SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Uma Antologia Poetica

June 24, 2017 | Autor: Sammis Reachers | Categoria: SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, Poesia, WW2, poesia de guerra, literatura século xx, SGMII
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SEGUNDA GUERRA

MUNDIAL Uma Antologia Poética Poetas contemporâneos ao conflito

LIVRO GRATUITO Não pode ser vendido

Organização, seleção, edição e notas de

Sammis Reachers

2014

Foto de capa: Soldados americanos agachados num bote de assalto cruzam o rio Reno, na Alemanha, sob fogo inimigo (Março 1945). ©The U.S. National Archives and Records Administration

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Bellum dulce inexpertis. Pindaro

*A guerra é doce para quem não a experimentou.

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Índice Prefácio .................................................................................................................. 08 Bertolt Brecht (ALE) Cartilha de Guerra Alemã ................................................................................. 11 Cartilha de Guerra Alemã II ........................................................................... 14 Regresso .................................................................................................................. 16 Abgar Renault (BRA) Transporte de Guerra ........................................................................................ 17 UBI TROJA EST ..................................................................................................... 18 Carlos Drummond de Andrade (BRA) Carta a Stalingrado ............................................................................................. 19 Visão 1944 .............................................................................................................. 21 Cecília Meireles (BRA) Guerra ....................................................................................................................... 24 Pistóia - Cemitério Militar Brasileiro .......................................................... 25 Murilo Mendes (BRA) Poema Presente ................................................................................................... 27 Tempos Duros ...................................................................................................... 28 Vinícius de Moraes (BRA) A Rosa de Hiroshima .......................................................................................... 29 Balada dos mortos dos campos de concentração .................................. 30 Pablo Neruda (CHI) Novo Canto de Amor a Stalingrado .......................................................... 32 Ivan Goran Kovacic (CRO) Fosso ......................................................................................................................... 36 Vladimir Nazor (CRO) Mãe Ortodoxa ........................................................................................................ 38 Archibald MacLeish (EUA) Colóquio Entre os Estados ............................................................................... 40 Dudley Randall (EUA) Epitáfios do Pacífico ........................................................................................... 44 John Ciardi (EUA) O Dom ....................................................................................................................... 46 Karl Shapiro (EUA) Trem de Tropas .................................................................................................... 47 Randall Jarell (EUA) A Morte do Artilheiro da Torre Giratória .................................................. 49

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Stanley Kunitz (EUA) Considerações Junto a Uma Caixa de Correio ......................................... 50 T. S. Eliot (EUA/ING) Little Gidding ………………………………………………………………………….. 52 Louis Aragon (FRA) Os lilases e as rosas ............................................................................................. 55 Paul Eluárd (FRA) Liberdade ................................................................................................................ 57 Coragem ................................................................................................................... 60 A Aurora Dissolve os Monstros ..................................................................... 61 Pierre Emmanuel (FRA) Dia de Cólera ......................................................................................................... 62 René Char (FRA) Carta do 8 de Novembro .................................................................................. 63 Pobreza e Privilégio – II .................................................................................... 64 O Verdelhão ........................................................................................................... 65 Giorgos Seferis (GRE) O último dia ............................................................................................................ 66 Odisséas Elýtis (GRE) Canto Heroico e Funeral para o Segundo-Tenente Desaparecido na Campanha da Albânia .................................................................................. 67 Tasos Leivaditis (GRE) Esta estrela é para todos nós .......................................................................... 69 Gerrit Kouwenaar (HOL) Terceiro Canto Heroico ..................................................................................... 72 Jan Campert (HOL) Os Dezoito Mortos ............................................................................................... 74 Gyula Illyés (HUN) O Vizinho ................................................................................................................. 76 István Vas (HUN) Mais do que a morte ........................................................................................... 77 János Pilinszky (HUN) Paixão de Ravensbrück ..................................................................................... 78 Miklós Radnóti (HUN) Céu espumante ..................................................................................................... 79 Razglednice ............................................................................................................ 80

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Dylan Thomas (ING) Cerimônia Após um Bombardeio ................................................................. 81 Entre os mortos num bombardeio ao amanhecer havia um homem de cem anos ...................................................................... 84 Edith Sitwell (ING) Ainda Cai a Chuva ................................................................................................ 85 Keith Douglas (ING) Como Matar ............................................................................................................ 87 VERGISSMEINNICHT ......................................................................................... 88 W.H. Auden (ING/EUA) 1.º de setembro de 1939 .................................................................................. 89 Giuseppe Ungareti (ITA) Meu Rio Tu Também .......................................................................................... 92 Nas Veias ................................................................................................................. 94 Primo Levi (ITA) Vós que viveis tranquilos ................................................................................. 95 Salvatore Quasímodo (ITA) Milão, Agosto de 1943 ....................................................................................... 96 Cânticos ................................................................................................................... 97 Auschwitz ............................................................................................................... 98 Sadako Kurihara (JAP) Dizendo “Hiroshima” ....................................................................................... 100 Deixemos vir a nova vida .............................................................................. 101 Tamiki Hara (JAP) Isto É um Ser Humano .................................................................................... 102 Hirsh Glick (LIT) A Balada do teatro pardo: Espetáculo no cárcere de Lubick ......... 103 Czeslaw Milosz (POL) Campo di Fiori .................................................................................................... 105 Zbigniew Herbert (POL) 17 de Setembro .................................................................................................. 107 Abandonado ........................................................................................................ 108 Cinco Homens ..................................................................................................... 111 Paul Celan (ROM) Fuga da Morte .................................................................................................... 113 Jaroslav Seifert (TCH) Os mortos de Lídice ......................................................................................... 115 Margarita Aliguer (URSS) De Primavera em Leningrado ...................................................................... 117

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Marina Tzvietáieva (URSS) Tomaram... .......................................................................................................... 118 Mikhaíl Dúdine (URSS) Rouxinóis .............................................................................................................. 119 Olga Fiódorovna Bierggólts (URSS) A Guerra em Leningrado ............................................................................... 122 Conversa com uma vizinha ........................................................................... 124 Pável Antokólski (URSS) Filho ........................................................................................................................ 126 Siemión Gudzenko (URSS) Antes do ataque ................................................................................................. 129 A minha geração ................................................................................................ 130 Bibliografia ........................................................................................................ 131 Sobre o organizador ..................................................................................... 134

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Prefácio Sofro da estranha mania de organizar antologias. Já são mais de dez. A maioria é de temática religiosa, duas delas, creio, de interesse geral: a Antologia de Poesia Cristã em Língua Portuguesa (2008), bem intencionada mas com lacunas e alguma injustiça, e a Breve Antologia da Poesia Cristã Universal, publicada em 2012. Um de meus propósitos e humilde prazer é tentar fechar ou suprir determinadas lacunas bibliográficas – lacunas que sempre me parecem ‘imperdoáveis’. No caso da poesia cristã, simplesmente não havia algo no gênero (reunindo uma coleção de textos quantitativa e qualitativamente significativos) nas bibliografias de Brasil e Portugal. Some-se aqui a esse furor antologista meu fascínio pela Segunda Guerra Mundial, fixação de infância, sendo mesmo anterior ao meu interesse pela literatura, e que ao longo dos anos nunca arrefeceu (sintomático é que em meu livro Poemas da Guerra de Inverno (2012/1014), mais da metade dos poemas versa sobre a SGM). Eis esboçado então o cenário para que eu volte à carga em minha maltrapilha sina de tapa-buracos das mal a(r)madas estantes de poesia: a esta altura do ano da graça de 2014, decorridos 69 anos do fim do maior conflito bélico e da maior exibição de atrocidades que a humanidade já vivenciou, não lhe parece, amigo leitor, de espantar que não exista uma antologia de poetas ou poemas da Segunda Guerra em nossa bibliografia lusófona, neste caso mais culposa e especificamente na brasileira (pois afinal Portugal manteve-se ‘neutro’ no conflito)? O Brasil enviou tropas em boa quantidade para a guerra no teatro europeu - foi mesmo o único país latino-americano a fazê-lo –, e empenhou grandes forças no apoio logístico e de suprimento de matérias-primas para o esforço de guerra dos Aliados – enfim, o Brasil vivenciou quase aquilo que se chama em teoria militar de guerra total – pois se nosso território não chegou a ser diretamente atacado, os navios de nossa costa (civis e militares) eram fustigados pelo torpedeamento constante por parte dos submarinos U-Boat alemães, e a população das maiores metrópoles fazia exercícios preventivos contra ataques aéreos, com direito a blackouts, sirenes e tudo o mais. Tal lacuna sempre pareceu-me digna de nota, ainda mais quando vemos tanta irrelevância sendo impressa. Nos EUA tais antologias de guerra são comuns – você poderá contar com umas duas dezenas delas, de variados alcances e focalizações editoriais (embora se julgue, entre os países anglófonos, e a meu ver injustamente, que a Segunda Guerra 8

não produziu war poets da qualidade de um Siegfried Sassoon ou Rupert Brooke, como a Primeira Guerra). Busquei coligir para esta seleta apenas poemas de autores contemporâneos ao conflito, e de países diretamente envolvidos na guerra. Sejam war poets “clássicos” (soldados-poetas que participaram em algum momento da guerra, engajados em exércitos regulares), sejam vítimas (população de países subjugados, judeus e minorias étnicas, críticos e inimigos ideológicos do regime), sejam partisans e combatentes das resistências que pululavam nas mais diversas frentes do conflito. E também o que se poderia chamar de poetas expectadores, que, embora nativos de países envolvidos na guerra, apenas a acompanharam pelos canais noticiosos, caso de alguns poetas dos EUA e de outros países americanos, como o chileno Pablo Neruda e brasileiros como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e outros. Neste quesito, dou especial destaque à produção de nossos poetas que se mostraram mais impactados pelo conflito, publicando além de CDA e Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles e Abgar Renault. Outros contemporâneos escreveram sobre o conflito, como Mário Barreto França, condoreiro tardio e talvez o principal poeta evangélico do Brasil, e ainda Oswald de Andrade, cujo poema Canto do pracinha só, que lhe rendeu algumas (eventualmente acertadas) vaias da crítica, achamos por bem deixar de fora desta antologia, a fim de salvaguardá-la... Esta é uma antologia breve – são apenas 134 páginas, e com perceptíveis e lamentáveis lacunas, pois mesmo alguns poetas de franco renome que escreveram sobre a guerra, têm essa parte de sua obra fragorosamente ignorada pelos seus eventuais tradutores lusófonos. Isso nos obrigou a traduzir textos dos war poets Karl Shapiro e John Ciardi (EUA), sem os quais estaria em situação ainda mais imperdoável esta antologia. Mas espero que o precedente aberto por esta seleta venha a despertar o interesse de nossos muitos companheiros que dedicam-se à árdua-delicada (seria traduzir poesia igualmente padecer no paraíso, como no proverbial dito maternalista?) tarefa de traduzir poesia. Ousaria dizer que, mais que a própria História, a Poesia está intimamente ligada à ação de compilar, compartilhar e refletir a dor humana, dor essa que numa guerra, e melhor, na mãe de todas as guerras, atingiu seu ápice. Ignorar essa poesia escrita ao som dos combates – essa poderosa poesia do extremo 9

- é mais que simplesmente ignorar a História, na figura e na pena de tão especializadas testemunhas: é ignorar a própria Poesia no que ela tem de mais verdadeiro e humano.

SOBRE A EDIÇÃO DESTE LIVRO Meu propósito inicial era propor a edição deste livro para alguma editora. Mas sondagens preliminares me desestimularam. Somaram-se a isso as dificuldades de edição de uma antologia envolvendo múltiplos autores e tradutores: presente na questão o mesmerizante fel que move o mundo ($$$), são mares de autorizações e correspondências, fabulário de burrocracias que a cultura construiu em torno de si, e que ao invés de servirem de filtros ou, quiçá, capacitores, quase sempre alcançam apenas o status de muros. E a seleta estava aqui, há quase dois anos amadurecendo ‘na gaveta’, o que para mim é um período de tempo muito dilatado, pois meu ritmo de trabalho, nas demais antologias que organizei, alcançou em média até (O.K., apenas) quatro meses (de trabalho o mais ferrenho, entenda-se). Essa espera, essa latência de gaveta era para mim um renitente incômodo: O conhecimento precisa sair da gaveta, sair das cabeças, para tornar-se cultura; na gaveta, é apenas cabala, coletânea de hieróglifos enfeitando as paredes seladas em breu dum sarcófago. Por tudo isso, é com prazer, com muito prazer que atropelo uma vez mais o status quo enrijecido, e ofereço este trabalho gratuitamente a todos os interessados. Sem editoras, sem bolsas de pesquisa, edição e publicação, sem patrocínios culturais, sem contar com o braço ativo, mas um tanto afetado e corporativista da academia, sem licenças além da poética e a do Conhecimento, esse intimorato arrombador e chão daquilo que é Homem – enfim, eis (a) informação num canal direto como deve ser, sem atravessadores, linha reta da poesia ao leitor de poesia. Sammis Reachers

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Bertolt Brecht (Alemanha 1898 – 1956) Militante de esquerda e opositor do regime nazista desde seu início, o dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht foi perseguido, tendo a partir de 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, se refugiado em diversos países europeus e posteriormente nos EUA. Homem de seu tempo como poucos lograram ser, a poesia de Brecht é riquíssima em textos sobre o conflito. Optamos por publicar aqui três poemas singulares, os já clássicos Manual de Guerra Alemã 1 e 2, onde o poeta, nos anos imediatamente anteriores à Guerra, desvela irônica e mesmo profeticamente todo o esforço de guerra alemão, com sua hipocrisia e seus nefastos resultados; e o poema Regresso, sobre seu retorno à pátria (para onde voltou em 1947), agora derrotada e destruída - como ele mesmo previra, em tantos e tantos de seus textos.

Traduções de Paulo César de Souza Cartilha de Guerra Alemã O PINTOR FALA DA GRANDE ÉPOCA POR VIR As florestas ainda crescem. Os campos ainda produzem. As cidades ainda existem. Os homens ainda respiram. QUANDO O PINTOR FALA SOBRE A PAZ ATRAVÉS DOS ALTOS-FALANTES Os trabalhadores de construção olham para As autoestradas e veem Cimento espesso, próprio Para tanques pesados. O pintor fala de paz. Aprumando as costas doloridas As mãos grossas em tubos de canhões Os fundidores o escutam. Os pilotos dos bombardeiros Desaceleram os motores e ouvem O pintor falar de paz. Os madeireiros param no silêncio dos bosques Os camponeses deixam de lado o arado e colocam a mão atrás do ouvido As mulheres que levam a comida para o campo se detêm: No terreno revolvido há um carro com amplificador. De lá se ouve O pintor pedir paz.

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OS DE CIMA DIZEM: GUERRA E PAZ São de substância diferente Mas a sua guerra e a sua paz São como tempestade e vento. A guerra nasce da sua paz Como a criança da mãe Ela tem Os mesmo traços terríveis. A sua guerra mata O que a sua paz Deixou de resto. NO MURO ESTAVA ESCRITO COM GIZ: Eles querem a guerra. Quem escreveu Já caiu. OS DE CIMA Juntaram-se em uma reunião. Homem da rua Deixa de esperança. Os governos Assinam pactos de não-agressão. Homem da rua Assina teu testamento. Quando os de cima falam de paz A gente pequena Sabe que haverá guerra. Quando os de cima amaldiçoam a guerra As ordens de alistamento já estão preenchidas. A GUERRA QUE VIRÁ Não é a primeira. Antes dela Houve outras guerras. Quando a última terminou Havia vencedores e vencidos. Entre os vencidos o povo miúdo Sofria fome. Entre os vencedores Sofria fome o povo miúdo. OS DE CIMA DIZEM QUE NO EXÉRCITO Reina fraternidade. A verdade disso se percebe Na cozinha. 12

Nos corações deve haver O mesmo ânimo. Mas nos pratos Há dois tipos de comida. NO MOMENTO DE MARCHAR, MUITOS NÃO SABEM Que seu inimigo marcha à sua frente. A voz que comanda É a voz de seu inimigo. Aquele que fala do inimigo É ele mesmo o inimigo. GENERAL, TEU TANQUE É UM CARRO PODEROSO Ele derruba uma floresta e esmaga cem homens. Mas tem um defeito: Precisa de um motorista. General, teu bombardeiro é poderoso. Ele voa mais veloz que um vendaval e carrega mais carga que um elefante. Mas tem um defeito: Precisa de um engenheiro. General, o homem é muito útil. Ele pode voar e pode matar. Mas tem um defeito: Pode pensar. QUANDO A GUERRA COMEÇAR Seus irmãos se transformarão talvez De modo que seus rostos não serão reconhecíveis. Mas vocês devem permanecer os mesmos. Eles irão à guerra, mas Não como a uma matança, e sim Como a um trabalho sério. Tudo Terão esquecido. Mas vocês Nada deverão ter esquecido. Vocês receberão aguardente na garganta Como todos os outros. Mas deverão permanecer sóbrios.

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Cartilha de Guerra Alemã II O PINTOR DIZ: Quanto mais canhões forem fabricados Mais longa será a paz. Assim seria certo dizer: Quando mais grãos forem semeados Menos cereal crescerá. Quanto mais vitelas forem mortas Menos carne haverá. Quanto mais neve se dissolver na montanha Mais secos serão os rios. NA GUERRA MUITAS COISAS CRESCERÃO Ficarão maiores As propriedades dos que possuem E a miséria dos que não possuem As falas do Guia E o silêncio dos guiados. SE OS CAMPOS DOS JUNKER FOREM DIVIDIDOS Não será preciso conquistar os campos dos camponeses ucranianos. Se os campos dos camponeses ucranianos forem conquistados Os Junker apenas terão mais campos. AQUELES QUE LUTAVAM CONTRA SEU PRÓPRIO POVO Lutam agora contra outros povos. Novos escravos Se juntarão aos velhos. É NOITE Os casais Deitam-se nos leitos. As mulheres Parirão órfãos. OS VELHOS Levam dinheiro à caixa econômica Diante da caixa econômica estão carros. Eles levam o dinheiro Para as fábricas de munição. OS ANÚNCIOS DO GOVERNO Acompanham os boatos Como sombras. 14

Os governantes rugem O povo sussurra. PARA QUE CONQUISTAR MERCADOS PARA OS PRODUTOS Que os trabalhadores fabricam? Os trabalhadores Ficariam de bom grado com eles. O FÜHRER LHES DIRÁ: A GUERRA Dura quatro semanas. Quando chegar o outono Vocês estarão de volta. Mas O outono virá e passará E tornará a vir e passar muitas vezes E vocês não voltarão. O pintor lhes dirá: as máquinas Farão tudo por nós. Bem poucos Precisarão morrer. Mas Vocês morrerão às centenas de milhares, tantos Como nunca se viu morrer. Quando eu ouvir que vocês estão no Polo Norte Ou na Índia ou no Transvaal, apenas saberei Onde um dia se encontrarão seus túmulos.

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Regresso A cidade natal, como a encontrarei ainda? Seguindo os enxames de bombardeiros Volto para casa. Mas onde está ela? Lá onde sobem Imensos montes de fumaça. Aquilo no meio do fogo É ela. A cidade natal, como me receberá? À minha frente vão os bombardeiros. Enxames mortais Vos anunciam meu regresso. Incêndios Precedem o filho.

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Abgar Renault (Brasil 1901 - 1995) O poeta e educador Abgar Renault, em seus poemas, deixa claro seu fascínio pela Inglaterra, predileção que levou-o a traduzir, durante a Segunda Guerra, poemas dos war poets ingleses da Primeira Guerra Mundial. Esses poemas foram publicados em jornais do Brasil e do exterior, de 1941 a 1945, vindo também a ser enfeixados em livro (primeira edição já em 1942). Renault era alto funcionário do governo Getúlio Vargas, e a própria publicação desses textos traduzidos já deixa entrever um consciente esforço de mobilização da opinião pública nacional para a guerra que estava prestes, e acabou por efetivamente arrolar também o Brasil em seu turbilhão. Transporte de Guerra Eu vi os teus soldados, Inglaterra, dentro do teu audaz navio escuro, da cor das águas em que lançara ferros. Eram serenos, fortes e joviais, olhavam do convés, dos mastros, das vigias, e suas mãos sorriam acenando para as lanchas que passavam, ao largo, rumo à terra. Sorriam. E, enquanto sorriam, seus corações talvez acariciassem coisas da distância: o porto sem nome de que misteriosamente partiram, sem adeuses, numa hora mal-assombrada; as velhas colinas de verdes condados; campos de golf, de cricket, de football; contemplativos campos cheios do sonho de rebanhos; os nevoeiros, mais densos sob as luzes apagadas; talvez a esteira saudosa que a quilha aguda foi abrindo nas águas e deixando para trás... Eram serenos e fortes, e esperavam, e sorriam. Que ínvios mares irá sulcar esse navio escuro, eriçado de canhões e de metralhadoras antiaéreas, carregado de sonhos, armas, munições e tanta vida? Para onde largarão esses soldados do mundo? Quando é que descerão desse navio escuro, de que olham as luzes da cidade, prisioneiros? Que terras negras ou que grossas águas acolherão, e quando, o sono de seus corpos moços prodigiosamente adormecidos? 1942

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UBI TROJA EST Aqui é Londres London Londinium, a velha, a cinzenta, a misteriosa. Aqui é Londres, que Adolf Hitler ia reduzir. Onde está Adolf Hitler? – Aqui é Londres. Compreendo os teus olhos cheios de mar, a tua poesia de um reflexivo silêncio de velas, a tristeza seca dos teus poetas, quando vejo o teu céu sempre noturno, teus jardins de bruma, tua umidade espessa a subir das águas antigas, a correr sob pontes intemporais e andando pelas ruas; as tuas luzes (ye lights of London town) embaçadas de suor, de fumaça e restos de bombardeio, e o tempo sem memória que escorre dos telhados e das paredes e se espalha pelos bancos das praças e pelas mesas dos hotéis. Sei o que é o teu gênio, a tua força, a tua alegria cativa, e a tua melancolia que não chora, e entendo o orgulho dos teus homens e das tuas mulheres de pouca fala e olhos cheios de branda, misteriosa luz; amos os porquês da tua língua viajeira, múltipla e uma, carregada de praias alvas, de remotas músicas, feita de água salgada, de verde relva, de luar e sol ocultos, de ouro, carvão e névoas frias. Compreendo-te, Ó Tróia indestruída, e amo-te, e longe de ti, sobre o mar que te criou e dominaste, sinto vultos vagando pelas ruas do meu pensamento: Chaucer, Shakespeare, Dr. Johnson, Donne, Berkeley, Keats... Tuas árvores graves, teus demônios, teus anjos, teu coração de aço os rostos de distâncias do sonho e da realidade que criaste. Londres, 1945

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Carlos Drummond de Andrade (Brasil 1902-1987) Maior poeta brasileiro e um dos maiores de nossa língua ao lado de Camões e Pessoa, a II Guerra Mundial exerceu forte impacto sobre o ainda militante comunista CDA, notadamente nos versos de seu livro A Rosa do Povo. O livro é uma obra prima que conta com vários poemas inspirados pela guerra, tendo especial destaque o tema da resistência soviética, que começava a vencer as forças invasoras do Reich, prenunciando a derrota de Hitler.

Carta a Stalingrado Stalingrado... Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades! O mundo não acabou, pois que entre as ruínas outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora, e o hálito selvagem da liberdade dilata os seus peitos, Stalingrado, seus peitos que estalam e caem, enquanto outros, vingadores, se elevam. A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais. Os telegramas de Moscou repetem Homero. Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo que nós, na escuridão, ignorávamos. Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída, na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas, no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas, na tua fria vontade de resistir. Saber que resistes. Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes. Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página. Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena. Saber que vigias, Stalingrado, sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes dá um enorme alento à alma desesperada e ao coração que duvida. Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente! As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio. Débeis em face do teu pavoroso poder, mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados, as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta, aprendem contigo o gesto de fogo. Também elas podem esperar. Stalingrado, quantas esperanças! 19

Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama! Que felicidade brota de tuas casas! De umas apenas resta a escada cheia de corpos; de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança. Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas, todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede, mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol, ó minha louca Stalingrado! A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos, apalpo as formas desmanteladas de teu corpo, caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos, sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto? Uma criatura que não quer morrer e combate, contra o céu, a água, o metal, a criatura combate, contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate, contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate, e vence. As cidades podem vencer, Stalingrado! Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga. Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo. Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres, a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.

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Visão 1944 Meus olhos são pequenos para ver a massa de silêncio concentrada por sobre a onda severa, piso oceânico esperando a passagem dos soldados. Meus olhos são pequenos para ver luzir na sombra a foice da invasão e os olhos no relógio, fascinados, ou as unhas brotando em dedos frios. Meus olhos são pequenos para ver o general com seu capote cinza escolhendo no mapa uma cidade que amanhã será pó e pus no arame. Meus olhos são pequenos para ver a bateria de rádio prevenindo vultos a rastejar na praia obscura aonde chegam pedaços de navios. Meus olhos são pequenos para ver o transporte de caixas de comida, de roupas, de remédios, de bandagens para um porto da Itália onde se morre. Meus olhos são pequenos para ver o corpo pegajento das mulheres que foram lindas, beijo cancelado na produção de tanques e granadas. Meus olhos são pequenos para ver a distância da casa na Alemanha a uma ponte na Rússia, onde retratos, cartas, dedos de pé boiam em sangue. Meus olhos são pequenos para ver uma casa sem fogo e sem janela sem meninos em roda, sem talher, sem cadeira, lampião, catre, assoalho. Meus olhos são pequenos para ver os milhares de casas invisíveis na planície de neve onde se erguia uma cidade, o amor e uma canção. Meus olhos são pequenos para ver as fábricas tiradas do lugar, 21

levadas para longe, num tapete, funcionando com fúria e com carinho. Meus olhos são pequenos para ver na blusa do aviador esse botão que balança no corpo, fita o espelho e se desfolhará no céu de outono. Meus olhos são pequenos para ver o deslizar do peixe sob as minas, e sua convivência silenciosa com os que afundam, corpos repartidos. Meus olhos são pequenos para ver os coqueiros rasgados e tombados entre latas, na areia, entre formigas incompreensivas, feias e vorazes. Meus olhos são pequenos para ver a fila de judeus de roupa negra, de barba negra, prontos a seguir para perto do muro - e o muro é branco. Meus olhos são pequenos para ver essa fila de carne em qualquer parte, de querosene, sal ou de esperança que fugiu dos mercados deste tempo. Meus olhos são pequenos para ver a gente do Pará e de Quebec sem notícias dos seus e perguntando ao sonho, aos passarinhos, às ciganas. Meus olhos são pequenos para ver todos os mortos, todos os feridos, e este sinal no queixo de uma velha que não pôde esperar a voz dos sinos. Meus olhos são pequenos para ver países mutilados como troncos, proibidos de viver, mas em que a vida lateja subterrânea e vingadora. Meus olhos são pequenos para ver as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos, os rios desatados, e os poderes ilimitados mais que todo exército. Meus olhos são pequenos para ver 22

toda essa força aguda e martelante, a rebentar do chão e das vidraças, ou do ar, das ruas cheias e dos becos. Meus olhos são pequenos para ver tudo que uma hora tem, quando madura, tudo que cabe em ti, na tua palma, ó povo! que no mundo te dispersas. Meus olhos são pequenos para ver atrás da guerra, atrás de outras derrotas, esta imagem calada, que se aviva, que ganha em cor, em forma e profusão. Meus olhos são pequenos para ver tuas sonhadas ruas, teus objetos, e uma ordem consentida (puro canto, vai pastoreando sonos e trabalhos). Meus olhos são pequenos para ver esta mensagem franca pelos mares, entre coisas outroras envilecidas e agora a todos, todas ofertadas. Meus olhos são pequenos para ver o mundo que se esvai em sujo e sangue, outro mundo que brota, qual nelumbo - mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.

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Cecília Meireles (1901 – 1964) Uma das principais poetas da língua portuguesa, a carioca da Tijuca Cecília Meireles era filha de açorianos. Também professora, pintora e jornalista, os eventos da Segunda Guerra não passaram despercebidos diante de Cecília. O poema Guerra (1945) e o livro Pistóia – Cemitério Militar Brasileiro, embora tardio (1955) são provas cabais disto. Guerra Tanto é o sangue que os rios desistem de seu ritmo, e o oceano delira e rejeita as espumas vermelhas. Tanto é o sangue que até a lua se levanta horrível, e erra nos lugares serenos, sonâmbula de auréolas rubras, com o fogo do inferno em suas madeixas. Tanta é a morte que nem os rostos se conhecem, lado a lado, e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso. Oh, os dedos com alianças perdidos na lama... Os olhos que já não pestanejam com a poeira... As bocas de recados perdidos... O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes... Tanta é a morte que só as almas formariam colunas, as almas desprendidas... — e alcançariam as estrelas. E as máquinas de entranhas abertas, e os cadáveres ainda armados, e a terra com suas flores ardendo, e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas, e este mar desvairado de incêndios e náufragos, e a lua alucinada de seu testemunho, e nós e vós, imunes, chorando, apenas, sobre fotografias, — tudo é um natural armar e desarmar de andaimes entre tempos vagarosos, sonhando arquiteturas.

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Pistóia - Cemitério Militar Brasileiro Eles vieram felizes, como para grandes jogos atléticos, com um largo sorriso no rosto, com forte esperança no peito, - porque eram jovens e eram belos. Marte, porém soprava fogo por estes campos e estes ares. E agora estão na calma terra, sob estas cruzes e estas flores, cercados por montanhas suaves. São como um grupo de meninos num dormitório sossegado, com lençóis de nuvens imensas, e um longo sono sem suspiros, de profundíssimo cansaço. Suas armas foram partidas ao mesmo tempo que seu corpo. E, se acaso sua alma existe, com melancolia recorda o entusiasmo de cada morto. Este cemitério tão puro é um dormitório de meninos: e as mães de muito longe chamam, entre as mil cortinas do tempo cheias de lágrimas, seus filhos. Chamam por seus nomes, escritos nas placas destas cruzes brancas. Mas, com seus ouvidos quebrados, com seus lábios gastos de morte, que hão de responder estas crianças? E as mães esperam que ainda acordem, como foram, fortes e belos, depois deste rude exercício, desta metralha e deste sangue, destes falsos jogos atléticos. Entretanto, céu, terra, flores, é tudo horizontal silêncio. O que foi chaga, é seiva e aroma, - do que foi sonho não se sabe e a dor vai longe, no vento...

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Murilo Mendes (Brasil 1901 – 1975) O mineiro Murilo Mendes é um dos ilustres cavalheiros da segunda geração do Modernismo brasileiro, geração de ouro que legou à poesia brasileira nomes do naipe de Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt e outros. Seu livro Poesia Liberdade (1947) reúne trabalhos escritos durante o período da Segunda Guerra, onde o autor dá azo a seu lirismo que, mesmo tendo bebido da fonte surrealista, desdobra-se em sua preocupação social diante das mazelas e incertezas do período. Poema Presente O céu púbere e profundo Ajunta nuvens de fogo À tendência dos homens, inquietante: E um pensamento de guerra Anula o que poderia vir Da água, da rosa, da borboleta. Vergéis tranquilos Disfarçam espadas. Sombras pedindo corpos Esperam desde o dilúvio O sopro de um puro espírito. Separam a luz da luz.

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Tempos Duros A aurora desce a viseira: O monumento ao deserdado desconhecido Acorda coberto de sangue. O mar furioso devolve à praia Alianças de casamento dos torpedeados E a fotografia de um assassino, Aos cinco anos – inocente – num velocípede. Alguém parte o pão dos pássaros. O ar espesso entre os sinos Empurra o espanto das árvores. Longas filas de homens e crianças Caminham pelas mornas avenidas Em busca de ração de sal, azeite e ódio. E a morte vem recolher A parte de lucidez Que durante tanto tempo Escondera sob os véus.

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Vinícius de Moraes (Brasil 1913 – 1980) O carioca Vinícius de Moraes, arquétipo do boêmio, construiu sua carreira literária através da poesia, teatro e prosa, destacando-se como um de nossos maiores sonetistas. O poema A Rosa de Hiroshima, que virou canção musicada por Gerson Conrad em 1974, foi publicado em 1954 no livro Antologia Poética, livro que também trazia os poemas Balada dos mortos dos campos de concentração e A bomba atômica, de temáticas relacionadas à Guerra.

A Rosa de Hiroshima Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada

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Balada dos mortos dos campos de concentração Cadáveres de Nordhausen Erla, Belsen e Buchenwald! Ocos, flácidos cadáveres Como espantalhos, largados Na sementeira espectral Dos ermos campos estéreis De Buchenwald e Dachau. Cadáveres necrosados Amontoados no chão Esquálidos enlaçados Em beijos estupefatos Como ascetas siderados Em presença da visão. Cadáveres putrefatos Os magros braços em cruz Em vossas faces hediondas Há sorrisos de giocondas E em vossos corpos, a luz Que da treva cria a aurora. Cadáveres fluorescentes Desenraizados do pó Que emoção não dá-me o ver-vos Em vosso êxtase sem nervos Em vossa prece tão-só Grandes, góticos cadáveres! Ah, doces mortos atônitos Quebrados a torniquete Vossas louras manicuras Arrancaram-vos as unhas No requinte de tortura Da última toalete... A vós vos tiraram a casa A vós vos tiraram o nome Fostes marcados a brasa Depois vos mataram de fome! Vossas peles afrouxadas Sobre os esqueletos dão-me A impressão que éreis tambores Os instrumentos do Monstro Desfibrados a pancada: Ó mortos de percussão! Cadáveres de Nordhausen Erla, Belsen e Buchenwald! Vós sois o húmus da terra De onde a árvore do castigo Dará madeira ao patíbulo

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E de onde os frutos da paz Tombarão no chão da guerra!

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Pablo Neruda (Chile 1904 – 1973) O chileno e Nobel de Literatura (1971) Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, conhecido universalmente como Pablo Neruda, é um daqueles poetas que dispensam apresentações. Homem de esquerda e eterno engajado, Neruda somou forças na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos, sendo por isso destituído de seu cargo de cônsul chileno em Madrid. Em 1943 Neruda retorna ao Chile. O livro Terceira Residência (1947) reúne algumas de suas impressões poéticas acerca da Segunda Guerra Mundial, como este Novo Canto de Amor a Stalingrado. Novo Canto de Amor a Stalingrado Escrevi sobre a água e sobre o tempo, descrevi o luto e seu metal acobreado, escrevi sobre o céu e a maçã, agora escrevo sobre Stalingrado. As noivas já guardam no seu lenço raios de meu amor enamorado, meu coração agora está no solo, na fumaça e na luz de Stalingrado. Já toquei com as mãos a camisa do crepúsculo azul e derrotado: agora toco a própria luz da vida nascendo com o sol de Stalingrado. Sinto que o velho-jovem transitório de pluma, como os cisnes adornado, despe a roupagem de seu mal notório por meu grito de amor a Stalingrado. Ponho minh’alma onde quero. E não me nutro de papel cansado temperado de tinta e de tinteiro. Nasci para cantar a Stalingrado. Minha voz esteve com teus inúmeros mortos contra teus próprios muros esmagados, minha voz soou como o sino e o vento vendo-te morrer, Stalingrado. Agora americanos combatentes brancos e escuros como a romã, matam no deserto a serpente. Já não estás a sós, Stalingrado. França volta às velhas barricadas 31

com pavilhão de fúria hasteado sobre as lágrimas recém derramadas. Já não estás a sós, Stalingrado. E os grandes leões da Inglaterra voando sobre o mar de furacões cravam as garras na parda terra. Já não estás a sós, Stalingrado. Hoje abaixo de suas montanhas de escarmento não estão apenas os teus enterrados: tremendo está a carne de teus mortos que tocaram tua frente, Stalingrado. Teu aço azul de orgulho construído, seu cabelo de planetas coroados, teu baluarte de pães divididos, tua fronteira sombria, Stalingrado. Tua Pátria de louros e martírios, o sangue no teu esplendor nevado, o olhar de Stalin sobre a neve tingida com teu sangue, Stalingrado. As condecorações que teus mortos colocaram sobre o peito transpassado da terra, o estremecimento da morte e da vida, Stalingrado. O sal profundo que de novo traz ao coração do homem estremecido com a rama de vermelhos capitães saídos de teu sangue, Stalingrado. A esperança que se rompe em seus jardins como a flor da árvore esperada, a página gravada de fuzis, as letras de sua luz, Stalingrado. A torre que concebes nas alturas, os altares de pedra ensanguentados, os defensores de tua idade madura, os filhos de tua pele, Stalingrado. As águias ardentes de tuas pedras, os metais por tua alma amamentados, os adeus de lágrimas imensas e as ondas de amor, Stalingrado.

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Os ossos dos assassinos feridos, os invasores de pálpebras fechadas e os conquistadores fugitivos atrás de sua centelha, Stalingrado. Os que humilharam a curva do Arco e as águas do Sena transpuseram com o consentimento do escravo, se detiveram em Stalingrado. Os que a bela Praga sobre lágrimas, sobre o emudecido e o traído, passaram pisoteando suas feridas, morreram em Stalingrado. Os que na gruta grega esculpiram a estalactite de cristal quebrado em seu clássico azul escasso, agora onde estão, Stalingrado? Os que a Espanha incediaram e dividiram deixando o coração encarcerado dessa mãe de ensinos e guerreiros, se puseram a seus pés, Stalingrado. Os que na Holanda, água e tulipas salpicaram no lodo ensanguentado e derramaram o açoite e a espada, agora dormem em Stalingrado. Os que na branca noite da Noruega Um uivo de chacal soltaram incendiando esta gelada primavera, emudeceram em Stalingrado. Horror a ti pelo que o ar traz, o que se há de cantar e o cantado, horror por tuas mães e teus filhos e teus netos, Stalingrado. Horror ao combatente da névoa, horror ao comissário e ao soldado, horror ao céu por traz da tua lua, horror ao sol de Stalingrado. Guarda-me um pedaço de violenta espuma, guarda-me um rifle, guarda-me um arado, e que o coloquem em minha sepultura com uma espiga vermelha de teu estado, para que saibam, se há alguma dúvida, 33

que morri amando-te e que me tens amado, e se não estive combatendo em tua cintura deixo em tua honra esta granada escura, este canto de amor a Stalingrado.

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Ivan Goran Kovacic (Croácia 1913 – 1943) O poeta e escritor croata Ivan Goran Kovacic foi morto durante a Segunda Guerra, quando da ocupação nazista de seu país (então parte da Iugoslávia), ocupação esta que estabeleceu o estado-títere da Croácia Independente (1941-1944). Deixou um testamento: o poema épico Fosso (Jama, publicado em 1944), em dez cantos, onde o poeta narra o extermínio sistemático de judeus, sérvios e outras minorias durante o período de ocupação. Fosso Tradução de Aleksandar Jovanocic Canto VII (fragmento) Calo-me Só entre gelados corpos Gelidez mortal sobre as costas membros Se enrola Ardentes no frio dos mortos Sedentos línguas faringes lábios Gelo de morte calado O inferno Queima Nenhum grito se externa E essa terrível carga que em mim pesa Nem ao frio da morte causa inveja Nas gargantas frias e se retesa Quase eu gritei água aqui rumoreja Ouço que acima dos corpos me invade Um jato frio que arde arde arde Sobre a pele nua sobre o meu dorso Sobre o tronco o peito as coxas o abdome Rio de gelo chama viva no curso Deixa e afunda na carne com ardume Quando na boca o jato frio respinga Cal virgem escorre-me sobre a língua O fosso está cheio Banham os mortos Com cal vivos defendem do cheiro Sou-lhes grato Com perdão os inertes Nos aquecem em sua chama... severos Defuntos e eu calo saltam nus algo Como peixes que o cozinheiro salga Esse último tremor do morto nervo Nele é que eu nado na estranha tremura Esses meus assassinos eu absolvo Vejam o corpo que me cerca estertora Uma velha me afaga com mãos frias Pois sabe que não me deixa a penúria 35

Canto X (fragmento) O cheiro de incêndio trouxe até mim o vento Assim de um só golpe de minha aldeia em chamas Cheiro de que brotam todos os meus mementos Bodas e colheitas festanças e carroças Os sepultamentos lamentos e bebedeiras O que planta a vida o que a morte ceifa Onde está a sorte o brilho das vidraças Ninhos de andorinhas o hálito do pomar Onde está o bater do berço que balança Da casa a dourada soleira à luz do sol Onde está o aroma de pão e o ranger da mó Vida doméstica que ressoa em faina Onde está a janela com um recorte do céu Sagrada soleira porta que soa mansa Onde estão os sinos das reses no estábulo Que através do velho chão da lonjura penetram Nos sonhos enquanto as estrelas num pulo Acendem séculos de paz sobre a aldeia e a terra Não se ouve choro algum Riso Maldição Canção A lua que viaja sobre a fogueira brilha As fontes nos vales distantes já se calam O cadáver de um cão enegrece na trilha

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Vladimir Nazor (Croácia 1876 – 1949) Escritor e poeta, Nazor foi figura relevante do Modernismo iugoslavo. Mesmo com 67 anos durante a Segunda Guerra, o escritor engajou-se na resistência contra a ocupação nazista e o estado-títere da Croácia Independente. Em 1944 publicou o livro Canções dos Partizani. Mãe Ortodoxa Tradução de Aleksandar Jovanocic Com as mãos e os olhos escavas esta terra Em busca do berço, do ícone de São Jorge, Choras junto à cova coberta de fuligem, Queres o bordado que a fumaça soterra - lar enlutado Tu, galho quebrado, pobre entre as mulheres, mãe ortodoxa. Com os pés cansados, hirtos, que não se aguentam, Saíste à procura de tua vaca leiteira, Nutriz das crianças e velhos. Mas sem eira Nem beira lobos ou selva negra retinta - pés doloridos Escondem. Não sofre, ninguém quer queijo ou leite, mãe ortodoxa. Choraste o destino de teu fiel companheiro, Surrado como um cão, alvejado nas costas, Torturado ou então atirado em masmorras. Coração ardente, firme, duro e altaneiro - viajor amigo Voltou mutilado, morreu em teu regaço, mãe ortodoxa. Junto às cinzas de tua casa jazem os filhos, Garganta cortada, chamam pela mãe, choram Junto de seus avós e na vala estertoram Com medo da cova úmida. E teus lábios - cova maldita O silêncio cerra com trevas e umidade, mãe ortodoxa. Não afoga tua dor, infeliz, retesada, Sombria. Deixa que tua mágoa pelo mundo Durante séculos ecoe, antiga, funda. Que ouçam tuas lembranças. Silenciosa, pálida, - que dor profunda 37

Agora coberta de auréola de martírio, mãe ortodoxa. (Numa aldeia sérvia incendiada junto a Vrginmost, janeiro de 1943)

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Archibald MacLeish (EUA 1892 – 1982) Durante a Primeira Guerra Mundial foi motorista de ambulância, como seu amigo Hemingway e outros escritores norte-americanos, passando depois para a artilharia, aonde chegou a capitão. Durante a II Guerra trabalhava como diretor da Biblioteca do Congresso Americano, e ocupou cargos também no Departamento de Guerra. Ajudou a formar a célula de pesquisa e informação do que viria a ser a CIA (Central Inteligence Service). Macleish ganhou três prêmios Pulitzer por sua obra. O poema aqui publicado saiu em livro em 1943. Colóquio Entre os Estados Tradução de Emílio Carrera Guerra

Há falatório por aí diz Illinois. Há mesmo diz Iowa. Falatório no vento leste diz Illinois. Falatório sobre o que? diz Dakota diz Kansas diz Arkansas. Não consigo atinar: é longe muito ao leste diz Michigan. A leste dos galos diz Indiana. A leste dos Cantos matinais dos galos diz Ohio. A leste diz York. Mais a leste diz Connecticut: a leste. Ainda a leste daqui diz Massachussetts. É a leste do Quoddy diz Maine mas estou ouvindo. Ouves o que? diz Texas. O que é que ouves? diz Virgínia. Não estou bem certo diz Maine. Há ressaca nos recifes. O gelo se acumulou nos caldeirões de Penobscot. Presta atenção diz Oregon. Limpa os ouvidos diz Kentucky. Não percebo bem diz Maine. Há muita cerração. Sinos em Old Orchard. Trompas em Ogunquit. Presta atenção diz Mississipi. Tenta ouvir diz Texas. Inclina o ouvido a sotavento diz Massachussetts. Falam alto diz Maine. É uma falação – Grande como um bezerro na cerração. Explica isso diz Arkansas. É fala suja diz Maine. É pura prosa. Falam mal de que? diz Nebraska. Mal de nós. O que falam de nós? diz Kentucky diz Texas diz Idaho. 39

Acho que não gostam de nós diz Maine. Vamos conta diz Connecticut. Peço-te diz New Hampshire. Falam que temos maus costumes diz Maine. Isso mesmo diz Kansas. Passa pro meu lugar diz Michigan. É de nossa maneira de casar diz Maine. Não escolhemos. Mal nos topamos já nos misturamos. Casamo-nos Com as irlandesas atraentes e sapecas. Casamo-nos com as espanholas de olhos noturnos. Casamo-nos com as inglesas de ar sarapantado. Casamo-nos com as louras suecas; com as italianas trigueiras; Com as alemãs de joelhos grossos; com as mexicanas Magras ao sol com seus penduricalhos sonoros; Com as chilenas para ter sorte; com as judias por lembrança; com as escocesas Altas como um homem – prateadas como um salmão; Com as francesas de habilidosos dedos e longos amores. Falam que nos casamos com muita gente diz Maine; muito variada. Dizem que temos sangue ruim; que somos mestiços. É isso que dizem diz Texas. É isso que estão dizendo. O que põem eles na sopa diz Arkansas; o que costumam comer? O que é que tanto os apoquenta? diz Maryland. Será que não são homens? Não podem fazer a coisa com estrangeiros? diz Alabama. Serão tímidos? diz Missouri. Ou o que? diz Montana. Ouço falarem que são raça pura diz Maine; que são um povo superior. Já viram eles nossos filhos? diz York; nossas mocetonas De peito elegante e pequeno como o das egípcias De pernas longas e canelas delicadas De pulsos flexíveis e finos, da grossura de três dedos – O jeito como elas andam mundo afora com seus delgados calcanhares? Pode-se distingui-las em qualquer parte; mostrá-las em qualquer país Pelo porte da cabeça e pelo torneio dos calcanhares quando andam; A cabeça, a mais erecta: a mão, menor de todas. Já disputaram corrida com os nossos rapazes, diz Michigan – ligeiros como cobras? No gatilho, rápidos como a codorniz; incansáveis andarilhos; 40

Latagões vigilantes no comando; comandados audazes; Bom fôlego na reta de chegada. Já os derrotaram? Ouço que não diz Maine. Dizem que somos Mestiços; eles não vão conosco. É não é? diz Kansas. Já viram eles nossas cidades? diz Kansas; nosso trigo; Nossos trens de carga nas Montanhas Rochosas; Nossas estradas de quatro pistas; nossos aviões Prateando sobre os Alleghenys, sobre os Lagos Sobre a floresta enorme, as altas espigas, os cavalos – Prateando sobre o lençol de neve; sobre a ressaca? Já viram eles nossas fazendas, diz Kansas, e quem as lavra? Já viram nossas cidades, diz Kansas, e quem as planeja? Já viram nossos homens? diz Kansas. Não ouço bem: Ouço que temos sangue ruim diz Maine. É o que estão dizendo. Quem diz, diz Missouri: quem está dizendo isso? Donde vem, diz Montana: donde é? Donde? quem? diz Georgia. Não consigo atinar. Direção leste: leste do Reno talvez. O vento está virando diz Maine. Não posso atinar. Leste do Reno: é isso mesmo diz Montana. Os puros-sangues da margem do Reno diz Carolina. O sangue que deixamos para trás diz Wisconsin. O sangue que deixamos para trás quando partimos; O sangue temeroso de viagens diz Nevada. O sangue temeroso de mudanças diz Kentucky. O sangue temeroso de estrangeiros diz Vermont: Sejam estrelas ou mulheres; das duas coisas. O sangue que nunca suspirou por outro estranho: Por um escuro, diz Dakota, de estranhos cabelos. Ficou em casa e casou-se com parentes diz Missouri. Casou-se com primos que se pareciam com a mãe dele diz Michigan. E é tudo; leste do Reno diz Wisconsin. Sim é tudo diz Arkansas; isso é tudo – Tudo, para os rapazes de puro sangue temerosos de estrangeiros. Ressaca nos recifes diz Maine; gelo em Penobscot... 41

Há falatório diz Iowa. Falatório diz Illinois. Sinos em Old Orchard; sinos em Ogunquit... Rumor de espigas ao vento diz Illinois.

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Dudley Randall (EUA 1914 – 2000) O afro-americano Dudley Randall foi poeta e importante editor, pautando sua obra poética pela causa negra e publicando diversos grandes autores afro-americanos. Durante a Segunda Guerra, serviu no Exército, experiência que o inspirou a escrever poemas tais como esses Epitáfios do Pacífico. Epitáfios do Pacífico Tradução de Matheus “Mavericco" RABAUL. Em Rabaul morri Pela democracia. Melhor era cair No Mississipi. ** PALAWAN. Sempre pacífico, Me enfiei entre O amiguinho de revólver E o de metralhadora. ** NEW GEORGIA. Eu amo meu lar. O jeito é me calar. ** NEW GUINEA. A linguinha do mosquito Leu uma historinha pra mim. ** TARAWA. Diga a eles que esta praia Guarda parte do Brooklyn. ** 43

IWO JIMA. Como óleo texano, Ó meu sangue jorrando. ** ESPIRITU SANTU. Odiei armas, Vendedor de armas Que não se armava. ** LUZON. Esplêndidos contra a noite Os holofotes, pegadas, O fogo rubro das bombas Enchendo o olhar E os miolos. ** BOUGAINVILLE. Projétil Na cavidade abdominal. Ângulo: trinta e cinco graus. Penetrou a pars pyrolica. Desviada, pelo sternum. Perfurou a auricula dextra. Ferrou minha carreira médica. ** VELLA VELLA. Esta corda estrupiada E essa daí, estuprada. ** BORNEO. KilRoy Aqui. 44

John Ciardi (EUA 1916 – 1986) Natural de Boston, o descendente de italianos John Ciardi foi poeta, escritor, crítico, editor e tradutor. Durante a guerra serviu na força aérea, tornando-se artilheiro em um avião B-29. Suas experiências no conflito geraram o livro de poemas de guerra Other Skies (1947). O tema da guerra continuou a repercutir em toda a sua obra, como se vê neste poema aqui publicado. Em 1988 publicou-se postumamente seu diário de guerra, Saipan. O Dom Tradução de Sammis Reachers Em 1945, quando os guardas gritaram kaput Josef Stein, poeta, saiu de Dachau metade como numa ressurreição, embora sua outra metade e 80 libras ainda continuem na sua sepultura invisível. Então, lentamente, abriu a boca e primeiro um caldo, e depois uma medicação, e depois uma dieta, e com o tempo e a entrelaçada compaixão ossos expostos foram enterrados de novo em carne, e o milagre foi concluído. Josef Stein, homem e poeta, levantou-se, caminhou, e até poderia gerar, e o fez, e mais tarde morreu de outras causas apenas parcialmente tributáveis à sua primeira morte. Ele observou - com alguma surpresa no início que estranhos não poderiam dizer que ele havia morrido uma vez. Ele voltou ao seu posto na biblioteca, bebeu sua cerveja, publicou três poemas em uma revista francesa, e foi muito gentil para o filho que finalmente era dele. No decorrer de uma noite escreveu três proposições: Que o inferno é a negação do comum. Que nada dura. Que papel branco e limpo esperando debaixo de uma caneta é um dom além da história e da mágoa e do céu.

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Karl Shapiro (EUA 1913 – 2000) Karl Shapiro teve seu livro V-Letter e outros poemas publicado nos EUA enquanto ainda servia como soldado no teatro do Pacífico. O livro ganhou o Prêmio Pulitzer de Poesia em 1945. Ao retornar da Guerra, foi eleito Poeta Laureado pela Biblioteca do Congresso em 46 e 47. Desenvolveu sólida carreira como poeta, professor e editor de poesia. Trem de Tropas Tradução de Sammis Reachers e Jorge Pinheiro À nossa passagem a cidade se detém. Os trabalhadores Levantam seus braços untados e nos saúdam e sorriem. As crianças gritam como no circo. Os homens de negócios Observam-nos esperançosos e prosseguem seu caminho medido. E há mulheres de pé na porta estupefata de suas casas Que se movem mais suavemente e parecem pedir nosso regresso, como se uma lágrima que cegara o curso da guerra Pudesse dissolver de uma vez nosso aço em seu doce desejo. Fruto do mundo, ai, todos agrupados pendurados como de uma cornucópia em total camaradagem, com as caras amontoadas Para pulverizar a cidade com assobios e olhares lascivos. Uma garrafa se rompe nos postes e uns olhos se fixam na rosa sorridente de uma dama, Esticados como um elástico e estalam e beliscam a boca desejosa do sabor de um beijo. E através de horríveis continentes e dias, nos arrastamos decididos, sujos e ligeiramente bêbados, os bons maus rapazes de circunstância e azar, cujos capacetes como cubos golpeiam a parede nua de onde se retorcem os cadáveres de nossas mochilas ao lado dos fuzis que só se parecem consigo mesmos. E a distância se encolhe como um cinto apertado aperta o ombro e o mantém firme. Eis um baralho de cartas; você que reparte, dá-me sorte, um par de touros, a sorte do novato, o valete zarolho Ouros e copas são vermelhos, mas as espadas são negras e espadas são espadas e paus são trevos-negros Mas saque-me trunfos, recordações de paz. Isso exige razão e aritmética, a sorte também viaja e nem todos regressam

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Os trens levam aos barcos e os barcos à morte ou aos trens, e os trens à morte ou aos caminhões, e os caminhões à morte, ou os caminhões conduzem à marcha, a marcha à morte ou a sobrevivência que é nossa única esperança; e a morte nos devolve aos caminhões e aos trens e aos barcos, porém a vida leva à marcha, oh bandeira!, finalmente o lugar da vida encontrado depois dos trens e da morte Brilhante anoitecer das nações depois da guerra.

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Randall Jarell (EUA 1914 – 1965) O poeta, escritor e crítico literário Randall Jarell nasceu em Nashville, Tennessee. Em 1942 deixou a faculdade para juntar-se à Força Aérea. Jarell tornou-se operador de torres de artilharia em aviões como o B-17 e o B-24, função que ele considerava profundamente “poética”. O pequeno poema abaixo faz referência a esse fato, e é possivelmente o mais famoso poema de guerra americano do período da SGM. Suas experiências de guerra redundaram em dois livros: Little Friend, Little Friend (1945) e Losses (1948).

A Morte do Artilheiro da Torre Giratória Tradução de Pedro Mexia Do sono de minha mãe aterrei no Estado e agachei-me no seu ventre até que o meu casaco molhado congelou. Seis milhas acima da terra, desprendido do seu sonho de vida, acordei com a tenebrosa artilharia e com os caças de pesadelo. Quando morri, os meus pedaços foram lavados da torre com uma mangueira.

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Stanley Kunitz (EUA 1905 – 2006) Stanley Kunitz nasceu em Worcester, Massachussetts, descendente de judeus lituanos. Em 1943 foi convocado pelo Exército Americano. Objetor de consciência, serviu como não-combatente em Washington. Em 1944 publica seu livro Passaporte para a Guerra. Vencedor do Pulitzer em 1959, o poeta foi duas vezes eleito Poeta Laureado pela Biblioteca do Congresso Americano. Considerações Junto a Uma Caixa de Correio Tradução de Zulmira Ribeiro Tavares Quando eu me coloco no centro da loucura daquele homem, Profundamente em seu trauma, como no fosso de uma chaga, Meus ancestrais afastam-se de meus ossos Americanos. Lá está minha mãe num xale trançado, e lá, Sem dúvida, meu pai apanhando o seu fardo Para a viagem de volta através daqueles terríveis anos Rumo ao inverno do olhar em cólera. Nossa geração se foi, há dois dias por avião, Minha casa esbulhada, meus amigos dispersos, Meus dentes e orgulho golpeados, meu povo joguete Dos caçadores da humana pele nas pocilgas da Europa, As incríveis criaturas de um histérico sonho Avançando com machadinhas enterradas em seus crânios Para arrancarem o deus às máquinas. Serão estes os cidadãos do novo estado Ao qual os escolhos do continente aspiram; Ou a poderosa linhagem de uma geração à morte, corrupta e untada de flama, com fluido em seus lábios, como se houvesse sido uma alma entregue ao petróleo? 49

Como iremos nós não criar esta energia ilegítima? Agora espero sob a cicuta à beira da estrada Pelo carteiro ruivo com a sorridente mão Que me irá trazer o passaporte para a guerra. Com familiaridade seu carro muda a marcha Na altura da curva; ele encosta no passeio ao meu lado; o dia. Faz soar a sua metade; penso em Pavlov e nos seus cães E na inscrição gravada na ampla moldura do seu cérebro: “Sequência, consequência, e uma outra vez consequência.”

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T. S. Eliot (EUA/Ingaterra 1888 – 1965) Um dos maiores e mais influentes poetas do século XX, o modernista norteamericano (naturalizado inglês) Thomas Stearns Eliot recebeu o Prêmio Nobel em 1948. O trecho aqui publicado é pertencente a quarta e última parte (Little Gidding) do poema Quatro Quartetos (que o próprio Eliot considerava sua obraprima), e foi escrito em 1942. Nele, o poeta imagina um encontro com Dante nas ruas e ruínas de uma cidade bombardeada. Eliot serviu como voluntário civil numa brigada de antiataque aéreo, durante a Guerra. Little Gidding é o nome de uma igreja anglicana localizada no distrito de Huntingdonshire, na Inglaterra.

Quatro Quartetos Tradução de Ivan Junqueira Little Gidding II A cinza sobre um velho é toda a cinza Que nos deixaram as rosas incendidas, A poeira no ar suspensa determina O sítio onde uma história teve fim. A poeira aspirada era uma casa, - A parede, o lambril e o rato escasso. A morte do esperar e do desesperar, Esta é a morte do ar. Inundação e seca desabrocham Dentro da boca, sobre os olhos. Água morta e morta areia tentam Levar vantagem na contenda. O ressequido solo desventrado Boquiabre-se ante o vão trabalho E ri sem alegria dessa guerra. Esta é a morte da terra. A água e o fogo sucederam À vila, ao pasto, à urze anônima. A água e o fogo escarneceram Do sacrifício que repudiamos. A água e o fogo escarvarão Os podres fundamentos que olvidamos Do santuário e de seu coro. Esta é a morte da água e do fogo. A uma hora incerta que antecede a aurora 51

Vizinha ao término da noite interminável No recorrente fim do que jamais se finda Após o negro pombo de flamante língua Perder-se no horizonte de sua fuga Enquanto as folhas mortas se moviam Vibrando ainda como lâminas de zinco Sobre o asfalto onde outro som nenhum se ouvia Entre três bairros de onde a fumaça emergia, Alguém notei que andava, trôpego e apressado, Como se vindo a mim tal as folhas metálicas Que a brisa urbana da alvorada embala. E ao mergulhar naquele rosto cabisbaixo Esse pontiagudo olhar inquisidor Com que desafiamos o primeiro estranho Surgido na penumbra agonizante Captei o olhar fugaz de algum extinto mestre A quem outrora houvesse conhecido, Esquecido, lembrado após sem nitidez, Como a um só e a muitos de uma vez; Sob o castanho sazonado das feições Os olhos de um complexo e familiar espectro A um tempo só distinto e incognoscível. Gritei, cumprindo assim duplo papel, E uma outra voz ouvi bradar: “O quê! Tu por aqui?” Conquanto ali não estivéssemos. Contudo eu era o mesmo, embora um outro fosse - E ele um rosto ainda em formação; Mas bastaram as palavras para que aceitássemos O que já precedido elas haviam. E assim, obedientes ao vento comum, Demais estranhos para não nos entendermos, Concordes nesse instante de erma interseção, De em parte alguma estarmos, antes e depois, Em ronda morta o calçamento percorremos. Disse-lhe então: “É natural o espanto Que sinto, embora a naturalidade Seja causa de espanto. Fala, pois: talvez Eu não possa entender, ou recordar sequer.” E ele: “Não quero repetir o que esqueceste Sobre meus pensamentos e doutrinas. Tais coisas já cumpriram seu destino: deixa-as. Faze o mesmo com as tuas, e roga aos outros Que as perdoem, como te rogo que perdoes A maus e bons. Comido foi o fruto Da última estação, e a besta empanzinada Há-de atirar seus coices contra o cocho. Pois as palavras do ano findo só pertencem À linguagem do ano findo, e as palavras Do ano próximo outra voz aguardam. 52

Mas, assim como agora a estrada se abre limpa Ao intranquilo e peregrino espírito Entre dois mundos que chegaram a parecer Demasiado iguais, assim descubro agora Palavras que jamais pensei dizer Em ruas que jamais pensei revisse Quando meu corpo abandonei sobre uma praia. Posto que nosso fim era a linguagem, E a linguagem desde sempre nos levara A purificar o dialeto da tribo E a instigar a mente para a antevisão E a pós-visão, deixa-me revelar as dádivas À velhice reservadas, para que seja Coroado o esforço de tua vida inteira. Primeiro, o enregelado atrito dos sentidos Que expiram sem magia e nada prometer, Senão a amarga insipidez de um fruto umbroso Quando alma e corpo, espedaçados, principiam A tombar cada qual para o seu lado. Segundo, a lúcida impotência do ódio Ante a loucura humana, e a laceração do riso Perante aquilo que cessou de divertir-nos. Enfim, a lacerante dor de reviver O que já concluíste, e o que foste; a vergonha De motivos tarde apenas revelados E a consciência de todas as coisas mal feitas Ou feitas simplesmente em prejuízo alheio Que antes tomaste por virtuosas práticas. Nesse momento é que se arranca o aplauso Dos tolos, e a honra se macula. Erro após erro, o exasperado espírito Prosseguirá, se revigorado não for Por este fogo purificador Onde mover-te deves como um bailarino.” Raiava o dia. Na desfigurada rua Ele deixou-me, com uma esquiva despedida, E evaporou-se ao brônzeo som das trompas.

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Louis Aragon (França 1897 – 1982) Poeta e romancista, Aragon destacou-se como membro do movimento surrealista, ao lado de Breton e Éluard. Durante a Guerra foi um ativo poeta da resistência francesa, sendo membro do Partido Comunista. O poema aqui transcrito foi publicado originalmente em 1941, ano da invasão (e derrota) da França pelas tropas de Hitler. Os lilases e as rosas Tradução de Marcela Vieira Oh mês das florações e das metamorfoses Maio que se foi sem nuvens e Junho apunhalado Nunca esquecerei os lilases nem as rosas Nem os que a primavera em suas copas guardou Nunca esquecerei a ilusão trágica O cortejo os brados a multidão e o sol Os tanques de paixão as doações da Bélgica O ar tremente e o rumo ao enxame de abelhas O triunfo imprudente que preza o conflito O sangue que em carmim prefigura o beijo E os que envoltos de lilases por um povo ébrio De pé morrerão nos torreões Nunca esquecerei os jardins da França Parecidos aos missais dos findados séculos Nem a agitação das noites o enigma do silêncio As rosas ao longo do caminho percorrido A resistência das flores ao vento do pânico Aos soldados que passavam numa onda de medo Às bicicletas delirantes aos irônicos canhões À deplorável vestimenta dos falsos acampados Mas não compreendo como esse turbilhão de imagens Conduzem-me sempre ao mesmo fadário À Santa Marta Um general Negras ramagens Uma cidade normanda à beira da mata Tudo se cala O inimigo na sombra descansa Nesta noite anunciaram a rendição de Paris Nunca esquecerei os lilases nem as rosas E nem aqueles dois amores perdidos

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Buquês do primeiro dia lilás lilases de Flandres Brandura da sombra cuja morte os rostos disfarça E vossos buquês da retirada suaves rosas Cores de incêndio distantes rosas de Anjou

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Paul Éluard (França 1895 – 1952) Grande nome da poesia francesa do século XX, Éluard foi inicialmente dadaísta, e posteriormente o poeta maior do surrealismo. Engajado na Resistência Francesa durante a Guerra, foi dos seus mais destacados poetas, ao lado de Louis Aragón, tendo escrito poemas como ‘Liberdade’ aqui publicado, poema que circulava clandestinamente entre os insurgentes e teve até mesmo cópias lançadas de aviões ingleses, por toda a França. Liberdade Tradução de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade Nos meus cadernos de escola Nesta carteira nas árvores Nas areias e na neve Escrevo teu nome Em toda página lida Em toda página branca Pedra sangue papel cinza Escrevo teu nome Nas imagens redouradas Na armadura dos guerreiros E na coroa dos reis Escrevo teu nome Nas jungles e no deserto Nos ninhos e nas giestas No céu da minha infância Escrevo teu nome Nas maravilhas das noites No pão branco de cada dia Nas estações enlaçadas Escrevo teu nome Nos meus farrapos de azul No tanque sol que mofou No lago lua vivendo Escrevo teu nome Nas campinas do horizonte Nas asas dos passarinhos E no moinho das sombras Escrevo teu nome 56

Em cada sopro de aurora Na água do mar nos navios Na serrania demente Escrevo teu nome Até na espuma das nuvens No suor das tempestades Na chuva insípida e espessa Escrevo teu nome Nas formas resplandecentes Nos sinos das sete cores E na física verdade Escrevo teu nome Nas veredas acordadas E nos caminhos abertos Nas praças que regurgitam Escrevo teu nome Na lâmpada que se acende Na lâmpada que se apaga Em minhas casas reunidas Escrevo teu nome No fruto partido em dois de meu espelho e meu quarto Na cama concha vazia Escrevo teu nome Em meu cão guloso e meigo Em suas orelhas fitas Em sua pata canhestra Escrevo teu nome No trampolim desta porta Nos objetos familiares Na língua do fogo puro Escrevo teu nome Em toda carne possuída Na fronte de meus amigos Em cada mão que se estende Escrevo teu nome Na vidraça das surpresas Nos lábios que estão atentos Bem acima do silêncio 57

Escrevo teu nome Em meus refúgios destruídos Em meus faróis desabados Nas paredes do meu tédio Escrevo teu nome Na ausência sem mais desejos Na solidão despojada E nas escadas da morte Escrevo teu nome Na saúde recobrada No perigo dissipado Na esperança sem memórias Escrevo teu nome E ao poder de uma palavra Recomeço minha vida Nasci pra te conhecer E te chamar Liberdade

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Coragem Tradução de António Ramos Rosa Paris tem frio Paris tem fome Paris já não come castanhas na rua Paris anda vestido de velha Paris dorme de pé sem ar no metropolitano Ainda mais sofrimento é imposto aos pobres E a sabedoria e a loucura De Paris infeliz É o ar puro é o fogo É a beleza é a bondade Dos seus trabalhadores famintos Não peças socorro Paris Estás vivo com uma vida sem igual E por detrás da nudez Da tua palidez da tua magreza Tudo o que é humano se revela nos teus olhos Paris minha bela cidade Fina como uma agulha forte como uma espada Ingênua e sábia Tu não suportas a injustiça Para ti só existe a desordem Vais liberta-te Paris Paris bruxuleante como uma estrela Nossa esperança sobrevivente Vais liberta-te da fadiga e da lama Irmãos tenhamos coragem Nós que não usamos capacetes Nem botas nem luvas nem somos bem educados Um raio se acende em nossas veias Os melhores de nós morreram por nós E eis que o sangue dos que morreram nos volta ao coração E de novo é a manhã uma manhã de Paris O extremo da libertação O espaço da Primavera que nasce A força idiota está na mó de baixo Estes escravos nossos inimigos Se compreenderem Se forem capazes de compreender Erguer-se-ão.

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A Aurora Dissolve os Monstros Tradução de António Ramos Rosa Ignoravam que a beleza do homem é maior do que o homem Viviam para pensar pensavam para se calarem Viviam para morrer eram inúteis Ocultavam a sua inocência na morte Tinham posto em ordem sob o nome de riqueza sua miséria sua bem-amada Mastigavam flores e sorrisos Só encontravam um coração na ponta das carabinas Não percebiam a injúria dos pobres Dos pobres amanhã sem problemas Sonhos sem sol tornavam-nos eternos Mas para que a nuvem se transformasse em lama Desciam deixavam de fazer frente ao céu A noite do seu reino a sua morte a sua bela sombra miséria Miséria para os outros Esqueceremos estes inimigos indiferentes Em breve uma multidão Repetirá baixinho a chama clara A chama para nós dois unicamente paciência Para nós dois em toda a parte o beijo dos vivos.

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Pierre Emmanuel (França 1916 – 1984) Noël Mathieu, poeta e jornalista francês de inclinação cristã, fez-se mais conhecido pelo seu pseudônimo, Pierre Emmanuel. Membro da Resistência Francesa, durante todo o período de Guerra publicou diversos trabalhos, sendo, ao lado de Char, Aragon e Éluard, uma das principais vozes poéticas da Resistência. No pós-guerra ocupou diversos cargos de importância, e veio a ocupar a cadeira número 4 da Academia Francesa. Dia de Cólera Ó meus irmãos nas prisões vós estais livres livres de olhos queimados de corpos acorrentados de rosto esfacelado de lábios mutilados sois aquelas árvores fortes e torturadas que crescem com mais força depois que as podaram e sobre todo o território do humano destino o vosso olhar de homens verdadeiros é ilimitado o vosso silêncio é a terrível paz do éter. Mais alto que os tiranos enrouquecidos de mutismo está a nave silenciosa das vossas mãos mais alto que a ordem irrisória dos tiranos está a ordem das nuvens e a vastidão dos céus está a respiração dos montes tão azuis estão os livres horizontes da oração estão as vastas frontes que não vergam estão as árvores na liberdade da sua essência estão as messes infindáveis do devir e nos tiranos está uma angústia fatal que é a tremenda liberdade de Deus.

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René Char (França 1907 – 1988) O jovem René Char inicialmente foi um filiado ao surrealismo, ao lado de Breton e Éluard, tendo logo se afastado do movimento. Durante a Guerra, o poeta engaja-se na Resistência, onde foi figura de destaque, adotando o codinome de Capitão Alexandre. Sua obra então sofre um hiato, pois o autor recusa-se a publicar durante a Ocupação alemã. Publicação que é retomada ao fim do conflito, já então tendo sua obra profundamente marcada pelo mesmo.

Carta do 8 de Novembro* Tradução de Margarida Vale de Gato Os pregos no nosso peito, a cegueira transindo os nossos ossos, quem se oferece para os subjugar? Pioneiros da velha igreja, afluência do Cristo, ocupais menos espaço na prisão da nossa dor do que o rasto de um pássaro na cornija do ar. A fé! O seu beijo afastou-se horrorizado deste novo calvário. Como poderia o seu braço conservar desobstruída a nossa cabeça, ele que vive, cerceado dos frutos do seu próximo, da caridade de uma fechadura inexata? O nojo supremo, aquele a quem a própria morte recusa a sua última baforada, retira-se, disfarçado de mestre. A nossa casa há-de envelhecer apartada de nós, poupando a memória do nosso amor deitado intacto na trincheira da sua única gratidão. Tribunal implícito, ciclone vulnerário, tão tarde nos entregas o alvo e a mesa onde a fome foi a primeira a entrar! Sou hoje semelhante a um cão raivoso acorrentado a uma árvore cheia de gargalhadas e de folhas.

*8 de Novembro de 1942, data do desembarque dos Aliados no Norte da África, marcando a grande virada na história da Resistência Francesa (N.T.). 62

Pobreza e Privilégio Tradução de Y. K. Centeno II ... Não quero esquecer nunca que me obrigaram a ser – por quanto tempo? – um monstro de justiça e de intolerância, um simplificador emparedado, um personagem ártico que se desinteressa do destino de todos aqueles que não se lhe unem para abater os cães do inferno. As prisões em massa de israelitas, as sessões de escalpe no comissariado, os raids terroristas dos polícias hitlerianos sobre as aldeias estarrecidas, levantam-me do chão, dão ao cieiro do meu rosto uma bofetada de ferro fundido vermelho. Que inverno! Paciento, quando durmo, num túmulo que os demônios enfeitam com punhais e tumores. O humor já não me salva. O que me deprime, e a seguir me arranca a mim mesmo, é que no interior da nação a que se cortou a crista por meio de correntes discordantes, seguidas de poderes grotescos e relativamente complacentes – excetuando a repressão da agitação operária e as cruéis expedições coloniais, adaga que o ódio de classes e a eterna cupidez enterram a espaços nalguma carne previamente excomungada – possam ser tão numerosos os indivíduos pensantes que se entregam com galhardia à esparrela do torcionário e se alistam nas suas legiões. Nenhuma obra de exterminação dissimulou tão mal os seus objetivos como esta. Não compreendo, e se compreendo, aquilo que descubro é aterrador. Nesta medida o nosso globo não seria, hoje à noite, mais do que a bola de um grito imenso na garganta do infinito esquartejado. É possível e é impossível. 1943

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O Verdelhão Tradução de Y. K. Centeno 3 de Setembro de 1939* O Verdelhão entrou na capital da aurora. A espada do seu cântico trancou o triste leito. Tudo terminou para sempre.

De Sós Permanecem

*Neste dia, França, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia declaram guerra à Alemanha, que dois dias antes invadira a Polônia, dando início à Segunda Guerra (N.O.). 64

Giorgos Seferis (Grécia 1900 – 1971) Poeta grego vencedor do Prêmio Nobel de 1963. O poema aqui publicado (datado de 1939) é um prenuncio do que estava por vir, sobre a sua pátria e sobre toda a Europa, nos anos imediatamente seguintes. Com a deflagração da Segunda Guerra, ele acompanhou o governo grego no exílio por diversos países, num tour que começou na ilha de Creta e terminou na Itália. Ao fim da guerra tornou-se diplomata. O ÚLTIMO DIA Tradução de José Paulo Paes Era um dia nublado. Ninguém decidia. Soprava uma brisa leve. "Não é o vento leste, é o siroco" disse alguém. Alguns magros ciprestes espetados na encosta e o mar cinzento com lagoas de luz um pouco adiante. Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar. "Não é o vento leste, é o siroco" foi a única decisão que se escutou. E no entanto sabíamos que na manhã seguinte não nos restaria mais nada, nem a mulher que ao nosso lado bebe o sono, nem a lembrança de que um dia fomos homens, mais nada na manhã seguinte. "Este vento traz à mente a primavera", dizia a amiga que passeava comigo a olhar para longe "a primavera que de repente fez baixar o inverno sobre o mar fechado. Tão inesperado. Tantos anos se passaram. Como morreremos?" Uma marcha fúnebre zanzava pela chuva fina. Como morre um homem? Estranho que ninguém pensasse nisso. E para os que pensaram era como recordações de velhas crônicas do tempo dos cruzados e da batalha naval de Salamina. E no entanto a morte é coisa que acontece; como morre um homem? E no entanto cada um recebe a sua morte, a sua própria morte, que não pertence a mais ninguém e a vida é esse jogo. Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém decidia. Na manhã seguinte não nos restaria nada: rendição total; sequer as nossas mãos; e nossas mulheres servindo aos estrangeiros, nossos filhos nas pedreiras. Passeando comigo minha amiga cantava uma canção estropiada: "A primavera, o verão, raiás..." Vinham à lembrança velhos mestres que nos deixaram órfãos. Passou um casal a conversar: "Eu me cansei da tarde, vamos para casa vamos acender a luz de casa." Atenas, fevereiro de 39 65

Odisséas Elýtis (Grécia 1911 – 1996) Um dos maiores nomes da grande poesia grega moderna, Elýtis, Prêmio Nobel de 1979, foi desde jovem impactado pela corrente surrealista, notadamente através de Paul Éluard. Durante a guerra, serviu na resistência albanesa, experiência que o levou a escrever o livro Canto Heroico e Funeral para o Segundo-Tenente Desaparecido na Campanha da Albânia, do qual publicamos aqui alguns trechos. Do Canto Heroico e Funeral para o Segundo-Tenente Desaparecido na Campanha da Albânia Tradução de José Paulo Paes III Agora ele jaz sobre o capote chamuscado Com uma brisa detida no cabelo imóvel Com um raminho de olvido em seu ouvido esquerdo Parece um jardim abandonado de repente pelos pássaros Parece uma canção amordaçada nas trevas Parece o relógio de um anjo que parasse Quando os cílios diziam “até logo rapazes” E a perplexidade fez-se pedra Ele jaz sobre o capote chamuscado À sua volta negros séculos Latem com esqueletos de cães contra o silêncio horrível E as horas que se tornaram pétreos pombos outra vez Ouvem com atenção: Mas o riso foi queimado, a terra ensurdecida Mas ninguém ouviu o derradeiro grito O mundo todo esvaziou-se ao derradeiro grito Debaixo dos cinco cedros Sem quaisquer outros círios Ele jaz sobre o capote chamuscado; Vazio o capacete, sangue e lama Junto ao braço semiconcluído E entre as sobrancelhas O pequeno amargo poço, impressão digital do fado O pequeno amargo poço rubro-negro O poço onde a memória esfria! Oh não olhem oh não olhem para onde lhe para onde lhe fugiu a vida Nem digam como Nem digam como subiu alto a fumaça do sonho Assim então um momento Assim então um momento Assim então um momento deixou o outro E o sol eterno assim de súbito o mundo. 66

IV Oh sol não eras sempiterno? Pássaro não eras o instante de alegria que não cessa? Relâmpago não eras destemor de nuvem? E tu jardim odeão das flores E tu crespa raiz da magnólia Assim enquanto a árvore sacode-se na chuva E o corpo vazio enegrece o destino E um doido se flagela com a neve E os dois olhos estão prestes a chorar – Por que, pergunta a águia, onde está o bravo moço? E as aguiazinhas espantadas, onde está? Por que, pergunta, a suspirar, a mãe, onde está o meu filho? E as mães todas, surpresas, onde está o menino? Por que, pergunta o homem, onde está o teu irmão? E os companheiros todos, estranhando, onde está o pequenino? Pegam a neve, a febre queima Pegam a mão, está gelada Vão morder o pão, goteja sangue Por que por que por que a morte não se aquenta Para que um pão assim tão ímpio Por que um céu como este onde outrora o sol morava? XI Ao longe tocam sinos de cristal – Soa o momento mais exato deste mundo: Liberdade, Em meio às trevas os gregos mostram o caminho: LIBERDADE Por ti e de alegria há de chorar o sol Soa o momento mais exato deste mundo! Com passo matinal sobre a relva a crescer Vai ele subindo o tempo todo; Brilham agora à sua volta os anseios que outrora Na solidão do pecado se perdiam; Em torno do seu coração flamejam os anseios; Pássaros saúdam-no e lhe mostram irmãozinhos Homens o chamam e lhe mostram companheiros “Pássaros, meus pássaros, aqui termina a morte!” “Companheiros, companheiros meus, é aqui que a vida começa!” O orvalho da beleza do céu cintila em seus cabelos. Ao longe tocam sinos de cristal Amanhã, amanhã, amanhã: a Páscoa do Senhor!

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Tasos Leivaditis (Grécia 1922 – 1988) O ateniense Tasos Leivaditis foi um integrante da Resistência grega, durante a ocupação de seu país pelas tropas nazistas. Após a guerra foi deportado, em virtude de suas atividades esquerdistas. De volta à Grécia, em 1951, foi preso pelo regime direitista, tendo seu livro ‘Sopra o Vento nas Esquinas do Mundo’ censurado. O poeta foi absolvido em 1955. O poema aqui publicado saiu em livro em 1952. Esta estrela é para todos nós (excerto) Tradução de Manuel Resende I Anoitecia depressa. O vento vinha de longe cheirando a chuva e guerra. Os comboios cheios de soldados passavam rápidos mal conseguíamos vê-los por detrás das vidraças. Fechavam o horizonte grandes capacetes de aço. Rebrilhava o asfalto molhado. Por detrás das janelas as mulheres debulhavam umas favas secas em silêncio. E os passos da sentinela roubavam o silêncio à rua e o calor ao mundo. Vá, volta os teus olhos, que eu quero fitar o céu, dá-me a tua mão, que eu quero apertar a minha vida. Como estás pálida, minha amada! Como se a noite nos batesse à porta. A tua mãe, arrastando as grossas socas, foi abrir. Ninguém. Ninguém, repetiu. Será o vento. Nós, apertamo-nos um ao outro. É que sabíamos, é que sabíamos, minha amada, que não era o vento. Milhares de humanos morriam lá fora da nossa porta. Olha como o nosso bairro está deserto, minha amada. O vento entra e sai pelas brechas das casas as paredes umedecem, incham e depois caem em ruínas. Para onde foram tantos vizinhos sem se despedirem, deixando o banco de pedra meio por caiar o sorriso meio por acabar. É como se alguém dobrasse a esquina e nunca mais o víssemos. Como se disséssemos bom dia e caísse de súbito a noite. Mas para onde vai esta gente toda? Também aquele amolador louro que cantava pelas manhãs foi fuzilado Também o do quiosque que nos dava o troco sorrindo foi fuzilado e o rapaz que pesava o carvão - lembras-te dele, a sério?, foi fuzilado. A carroça ficou de pernas para o ar na esquina. 68

A amada dele agora há-de fitar de frente a noite Há-de dobrar-se como um cão a cheirar a camisa dele. E o carteiro que com a voz abria as janelas foi fuzilado. Vá, vá, afasta a tua boca vermelha de mim, Maria. Tenho frio. Esta noite, em todas as paredes é fuzilada a vida. Minha amada amo-te muito mais do que posso dizer com as palavras queria morrer contigo, se alguma vez morresses, e, no entanto, minha amada, não poderia não poderia já amar-te como já te amei. Fechávamos a porta atrás de nós e tínhamos frio fechávamos as janelas e tínhamos mais frio e ao voltar-me para ver os teus olhos vi os olhos da vizinha a quem mataram quatro filhos e ao estender a minha mão para a tua era como se roubasse o pão da mão dos que tinham fome. Abraçavas-me e eu por cima do teu ombro olhava a rua. E quando queríamos falar, calávamo-nos de súbito. Escutávamos da janela aberta lá ao longe os passos dos moribundos. Como pode o nosso cobertor aquecer tanto gelo, Como pode a porta proteger-nos de toda esta noite? Entre nós os humanos deitaram a sua grande sombra. Que vai ser de nós, amada? Amada minha, ouves? Não, não é o vento, vem de mais longe. Dir-se-ia que milhares de passos descem as ruas, Milhares de botas martelam os seus pregos no asfalto. Aonde vão? Será que podem ir-se embora? Como posso viver longe de ti, minha amada, Como posso acender um candeeiro senão para te ver? Como posso fitar uma parede por onde não perpassa a tua sombra? Como posso apoiar-me numa mesa onde não apoias as mãos? Uma fatia de pão que não repartimos, como posso tocá-la? Mas não para de crescer este ruído. Não se consegue dormir. Não há canto onde a gente se sente. Não, não é o vento, vem de mais longe. Vá, minha amada, corta o lençol, rasga o teu vestido e tapa as brechas. As pessoas enchem à pressa as trouxas com todos os seus pertences porque todos os seus pertences não são mais do que um pouco de pão, uma recordação e o seu amor à vida. Depois, beijam-se e desaparecem na noite. 69

Depois ficamos nós. Onde ficamos? Porque ficamos? Como hei-de abrir uma porta se não for para ir ter contigo? Como hei-de atravessar uma soleira se não for para te encontrar? Não, não podia viver longe de ti, amada minha. Mas esta noite em todas as esquinas esperam-nos as pessoas. Dá-me a tua boca por um momento. E prepara a minha trouxa, Maria.

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Gerrit Kouwenaar (Holanda 1923 - 2014) Durante a Segunda Guerra Mundial, publicou livros de forma clandestina, além de editar jornais subversivos. Foi preso, sendo liberado seis meses depois, vindo então a entrar na clandestinidade. Após a guerra dedicou-se a seu trabalho de escritor e tradutor. Terceiro Canto Heroico Tradução de August Willemsen e Egito Gonçalves Na véspera da paz mandou-nos o nosso omnipotente pai major a mim e a mais seis para o silêncio da morte noturna, rumo ao inimigo supostamente derrotado sete batedores na fronteira de quase tudo: guerra carne vida, caindo em meio da névoa na armadilha: apenas eu como por milagre fui poupado enterraram-se no local entre eles o meu companheiro inseparável de quatro anos de trincheira seis meses mais tarde, já primavera, eu estudava ciências humanas na cidade, bebia cerveja, comia bifes, mulheres, veio o pai dele, disse: você está vivo, era companheiro dele, sabe onde está sepultado, então ajude-me a desenterrá-lo, é proibido, bem sei, mas é claro que ele tem de ficar conosco no jardim que podia eu fazer, fiz, cavei, desenterrei-o com o pai, reconheci-o pelo número da plaquinha, ele pendia desengonçado, tépida massa mole, minha mão afundou-se no cadáver até ao punho, tão assustada com a matéria que desastradamente fez um buraco após o enterro, ele clandestino na sua própria terra, estava eu na sala de jantar deles com a mãe a irmã o pai, bebendo um copinho de lágrimas, conversando em torno do seu retrato de menino e contava: íamos juntos agachados, falávamos 71

em voz baixa acerca de um futuro melhor, fumávamos juntos um cigarro belga, juntos não suspeitávamos nenhum perigo / ele era soldado corajoso, obediente com dignidade, amava mozart, wagner a pátria, prestava atenção ao sussurro das suas árvores / escondi pouco da sua verdade, só omiti o indizível putas e pulgas e de que modo estraçalhávamos como carniceiros pois é, era primavera no jardim onde o enterramos sussurrava o plátano, árvore fazedora de mãos, no ar havia algo perfeito, acabado, perfeito finalmente, até a lua parecia novinha, sua irmã carnal estava suspensa dos meus lábios, lá pelo fim de Abril num corpo apertado, a groselheira perfumava a terra, a minha mão tocou-lhe os seios, a minha mão tocou-lhe os seios e era a mesma tépida massa mole, a mesma tépida massa mole, o mesmo material simplesmente o mesmo, e era esta mesma mão, esta

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Jan Campert (Holanda 1902 – 1943) Poeta, jornalista, crítico e escritor, durante a guerra Jan Remco Theodoor Campert foi preso em um campo de concentração, por ajudar judeus. Acabou falecendo ali, em 1943. Seu poema mais conhecido é De Achttien Dooden (Os Dezoito Mortos). O poema foi escrito em 1941 e publicado clandestinamente em 1943, em forma de cartão, para arrecadar dinheiro para ajudar crianças judias. Ele fala sobre a execução de dezoito holandeses (15 combatentes da resistência e 3 comunistas) pelas mãos dos ocupantes alemães. Os Dezoito Mortos Tradução de Marco Mackaaij Uma cela só tem dois metros de comprimento E mal dois metros de largura, Ainda menor é o talhão Que por enquanto não figura, Mas onde anônimo hei-de repousar, Um entre dezoito, Todos companheiros de lutar, Nenhum verá o cair da noite. Ó querida terra e querida luz Da costa holandesa independente, Com o inimigo a dominar-vos Nunca mais tive paz um só momento. O que pode um homem com lealdade honrosa Ainda fazer num tempo assim? Beija o seu filho, Beija a sua esposa E trava o combate mesmo assim. Sabia que seria um esforço oneroso Cumprir a tarefa desta iniciativa, Mas o meu coração teimoso Nunca do perigo se esquiva; Ele sabe que nesta terra já houve o uso De venerar-se a liberdade, Antes da mão do amaldiçoado intruso Ter tido outra veleidade. Antes daquele, que fanfarreia e juramentos desfez, Ter causado a náusea desta guerra E ter invadido o território holandês E ter saqueado a sua terra, Antes daquele, que invoca honra E tal germânica consolação, 73

Ter subjugado o nosso povo E ter pilhado como um ladrão. Agora o Caçador de Ratos de Berlim Flauteia a sua melodia; Tão certo como eu encontrarei meu fim E nunca mais verei minha amada Nem mais com ela partirei o pão Nem da cama dela terei o usufruto Rejeita tudo o que ele estende na mão Ou estendeu, esse passarinheiro astuto! Quem ler as seguintes palavras, tenha em mente A miséria dos meus companheiros, E dos seus mais chegados principalmente, No seu infortúnio sobranceiros, Tal como também nós temos recordado O próprio país e o próprio povo: É passageiro todo o céu carregado, Após cada noite nasce um dia novo. Vejo como demora o alvorecer Pela janela lá em cima Senhor, por favor alivia-me o morrer, E se por acaso falhei, Como qualquer um pode falhar, Tem misericórdia de mim, Para que possa ir como um homem Quando em frente aos canos me encontrar...

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Gyula Illyés (Hungria 1902 – 1983) Poeta, escritor e tradutor, Illyés desde jovem foi um engajado nos movimentos de esquerda na Hungria. Durante um período em Paris, trava amizade com os surrealistas franceses. A Segunda Guerra encontra-o como editor de uma das mais ilustres revistas literárias do país, a Nyugat (“Ocidente”). Em 1944 as forças de Hitler invadem a Hungria, e o poeta é obrigado a fugir. Já em 1945 retorna e tornase membro do Parlamento húngaro. Dois anos após afasta-se da política, dedicando-se somente à produção intelectual. O Vizinho Tradução de Zoltán Rózsa e Pedro Tamen Levaram e mataram o seu filho soldado. “Que fazer? Guerra é guerra!” E pegou no arado. Mas agora diz: “Basta!” “Mais não posso aguentar!” Vão levar amanhã os seus cavalos por exigência militar. Revolta-se agora? – pergunto mudo. E entendo então: algures no mais terrível e profundo, ele tem razão. 1943

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István Vas (Hungria - 1910-1991) Poeta, tradutor e ensaísta de origem judia, Vas foi aprisionado durante a Guerra no campo de concentração de Geza Ottlik, onde, em virtude das agruras terríveis do trabalho forçado, o autor tentou por diversas vezes o suicídio. Sobrevivente, Vas nos legou uma produção de dezenas de títulos, da poesia ao romance, passando por novelas, contos e ensaios. Mais do que a morte Tradução de Nelson Archer O tempo requintado de Tibério é tudo o que eu desejo ter de volta atualmente; a morte simples e inocente – sobretudo veneno ou veia aberta na banheira quente. Mas esta idade suja que me coube inclui do desinfetante às câmaras-de-gás. A mente enoja-se e eu vomitarei o seu repúdio – se a musa me ajudar – na cara do presente. Mais do que a morte, é seu caminho, todavia, que, feito cúmplice cruel da covardia, quer me aviltar, com sua sombra, o coração. Um carro zumbe. Nervos cedem. Quanto mal nos pode agora advir se, ao regime alemão, associar-se a canalhice nacional?

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János Pilinszky (Hungria - 1921-1981) Convocado para o exército húngaro em 1944, Pilinsky viu-se obrigado a seguir com o exército alemão, em sua retirada para a Alemanha. Durante sua estada no país, totalmente deslocado e perplexo em meio ao caos dominante, o poeta pôde presenciar a realidade de diversos campos de concentração, ainda em plena atividade, chegando a servir como guarda do campo de Ravensbrück. O poema abaixo reflete um pouco dessas experiências. Ganhador de vários prêmios, homossexual renitente, cristão, Pilinsky foi mais uma das almas marcadas para sempre pela Guerra. Paixão de Ravensbrück Tradução de Nelson Archer Sai das fileiras e detém-se no silêncio carregado. Vibram, como no écran, seu crânio raspado e as roupas de forçado. Está medonhamente só. Podem-se ver seus poros. Tudo de seu parece tão imenso. Tudo de seu – tão diminuto. Apenas isto. Quanto ao resto, o resto, nada singular, foi, antes de cair por terra, ter se esquecido de gritar.

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Miklós Radnóti (Hungria 1909 – 1944) O poeta e tradutor de ascendência judia Miklós Radnóti nasceu em Budapeste. Durante a guerra passou por diversas dificuldades, vindo a ser preso e enviado ao campo de concentração de Bor. Durante uma das chamadas Marchas da Morte, onde prisioneiros eram obrigados a deslocarem-se a pé por centenas e até milhares de quilômetros, Radnóti, já debilitado, foi por fim executado e sepultado em vala comum. Após a exumação de seu cadáver, em 1946, foi encontrado no bolso de seu casado um caderno com seus últimos poemas, publicados sob o título de Tajtékos ég (Céu Espumante). Abaixo, o poema que dá título ao livro.

Céu espumante Tradução de Nelson Ascher No céu que espuma, a lua oscila. Estar vivo me causa espécie. A morte assídua espreita a Idade: quem ela encontre, empalidece. O ano grita e depois desmaia. (Gritara olhando ao seu redor.) Que outono ronda-me de novo? Que inverno embotado de dor? Sangrava o bosque; mesmo as horas sangravam no vaivém dos dias. Ventos riscavam, sobre a neve, cifras enormes e sombrias. Já vi de tudo; o ar me esmaga com seu peso; um silêncio cresce ruidoso, cálido e me abraça como fez antes que eu nascesse. Detenho-me junto de um tronco que agita iroso as frondes plenas e estende um galho. Há de esganar-me? Não é fraqueza ou medo – apenas cansaço. Calo. E o galho apalpa os meus cabelos, mudo, aflito. Cabe esquecer – mas não há nada de que já tenha me esquecido. Espuma afoga a lua; o miasma estria os céus, verde e agressivo. Sem pressa, enrolo com cuidado o meu cigarro. Eu estou vivo.

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Razglednice* Tradução de Teresa Balté 1 Da Bulgária o selvagem troar dos canhões rola, ressalta na montanha, hesita, depois tomba; caos de animais, carroças, pensamentos e homens, relincha a estrada, erguendo-se, as crinas do céu correm. No meio do turbilhão és a minha constante, esplendeces no meu íntimo eternamente estática e muda como o anjo espantado ante a catástrofe, o inseto sepultando-se no seio podre da árvore. 1944. 30 de agosto. Nas montanhas. 2 A nove quilômetros daqui ardem casas e montes de feno, junto às terras camponeses assustados fumam cachimbo sentados em silêncio. Aqui os passos da pastorinha ainda encrespam a água do lago, bebe as nuvens reclinado sobre a água o frisado rebanho. Cservenka, 1944. 6 de outubro. 3 Da boca dos bois escorrem sangue e baba, os homens urinam todos sangue, a companhia é um caos fétido e atroz. Horrenda a morte sopra sobre nós. Mohács, 1944. 24 de outubro. 4 Eu caíra a seu lado, o seu corpo convulso era como uma corda tensa, pronta a estalar. Um tiro na nuca. – Terás igual destino, murmurei para comigo, - basta jazeres em paz. De cima soou – Der springt noch aug** Secavam na lama e sangue em minha orelha. Szentkirályszabadja, 1944. 31 de outubro.

*Bilhetes postais. Em servo-croata no original ** “Esse ainda se põe de pé.” Em alemão no original (N.T.) 79

Dylan Thomas (Inglaterra 1914 – 1953) O boêmio bardo galês Dylan Thomas, um dos maiores poetas de seu tempo, trocou a paz do País de Gales pela alvoroçada Londres durante a guerra, onde trabalhou escrevendo mensagens para a BBC. Seus problemas de saúde o haviam impossibilitado de engajar-se no serviço militar. Nos poemas aqui publicados, fica patente a forte impressão causada no poeta pelos bombardeios quase diários de que Londres era vítima. Traduções de Ivan Junqueira Cerimônia Após um Bombardeio I Aqueles que sou Os sofredores Sofrei Entre as ruas calcinadas pela morte infatigável De uma criança nascida há poucas horas Com a boca esmagada Carbonizada sobre o peito enegrecido do túmulo A teta da mãe, e os braços repletos de fogos. Começai Com o canto Cantai As trevas se iluminaram até o começo Quando a língua contraída pendeu cega, Uma estrela se esfacelou Nos séculos da criança Aqueles que sou agora sofremos, e os milagres nada podem resgatar. Perdoai Perdoai-nos Dai-nos Vossa morte para aqueles que sou os crentes Possam sustentá-la num grande dilúvio Até que o sangue germine, E a poeira cante como um pássaro Enquanto crescem as sementes, como cresce vossa morte, através de nosso coração.] Chorando Vossa morte Chorai, Criança além do canto do galo, junto à rua com anões de fogo 80

Cantamos o mar flutuante No corpo saqueado. O amor é a última luz falada. Oh Semente de filhos no dorso da negra casca abandonada. II Não sei se Adão e Eva, Ou o engalanado touro sacro Ou as brancas ovelhas Ou a virgem eleita Estendida em sua neve Sobre o altar de Londres, Foi o primeiro a morrer Na cinza da efêmera caveira Oh noiva e noivo Oh Adão e Eva unidos Que repousam em calma Sob o triste peito da lápide Branca como os ossos Do jardim do Éden. Sei que a lenda de Adão e Eva Não é jamais para um segundo Silencioso em meus ofícios Sobre os meninos mortos Sobre a única criança Que foi sacerdote e servos, A palavra, os cantores e a língua Na cinza da efêmera caveira, Que foi o anoitecer da serpente E o fruto como um sol, O homem e a mulher inacabados, O começo que desaba junto às trevas Desnudo como os berçários Do jardim do deserto. III Dentro dos órgãos e dos campanários Das luminosas catedrais, Dentro das bocas dos cata-ventos derretidos Ondulando nas órbitas dos doze ventos, No relógio morto que corrói a hora Sobre a urna dos sabás Sobre a vala rodopiante da aurora Sobre o alpendre do sol e os estrondos do fogo E as calçadas de ouro estendidas nos réquiens, Nos caldeirões da estatuária, 81

Dentro do pão num trigal em chamas, Dentro do vinho que queima como aguardente, As missas do mar As missas do mar sob as missas Do mar que procria meninos Irrompem como fontes e começam a pronunciar para sempre Glória glória glória O dilacerante e último reino do trovão da gênese.

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Entre os mortos num bombardeio ao amanhecer havia um homem de cem anos Quando a manhã despertava sobre a guerra, Ele vestiu as calças e caminhou para a morte, Suas madeixas bocejaram soltas e uma rajada de vento as dispersou, Tombou onde amava, sobre as pedras arrancadas à calçada E as fúnebres sementes do solo massacrado. Dizei à sua rua lá no fundo que ele deteve um sol E que da cratera de seus olhos brotaram fogos e balaços Quando todas as chaves saltaram das fechaduras e retiram. E não mais escaveis em defesa das algemas de seu grisalho coração. A ambulância celeste arrastada por uma constelação de chagas Aguarda o tinir da espada na gaiola. Oh retirai seus ossos desse veículo banal, A manhã está voando com as asas de sua idade E uma centena de cegonhas pousa na mão direita do sol.

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Edith Sitwell (Inglaterra 1887 – 1964) Filha da aristocracia inglesa, a mais velha dentre três irmãos (seus dois irmãos, Osbert e Sacheverell, também se notabilizaram como escritores), Edith Sitwell foi poeta e crítica literária. Com a eclosão da guerra, Sitwell, que então residia na França, retornou para a Inglaterra. A guerra acabou servindo de inspiração para muitos de seus poemas, inclusive aquele que talvez seja seu texto mais conhecido, o belíssimo Still Falls the Rain (Ainda Cai a Chuva), aqui publicado. AINDA CAI A CHUVA Tradução de C. Ronald (Bombardeio aéreo, 1940. Noite e alvorecer) Ainda cai a chuva Sombria como o mundo do homem, negra como a nossa perdição... Cega como os 1940 pregos Batidos na Cruz. Ainda cai a chuva Com som igual ao do coração transformado na batida do martelo Fora do Campo Santo e os ímpios passos ouvidos No Túmulo: Ainda cai a chuva No Campo de Sangue onde as pequenas esperanças se multiplicam e o cérebro humano Alimenta sua ambição de verme com a cara de Caim. Ainda cai a chuva Aos pés do Homem Agonizante pendurado na Cruz. Cristo cada dia, cada noite, pregado lá, tem misericórdia de nós De Dives e de Lázaro: Debaixo de chuva a ferida e o ouro são um só. Ainda cai a chuva Escorre o sangue do lado alanceado do Homem Desfalecido: Ele carrega em Seu Coração todas as feridas – aquelas da luz extinta A última faísca esmaecida No próprio assassinado coração, as feridas da triste e inacessível escuridão. Nas feridas do urso acossado, - o cego e gemente urso açoitado pelos guardas na sua desamparada carne As lágrimas da lebre perseguida.

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Ainda cai a chuva Por isto saltarei para Deus que me abate Olha, olha como o Sangue de Cristo jorra no firmamento: Flui do semblante profundo que pregamos na árvore Até o sedento coração morrer aprisionando os fogos do mundo Escura mancha com aflição Como a coroa laurel de Cesar. Então a voz de alguém soa semelhante À do coração do homem que foi outrora Uma criança no convívio dos brutos: “Ainda amo, ainda verto minha inocente luz E meu Sangue por ti.”

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Keith Douglas (Inglaterra 1920 – 1944) Morto com apenas 24 anos, Keith Douglas já despertara atenção na Inglaterra com seus poemas, antes da Guerra. Alistado no Exército inglês, serviu como comandante de tanques no Norte da África, experiência que o levou a escrever o singular livro de memórias Alamein to Zem Zem (publicado em 1946), cujos poemas vieram a sagrá-lo como um dos maiores war poets da Segunda Guerra Mundial. Foi morto em combate durante o desembarque na Normandia. Traduções de Matheus “Mavericco” COMO MATAR Sob a parábola da bola, meninos nunca mais inocentes. Só em ver o ar eu me punha. A bola cai, canta no punho fechado: Abre É presente Abre É pra morrer na bala. Agora, no mostrador, olho o soldado próximo do óbito. Ele sorri, anda em estradas que a mãe sabe, já habituado. O arame vai na cara: grito JÁ. A morte, amiga, acolhe os Homens de pó de carne e osso desfeitos. Esta bruxaria eu faço. Maldito, ocupado em olhar o amor espalhado e a onda amorosa em vacância. Tão fácil criar um monstro. O mosquitinho aterriza sua sombra na pedra, e quão parecido, quão imenso que se encontrem sombra e homem. Fundem-se. Sombra é homem tão logo o mosquito-morte aproxima

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VERGISSMEINNICHT Dias idos, idos os soldados, voltando num solo fantasmático voltamos pro lugar e o espasmo de novo encontramos do soldado. O cano da arma, escurecido. E enquanto seguíamos em frente ele me pegou de repente como demônio introduzido. Veja, veja. Na barreira. Isto: uma foto da namoradinha escrito: "Steffi. Vergissmeinnicht." num texto gótico feito a punho. Podemos vê-lo quase contente, abatido, tendo pago o preço de seu fuzil ainda quente mesmo com ele desse jeito. Mas ela choraria se olhasse as moscas sobre sua carcaça; o pó no papel e a face queimada, agora uma fossa. Pois aqui amante e assassino têm um só corpo e coração. E a morte, que o deixou sozinho, apenas o matou de paixão.

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W.H. Auden (Inglaterra/EUA 1907 – 1973) Nascido em 1907, em York, W.H. Auden foi um dos maiores poetas de sua rica geração. Em 1939, data do poema aqui publicado, Auden muda-se para os EUA, vindo anos depois a naturalizar-se cidadão americano. Em seus poemas anteriores à Guerra, já denunciava, com sua característica voz profética, a ascensão dos totalitarismos na Europa. 1.º de setembro de 1939 Tradução de Benedicto Ferri de Barros Incerto e temeroso sento-me a um dos parapeitos da 52.ª Avenida quando falecem as espertas esperanças de uma década baixa e desonesta: ondas de ira e medo circulam sobre as brilhantes e sombrias terras do planeta obsedando nossas vidas. O inominável cheiro da morte conspurca a noite de setembro. Estudos acadêmicos precisarão o fatal erro que enlouqueceu uma cultura desde Lutero aos nossos dias, revelarão o acontecido em Linz, que imago enorme engendrou um deus psicopático. O povo e eu sabemos o que as crianças aprendem nas escolas: quem faz o mal recebe-o de volta. Tucídides exilado sabia tudo o que dizer se pode sobre a democracia, o que esperar de ditadores, o lixo que revolvem de um túmulo apático. Tudo está em seu livro. A racionalidade repelida a inculcação de hábitos malversações e luto – por tudo isso teremos de passar de novo. Neste ar neutro em que arranha-céus se elevam cegos para o céu a fim de proclamar a força do Homem Coletivo, em cada língua se proclamam desculpas conflitantes. 88

Quem entretanto pode viver indefinidamente num sonho eufórico? O espelho nos devolve a face do imperialismo, do erro universal. No bar, se aferram os rostos aos rictus rotineiros. Devem as luzes continuar acesas e a música tocando. As convenções se mancomunam para que a fortaleza conserve a aparência de um lar. Para que não vejamos em que lugar nos encontramos: numa assombrada floresta como crianças assustadas em noites que não são boas e muito menos felizes. Personagens importantes nos afirmam que o lixo de hordas militantes é menos rijo que somos; o que o louco Nijinsky disse de Diaghilev é a verdade sobre todo ser humano, pois o erro medular de cada homem e mulher aspira não a querer amor universal mas ao que não pode ter: de ser amado sozinho. Do lado conservador a onda dos comutantes invade a vida moral com sua prece matinal: “Serei fiel à esposa Me esforçarei no trabalho.” Os chefes atarantados pelas manhãs reassumem sua rotina habitual. Quem pode desonerá-los? quem pode falar aos surdos? e pelos mudos falar? Nosso mundo estuporado jaz indefeso na noite. Contudo, pontos de luz cintilam por toda a parte onde quer que haja um justo emitindo sua mensagem. 89

Só de amor e poeira como eles feito, eu possa a eles juntar-me e sitiado por iguais negação e desespero, só de amor e poeira compor um raio de luz.

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Giuseppe Ungaretti (Itália 1888 – 1970) Grande nome do hermetismo italiano, durante a juventude Ungaretti lutou como soldado na Primeira Guerra Mundial, fato que marcou sua literatura. Quando da eclosão da Segunda Guerra, o poeta estava no Brasil, onde lecionava Literatura na USP. Em 1942 retorna à Itália. Os versos aqui publicados são de “Roma Ocupada”, parte do livro Il Dolore (A Dor - 1942-1945, publicado em 1947), e retratam o sofrimento e sentimento de vazio do poeta em face à cidade de Roma ocupada pelas tropas nazistas. Traduções de Aurora F. Bernardini Meu Rio Tu Também 1 Meu rio tu também, Tibre fatal, Ora que a noite perturbada escorre; Ora que persistente E como a custo irrompido da pedra Um gemido de ovelhas se propaga Perdido pela estrada apavorada; Pois a espera sem descanso do mal, Dos males o mais cruel, Pois a espera do mal imprevisível Entrava ânimo e passos; Que infinitos soluços e estertores Regelam casas, indivisas covas; Agora que a noite corre já lanhada, Que a cada instante somem de repente Ou receiam a ofensa tantos signos Vindos, quase formas divinas, a luzir Pela ascensão de milênios humanos; Ora que já assolada corre a noite, E quanto um homem pode sofrer sei; Agora, enquanto escravo O mundo de abismal pena sufoca; Ora que insuportável o tormento Desata entre os irmãos ira mortal; Ora que ousam dizer Os meus blasfemos lábios: “Cristo, pulsar absorto, Por que de nós tão longe Tua bondade?” 2 Ora que ovelhinhas com carneiros Desnorteiam-se atônitas, e nas ruas Que já foram urbanas, se desolam; 91

Ora que um povo prova Depois dos raptos das emigrações, A estultice iníqua Das deportações; Agora que nos fossos Com fantasia retorta E mãos despudoradas Das humanas feições o homem lacera A imagem divina E a piedade contrai-se em grito pétreo; Agora que a inocência Um mero eco reclama, E geme até no coração mais duro; Quando soam em vão os outros gritos, Na noite triste vejo claramente. Na noite triste eu aprendo agora, Sei que o inferno se exibe sobre a terra À medida de quanto O homem se subtrai, insano, À pureza da Tua paixão. 3 Chaga no coração Soma de tanta dor Que vai espalhando sobre a terra o homem; Teu coração é a apaixonada sé Do amor não frustro. Cristo, pulsar absorto, Astro encarnado nas humanas trevas, Irmão sempre imolado Perenemente para edificar Humanamente o homem, Santo, Santo que sofres, Mestre, irmão, Deus pai de nós, os débeis, Santo, Santo que sofres Para livrar da morte os mortos E sustentar-nos, infelizes vivos, De um pranto que é só meu não mais pranteio, Eis que Te chamo, Santo, Sofrente Santo.

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Nas Veias Nas veias quase túmulos vazios O desejo ainda galopante, Em meus ossos o congelado cerne, Na alma a saudade surda, A indomável nequícia, dissolve; Do remorso, latido interminável, No escuro indescritível Terrível clausura, Resgata-me, e teus cílios piedosos Do longo sono, soçobra; Teu signo róseo de improviso, Mente geratriz, remonte E retorne a surpreender-me; Ressuscita, inesperada Medida incrível, paz; Faz, na aérea paisagem, com que eu possa Ressilabar as ingênuas palavras.

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Primo Levi (Itália 1919 – 1987) Judeu de origem italiana, Primo Levi participou da resistência anti-fascista na Itália. Capturado pela milícia fascista, acabou prisioneiro em Fossoli, sendo depois transferido para Auschwitz, de onde foi libertado pelo Exército Vermelho. Dedicouse à memorialística, mas também à prosa de ficção e poesia. O poema aqui publicado está incluído no livro Se Isto É um Homem, que o autor terminou de escrever em 1946, sendo este seu principal livro de memórias. Vós que viveis tranquilos Tradução de Simonetta Cabrita Neto Vós que viveis tranquilos Nas vossas casas aquecidas, Vós que encontrais regressando à noite Comida quente e rostos amigos: Considerai se isto é um homem Quem trabalha na lama Quem não conhece a paz Quem luta por meio pão Quem morre por um sim ou por um não. Considerai se isto é uma mulher, Sem cabelo e sem nome Sem mais força para recordar Vazios os olhos e frio o regaço Como uma rã no Inverno. Meditai que isto aconteceu: Recomendo-vos estas palavras. Esculpi-as no vosso coração Estando em casa, andando pela rua, Ao deitar-vos e ao levantar-vos; Repeti-as aos vossos filhos. Ou que desmorone a vossa casa, Que a doença vos entrave, Que os vossos filhos vos virem a cara.

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Salvatore Quasímodo (Itália 1901 – 1968) Laureado com o Nobel em 1959, Quasimodo desde muito jovem foi impressionado pelo espetáculo do sofrimento humano, que vivenciou na cidade de Messina, onde foi morar com sua família um dia após um terremoto que arrasou a cidade, em 1908. Foi engenheiro, profissão que abandonou para tornar-se professor e dedicar-se à literatura. Também tradutor, verteu diversos clássicos para o italiano. Durante a guerra, o poeta preferiu apegar-se aos sofrimentos do povo. Após o conflito a sua poesia voltou-se para expressar os horrores da guerra e do regime fascista. Traduções de Sílvio Castro MILÃO, AGOSTO DE 1943 Em vão perscrutas o pó, pobre mão, a cidade é morta. É morta: ouviu-se o último rombo no coração do Naviglio. E o rouxinol despencou da antena, alta no convento, onde cantava antes do pôr-do-sol. Não escaveis poços nos pátios: os vivos não têm mais sede. Não toqueis os mortos, tão vermelhos, tão inchados, deixai-os no chão de suas casas: a cidade é morta, é morta.

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CÂNTICOS 29 de Abril de 1945 FILHO - E por que, mãe, cospes num cadáver que prende com a cabeça baixa, atado pelos pés às traves? E não te dão náusea os outros baloiçantes ao lado? Ah! aquela mulher, as suas meias de can-can macabro e garganta e boca de flores amassadas! Não, mãe, para; grita à multidão que vá embora. Não é lamento, é escárnio, é alegria: já se grudam as moscas aos nós das veias. Atiraste contra aquele rosto, agora: mãe, mãe, mãe! MÃE - Sempre cuspimos sobre cadáveres, filho: presos às grades de janelas, a mastros de navios, feitos cinzas em nome da Cruz, despedaçados pelas feras por um pouco de erva dos feudos. E fosse solidão ou tumulto, olho por olho, dente por dente, após dos mil anos de eucaristia, o nosso coração desejou aberto o outro coração que já abrira o teu, filho. Te arrancaram os olhos e tuas mãos te quebraram na procura do nome a trair-se. Mostra-me os olhos, dá-me aqui tuas mãos: morreste, filho! Porque morreste podes perdoar: filho, filho, filho! FILHO - Este mormaço repugnante, esta fumaça de escombros, as gordas verdes moscas bagas sobre ganchos: a ira e o sangue gotejam justamente. Não por ti e nem por mim, mãe: olhos e mãos ainda me furarão amanhã. Desde séculos a piedade é o urro do assassinado.

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AUSCHWITZ Lá longe, em Auschwitz, distante do Vístula, querida, pela planície nórdica, em um campo de morte: fria, fúnebre, a chuva sobre a ferrugem dos postes e sobre os nós de ferro dos recintos: e nem uma árvore ou pássaros no ar gris ou em nossos pensamentos, apenas inércia e dor, que a memória deixa ao seu silêncio sem ironia ou ira. Tu não queres elegias, cânticos: somente razões da nossa sorte, aqui, tu, suave nos contrastes do espírito, incerta a uma presença clara da vida. E a vida está aqui, em cada não que semelha uma certeza: aqui ouviremos chorar o anjo, o monstro, e nossas horas futuras soar o além, que está aqui, em eternidade e em movimento, não na imagem de sonhos, de possível piedade. E aqui as metamorfoses, aqui os mitos. Sem nomes de símbolos ou de um deus, eles são a crônica, os lugares da terra, são Auschwitz, querida. Como instantânea em fumaça de sombra, se fez o caro corpo de Alfeu e de Aretusa! Daquele inferno aberto por uma escrita branca: “O trabalho vos fará livres” saiu o contínuo fumo de milhares de mulheres, atiradas à alva fora dos canis contra o muro do tiro ao alvo ou sufocadas urrando misericórdia à água com a boca esquelética sob as duchas a gás. Tu, soldado, as encontrarás na tua história, em forma de rios, de animais, ou és tu também cinzas de Auschwitz, medalha de silêncio? Ficaram longas tranças fechadas em urnas de vidro, ainda atadas com amuletos e sombras infinitas de pequenos sapatos e de mantas de hebreus: são relíquias de um tempo de sapiência, de ciência do homem que se faz medida de armas, são os mitos, as nossas metamorfoses. Nas vastidões, onde amor e pranto 97

e piedade apodreceram, lá longe sob a chuva, pulsava um não dentro de nós; um não à morte, morta em Auschwitz, para não repetir, daquele ninho de cinzas, a morte.

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Sadako Kurihara (Japão 1913 – 2005) Sobrevivente da explosão atômica em Hiroshima, a poeta Sadako Kurihara dedicou sua poesia a denunciar as mazelas da guerra e do uso de armas de destruição em massa. Chegou a ser censurada durante o período de ocupação americana no pósguerra. Dizendo “Hiroshima” Poderia ao dizer-se “Hiroshima” jamais elucidar com paixão “Oh, Hiroshima”? Dizer “Hiroshima” levanta respostas a “Pearl Harbor,” “O massacre de Nanjing,” “Brutais execuções em Manila, mulheres, crianças, amontoadas como animais em trincheiras, encharcadas com gasolina, e queimadas vivas.” Reações a quando se diz “Hiroshima” reverberam com fogo e sangue. Diz-se “Hiroshima” e ninguém se simpatiza. Ao invés, a fúria dos asiáticos, agora sem voz, mortos e violados, aparece. Se temos o desejo de sentir compaixão quando se diz “Hiroshima” Temos que de fato baixar nossas armas. Temos que remover as bases militares estrangeiras. Mas até que esse dia venha, Hiroshima evocará a amargura da crueldade e desconfiança, e nós seremos como marginalizados de uma sociedade, queimando em energia atômica. Para nós, japoneses, Ouvirmos um apaixonado “Oh, Hiroshima”, É necessário, primeiro, Purificar nossas mãos sujas.

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Deixemos vir a nova vida Foi uma noite inteira em um porão de um prédio incendiado Pessoas feridas pela bomba atômica encontraram abrigo lá, enchendo-o. Passaram a noite na escuridão, nem mesmo uma única vela havia. O cheiro de sangue, ainda fresco. Cheiro forte de morte. O calor do corpo e o odor desagradável de suor. Gemidos. Milagrosamente, no meio da escuridão, soa uma voz: “O bebê está nascendo!”. Naquele porão, nos lugares mais profundos do inferno, uma jovem estava agora dando à luz. Que fariam eles, sem um único fósforo que fosse para iluminar a escuridão? As pessoas esqueceram seu próprio sofrimento e fizeram o que podiam. Uma mulher gravemente ferida que estivera gemendo momentos antes disse: “Sou enfermeira. Deixe-me ajudar a fazer o parto!”. Então uma vida nasceu lá no fundo, na profunda escuridão do inferno. Após sua missão, a enfermeira nem mesmo chegou a ver a luz do sol. Morreu, ainda coberta de sangue. Deixe a nova vida nascer! Ainda que custe a minha. Deixe a nova vida nascer!

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Tamiki Hara (Japão 1905 – 1951) Nascido em Hiroshima, Tamiki Hara foi escritor, poeta e professor de inglês. Perdeu a esposa em 1944, vítima de tuberculose. Em 1945 resolve retornar à casa dos pais em Hiroshima (cidade que havia deixado para dar aulas) e acaba presenciando a explosão atômica. Sobrevivente, doravante os temas da bomba e da morte da esposa serão dominantes em sua literatura. Flores de Verão (Natsu no Hana), escrito em 1946, é seu livro mais conhecido. O poeta suicidou-se em 1951. Isto É um Ser Humano Tradução de Diogo Kaupatez Isto é um ser humano note como a bomba atômica o transforma o corpo horrivelmente inchado homens e mulheres de volta à forma original dos lábios intumescidos do rosto purulento e esturricado escapa a voz “socorro…” palavra débil, inaudível isto é isto é um ser humano um ser humano

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Hirsh Glick (Lituânia 1920 – 1944) Judeu lituano, Glick fez parte da resistência instalada no Gueto de Vilna, onde escreveu o famoso hino Não Digas Nunca (Zog Nit Keinmol), e de cujas ruínas foi resgatado o texto aqui publicado. Capturado, foi morto pelos nazistas ao tentar escapar de um campo de concentração, em 1944. A Balada do teatro pardo: Espetáculo no cárcere de Lubick Tradução de Jacó Guinsburg Ilumina a ribalta, Pai Shakespeare! Para a nova arte de uma nova Europa. E apronta – ó mundo – os teus ouvidos surdos para escutar esta balada. Vai começar o espetáculo... Sem cenários nem cartazes, por trás de muros e grades, desenrola-se o ato que inicia o nosso drama – Abraçada por um negro cavalheiro uma dama, branca como a neve, ordena ao público que respira opresso: Achtung! Atenção, fileira de mortos! Que se apresente, sem murmúrios, nem clamores, o mais jovem dos defuntos... E que cante o hino “Horst Wessel” e o auditório profira o juramento: sobre o que iremos ver e ouvir até o galo em seu canto calará! Achtung! Alerta, fileiras e mortos! Onde está o mais jovem dos defuntos? Quem cantará o “Horst Wessel”? Surgem da cela, no fundo, sete defuntos, com taletim e mortalhas, e param junto à parede com uma vela acesa em cada mão... Os olhares do povo se cruzam, e impelidos pela febre, retornam para a dama – olhos de pais, olhos de mães, mil corações palpitando. 102

Todos buscam suas pupilas. E ela balouça a corda, esperando. Quem for atingido pelo seu olhar agudo nunca mais retornará... Balouça-se esperando a corda... A lua dependura-se nas grades: faces macilentas, rostos cor de mate... E tateia com seus dedos pálidos alguém que da massa se aparta... É uma loira criatura, de cujos olhos azuis pendem gotas de orvalho. U’a mãe judia a teria amamentado? A lua tateia com seus dedos pálidos e de sombrio aglomerado elege a mulher. Eis que o luar percebe um ventre intumescido... Avistam-no também a dama e o cavalheiro. A dama não se perturbando golpeia a parede e clama por parteiros: “Um comunista está nascendo! E ele cantará o ‘Horst Wessel’, e será o primeiro dos defuntos”. Ressoam sete vezes entoando: “Alemanha, Alemanha acima de tudo”. Trajes de mortos esvoaçam... Cai o pano do teatro. No intervalo saltaram num dó ato os miolos da cabeça e do ventre as entranhas. Para satisfazer uma necessidade humana, o público pagava com joias e com ouro e moedas estrangeiras... A vida corria a preço de um níquel e um gole de água custava... um anel de casamento. O guarda tinha um aparelho que de fezes fazia pão à vontade: é o balde de imundícies. E duas servas ele empregou que as renovam sem cessar. Os judeus tem joias e roupas e o guarda desenvolve o negócio com um lápis e um caderno.

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Czeslaw Milosz (Polônia 1911 – 2004) Filho de poloneses, Milosz nasceu na Lituânia, onde passou parte da juventude. Retornou à Polônia para os estudos, depois indo para Paris. Durante a Segunda Guerra entrou na clandestinidade, juntando-se à resistência polonesa e escrevendo poemas contra a ocupação nazista. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1980. Campo di Fiori Em Roma, em Campo di Fiori Cabazes de limões e azeitonas, O pavimento salpicado de vinho E de restos de flores. Os feirantes despejam nas bancas róseos mariscos, Braçadas de uva preta Caem sobre a penugem dos pêssegos. Justamente aqui, nesta praça, Foi queimado Giordano Bruno. O carrasco acendeu a fogueira No meio da gentalha curiosa. E mal o lume se apagou, Tornaram a encher-se as tabernas, Os cabazes de limões e azeitonas De novo à cabeça dos feirantes. Recordei Campo di Fiori Junto de um carrossel em Varsóvia, Numa serena tarde primaveril, Ao som da música saltitante. A melodia saltitante abafava As salvas por trás do muro do ghetto. E os casais voavam alto No céu limpo. O vento das casas em chamas Trazia negros papagaios de papel, Apanhava pétalas no ar Quem ia no carrossel. Levantava as saias às raparigas Este vento das casas em chamas E riam-se as multidões alegres Num lindo domingo de Varsóvia. Talvez se tire por moral da história Que o povo romano ou varsoviano Negoceia, diverte-se e ama Enquanto ardem piras martirizantes. 104

Talvez haja outra moral Que são fugazes as coisas humanas Que o esquecimento surge, Mesmo antes do fogo se apagar. Mas eu pensava então Na solidão dos que pereciam E em Giordano Que ao subir para o estrado Não encontrou na língua humana Nem uma palavra que fosse Com que se despedir da humanidade, Desta mesma que perdura. Já corriam a beber o vinho, A vender as estrelas do mar, A carregar na balbúrdia alegre Os cabazes de limões e azeitonas. Ele já estava muito distante deles, Como se tivessem passado séculos, Porém, apenas demorou um instante Vê-lo voar entre as chamas. Aqueles que morrem, solitários, Já esquecidos pelo mundo, Estranham a nossa língua, Como se fosse de um planeta antigo. Mas um dia tudo será lenda, E então, muitos anos volvidos, Num novo Campo di Fiori A palavra do poeta ateará a revolta.

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Zbigniew Herbert (Polônia 1924 – 1998) Poeta, ensaísta e dramaturgo polonês ligado às vanguardas, Herbert começou a escrever aos 17 anos, em plena Segunda Guerra. Logo se integrou à resistência polonesa. Após a Guerra, seguiu escrevendo e crescendo em importância, sendo considerado um dos grandes autores poloneses do século XX, ao lado de Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska. Traduções de Sylvio Fraga Neto e Danuta Haczynska da Nóbrega 17 DE SETEMBRO¹ Meu país indefeso te receberá invasor e o caminho de João e Maria não se abrirá num abismo Nossos rios sonolentos não são dados a enchentes nas montanhas os guerreiros adormecidos seguirão dormindo e você entrará sem problema hóspede indesejado Mas à noite os filhos da terra se reúnem tolos carbonários conspiradores da liberdade vão limpar suas armas de museu e jurar diante de um pássaro e duas cores² Depois como sempre o fogo e explosões jovens camuflados e comandantes insones macas encharcadas de derrota campos rubros de glória o alento de saber que estamos sós Meu país indefeso te receberá invasor te dará um pedaço de terra sob um salgueiro - e paz para ensinar mais uma vez àqueles que virão o dom mais difícil - perdoar os pecados

N.T.: ¹ Em decorrência do pacto entre Hitler e Stálin, o Exército Vermelho invadiu a Polônia em 17 de setembro de 1939 e anexou suas províncias do leste. Em 1º de setembro, tropas nazistas haviam ocupado o oeste do país. ² Figura da bandeira polonesa. 106

ABANDONADO 1 Cheguei tarde demais para a última condução fiquei na cidade que não é uma cidade sem matutinos sem vespertinos não há prisão relógio nem água aproveito um tempo fora do tempo faço longas caminhadas por avenidas de prédios queimados avenidas de açúcar de vidros quebrados de arroz poderia escrever um tratado sobre a transformação abrupta da vida em arqueologia 2 há um silêncio terrível a artilharia nos subúrbios se perdeu na própria coragem às vezes não se escuta nada além do eco das paredes que restam e o trovão leve das lages ao vento há um silêncio terrível que precede a noite do predador às vezes 107

um avião absurdo surge no céu joga folhetos demandando rendição eu adoraria me render mas não tenho a quem 3 no momento estou no melhor hotel um porteiro morto se mantém no posto saio de uma pilha de entulho e ando direto até o primeiro andar para dentro do quarto da ex-amante do ex-delegado durmo numa cama de jornal me cubro com um pôster que promete a grande vitória no bar ainda há remédio para solidão garrafas de liquido dourado e um rótulo simbólico -Johnnie com um aceno da cartola se manda para o oeste não culpo ninguém por estar abandonado minha sorte acabou a mão certa não vem no teto a lâmpada lembra uma caveira de ponta-cabeça aguardo os vencedores brindo aos derrotados brindo aos desertores 108

me livrei das idéias macabras até o pressentimento da morte me abandonou

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CINCO HOMENS 1 Eles os levam para fora de manhã para o pátio de pedra e os botam contra a parede cinco homens dois muito jovens os outros de meia-idade nada mais pode se dizer sobre eles 2 quando o pelotão ergue as armas tudo se revela de repente na luz invasiva do óbvio a parede amarela o azul gelado o fio preto na parede em vez de um horizonte esse é o momento em que os cinco sentidos se rebelam fugiriam felizes como ratos de um naufrágio antes da bala chegar o olho percebe o voo do projétil o ouvido capta um rumor metálico as narinas se enchem de fumaça amarga uma pétala de sangue roça o céu da boca o tato se encolhe e depois afrouxa agora eles estão caídos na pedra cobertos até os olhos com sombra o pelotão vai embora seus botões correias e capacetes de aço mais vivos do que os homens caídos ao pé da parede 3 Não aprendi isso hoje 110

já sabia faz tempo então por que tenho escrito poemas sem importância sobre flores o quê os cinco conversavam na noite antes da execução sobre sonhos proféticos sobre a ida a um bordel sobre peças de carro sobre uma viagem no mar sobre quando ele tinha copas e apostou errado sobre como vodka é melhor vinho dá dor de cabeça sobre garotas sobre frutas sobre a vida assim pode se usar na poesia nomes de pastores gregos pode-se tentar a cor do céu da manhã escrever sobre amor e também uma vez mais com toda sinceridade oferecer ao mundo traído uma rosa

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Paul Celan (Romênia 1920 – 1970) Um dos maiores poetas do pós-guerra, Paul Celan teve toda a sua vida e obra marcadas pelo tição do horror nazista. Romeno de língua alemã e ascendência judia, durante a guerra, com a aliança entre Romênia e Alemanha, seus pais foram enviados a um campo de concentração, onde morreram. Também enviado a um campo, Celan conseguiu fugir em 1944, com o avanço das tropas russas. Data deste ano a circulação de primeira versão do poema Todesfuge (Fuga da Morte). O poeta suicidou-se em 1970. Fuga da Morte Tradução de Modesto Carone Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado Um homem mora na casa bole com cobras escreve escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra ordena-nos agora toquem para dançar Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos Um homem mora na casa e bole com cobras escreve escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha 112

eu cabelo de ouro Margarete teu cabelo de cinzas Sulamita

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Jaroslav Seifert (Thecoslováquia 1901 – 1986) O poeta, escritor e jornalista Jaroslav Seifert foi um dos mais destacados autores tchecos do Séc. XX, tendo recebido o Prêmio Nobel em 1984. Em 1938 prenunciou a guerra que estava por vir em seu livro Zhasnete Svetla (Apaguem as Luzes). Seguiu publicando durante o conflito, e em 1945 escreve Prilba Hlíny (O Capacete de Barro), obra que buscava inspirar os tchecos à sublevação contra os nazistas que se retiravam, e que lhe deu grande fama, alçando-o ao título de Poeta Nacional. O poema aqui publicado faz referência ao chamado Massacre de Lídice, quando toda uma vila tcheca foi exterminada, como vingança pelo assassinato do sanguinário Reinhard Heydrich, segundo em comando das SS, e que fora morto por membros da resistência checa. Os homens da vila foram fuzilados e mulheres e crianças enviadas para campos de concentração, e a cidade foi dinamitada e depois aplanada com tratores, para cumprir o desígnio de Hitler de “varrê-la do mapa”. Os mortos de Lídice A andorinha não encontrou seu teto, Solta gritos de queixa, erra Só há árvores negras, cá como lá Cetros quebrados jorram da terra E vocês, com o calcanhar na terra para o passo final, Quando o caminho deságua na beira do precipício, Vocês entram na sombra de braços abertos, Como semeadores diante de sulcos vazios. Ao menos a cotovia retorna para vê-los Mais perto de vocês ela ouve melhor O que somente os pássaros compreendem bem Tu ouvirás talvez, em sua mensagem, Cantar a terra que sacia o fundo As bocas ainda cerradas de ira Cantar a lápide deitada perto da trincheira E os silêncios que sobre os seus nomes tombaram Cantar a angústia dos tempos de raptos Cantar o choro de lábios que brilham Quando se desejava ser demente Mas faltava tempo para a loucura Cantar o terror ancorado no fundo do olhar Quando vossas mulheres se colaram às portas Como o náufrago se agarra a haste incerta Já sem rumo para sua esperança morta Cantar o instante de calmaria sublime Quando resta um único suspiro Cantar o esplendor de um povo glorioso Sobre cujas tumbas vossos passos vão ecoar Como outrora, lá ergue-se o cântigo Da cotovia, ó calma eternidade 114

As rosas, as melancólicas rosas, Mesmo elas foram pisoteadas

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Margarita Aliguer (URSS 1915 – 1992) Poeta, tradutora, bibliotecária e jornalista, Margarita Aliguer escreveu em diversos jornais durante a Segunda Guerra. Vencedora do Prêmio Stálin em 1943.

De Primavera em Leningrado Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman No curso daquele longo inverno você repetia, voz serena, esmagando-lhe a treva de ferro: "Resistiremos. Somos de pedra". Estreitava-se o anel venenoso. O inimigo sempre mais chegado. Podíamos vê-lo rosto a rosto, feroz, como fazem os soldados. Leningrado sem luz e sem água! Rações de pão: cento e vinte gramas... Como animal ferido o céu gane, céu mortiço, nuvens estagnadas. As pedras suspiram, ...............................lajes ringem, e a gente encontra forças e vive. Os mortos se empilham, um a um, guerreiros numa cova comum. Afinal cansou-se o próprio inverno. Os turvos horizontes se abriram. E surgem casas negras do inferno das bombas. Mortas. Não resistiram. E vamos nós dois passando pontes sob a asa triunfal de maio, você se alegrava sem dar conta do porquê desse sentir-se gaio. Uma nuvem mostrou-se no alto, uma brisa esfriou-nos os lábios. Falávamos ambos num sussurro do tempo passado e do futuro. Vadeamos uma longa treva, passamos pelas balas em crivo: Você dizia: "somos de pedra". É mais do que pedra. ...............................Estamos vivos. 1942

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Marina Tzvietáieva (URSS 1892 – 1941) A poeta e tradutora Marina Tzvietáieva teve sua vida e poesia marcadas pelo trágico. Em 1922 exilou-se com a família em Praga, fugindo da Revolução Russa. Em 1939 tomam a decisão que custaria a vida de quase toda a família: o retorno à URSS. Aprisionado junto com a filha Ariadna ainda em 1939, em 1941 seu marido é fuzilado. Marina, mal vista pelo Regime, não consegue emprego nem moradia. Sua outra filha, Irina, é enviada para um orfanato, onde morre de fome. Com o início da Guerra, Marina foi evacuada para a cidade de Ielabya, aonde veio a suicidar-se. Tomaram... Tradução de Augusto de Campos "Os tchecos se acercavam dos alemães e cuspiam." (Cf. jornais de março de 1939) Tomaram logo e com espaço: Tomaram fontes e montanhas, Tomaram o carvão e o aço, Nosso cristal, nossas entranhas. Tomaram trevos e campinas, Tomaram o Norte e o Oeste, Tomaram mel, tomaram minas, Tomaram o Sul e o Leste. Tomaram a Vary e a Tatry, Tomaram o perto e o distante, Tomaram mais que o horizonte: A luta pela terra pátria. Tomaram balas e espingardas, Tomaram cal e gente viva. Porém enquanto houver saliva Todo o país está em armas.

N.T.: 9 de maio de 1939 ( um dos muitos poemas feitos por Marina Tzvietáieva em protesto contra a invasão da Tchecoslováquia pelos nazistas)

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Mikhaíl Dúdine (URSS 1916 - ) Dúdine foi um dos importantes poetas de Leningrado, cujo cerco ele suportou durante a Guerra.

Rouxinóis Tradução de Manuel Seabra Dos mortos falaremos depois. A morte na guerra é habitual e horrível. E no entanto abrimos a boca de espanto pela morte do nosso camarada. Não dizemos palavra. Não erguemos os olhos, Na terra cinzenta abrimos uma cova. O mundo é cruel e pronto. Consumiu os corações. Em nós ficou só a cinza, só as faces batidas em contradições. Tricentésimo quinquagésimo dia da guerra. A aurora ainda não estremeceu nas folhas, e como aviso houve metralhadoras... Foi ali. Foi ali que ele morreu – o meu camarada, pela boca da metralhadora. Aqui inutilmente foi chamado um médico, mas só chegou de madrugada. Não tinha ninguém para ajudar. Estava a morrer. E, compreendido isso, olhou para nós e esperou o fim em silêncio, e de certa maneira sorriu desajeitadamente. O bronzeado começou a fugir-lhe do rosto. Depois escureceu, ficou de pedra. Bem, fica a espera. Endurece. Enregela. Fecha todos os sentimentos à chave. Mas eis que surgiu um rouxinol e começou a cantar triste e cansativamente. Depois mais forte, em grande entusiasmo, como se tivesse fugido da gaiola, como se de súbito de tudo se esquecesse, assobiando, a ave de joelhos finos.

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O mundo abriu-se. Inchou de orvalho. Como se ainda mal compreendesse, aqui ao nosso lado ergueu-se outra de certo modo nova combinação de qualidade. Com o tempo, pelas trincheiras corria areia. Para a água se arrastavam as raízes no precipício, e o lírio no vale, erguendo-se em bicos de pés, olhou para a cratera da explosão. Um minuto mais. O lilás lança fumo, lufadas de fumo violeta. O lilás veio desencorajar o dia. Está por toda a parte. É inexorável. Um instante mais. Torce a boca um grito que tortura o coração, mas acalma-te, olha: florescem no campo de minas morangueiros bravos. Uma macieira silvestre larga a flor, o ar está impregnado de lírios e hortelã... E o rouxinol assobia. E em resposta outro e um quarto, e um quinto. Soam gaviões. Piscos cantam. E por toda a parte, de todos os lados espalhado, desconfiado me aconchego, como o pesado rolar de uma bomba. E o mundo ruge cem verstas à volta, como se a morte não tivesse lugar, urra incessante a orquestra, e é música que não tem barreiras. Em toda esta floresta de folhas e raízes, nem um pouco sentindo o drama, não é provável que a sede selvagem se arrastasse até ao sol, até a vida, até a água. Sim, isto é a vida. Seus laços vivos, seu reservatório calmo e alcantilado. Nós, parece, esquecemos naquele instante outros a quem os seus também morreram. Um raio quente da última aurora mal tocou no rosto afilado. Moribundo. E, consciente disso, olhou para nós e ficou à espera do fim. 119

Absurda morte. Torpe. Tanto mais que, os braços agitando, disse: “Rapazes, escrevam à Pólia, que hoje aqui cantam rouxinóis.” E logo caiu no silêncio total, no trigésimo quinquagésimo dia de guerra. Não viveu toda a sua vida, não amou até ao fim, não acabou de cantar, não estudou o que tinha a estudar, nem acabou de ler os seus livros. Estive a seu lado. Na mesma trincheira, como ele com Pólia, eu contigo sonhava. E talvez na areia, na argila escavada, sufocando no próprio sangue, um dia eu diga: “Rapazes, escrevam à Irina, que hoje aqui cantam rouxinóis.” E voa uma carta desse lugar para Moscou, para a rua Zubóvski. Que seja assim. Depois secam as lágrimas, e não comigo mas com outro qualquer, naquela margem distante, tu completas a verde represa. Que seja assim. Depois nascem crianças para o heroísmo, para as canções, para o amor. Que acordem cedo para a aurora os nossos cansativos rouxinóis. Que ao seu encontro o sol salpique de calor e as nuvens em rebanhos se estendam. Eu canto a morte em nome da nossa vida. Dos mortos falaremos depois.

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Olga Fiódorovna Bierggólts (URSS 1910 – 1975) Vítima do Grande Terror de Stálin, Olga Bierggólts chegou a ser presa e torturada em 1938, (pouco depois que o Terror executara seu ex-esposo). Poeta e jornalista, ela permaneceu durante a Segunda Guerra na sitiada Leningrado (ao contrário de outros artistas e intelectuais, que eram sistematicamente evacuados para áreas seguras do país). Atuando como radialista, Olga encorajava a população com seus poemas e discursos, vindo a tornar-se um símbolo da resistência conhecida em toda a URSS. Deixou diversos livros sobre o período da Guerra, sendo após a morte de Stálin reconhecida pelo regime com prêmios e medalhas. Traduções de Lauro Machado Coelho A Guerra em Leningrado (fragmento) ... O canhoneio calou-se. A cidade esta cheia de alvorada, é a hora da troca das exaustas sentinelas, as ruas estão claras e desertas. As zeladoras varrem os cacos de vidro, um incansável eco repete um som estridente, raspante, angustiante e arco-íris derramam-se pela sarjeta com os pedaços de vidro esmigalhado. À cidade chegou a primavera, isso se sente nos destroços, no incêndio, no rio que vem bater no granito de suas margens como vem fazendo há séculos, Silêncio. ...Moçinha lá dos lados de Mamisson, que sabias da felicidade? Ela é desajeitada, tem a cara fechada, sofre de insônia e, ás vezes anda de braço dado com a morte. Perto dela, a alegria não é nada, o contentamento é apenas pó. Diante dela o inimigo perde seu poder, o medo também e a podridão Ela voa, com asas de cisne, para cimos de tal modo inacessíveis, de tal modo solitários e despojados, que até os deuses podem inveja-la. (...) Estou feliz. E a cada dia percebo, com mais clareza, 121

que vivi toda minha vida para chegar estes dias de impiedosa expansão. E não escondo o meu orgulho em ter, como mero soldado, entrado em teu destino, minha cidade, e no rol de teus poetas. Não foste tu, neste inverno biblicamente terrível, que me levaste até a trincheira onde meus irmãos combatem, petrificados, sem pranto, e lá deste-me a ordem de prantear teus filhos? e onde não pudeste erguer monumentos nem contar ou celebrar os mortos, lá onde se estendia a neve, esbraseada pelo clarão do incêndio, onde a escavadeira mal conseguia abrir as trincheiras, onde a dinamite em vão tentava ajudar-nos a abrir a terra, a alojar os túmulos, foi lá que obedeci à tua altiva ordem... E carregando o feixe de minha dura escolha, do fundo de mim mesma arranquei o poema sem poupar sua trama de ser vivo. A ordem de meu destino delineia-se claramente: com meus versos, eis-me muitos anos à frente, pregada à tua visão, conquistada, congelada neste gelo inimitável. ... Quanto a ti, de quem devo, sem cessar, ter piedade, por que devo entristece-me, lamentar-te? Eu quero é celebrar-te com glória anônima e muda – a mais alta glória que existe nesta terra – ; para sempre eis-te confundido com tudo aquilo que era maior do que a nossa própria vida, o sonho, a alma, a pátria, a existência e, para mim, cada lugar tornou-se o local do teu túmulo, e em toda parte esta a tua ressurreição. É o que afirma a voz sonora de Moscou quando, abalando em todas as cúpulas da noite, ela canta com a mesma força os vivos e os mortos e, para a Morte, prevê a pena de morte.

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Conversa com uma vizinha Daríya Vlasiévna, minha vizinha de andar, Vamos nos sentar, as duas, E falar dos dias de paz, A paz que tanto queremos de volta. Há quase seis meses estamos lutando, Seis meses do choro e ranger de dentes da batalha. Cruéis são os sofrimentos da nação, Teus sofrimentos, Daríya, e os meus. Ó noites de gemidos e rumores, De bombas caindo mais e mais perto, De bocadinhos de pão racionado Que mal parecem ter algum peso... Para sobreviver aos grilhões do bloqueio, Com a morte diária pairando sobre nós, De quanta força precisamos, vizinha, De quanto ódio precisamos – de quanto amor! Tanto que, às vezes, momentos de dúvida Atingiram até as vontades mais fortes: “Hei de suportar isso? Posso aguentar?” Suportas, sim. Hás de sobreviver. Daríya Vlasiévna, espera um pouco: Dia virá em que, do alto céu, O último alerta gritará seu aviso, O último alarma tocará bem alto. E quão remota, ah quão vaga e distante A Guerra parecerá, para nós, nesse dia Em que tirarmos as tábuas das janelas, Sumindo com as cortinas de blecaute. Que a casa toda se encha, então, de luz, Que se encha de paz e primavera, De choro quieto e riso quieto e, quieta Exulte com a recuperada quietude. A massa nossas mãos há de moldar De pão fresco bem crocante, E beberemos, em goles pequenos, Copos de vinho tinto reluzente. E a ti – uma estátua a ti hão de erguer E de colocá-la na praça principal; 123

De firme aço feita, imperecível, Ela terá tuas formas familiares. Assim como estás – desnutrida, indomável, Arrumada às pressas e de qualquer jeito; Assim como eras sob o bombardeio, Levando a vida sem desanimar. Daríya Vlassiévna, esse teu espírito O mundo inteiro há de se renovar. O nome desse espírito é Rússia. Resiste e ousa tanto quanto Ela.

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Pável Antokólski (URSS 1896 – 1978) O poeta e tradutor Pável Grigórievitch Antokólski foi ator e produtor de teatro durante a Primeira Guerra, trabalho que o levou a excursionar pela frente de batalha, e posteriormente por diversos países. O poema aqui publicado data de 1943, e foi escrito em memória de seu primeiro filho, morto na Segunda Guerra. Com este texto o poeta foi agraciado com o Prêmio Stálin de 1946. Filho (fragmento) Tradução de Lauro Machado Coelho Que são estas lágrimas? Chuva sobre um deserto calcinado. Choveu. Mas o bálsamo da chuva já passou. Meu filho me pediu que não o chorasse. Era soldado. Não precisava de lágrimas. Soldado? Não é verdade. Assim não conseguiremos decifrar a página totalmente apagada. Quem era o meu filho? Era uma Criação de Deus. Criação de Deus? Não. Isso é mentira. Longo é o meu caminho através de paredes e nuvens. Meu único caminho verdadeiro. Meu menino transformou-se numa nuvem fugitiva. Algo de seu desaparece a cada minuto que passa. Dilui-se no líquido amargo, no orvalho salgado que brota de repente. No combate, ele nem teve tempo de levar à boca o cantil. Andava para a morte com passo firme, sem hesitar. O pó grudava-se em seus dentes. Um mosquito pousou em sua fronte seca, ardente. Era um dia claro, desses de início da infância. O cuco piava o seu pacífico “cu-cu”. De que se lembrou? De que melodia? De que rosto? De que frase em que carta? Enquanto o pássaro, cantando a sua longevidade, repetia um pacífico “cu-cu”. ... Que horror lhe causou aquela coisa viscosa e quente que lhe brotou da jovem garganta? Com que sorriso de eterno desconcerto percebeu-se, de súbito, afogando nele? Depois, quando, estendido no chão, dormia tranquilamente, deitado de lado, como fazia em casa, continuava sonhando com o tardio “cu-cu” no paraíso do bosque, agora órfão? 125

A vida ia embora. I-a em-bo-ra. Como se tivesse estado por pouco tempo de visita e se desse conta de que a vela se apagara, que a casa estava vazia, as janelas, sem vidros, que a esperava um longo caminho de volta, à noite, sozinha, passando por choças carbonizadas e chaminés apagadas. Serenamente, a vida abandonou, deixou em paz, na relva do barranco, o cadáver com os braços em cruz. Não minta, imaginação! Por que te expandes e te confundes? Não estás morta. Olha, com os olhos bem abertos, até te converteres na própria agonia de meu filho. Lembra com que desespero, quando ele gritou surdamente, agarrando-se à relva, logo brotou, em seu cérebro nublado, o farrapo de esperança: “Ainda estou vivo!” Como se arrastou, devagar, pesado, débil, deixando na relva um rastro vermelho. Como ficaram a sós, com o moribundo, a sua vida, os seus dezoito anos. Rompe teus diques, imaginação! Pensa que, para ti, não há outro caminho. Quanto mais obstinada fores, maiores serão os dezoito anos truncados. Vamos! Põe-te em carne viva, faz-te cinza, dispersa-te ao vento, converte-te em sangue jovem! Transfigura-te no amor de pais e filhos. Não te detenhas, sai de ti mesma com a pele descarnada, como és. Toda a minha vida, toda a minha dor, às armas! Ver tudo! Dizer tudo! Sofrer tudo! ... Ele saiu da trincheira. O aroma do campo acariciou-lhe o rosto, prometendo bom tempo. Mas, naquele momento, uma bala explosiva perfurou-lhe o lábio e estourou dentro da boca. Ele viu tudo, até as coisas mais ínfimas, as folhas da grama seca tisnadas pelo fogo, e viu pela última vez o amigo sol, sentiu pena dele e o esqueceu. 126

Lembrou, lembrou, lembrou tudo o que desde o princípio esquecera. Compreendeu como haveria de ser difícil para mim. Sentiu pena de mim e me esqueceu. Ainda estava vivo. Um minuto. Meio minuto. Implorando uma graça impossível. Caiu ao chão pesadamente e a úmida mãe terra o acolheu em seu seio. Apertou contra ela o seu corpo cansado e, ansioso, já quase não entendendo mais nada, murmurou – não com os lábios – mas com toda a sua existência que se extinguia: “Mãe.”

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Siemión Gudzenko (URSS 1922 – 1953) Nascido em Kiev, Gudzenko fez parte da boa geração de poetas russos da Segunda Guerra Mundial. Serviu como voluntário na Infantaria. Em 1942, durante a chamada Batalha de Moscou, foi ferido e sofreu uma concussão. Acabou morrendo anos depois em virtude desses ferimentos, fato que havia ‘previsto’ em um de seus poemas. Antes do ataque Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman Quando se vai para a morte – canta-se (mas se pode chorar, antes). O mais terrível do combate: a vigília do ataque. A neve – furos – em torno, enegrecida de minas. Estrondo – o amigo que tomba. A morte passou precisa. Chegou minha vez, sou isca e alvo. Quarenta e um, ano aziago. A infantaria jaz inteira no seu sepulcro-geleira. Tenho a impressão de ser um ímã: atraio enxames de minas. Estrondo – o tenente, num ronco! A morte passou de novo. Não temos fôlego de espera. E nos conduz sobre as trincheiras uma ira que se congela em baionetas contra goelas. Foi luta breve. Agora funde-se a vodca enregelada. Extraio a ponta de faca sangue alheio de sob as unhas. 1942 128

A minha geração Tradução de Manuel Seabra Não tenham pena de nós, nós não temos piedade de ninguém. Perante o nosso comandante, como perante Deus, somos puros. Os abrigos dos vivos enferrujaram de lama e sangue, nas campas dos mortos nasceram flores azuis. Abriram e morreram... Passa já o quarto Outono. As nossas mães choram e as namoradas estão caladas e tristes, Nós não conhecíamos o amor, nem os prazeres da profissão. Só tivemos às costas a dura faina do soldado. Os meus coetâneos não conheceram mulher, nem versos, nem repouso, só vigor e juventude. E quando regressarmos da guerra, amaremos e faremos poemas, todos nós, e os nossos filhos estarão orgulhosos dos seus pais-soldados. Bem, e os que não voltarem? Que nunca amarão o que deviam amar? Bem, e os que foram mortos pelas primeiras balas de 41? As namoradas chorarão e as mães ficarão desesperadas – dos meus coetâneos que não tiveram versos, nem repouso, nem mulher. Não tenham pena de nós, nós não temos piedade de ninguém. Os que entraram nos ataques, que partilharam as últimas migalhas, Conhecem esta verdade – que encontramos ao pé dos canhões, discutimos nas trincheiras em vozes roucas e rudes. Que os vivos recordem e as gerações conheçam esta verdade da guerra, esta verdade rude dos soldados. As tuas muletas, a ferida mortal que te atingiu, as campas do Volga, onde estão milhares de jovens, eram o nosso destino, quando praguejávamos e cantávamos, para sairmos ao ataque e fazermos saltar as pontes do Bug. ...Não tenham pena de nós, nós não temos piedade de ninguém. Fomos dignos da Rússia e parte dos seus tempos duros. E quando voltarmos – e voltaremos com a vitória, todos como demônios teimosos, como gente viva e rude, que nos deem barris de cerveja e carne na brasa para o almoço, que as pernas das mesas ranjam com o peso da comida. Nós curvar-nos-emos ante aqueles que trabalharam e sofreram, beijaremos mães e amigas, que esperaram por nós com amor. Quando voltarmos vencedores, dominado o inimigo – amaremos todos, coetâneos meus, e teremos trabalho à nossa frente.

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Sobre o organizador Sammis Reachers nasceu em 09/05/1978 em Niterói – RJ. É poeta, antologista, editor e blogueiro. Tem se destacado como promotor e divulgador da poesia cristã/evangélica, através das antologias que organiza e dos blogs como o Poesia Evangélica, onde já publicou mais de trezentos autores. É autor dos livros (em formato e-book ou impresso): POESIA Uma Abertura na Noite (2006) A Blindagem Azul (2007) CONTÉM: ARMAS PESADAS (2012) Poemas da Guerra de Inverno (2012) Deus Amanhecer (Impresso: Editora VirtualBooks, 2013) Poemas da Guerra de Inverno - Edição revista e ampliada (Impresso: Clube de Autores, 2014) PULSÁTIL – Poemas canhestros & prosas ambidestras (2014) CONTOS O Pequeno Livro dos Mortos (no prelo) Organizou as seguintes antologias (apenas em formato e-book): 3 Irmãos Antologia (2006 - textos de Gióia Júnior, Joanyr de Oliveira e J.T.Parreira) Sabedoria: Breve Manual do Usuário (2008 - antologia de frases) Antologia de Poesia Cristã em Língua Portuguesa (2008) Águas Vivas volume 1 (2009 – antologia reunindo textos de poetas evangélicos contemporâneos) Antologia de Poesia Missionária (2010) Águas Vivas volume 2 (2011) Breve Antologia da Poesia Cristã Universal (2012) A Poesia do Natal Antologia (2012) Águas Vivas volume 3 (2013) Antologia de Poesia Missionária volume 2 (2013) Teatro Missionário – Peças Teatrais e Jograis sobre Missões e Evangelização para Igrejas Evangélicas (2013 – em colaboração com Vilma Aparecida de Oliveira Pires) Revista Humorejo – Humor Gráfico Evangélico (2014 - charges, cartuns, caricaturas e HQ’s) Segunda Guerra Mundial – Uma Antologia Poética (2014) *À exceção da segunda edição de Poemas da Guerra de Inverno e do livro de contos ainda no prelo, todas as obras citadas podem ser lidas online ou baixadas gratuitamente (acesse AQUI a página Biblioteca no blog Poesia Evangélica, para ter acesso a esses e a muitos outros livros gratuitos). Mantém mais de 10 blogs, incluindo os blogs literários: 133

O Poema Sem Fim (pessoal) - http://opoemasemfim.blogspot.com Poesia Evangélica (desde 2006) - http://poesiaevanglica.blogspot.com Mar Ocidental - http://marocidental.blogspot.com Liricoletivo - http://liricoletivo.blogspot.com

Em outubro de 2014 - São Gonçalo - RJ - Brasil

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