Segurança interna e coesão social. Onde estamos? Para onde vamos?

July 6, 2017 | Autor: Redy Wilson Lima | Categoria: Cape Verde, Violência Urbana
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Segurança interna e coesão social. Onde estamos? Para onde vamos?1 Por Redy Wilson Lima Se pensarmos a questão da segurança interna a partir do conceito da coesão social, tendo em conta o actual estado de medo e da percepção da insegurança anualmente quantificado pela Afrosondagem, embora não ignorando a boa dose de paranóia colectiva a esse respeito, o que que denota é que a criminalidade colectiva em Cabo Verde é real e poderá piorar caso não seja mudado a abordagem social e policial no seu combate. Em Janeiro de 2012, o Jornal A Nação citava um diagnóstico elaborado no âmbito do PDM da Praia, que colocava o país no lugar número 17, num total de 60 países, no ranking de países com maiores taxas de criminalidade. Entre os naos 2006 e 2012 houve no país 281 homicídios, uma média de 40.1 por ano, tendo a Praia o comando do pelotão com uma média de 20.6 por ano. Um olhar diacrónico sobre a violência no país mostra-nos que os picos de maiores homicídios tiveram lugar nos finais de 1980, entre os anos 1991 e 1994 e a partir de 2010. Com picos ligeiramente mais baixos estão os anos entre 1998 e 1999 e entre 2006 e 2012. No entanto, evitando afirmações irreflectidas como os que tem havido sobre esses números, o importante é contextualiza-los. Nos finais de 1980 surge o fenómeno Netinhos de Vovó, que embora os seus membros estivessem envolvidos em vários tipos de roubos, não são os responsáveis pela elevada taxa de homicídios da época. Muitos desses homicídios deveram-se às rixas familiares nas zonas rurais de Santiago. Entre os anos de 1991 e 1994, período do surgimento dos denominados crianças de rua, a alta taxa de homicídios deveu-se sobretudo aos ajustes de contas na esfera doméstica. Uma rápida visita à imprensa escrita da época mostra-nos que foi o período da moda do assassinato com água quente e desfrisante, que tinham nas mulheres violentadas em casa a maior protagonista. A partir de 2010 o recorde dos homicídios a nível nacional está intimamente ligado à segunda vaga da violência pública dos gangues de rua e das facções do narcotráfico.

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Apontamento resumido das minhas três intervenções na Conferência com o mesmo nome promovido pelo MPD, no dia 24 de Julho de 2015.

Identifiquei pessoalmente (e com ajuda de alguns street workers) cerca de 92 gangues de rua na Praia, em Janeiro de 2013, e 13 no Mindelo. No triénio 2010/12 havia cerca de 26 confrontos públicos entre grupos armados na Praia e grande parte dos protagonistas deste conflito sangrento enquadram naquilo que alguns criminólogos hoje designam de gangues híbridos, caracterizados pela pertença dos seus membros em múltiplos gangues, regras e códigos pouco claros, membros masculinos e femininos, utilização de símbolos e tags de diferentes gangues, cooperação com gangues rivais em actividades delituosas e constante fusões entre pequenos grupos. São gangues que surgiram na segunda metade dos anos de 2000 como resultado das políticas de repressão iniciadas em 2005, constituídos habitualmente por indivíduos muito jovens sem uma carga ideológica marcada. Simultaneamente e recorrendo à tipologia de John Sullivan, diria que os gangues em Cabo Verde têm seguido os padrões transformacionais dos gangues das outras latitudes, visto que dos tradicionais gangues de rua (em que se enquadra os auto e hétero-denominados thugs), encontramos também gangues orientados para o mercado de drogas e aparentemente uma nova geração de gangues que mistura elementos políticos e mercenários. Isto sem falar das facções nacionais do narcotráfico, que reforça a configuração a que Sullivan chamou de cerco urbano, salientada por José Pina Delgado, em 2010, quando afirmou que o país encontrava-se sitiado pela violência. Sendo verdade que a política de pacificação reiniciada em 2012, juntando os Ministérios de Administração Interna, da Juventude, ONG’s e algumas organizações de rua trouxe uma aparente paz social, esta paz só poderá ser entendida a partir da designação paz camuflada, isto porque é forçada pelo estado de sítio protagonizada pela presença de militares nas ruas e também porque a violência pública deixou forçosamente de fazer parte da agenda mediática, sobretudo a televisiva. Igualmente, ela configura aquilo que alguns teóricos franceses chamaram de paz criminosa, isto é, o momento anterior a mobilizações violentas em que os contextos considerados sensíveis e susceptíveis de explodirem a qualquer momento se mantêm sossegadas. Nunca como hoje falou-se tanto de violência urbana em Cabo Verde, contudo, pessoalmente, por questões analíticas, prefiro usar o termo no plural, violências urbanas, uma vez que falar o conceito no singular tende a criminalizar a população juvenil pobre

e marginalizada dos ditos “guetos” cabo-verdianos. Trabalhá-lo no plural permite-nos dar conta dos três tipos de violências quotidianamente produzidas no país. A violência directa (mais mediatizada), as incivilidades (naturalizadas) e a violência estrutural e simbólica (invisibilizadas). Esta última, menos falada, é quanto a mim a variante essencial a ter em consideração ao procurarmos entender a reestruturação a partir dos anos de 2000 da delinquência colectiva urbana, principalmente a juvenil. Ela tende a produzir uma violência reactiva, seja ela criminosa ou política. O cenário apontado anteriormente permite-nos mobilizar o conceito novíssimas guerras, que dá conta do novo tipo de conflitualidade violenta que irrompe nos grandes centros urbanos a nível mundial, dominando microterritórios em país aparentemente de paz. Ao contrário das velhas e das novas guerras (guerras civis), a intenção dos protagonistas das novíssimas guerras não é o de substituir o poder estatal, mas sim constituir um poder paralelo, ou então substituir o poder estatal nos locais onde existe um vazio institucional. Elas derivam da combinação de causas estruturais e factores de risco. Estes factores podem ser divididos em três: 1) os que as originam; 2) os que as fomentam; 3) e os que as facilitam. No primeiro ponto temos as desigualdades sociais promovidas pela segregação das oportunidades, que contribuiu para o empobrecimento de uma parte da população. No segundo ponto a organização ecológica das cidades contemporâneas e a sua capacidade em criar simultaneamente nichos de pobreza e de riqueza – segregação urbana, a cultura da masculinidade, os tráficos de drogas, armas e mortes, assim como a impunidade. Por fim, no terceiro ponto, a disponibilidade de armas de fogo ligado à dimensão da masculinidade enquanto sinónimo de estatuto e poder, em conjunto com o consumo de álcool e drogas. Recorrendo a preceitos sociológicos base da delinquência desactualizados que não obstante numerosos trabalhos de pesquisa ou de reflexão teórica têm contestado, oferecidas pelos estudos fabricados a partir dos gabinetes climatizados dos consultores oficiais governamentais, têm-se erradamente investido em políticas de repressão e promovendo uma cultura institucional de desinvestimento nas políticas sociais, ignorando os enormes prejuízos sociais que essa orientação ideológica poderá (ou está a) trazer ao país.

Em matéria de segurança, o governo de Cabo Verde foi, sem dúvida, dos países que mais se beneficiou com o 11 de Setembro. Em 2005, com a criação do Piquete, adoptou o discurso norte-americano da Tolerância Zero, criou a BAC em 2007, colocou a Polícia Militar nas ruas em 2008, 2012 e a partir de 2013, pensando no terrorismo urbano criou a Guarda Nacional em 2012 e neste mesmo ano colocou nas ruas do Mindelo os Ninjas. A par disso foi inventando brigadas atrás de brigadas, baseadas numa filosofia de “txapa-txapa” sem qualquer resultado prático, criando um Estado de Excepção onde o Direito e a Democracia em alguns bairros da Praia e do Mindelo foram suspensos e o seu controlo entregue a uma matilha de lobos humanos fardados mal formados e violentos. Como vitória aumentou a população prisional em cerca de 200%. Com isso entrou no discurso oficial os programas de reintegração social, o mesmo que vários estudos têm demonstrado estarem preocupados apenas com os efeitos da criminalidade e nunca com as suas causas. O resultado foi encarar a prisão como um contentor de lixo social, numa época em que tanto se fala de crimes de colarinho branco, sobretudo perpetuados pelas pessoas ditas de bem, assíduos frequentadores das cerimónias religiosas e afins. Contornar este cenário, a meu ver, consegue-se se quem decide as políticas públicas apostar seriamente em políticas inclusivas e participativas, em que tanto os agentes da violência porque também vítimas como quem trabalha directamente com eles deverão ser tidos em conta tanto na sua concepção como execução; fortalecer a articulação institucional através do combate ao protagonismo institucional e pessoal; construir um incentivo mesmo que simbólico direccionado aos vários street workers existentes que tanto tem promovido nos últimos anos uma cultura de paz nos vários bairros do país; despartidarizar e desistitucionalizar as organizações da sociedade civil que trabalham nesse contexto; tornar transparentes os critérios de financiamento público para os projectos sociais; apostar no policiamento comunitário através da articulação da Polícia Nacional com a Guarda Municipal (ou porque não Polícia Municipal); promover de facto uma segurança solidária através da afirmação de uma cultura da prevenção da delinquência ao invés da reafirmação de um Estado Policial reprodutor da violência.

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