalho com o Napne, marcar um dia, um horário pra auxiliar no Napne . Não é culpa do Napne, também, é culpa das condições da escola. Então seria pra gente ter tempo, pra dar atenção a isso. Porque eu tenho uma turma com esse perfil, mas eu não consigo fazer um trabalho diferenciado com esses alunos, não consigo! (...) Ainda mais minha disciplina, que a gente tem dois tempos semanais, não tenho condição nenhuma. (Bárbara, Sociologia)

A mesma professora apresenta uma perspectiva crítica sobre as especificidades que os estudantes possuem. Ela critica implicitamente o encaminhamento que o Napne dá para os diagnósticos dos alunos, uma vez que ele equipara os transtornos às deficiências e generaliza o “atendimento” dado a esses estudantes. Segundo ela, é a fase da recuperação que vai servir para dar uma maior atenção aos alunos, independentemente de o estudante ser ou não diagnosticado. A atenção mais individualizada ocorre nesse momento:

Se você quer incluir não pode tratar diferente, mas você não pode desconsiderar as diferenças dos alunos. Não pode colocar na mesma caixinha e achar que eles têm as mesmas condições. Incluir não é colocar ali como se todos tivessem o mesmo nível, as mesmas condições de 89

aprendizado. Mas como eu sei que tem a segunda chance da recuperação, aí eu espero dedicar uma atenção maior nesses casos. Eu pelo menos fiz assim e funcionou. (Bárbara, Sociologia)

Apesar dessa importante exceção, a expectativa da maioria dos docentes, assim como, em geral, da organização escolar em questão, está muito referenciada à ideia de “aprendizagem”, conforme apresentado no primeiro capítulo. Como a instituição advoga que só se aprende sentado, quieto e em silêncio, são esses os comportamentos esperados pelos professores. No entanto, para Vigotski, é a atividade de instrução (ou de estudo) que pode possibilitar o desenvolvimento do indivíduo, e não um comportamento passivo que comumente ocorre nas salas de aula. Além disso, a ‘aprendizagem’, segundo a maioria das teorias psicológicas, é vista como um processo individual que tem por base apenas os aspectos orgânico e cognitivo do indivíduo e não as relações sociais que se produzem na escola. Dessa forma, utilizar o discurso de conexão entre problemas neurológicos e não aprender é uma forma de fugir do sentido e do objetivo real da escola. Trata-se de responsabilizar a criança pelo seu próprio fracasso e ser incapaz de compreender que, para que o conhecimento seja construído e para que o indivíduo possa se desenvolver, não basta apenas uma força de vontade particular ou condições orgânicas, mas toda uma configuração social que possibilite esse processo. Vigotski também evita esse tipo de generalizações baseadas em análises isoladas. Segundo ele, a psicologia científica foi dominada durante muitos anos por uma “análise atomística e funcional” que isolava e particularizava os processos, perdendo as relações interfuncionais e a totalidade da consciência. Ele afirma que os estudos decompunham as totalidades psicológicas complexas em elementos e perdiam a ideia de unidade. (VIGOTSKI, 2009a, p. 1-3). Compreender o desenvolvimento dando ênfase elevada a seus aspectos orgânicos pode acarretar no risco de transformar indivíduos de outras bases culturais em deficientes quando chegam à escola. Um exemplo que tive o prazer de conhecer no curso do Mestrado foi de uma pesquisadora que realizou uma investigação sobre jovens indígenas de uma tribo ticuna que saíam de suas aldeias, próximas a nascente do Iguapé Eware, e viajavam para a cidade para estudar e trabalhar. Em um dos relatos colhidos no trabalho etnográfico, a autora relata:

Durante o período de estudo na cidade, o indivíduo sofre pelo fato de passar fome, por não falar bem o português e por estranhar certos costumes; 90

também pelo afastamento dos parentes e pela falta de conhecidos e amigos para visitar e com quem passear na cidade, ou seja, pela interrupção de um tipo de sociabilidade à qual estão acostumados. Os que não vivem na cidade pelo fato de morarem em aldeias próximas e se deslocarem diariamente para a escola, destacam a dificuldade da viagem devido à distância, ou o esforço da caminhada e os distintos perigos existentes nesse percurso. Também se sofre na escola pelo fato de se ter que ficar sentado passivamente durante horas, precisar fixar a vista atentamente no quadro-negro para a cópia no caderno. Alusões a “dor de cabeça”, “dor de mãos”, “dor de vista” são frequentes de serem ouvidas. Ainda são destacadas as dificuldades linguísticas: a falta de domínio da língua nacional, que se reflete na desaprovação elevada nas disciplinas português e literatura brasileira, o que não acontece dessa forma em outras matérias (PALADINO, 2006, p. 119120, grifos da autora).

O que chama atenção nos relatos coletados pela autora são as dificuldades enfrentadas pelos índios em se comportar de acordo com as normas que a escola exige que os alunos se comportem. Em outras palavras, os estudantes indígenas têm dificuldades de se adaptar ao modelo de educação ocidental que é reificado na escola. Isso ocorre, pois a educação, em sua cultura, ocorre de forma bastante diversa da encontrada nessa instituição. Ela se dá por meio da prática, da observação, do movimento, da ação conjunta de uma pessoa mais velha ou mais experiente etc. O mesmo ocorre com as quebradeiras de coco-babaçu no Maranhão, onde a liberdade e o interesse da própria criança guia a ‘aprendizagem’ nessa comunidade (PERACI e ASSIS, 2011). Dessa maneira, a inflação diagnóstica identificada por Frances no caso do TDAH também pode estar relacionada a uma incapacidade da escola de modificar sua rotina e organização de modo a atender ao estudante real que chega à escola. Aqueles considerados inquietos demais – sempre em relação ao que os professores e a escola esperam dos alunos – tendem a ser classificados por meio de uma deficiência e são frequentemente medicalizados. No entanto, raramente se discutem mudanças que as próprias escolas poderiam fazer para atender aos interesses dos estudantes, às suas verdadeiras necessidades de aprender. Em outras palavras, as instituições escolares, com muita frequência, possuem olhares padronizados sobre os estudantes, o que reforça a dicotomia normal-anormal e exclui muitas crianças que não conseguem ou não desejam se enquadrar no modelo de normalidade estabelecido. Nesse sentido, uma mudança radical seria necessária na escola. Algo que pudesse transformar sua função social de uma ação meramente reprodutora para uma criadora.

91

A título de conclusão E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. (Friedrich Nietzsche)

Como professor da Educação Básica e por ter me debruçado sobre os temas educacionais, entendo que a escola é múltipla e contraditória e que, como qualquer outra instituição social, acaba reproduzindo a correlação de forças da sociedade. Ao longo desta pesquisa, contudo, colecionei muitos resultados decepcionantes sobre a escola. Descobri poucas práticas libertadoras e emancipatórias, muitas pautadas no controle, na reprodução e na segregação. A respeito do trabalho de “inclusão”, promovido no Colégio Pedro II, o que vi foram processos excludentes e discursos contraditórios. Jovens diferentes, crianças que têm especificidades, alunos com personalidades diversas são corrigidos para entrar em um sistema perverso. Como disse na introdução, aproximei-me desse tema, de certa forma, porque na escola também faço parte desse grupo de desajustados. Na sala dos professores e nos Conselhos de Classe, quando há oportunidades para discutir temáticas educacionais, evito o pensamento fácil, as causalidades óbvias ou os preconceitos que ainda aparecem na fala de muitos colegas. Tento entender as complexidades e as variantes sociais dos fenômenos encontrados na escola, observando e investigando com rigor para construir ideias e tirar conclusões próprias, buscando a essência dos fenômenos, como aprendi com a leitura de Marx. O pensamento simplista de causa e efeito, contudo, penetra e contamina mentes, discursos e práticas científicas, médicas e pedagógicas, convergindo para resoluções práticas e rápidas de problemas profundos e complexos. É o que Cyrulnik chama de pensamento preguiçoso.

O pensamento preguiçoso é um pensamento perigoso porque, ao pretender encontrar a causa única de um sofrimento, chega à conclusão lógica de que basta suprimir essa causa, o que raramente é verdade. Esse tipo de raciocínio é sustentado por aqueles que ficam aliviados quando encontram um bode expiatório: basta sacrificá-lo para que tudo fique bem. O pensamento do bode expiatório muitas vezes é sociobiológico: basta prender os tarados ou impedi-los de reproduzir, basta responsabilizar as famílias pelo que não vai bem, basta separar as crianças de sua mãe mortífera (CYRULNIK, 2009, p. 7).

Nesse sentido, entendi que a entrada do saber médico no campo da escola, no caso do TDAH, contribui para a marginalização de estudantes. Aqueles que não se encaixam nas 92

normas e regras da escola são diagnosticados, classificados, normatizados, segregados e medicalizados dentro do espaço escolar. Dessa maneira, a escola se esquiva de discutir a si própria, seus métodos, regras e dispositivos de funcionamento. Ao culpabilizar o aluno por suas notas baixas ou ao criar um padrão de comportamento ‘normal’ e identificá-lo como ‘desviante’, o processo de ensinar e aprender fica atomizado, fragmentado, desconectado de suas causas complexas. O diagnóstico de TDAH, por sua vez, territorializa-se a partir da segregação e da marginalização. Na maior parte dos casos, nasce a partir do olhar de uma professora do Fundamental I que passa mais tempo com os alunos e solicita aos pais uma avaliação médica. Quando os alunos passam para o 6º ano, o Napne do Fundamental I envia a documentação para o Napne do Fundamental II que, por sua vez, encaminha aos professores. O diagnóstico interrompe seu caminho aí, porque, como vimos, não há transformação de práticas ou atividades pedagógicas para os alunos com diagnóstico de TDAH com base nos dados do “caródromo”. Há, contudo, no relato de alguns docentes, um maior cuidado com a turma investigada pelo elevado número de diagnósticos, mas não exclusivamente para os que supostamente possuem déficit de atenção. Dentre os assuntos que merecem maior aprofundamento e que não foram possíveis de avaliar com este trabalho, destaco: o trabalho realizado no Napne com os alunos que possuem deficiências visual, física ou auditiva; um acompanhamento e uma observação da dinâmica dos encontros semanais do Núcleo com os alunos com “caródromo”; uma avaliação juntamente aos alunos atendidos que pudesse ouvir as crianças e os jovens ainda excluídos de muitas pesquisas científicas mesmo nos dias de hoje; uma observação mais aprofundada a respeito das aulas desses professores e não só de seus relatos, impressões e descrições. Mesmo com seus limites, gostaria que esta pesquisa trouxesse uma reflexão a respeito de qual ‘inclusão’ se deseja fazer na escola. Penso que incluir não é a criação de um “caródromo” que normatiza e classifica, mas conversar em equipe sobre as especificidades e individualidades de cada criança ou jovem. Nessa conversa, o professor não deve ser apenas um agente passivo, que escuta os relatos produzidos por outros campos de saberes. Seu conhecimento empírico deve guiar a práxis desses encontros. Além disso, penso que a relação entre educação e saúde deveria ser objeto de estudo nas formações de professores, visto que os docentes possuem visões muito baseadas no senso comum a respeito desse assunto. Muitas formações continuadas, inclusive algumas às quais eu já assisti, são palestras ou conferências realizadas por psiquiatras ou médicos que dão 93

suporte e “informação” sobre o TDAH, sem a possibilidade do contraditório. Uma reflexão que aponte para a possibilidade do contraditório, inclusive em campos cuja legitimidade de verdade são enormes na nossa sociedade como a Psiquiatria, faz-se necessária. Finalmente, conforme mencionado no segundo capítulo, não tive como objetivo refletir sobre o encaminhamento dado pela escola ao diagnóstico de déficit de atenção e hiperatividade, mas sobre o encaminhamento dado por uma escola, tradicional e de prestígio da cidade do Rio de Janeiro, mas também carregada de vícios e virtudes particulares. Resultados de estudos de natureza qualitativa não apontam para conclusões generalizantes, mas para oportunidades de reflexão dada à complexidade do assunto e às diversas formas de apreensão dele. Desejo uma escola radicalmente transformada, que não tenha como objetivo as provas e as avaliações de conteúdos. Uma escola que permita que a liberdade, a criação e o respeito à diversidade sejam as molas mestras do trabalho realizado. Que seja um espaço que não transforme as diferenças em doenças ou problemas. Que os que já são desajustados, diferentes e estrangeiros fora da escola possam encontrar um lugar de pertencimento o no seu território. Onde tanto os insanos quanto os dançantes da epígrafe possam compartilhar suas experiências, saberes e afetos em busca de um desenvolvimento livre, ainda que na certeza de sua incompletude. Como diz um belo poema de um grande poeta:

A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. (Manoel de Barros)

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ANEXO: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Dados de identificação Título do Projeto: A territorialização do TDAH em uma instituição federal de Educação Pesquisador Responsável: Thiago Bogossian Porto Instituição a que pertence o Pesquisador Responsável: Universidade Federal Fluminense Telefone para contato do Pesquisador: (021) 997-222-144 Nome do voluntário: __________________________________________________________ Idade: _____________ anos

R.G. __________________________

Responsável legal (quando for o caso): ___________________________________________ R.G. Responsável legal: _________________________ Os participantes de pesquisa, e comunidade em geral, poderão entrar em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina/Hospital Universitário Antônio Pedro, para obter informações específicas sobre a aprovação deste projeto ou demais informações: E.mail: [email protected]

Tel/fax: (21) 26299189

Eu, __________________________________________, RG nº _____________________ declaro ter sido informado e concordo em participar, como voluntário, do projeto de pesquisa acima descrito.

_______________________________________ Assinatura

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