Seiça, Alberto Medina de (2009), «A aplicação do princípio ne bis in idem na União Europeia. aspectos de um processo ainda não transitado)», Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 935-1003.

May 22, 2017 | Autor: A. Medina de Seiça | Categoria: European Law, International Criminal Law
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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM NA UNIÃO EUROPEIA (ASPECTOS DE UM PROCESSO AINDA NÃO TRANSITADO)*

Alberto Medina de Seiça

I

Entre as mais importantes garantias da pessoa humana em face do ius puniendi estadual conta-se, sem dúvida, a decorrente do princípio ne bis in idem: «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime»1. Embora com diferenças de formulação e, sobretudo, de recorte do específico conteúdo normativo2, aquele princípio encontra-se consagrado na generalidade das ordens jurídicas3, assumindo até, em muitas delas, dignidade constitucional4. Este amplo reconhecimento do princípio no plano dos direitos internos dos

O presente estudo foi concluído em 31 de Dezembro de 2008, pelo que não pudemos considerar a literatura e a jurisprudência publicada após essa data. 1 Usamos o enunciado da Constituição da República (artigo 29.º, n.º 5), que condensa em conciso quadro normativo o sentido nuclear do princípio ne bis in idem. 2 Na verdade, o princípio ne bis in idem não apresenta um conteúdo unitário, antes reveste âmbitos normativos bastante diversos que em muito dificultam a análise. Entre outros aspectos, o princípio pode ser entendido num sentido mais estrito, como proibição de uma dupla punição (nemo debet bis puniri pro uno delicto) — ne bis in idem material; ou, num sentido mais alargado, proscrevendo a possibilidade de haver uma segunda prossecução penal por factos que tiverem sido já objecto de uma decisão final (nemo debet bis vexare pro una et eadem causa) — ne bis in idem processual. No primeiro caso, o respeito pelo ne bis basta-se com o princípio do desconto (taking in account, Anrechnungsprinzip): a primeira punição é imputada na ulterior, de modo a não haver uma duplicação efectiva de penas. Como se intui, esta via oferece menor protecção ao indivíduo, quer porque não impede a sobreposição de processos, com o vasto conjunto de limitações inerentes (medidas de coacção, etc.), quer por só operar em caso de condenação com pena já cumprida — uma absolvição, com efeito, não é passível de desconto. Já o ne bis in idem processual impede que se instaure nova acção penal com base nos mesmos factos já apreciados (exhaustion of proceedings, res judicata, Erledigungsprinzip). Cf. H. LANDAU, «Verwirklichung eines europaweiten “ne bis in idem” im Rahmen der Anwendung des § 153c Abs. 1 Nr. 3 StPO», in: Europas universale rechtsordnungspolitische Aufgabe im Recht des dritten Jahrtausends. Festschrift für Alfred Söllner zum 70. Geburstag (Hrsg. G. Köbler et al.), München: Beck, 2000, 637 s. É neste sentido mais amplo, processual, que se centrará a nossa análise. 3 As numerosas comunicações apresentadas no Colóquio preparatório (IV Secção) do XVII Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, dedicado justamente ao tema «concurrent national and international criminal jurisdiction and the principle “ne bis in idem”», realizado em 2003 em Berlim, oferecem ampla e actualizada perspectiva da vigência do ne bis in idem no plano dos direitos internos (cf. Révue internationale de droit pénal 2002 (73), 673 ss.). 4 São bastantes, com efeito, as Leis Fundamentais que consagram o princípio ne bis in idem. Além da nossa própria Constituição (no já citado artigo 29.º, n.º 5), a garantia está prevista, entre outras, nas constituições dos Estados Unidos (V Emenda), do México (artigo 23), da República Federal da Alemanha (artigo 103, 3.º apartado), da União Indiana (artigo 20, 2), da Federação Russa (artigo 50, 1) do Canadá (Carta dos Direitos e Liberdades, artigo 11, h), da Nova Zelândia (Bill of Rights, artigo 26, 2). *

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diversos Estados5 contrasta de forma drástica, porém, com o que se verifica quando se perspectiva o ne bis in idem no plano interestadual ou transnacional6, isto é, quando se afere a vigência e a eficácia da garantia perante um procedimento penal instaurado pelas autoridades judiciárias de certo Estado com fundamento em factos já apreciados pela jurisdição penal de outro Estado7. Nesta matéria, as dúvidas sobrelevam ainda em muito as certezas e o longo caminho já trilhado8 tem-se revelado, por diversas e complexas razões, demasiado curto, afinal, Em face desta alargada difusão do princípio no quadro dos direitos nacionais, bem se justifica a afirmação de Antonio Cassese: «the “internal” ne bis in idem principle may be held to be prescribed by a customary rule of international law» (A. CASSESE, International Criminal Law, Oxford/New York: Oxford University Press, 2003, 319). 6 Assim, também, S. STEIN, Zum europäischen ne bis in idem nach Artikel 54 des Schengener Durchführungsübereinkommens, Frankfurt am Main, etc.: Peter Lang, 2004, 34. Como sublinham L. SILVA PEREIRA/T. ALVES MARTINS, «O princípio ne bis in idem e os conflitos internacionais de jurisdição», Revista do CEJ 7 (2007), 314, «este aspecto reflecte o estádio da cooperação internacional, onde prevalece a jurisdição soberana dos Estados em matéria penal, bem como os limites actuais do sistema internacional de reconhecimento de sentenças penais estrangeiras (e.g., condições de admissibilidade e interesse prevalente da acção penal nacional)». 7 Note-se que nos referimos aos casos em que será mais comum surgir uma hipótese de bis in idem internacional, ou seja, o plano das relações interestaduais (situações de concorrência horizontal). Deve sublinhar-se, no entanto, que existem outros tipos de relações de direito internacional em que o problema do ne bis se pode colocar. Assim, e cingindo-nos aos pontos mais salientes, importa considerar quer as hipóteses de possível dupla prossecução e punição decorrentes da sobreposição de competências penais entre Estados e outras instituições internacionais com competência penal, como os Tribunais especiais para o Ruanda e a antiga Jugoslávia ou o Tribunal Penal Internacional (cujos estatutos, aliás, consagram o princípio: artigos 9, 10 e 20, respectivamente), quer as que podem emergir de jurisdições conflituantes de diferentes instituições internacionais (situações de concorrência vertical). Sobre esta última dimensão do ne bis in idem internacional, em profundidade, veja-se o estudo de R. KNIEBÜHLER, Transnationales “ne bis in idem” — Zum Verbot der Merfachverfolgung in horizontaler und vertikaler Dimension, Berlin: Duncker & Humblot, 2005, §§ 17-22; focando o problema no contexto do direito da União Europeia, por todos, cf. M. MAYER, Ne bis im idem-Wirkung europäischer Strafentscheidungen, Frankfurt am Main/Berlin: Peter Lang, 1992, 241 ss., H. SATZGER, Die Europäisierung des Strafrechts, Köln/Berlin, etc.: Carl Heymanns, 2001, 685 ss., M. MANSDÖRFER, Das Prinzip des ne bis in idem in europäischen Strafrecht, Berlin: Duncker & Humblot, 2004, 193 ss.; em particular sobre o alcance do princípio no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, v. I. TALLGREN, «Article 20: Ne bis in idem», in: Commentary on the Rome Statute of the International Criminal Court (ed. by Otto Triffterer), BadenBaden: Nomos, 1999, 419-434, C. VAN DEN WYNGAERT/T. ONGENA, «Ne bis in idem Principle, Including the Issue of Amnesty», in: The Rome Statute of the International Criminal Court: a commentary (ed. by A. Cassese, P. Gaeta, J. R. Jones), vol. I, Oxford/New York: Oxford University Press, 2002, 705-729, E. SCHESCHONKA, Der Grundsatz „ne bis in idem“ im Völkerstrafrecht unter besonderer Berücksichtigung der Kodifizierung durch das ICTY-Statut und das IstGHStatut, Münster: Lit, 2005, 248-294. A nossa análise vai restringir-se unicamente ao primeiro tipo de casos, isto é, às situações de ne bis in idem horizontal. 8 Com efeito, o problema não é novo; pelo contrário, constitui há bastante tempo ponto decisivo na política criminal dos Estados e de outros organismos internacionais, reflectindo-se em diversas propostas normativas e numa aturada e inabarcável produção científica. Entre tantos outros exemplos desta já antiga preocupação, refirase a resolução aprovada em 1883 pelo «Institut de Droit International» no sentido do reconhecimento internacional do ne bis in idem em caso de sentença condenatória cuja pena tivesse sido executada (Annuaire de l’Institut de droit international VIII (1883-85), 156 ss, reproduzido no American Journal of International Law Supplement 29 (1935), 636-8: «Les peines prononcés par jugement régulier des tribunaux d’un Etat quelconque […] dûment subie, doivent empêcher tout porsuite dirigé à raison du même fait contre le coupable»). Mais perto de nós no tempo (mas ainda tão distante na consecução), escrevia Jescheck que «o efeito negativo do caso julgado de sentenças estrangeiras (“ne bis in idem”) deve ser reconhecido por todos os Estados com a maior amplitude possível» (H.-H. JESCHECK, «Die internationalen Wirkungen der Strafurteile», Zeitschrift für die gesamte Strafrechtwissenschaft 76 (1964), 174. Nesta matéria, deve sublinhar-se a decisiva actuação desempenhada pela Associação Internacional de Direito Penal que de há muito tem votado ao problema cuidada e recorrente reflexão. Recorde-se que já em 1929, no congresso de Bucareste, se propunha um amplo reconhecimento internacional das decisões penais (cf. M. SOKALSKI, Revue internationale de droit pénal 1929 (VI), 380-1), enquanto o congresso de Utrecht, sete décadas depois, propugnava nas suas resoluções que «le principe ne bis in idem devrait 5

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para alcançar consenso bastante numa comunidade internacional formada por Estados cada vez mais interdependentes, mas nem por isso mais próximos9. Na verdade, a esmagadora maioria das ordens jurídicas estaduais atribui ao princípio um alcance primacialmente doméstico ou interno, sendo ainda limitados os efeitos em termos de ne bis processual conferidos a decisões penais proferidas por jurisdições estrangeiras10. Por seu turno, o quadro être considéré comme un droit de l’homme, s’appliquant également aux niveaux international et transnational», Revue internationale de droit pénal 1999 (70), 683). 9 Como se disse, são muitas e complexas as razões que determinam este estado de coisas. Explicitá-las, mesmo em termos sucintos, demandaria incursões de largo espectro: na verdade, as dificuldades assinaladas embora se prendam (também) com uma (ainda?) exacerbada visão nacionalista da soberania estadual, ciosa das suas prerrogativas e desconfiada em face das ordens jurídicas estrangeiras (aspecto assaz referido, v. C. AMALFITANO, «Dal ne bis in idem internazionale al ne bis in idem europeo», Rivista di diritto internazionale privato processuale 2002, 925, M. HENZELIN, «”Ne bis in idem”, un principe à géométrie variable», Schweizerisches Zeitschrift für Strafrecht 2005, 351), particularmente na área tão sensível da justiça criminal (como acentua M. PRALUS, «Étude en droit pénal international et en droit communautaire d’un aspect du principe non bis in idem: non bis», Révue de science criminelle et droit pénal comparé 1996, 552: os Estados mostram-se «plus méfiants que confiants dans la justice pénale des autres»), são sintoma igualmente (et pour cause) das profundas clivagens culturais (políticas, religiosas...) que marcam o mapa-múndi hodierno. Ignorar estas antinomias, como parece acontecer em certo tipo de discurso político empenhadamente globalizador, alicerçado no poder (mágico) das meras programações normativas, e que pretende a todo o custo decretar regras de universal validade, traduz não só crasso erro de análise como determina em numerosos casos acrescidos obstáculos no relacionamento entre os diversos Estados. De todo o modo, importa sublinhar que o patamar de consenso a que nos referimos em texto, embora exija a superação de um modelo de ordem internacional informado pelo paradigma que, com Edward Wise, se pode cunhar como «anarchical view», em que cada Estado vela exclusivamente pelos seus específicos interesses, impossibilitando-se, assim, a edificação de uma comunidade global, não pressupõe, de modo algum, uma comunidade internacional concebida como civitas maxima, na qual todos os povos se encontrariam sob a mesma referência axiológica e em que, por conseguinte, se daria cumprimento pleno a dois dos vectores essenciais que confluem hoje na questão do direito penal internacional: que todos os crimes, independentemente do lugar da sua prática, sejam punidos; que essa punição resulte de um procedimento legal, justo e humano. Com efeito, esse patamar (mínimo) de consenso é já alcançável num modelo intermédio de uma «sociedade de Estados», assente na cooperação internacional em matéria criminal. Com amplitude, v. M. C. BASSIOUNI/E. M. WISE, Aut dedere aut judicare: The Duty to Extradite or prosecute in International Law, Dordrecht/Boston/London: Martinus Nijhoff, 1995, 26-42; aplicando esta perspectiva precisamente ao problema do ne bis in idem internacional, cf. G. CONWAY, «Ne Bis in Idem in International Law», International Criminal Law Review 2003, 223-4. 10 Neste panorama, os direitos holandês (art. 68, n.ºs 2 e 3 do Código Penal) e finlandês (secção 13, cap. 1 do Código Penal) constituem assinaláveis excepções, ao admitirem ampla eficácia de ne bis in idem às decisões proferidas por legislações estrangeiras. Com outras indicações, cf. as sínteses, respectivamente, de B. SWART e de I. TALLGREN, in: The Individual as Subject of International Cooperation in Criminal Matters. A Comparative Study (ed. by A. Eser, O. Lagodny, C. Blakesley), Baden-Baden: Nomos, 2002, 479 s e 166 ss., bem como o Rapport relativo à situação holandesa por A. KLIP/H. VAN DER WILT, «Concurrent national and international criminal jurisdiction and the principle ne bis in idem: The Netherlands Report», Revue internationale de droit pénal 2002, 1091, espec. 1100 ss. A nossa legislação oferece já amplo acolhimento à eficácia das sentenças penais proferidas por jurisdições estrangeiras: com efeito, nas hipóteses previstas pelo art. 6.º, n.º 1, do Código Penal, a lei portuguesa só é aplicável (e, consequentemente, pode haver prolacção de uma sentence) «quando o agente tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação». Como sublinha J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Parte Geral, I Questões Fundamentais A Doutrina Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 230, «trata-se aqui, antes de mais, de respeitar o princípio jurídico-constitucional ne bis in idem […] até porque tal garantia é considerada pela nossa Constituição como valendo para todas as pessoas e para todos os tribunais, que não apenas para os cidadãos portugueses ou para julgamentos levados a cabo por tribunais portugueses». Mas se isto é assim nestes casos do art. 6.º, isto é, nos casos de aplicação da lei nacional a factos cometidos no estrangeiro, já nas situações em que tal aplicação decorra do princípio da territorialidade, a circunstância de ter havido já condenação por tribunal estrangeiro não preclude o julgamento e condenação pelos nossos tribunais, apenas que a pena anteriormente determinada deve ser descontada na que vier a ser cominada na jurisdição portuguesa (cf. art. 81.º, do Código Penal). Embora em plano normativo de âmbito diverso, são de

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não se altera no essencial quando se perspectiva a vigência transnacional do princípio agora do prisma do próprio direito internacional, em que não se pode afirmar a sua vigência nem como norma consuetudinária11, nem como fazendo parte dos princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas, nos termos do art. 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça12. Aliás, diga-se, mesmo importantes instrumentos de direito internacional que consagram expressis verbis a proibição de dupla prossecução parecem cingir a sua eficácia ao plano da jurisdição interna de cada Estado13. Como se mencionou, as dificuldades em conferir ao princípio ne bis in idem um âmbito de validade transnacional com carácter cogente para a comunidade integral dos Estados radicam em múltiplos e bastante complexos factores. Tais dificuldades, porém, diminuem em certa medida de intensidade quando do plano internacional global, profundamente assimétrico do ponto de vista político, cultural e jurídico se desce ao nível regional ou de comunidades parcelares de Estados14. Neste conspecto assume especial destaque, é manifesto, o espaço político-jurídico europeu, de modo particular o formado pela União Europeia15, a qual, ao referir as soluções constantes do § 153 b da legislação processual alemã e o § 34 Abs. 2 do Código penal austríaco que consagram a possibilidade de o Ministério Público não promover o processo por factos praticados fora do território nacional e já apreciados em jurisdição estrangeira. Sobre o tema, cf., por todos, LR-BEULKE, § 153c [=Löwe-Rosenberg, Die Strafprozeβordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz, Groβkommentar, 25. Aufl. (Hrsg. Peter Rieβ), Berlin: Walter de Gruyter, 2001], H. LANDAU (n. 2), 627 ss., espec. 638 ss, e, em sentido assaz crítico do preceito, R. MERKEL, «Universale Jurisdiktion bei völkerrechtlichen Verbrechen», in: Aufgeklärte Kriminalpolitik oder Kampf gegen das Böse (Hrsg. Klaus Lüderssen), Baden-Baden: Nomos, 1998, 243; para o direito austríaco, v. S. EBENSPERGER, «Strafrechtliches “ne bis in idem” in Österreich unter besonderer Berücksichtigung internationaler Übereinkommen», Österreichische Juristen-Zeitung 1999, 176. 11 Como realça A. CASSESE (n. 5), 319, «while the “internal” ne bis in idem principle may be held to be prescribed by a customary rule of international law, the legal status of the “international” equivalent principle is still controversial. It is not clear whether this principle has turned into customary international law»; cf., ainda, E. SCHESCHONKA (n. 7), 130 ss., G. CONWAY (n. 9), 217, MK-AMBOS Vor §§ 3-7 [=Münchener Kommentar zum Strafgesetzbuch, I (Hrsg. Bernd von Heintschel-Heinegg), Beck: München, 2003], Rn 73, H. LANDAU (n. 2), 633, J. VERVAELE, «The transnational ne bis in idem principle in the EU. Mutual recognition and equivalent protection of human rights», Utrecht Law Review 2005, 102. Em sentido crítico, v. R. EINDRISS/J. KINZIG, «Ein Straftat ― zwei Strafen. Nachdenken über ein erweitertes "ne bis in idem"», Strafverteidiger 1997, 665*. Reconhecendo a «emergência de uma tendência» no sentido de se estabelecer uma regra vinculativa de direito internacional sobre o ne bis internacional, cf. L. SILVA PEREIRA/T. ALVES Martins (n. 6), 316, nota 14, in fine. 12 Cf., com amplíssima indicação bibliográfica, C. AMALFITANO, Conflitti di giurisdizione e riconoscimento delle decisioni penali nella Unione europea, Milano: Giuffrè, 2006, 32 com nota 51, L. CORDI, «Il principio del ne bis in idem nella dimensione internazionale: profile generali e prospettive di valorizzazione nello spazio europeo di sicurezza, libertà e giustizia», L’Indice Penale 2007, 774 com nota 43, e, em profundidade, E. SCHESCHONKA (n. 7), 146 ss. Já o ne bis in idem material ou executivo (cf., supra, n. 2), consubstanciado na regra do desconto da pena decretada por tribunal estrangeiro, assume-se como princípio geral do direito internacional – na verdade, a esmagadora maioria das ordens jurídicas nacionais prescreve a operatividade do desconto também em relação a decisões de outros Estados, o mesmo acontecendo, ainda, em múltiplas convenções internacionais em matéria de cooperação judiciária (v. g, Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, de 28 de Maio de 1970 (art. 54.º), a Convenção Europeia sobre a Transmissão de Processos Penais, de 15 de Maio de 1972 (art. 36.º), a Convenção sobre a Aplicação do Acordo de Schengen, de 1990 (art. 56.º)). Sobre este ponto, cf. C. ALMAFITANO (n. 9), 937-39. 13 Pensamos, sobretudo, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Adiante se fará mais detida referência aos dois tratados. 14 Assim, também, M. HENZELIN (n. 9), 351. 15 A delimitação geográfica-política do chamado espaço judiciário europeu suscita não poucas aporias. Na verdade, sob uma aparentemente simples demarcação territorial: a Europa, escondem-se complexas linhas de sobreposição e oposição – o espaço dos países pertencentes ao Conselho da Europa, o espaço Schengen, o

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longo destes cinquenta anos que nos distanciam já do Tratado originário que lhe traçou os primeiros fundamentos, tem evoluído de forma considerável num rumo de maior aproximação entre os Estados e os povos que dela fazem parte e a constituem: depois de tantos outros domínios, considerados mais urgentes, necessários e consensuais, em que se buscou progressiva conflução, em ordem a uma «livre circulação de bens, pessoas, serviços e capitais»16, vieram a inscrever-se, por último mas com grande acuidade, as delicadas e multiformes dimensões convocadas pela intervenção penal – um campo cuja ausência não poderia protelar-se por mais tempo, agora que se procura «facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção, num espaço de liberdade, segurança e justiça»17. Ora, justamente, o problema da aplicação transnacional do princípio ne bis in idem tem assumido relevo crescente no âmbito do espaço judiciário da União, sobretudo desde a incorporação das disposições do chamado acervo de Schengen no direito comunitário levada a cabo pelo Tratado de Amesterdão. Sinais dessa nuclear importância são, sem dúvida, a assinalável e aprofundada reflexão juscientífica desencadeada pelo tema, bem como as diversas propostas de reforma do quadro normativo vigente. Sinais particularmente expressivos, ainda, são os que emergem da concreta realidade da vida e que se vêm condensando em significativa jurisprudência, quer das judicaturas nacionais quer, sobretudo, do Tribunal de Justiça das Comunidades, convocado já por diversas vezes para a resolução de questões atinentes ao alcance e sentido das normas que regem a aplicação comunitária do ne bis in idem. Com tudo isto presente, e também por nos parecer que o problema do ne bis in idem, ao implicar teste assaz sensível à política de cooperação judiciária da União, constitui um dos barómetros privilegiados para aferir a vontade efectiva de convergência e aproximação na matéria penal, bem como as suas limitações e fontes de instabilidade, traçamos de seguida breve enunciado preliminar das principais questões suscitadas a propósito da aplicação do princípio ne bis in idem no contexto jurídico recente da União Europeia. Assim, depois de sucinto levantamento dos factores desencadeantes de situações de bis in idem transnacional – sobretudo dos que se prendem com o âmbito de validade espacial penal dos ordenamentos nacionais – (II), procuraremos dar conta, ainda que apertada, de alguns momentos normativos essenciais no processo de consolidação da garantia (III), com referência particular às regras legais fixadas em Schengen, as primeiras a consignar com carácter vinculativo um ne bis in idem espaço da União Nórdica, o espaço das Comunidades e da União Europeia. Mesmo cingindo a nossa atenção a este último espaço, para o qual, aliás, se cunhou, em 1977, por mão do presidente francês Giscard d’Estaing, a referida fórmula e o projecto de criação de uma área integrada na cooperação judiciária, mesmo considerando, dizíamos, este espaço como o espaço judiciário europeu, ainda assim estamos distantes de uma zona totalmente uniforme (pense-se nas reservas feitas pelo Reino Unido a muitas das disposições em matéria de cooperação judiciária, ou dos incoincidentes momentos e termos com que os novos países aderentes se vão incorporando na União). Sobre o tema, entre outros, cf. ANABELA MIRANDA RODRIGUES/J. L. LOPES DA MOTA, Para uma política criminal europeia, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, 19 ss., ANABELA MIRANDA RODRIGUES, O direito penal europeu emergente, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, 27 ss., M. MANSDÖRFER (n. 7), 15, C. VAN DEN WYNGAERT, «L’“Espace Judiciaire Européen“: Vers une fissure au sein du Conseil de l’Europe?», Revue de droit pénal et de criminologie 1981, 511 ss., H.-J. BARTSCH, «Ne bis in idem: the European perspective», Revue international de droit pénal 2002 (73), 1163. 16 O enunciado provém do Acto Único Europeu (1987). 17 A conhecida formulação é do Tratado da União Europeia, artigo 29.

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transnacional no quadro europeu (IV); como horizonte ou fio condutor da análise dos problemas decorrentes da aplicação dos dispositivos de Schengen, privilegiaremos de modo especial a já mencionada jurisprudência que o Tribunal de Justiça, desde o caso inaugural Gözütok/Brügge, vem construindo sobre o tema, espelho paradigmático das antinomias emergentes quando se procura articular as exigências de um sistema jurídico (ainda) em constituição (o da União Europeia) em confronto com os sistemas jurídicos dos diversos Estados-Membros (V).

II

Tal como se referiu nas palavras introdutórias, um dado que aflora de modo muito visível quando se analisa o âmbito de incidência do ne bis in idem prende-se com a circunstância de a sua consagração no plano dos direitos internos da grande maioria dos Estados não encontrar paralelo no contexto das relações entre as distintas ordens jurídicas estaduais. Nesta sede, repete-se, o panorama é precisamente inverso: o ius puniendi continua a ser entendido como emanação privilegiada da soberania estadual pelo que a atribuição de eficácia interna às decisões penais proferidas por uma jurisdição estrangeira conhece sérias restrições. A questão, porém, não mereceria grande atenção caso as hipóteses reais de ocorrerem situações de bis in idem, resultantes da sobreposição de distintas jurisdições, fossem nulas ou insignificantes na prática. Não é isso que se verifica, no entanto; muito pelo contrário, as referidas hipóteses de sobreposição ou conflito jurisdicional transnacional têm vindo a aumentar de frequência – por um lado, porque o próprio fenómeno criminal se internacionalizou, pelo que cada vez mais o mesmo conjunto de factos criminais se pode repercutir em múltiplos ordenamentos estaduais; por outro, e em sintonia, porque o modo como os Estados estabelecem o âmbito de validade espacial do seu direito penal interno e, por consequência, determinam a sua competência ou jurisdição, potencia, em maneira não despicienda, o surgimento de hipóteses de bis in idem. a) A internacionalização da criminalidade tornou-se uma incontornável evidência do nosso tempo e constitui, sem dúvida, um dos maiores desafios colocados à hodierna política criminal, também ela obrigada a sair dos frágeis casulos tecidos com as linhas fronteiriças para se abrir a uma perspectiva de acção à escala supranacional. Como justamente se tem sublinhado18, a sociedade contemporânea, marcada pelos estigmas da informação, do risco e da globalização19, ao tornar o mundo mais exíguo, conferiu ao crime uma capacidade irradiante Entre outros e em data recente sublinhou-o Andreas Eicker, na abertura de circunstanciado estudo adrede dedicado ao tema do ne bis in idem internacional (A. EICKER, Transstaatliche Strafverfolgung: ein Beitrag zur Europäisierung, Internationalisierung und Fortentwicklung des Grundsatzes ne bis in idem, Herbolzheim: Centaurus Verlag, 2004, 1). 19 Atemo-nos em texto à já «clássica» tipologia de vectores com que se procura caracterizar a sociedade pósindustrial e pós-moderna em que vivemos: uma sociedade da informação (Informationsgesellschaft), uma sociedade do risco (Risikogesellschaft), uma sociedade globalizada (Weltgesellschaft). Estende-se a perder de vista a literatura sobre o tema, mesmo cingindo-a ao âmbito da penalística. Na doutrina portuguesa, confiram-se, entre outros, os atentos 18

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inimaginável até há bem poucos anos – pense-se na difusa criminalidade informática nascida das potencialidades oferecidas pela sociedade da informação, que a todos prende na rede subtil dos sistemas comunicacionais, e que se mostra capaz de pôr em perigo ou de lesar bens de pessoas e empresas nas mais diversas partes do planeta; pense-se, ainda, na enorme amplitude espacial que podem assumir os crimes contra o ambiente, sem dúvida um dos mais expressivos perigos (embora, infelizmente, não o único) que a sociedade do risco convoca; pense-se, por último, nos fenómenos do crime organizado e do terrorismo internacional, favorecidos pela crescente mobilidade que caracteriza a sociedade global. Estes exemplos, entre tantos outros que se poderiam juntar, mostram bem a sensível mutação na estrutura ou carácter do fenómeno criminal, também ao nível da sua projecção espacial20: a par da criminalidade estritamente interna, cujos elementos de conexão relevantes em termos de resposta punitiva se estabelecem com uma única ordem jurídica estadual, expande-se imparável uma criminalidade plurilocalizada que, apelando à intervenção concorrencial de múltiplos ordenamentos penais, traz implicada a possibilidade de ocorrerem situações de bis in idem internacional. b) Esta já em si mesma problemática possibilidade ganha, no entanto, uma amplificada ressonância quando se consideram as soluções normativas que disciplinam a aplicação no espaço das distintas ordens jurídicas penais21. Com efeito, a este propósito da concorrência de jurisdições internacionais sobre os mesmos factos (e consequentes hipóteses de cumulação de processos e punições) verifica-se a ausência, no plano do direito internacional, de um efectivo sistema de regras de conflitos que permita a devolução dos crimes plurilocalizados à competência de uma única jurisdição nacional. Pelo contrário, a forma como os direitos nacionais regulam o âmbito de validade espacial do respectivo direito penal e, em estudos de J. FIGUEIREDO DIAS, «O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”», in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, 583, ss., J. FARIA COSTA, «O fenómeno da globalização e o direito penal económico», in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, cit., 531 ss., ANABELA MIRANDA RODRIGUES, «Criminalidade organizada — que política criminal?», in: Globalização e Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, 191 ss. Com uma linha de horizonte não penal, deve atender-se, entre nós, ainda, ao denso ensaio de J. LOUREIRO, «Da sociedade técnica de massas à sociedade de risco: prevenção, precaução e tecnologias. Algumas questões juspublicísticas», in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, cit., 797-891. 20 De um veränderter Verbrechenscharackter fala, com razão, H. THOMAS, Das Recht auf Einmaligkeit der Strafverfolgung. Vom nationalen zum internationalen ne bis in idem, Baden-Baden: Nomos, 2001, 119. Num sentido mais amplo, Françoise Tulkens considera a internacionalização da criminalidade e da consequente resposta social uma «ruptura epistemológica» comparável à ocorrida nos finais do séc. XVIII e conducente ao direito penal moderno (cf. F. TULKENS, «La reconnaissance mutuelle des décision sentencielles. Enjeux et perpectives», in: La reconnaissance mutuelle des décisions judiciaires pénales dans l’Union européenne (ed. par G. de Kerchove e A. Weyembergh), Bruxelles: Editions de l’Université, 2001, 165). 21 Sobre o problema da «aplicação da lei penal no espaço», em profundidade, v. J. FIGUEIREDO DIAS (n. 10), 207232, J. FARIA COSTA, Noções fundamentais de direito penal (fragmenta iuris poenalis), Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 90-110, A. TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. Teoria Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, 208-237, L. BARRETO XAVIER, «Âmbito espacial de aplicação da lei penal portuguesa», Direito e Justiça 1997, I, 49 ss., D. OEHLER, Internationales Strafrecht, 2. Aufl., Köln / Berlin ...: Carl Heymanns, 1983, MK-AMBOS (n. 11), Vor §§ 3-7, Rn 17-75, C. BLAKESLEY, «Extraterritorial Jurisdiction», in: International Criminal Law, II, Procedural and Enforcement Mechanismus (ed. by M. Cherif Bassiouni), 2.ª ed., Ardsley/New York: Transnational Publishers, 1999, 33 SS; I. CAMERON, The Protective Principle of International Criminal Jurisdiction, Aldershot, etc.: Dartmouth, 1994, 16-21, 52-84; C. AMALFITANO (n. 12), 1-27.

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consequência, delimitam a esfera jurisdicional própria, contribui em medida assinalável para aumentar os referidos conflitos22. Como se sabe, a determinação dos critérios que regem a aplicação espacial do direito penal de cada Estado constitui por tradição assunto regulado pela respectiva lei interna23, que pode estender o seu âmbito de aplicação mesmo a factos praticados fora do próprio território – como se escreveu no leading case sobre o problema da aplicação extraterritorial da lei penal, o caso S.S. Lotus, julgado pelo Tribunal Permanente de Justiça Internacional em 1927: «The territoriality of criminal law, therefore, is not an absolute principle of international law and by no means coincides with territorial sovereignty»24. E na verdade, a maioria das ordens jurídicas estaduais, além de reservar plena jurisdição sobre os crimes cometidos no seu território, alargaa a certos factos cometidos no estrangeiro, verificando-se algum factor de conexão considerado relevante pela lei nacional25. Como resulta do texto, os conflitos de jurisdição referidos são de carácter positivo, de sobreposição concorrencial de jurisdições e, por conseguinte, hipóteses de bis in idem. Diga-se, de todo o modo, que apesar do âmbito abrangente com que se traça a aplicação espacial das leis penais, determinada, em larga medida, pelo assumido propósito de suprimir as zonas de impunidade, não são impensáveis situações de conflitos negativos, em que nenhuma ordem estadual assume o processamento dos factos. Um exemplo interessante deste tipo de fenómenos ocorreu no caso do líder curdo Abdullah Öcalan que «circulou» por diversos países europeus com competência jurisdicional sobre os factos de que era imputado, sem que nenhum deles, no entanto, viesse a exercer essa competência. Sobre o caso, veja-se O. LAGODNY, Empfiehlt es sich, eine europäische Gerictskometenz für Strafgewaltskonflikte vorzusehen? (Gutachten im Auftrag des Bundesministeriums der Justiz), Berlin, 2001, 24-5. 23 Expressão acabada do que se diz em texto encontramos em Binding que, entre os vários postulados constituintes do âmbito espacial do direito penal (o seu sachliche Geltungsgebiet), prescreve: «cada Estado soberano determina soberanamente o âmbito do seu direito penal» (den Umfang seiner Strafrechte bestimmt jeder souveräne Staat souverän). Cf. K. BINDING, Handbuch des Strafrechts, 1. Bd (Leipzig, 1885), Neudruck, Aalen: Sciencia Verlag, 1991, 354. Sem dúvida, esta visão extremada da soberania estadual, característica do positivismo estadualista fortemente dominante em finais do século XIX, não corresponde já aos quadros do hodierno pensamento jusinternacional; de todo o modo, nesta matéria os progressos têm sido cautelosos. 24 A decisão sublinha que os Estado não podem exercer poderes punitivos fora do respectivo território. Isto não significa, porém, que já não sejam livres de determinar o âmbito de validade espacial das suas leis penais de modo a abranger factos cometidos no estrangeiro. Pelo contrário: «far from laying down a general prohibition to the effect that States may not extend the application of their laws and the jurisdiction of their courts to persons, property and acts outside their territory, it leaves them in this respect a wide measure of discretion, which is only limited in certain cases by prohibitive rules; as regards other cases, every State remains free to adopt the principles which it regards as best and most suitable». A decisão sobre o caso S. S. Lotus pode ser encontrada em: http://www.worldcourts.com/pcij/eng/decisions/1927.09.07_lotus (esta citação e a contida em texto encontram-se no ponto III, respectivamente nas página 16 e 15 da versão electrónica, páginas 20 e 19 da publicação original) Na verdade, importa distinguir, por um lado, o exercício concreto de actos materiais por parte de cada Estado (jurisdiction to enforce), que se encontra confinada, salvo casos excepcionais, aos limites da sua soberania territorial, e, por outro, a competência que cada Estado dispõe de emanar normas jurídicas de alcance extraterritorial (jurisdiction to prescribe). Sobre o ponto, com numerosas referências, cf. C. AMALFITANO (n. 12), 1-13, I. CAMERON (n. 21), 3 ss. 25 Apesar da liberdade de princípio reconhecida aos Estados na conformação do âmbito de aplicação espacial do seu direito penal (da sua jurisdiction to prescribe), de que decorre, pois, a possibilidade de o estenderem a toda e qualquer infracção, praticada por quem quer que seja em qualquer parte do mundo (concepção universalística absoluta), a verdade é que a prática evidencia que a extensão espacial da jurisdição estadual depende da ocorrência de determinados pressupostos que funcionam, assim, como elementos conectores entre o crime em causa e o concreto ordenamento. Aliás, é detectável um esforço progressivo no panorama jusinternacionalista para limitar a referida conformação livre das regras da aplicação espacial da lei penal por parte dos Estados, como se mostra na Draft Resolution anexa ao Final Report da sessão de 1993 do Istitut de Droit International: «a State’s jurisdiction is 22

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Embora não apresentem idêntico alcance em todos os sistemas jurídicos nacionais26, os factores ou elementos de conexão reconduzem-se no essencial aos seguintes princípios: territorialidade; nacionalidade (activa e passiva); protecção dos interesses nacionais; universalidade27. Em maior ou menor grau, a aplicação destes elementos de conexão, logo considerados isoladamente, mas, sobretudo e como é frequente, quando funcionam em conjugação, suscita situações de bis in idem internacional. aa) O princípio fundamental em matéria de aplicação da lei penal no espaço é o princípio da territorialidade28: «o Estado aplica o seu direito penal a todos os factos penalmente relevantes que tenham ocorrido no seu território, com indiferença por quem ou contra quem foram tais factos cometidos»29. subject to international law», mostrando-se necessário para o exercício da jurisdição estadual, pois, um título razoável de legitimação decorrente da ordem jurídica internacional, que cabe ao concreto Estado provar (nestes termos, com mais referências, v. L. CORDI (n. 12), 768. Também o importante Restatement of the Law (third), preparado pelo American Law Institute postula o requisito da reasonableness (§ 403). Cf., ainda, C. AMALFITANO (n. 12), 9 ss; a autora sublinha, aliás, que embora o requisito da razoabilidade possa não ser claramente imposto pelo direito internacional, antes sejam razões de praticabilidade e oportunidade a determinar que os Estados delimitem, por meio de critérios conectores, o alcance espacial das respectivas normas penais, «a esfera de jurisdição é por isso de facto delineada entre limites mais circunscritos em face dos permitidos e o exercício da acção penal pressupõe de facto (e por regra) uma conexão se não significativa pelo menos „razoável“ entre ilícito e foro»; ob cit., 15). O exercício dos poderes jurisdicionais não deve fundar-se, por conseguinte, num âmbito de completa discricionariedade da soberania estadual, dependendo de um «meaningful contact» com a lei nacional em causa (sobre o sentido deste meaningful contact, cf. I. CAMERON (n. 21), 327 ss.) – sem esta estreita conexão, pois, a extensão extraterritorial da jurisdição e o exercício do ius puniendi podem revelar-se arbitrários e, mesmo, violadores da proibição de abuso do direito vigente no âmbito do direito internacional (cf., nesta direcção, A. EICKER (n. 18), 13). 26 Exemplo claro das divergências sugeridas em texto constitui a tradicional recusa do direito norte-americano em aceitar a conexão assente na nacionalidade passiva. Sobre o ponto, com referências, veja-se R. BOED, «United states Legislative Approach to Extraterritorial Jurisdiction in Connection with Terrorism», in: International Criminal Law, II, Procedural and Enforcement Mechanismus (ed. by M. Cherif Bassiouni), 2.ª ed., Ardsley/New York: Transnational Publishers, 1999, 145 ss., esp. 149-150. 27 Cf. H. THOMAS (n. 20), 114, C. BLAKESLEY (n. 21), 39, com referência à Draft Convention on Jurisdiction with Respect to Crime preparada pela «Harvard Law School’s Research on International Law» em 1935. Deixámos fora das nossas considerações, como se deu conta, o chamado princípio da administração supletiva da justiça penal (stellvertretenden Strafrechspflege), contemplado na nossa lei desde a reforma de 1998 (art. 5.º. n.º 1, al. e), do Código Penal) e segundo o qual a lei nacional é competente para conhecer de factos praticados no estrangeiro por estrangeiros que sejam encontrados em Portugal desde que a extradição do agente, apesar de requerida, não possa ser concedida. Por um lado, o princípio em causa não conhece, ainda, uma aceitação no plano do direito internacional semelhante à dos restantes factores de conexão; por outro, atentas as estritas condições de aplicabilidade e o seu específico carácter residual, assente justamente numa ideia de supletividade, não implica, só por si, situações de bis in idem internacional. Sobre a administração supletiva da justiça penal, cfr. J. FIGUEIREDO DIAS (n. 10), 208-9, 228-9; MK-AMBOS (n. 11), Vor §§ 3-7 Rn 58-60; D. OEHLER (n. 21), Rn 802-843. 28 Em profundidade sobre o critério da territorialidade, v. D. OEHLER (n. 21), Rn 55 ss., que oferece amplo panorama sobre a origem e a evolução do princípio, tanto no âmbito do direito continental como no sistema da common law. 29 J. FIGUEIREDO DIAS (n. 10), 208. Como se sabe, a territorialidade estende-se, por força do chamado «critério do pavilhão», acolhido na nossa lei no art. 4.º, al. b), aos factos praticados «a bordo de navio ou aeronaves portuguesas». Neste caso, diga-se de passagem, não fica excluída a aplicação concorrente de outra jurisdição ex vi critério da territorialidade, como acontecerá sempre que o navio ou aeronave se encontrem em águas ou espaços territoriais de Estado diverso do Estado do pavilhão. Sublinhe-se, ainda, que com a entrada em vigor do DL n.º 254/2003, de 18 de Outubro, a lei portuguesa é aplicável a certos crimes (aí taxativamente descritos) praticados a bordo de aeronave alugada a operador com sede em território nacional, bem como a bordo de aeronave

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Não se contesta que a regra da territorialidade, na vertente em que procura restringir30 a aplicação da lei penal do Estado aos factos cometidos no seu espaço territorial, concorre de forma decisiva para o aumento da harmonia internacional, acautelando em matéria deveras delicada o princípio da não ingerência em assuntos de Estados estrangeiros ― nesta medida, pois, a regra da territorialidade reduz os conflitos positivos de jurisdições31. No entanto, e tal como se encontra delineado, o critério em causa não elimina por inteiro as hipóteses de concurso de distintas jurisdições estaduais sobre os mesmos factos criminosos32. As situações de bis in idem decorrem, no essencial, da amplitude assumida na determinação do locus delicti na generalidade das legislações e da falta de harmonização a este propósito33. Com efeito, ao pretender evitar lacunas de punibilidade (conflitos negativos de jurisdições), muitas leis penais adoptam uma solução plurilateral ou mista assente num princípio de ubiquidade, considerando o facto praticado tanto no lugar da conduta como naquele em que se verifica o resultado34. Ora, como se intui, o funcionamento da regra da ubiquidade leva com facilidade à concorrência de jurisdições sobre o mesmo crime, apoiandose uma delas na circunstância de o comportamento do agente haver ocorrido no seu espaço territorial, enquanto a outra soberania faz valer o facto de os seus efeitos se produzirem dentro das respectivas fronteiras35. A sobreposição resulta particularmente visível nos crimes duradouros, ou em crimes que se fraccionam em múltiplos actos, ou nos chamados crimes itinerantes, de que o tráfico de estupefacientes constitui expressiva manifestação, mas que podem surgir até da mais comezinha situação de um condutor embriagado que atravessa as

estrangeira se o local de aterragem seguinte à prática do facto for em território português e o comandante do aparelho entregar o agente às autoridades portuguesas. 30 Com efeito, o princípio da territorialidade leva implicado uma dupla dimensão: positiva ou inclusiva ― a lei de um Estado aplica-se a todos os factos praticados no território desse estado; e uma dimensão negativa ou de exclusão, pois os factos cometidos aliunde estão fora da alçada penal desse Estado. Sublinhando justamente este aspecto, v. J. FARIA COSTA (n. 21), 90-91. 31 Assim, J. FIGUEIREDO DIAS (n. 10), 209, J. FARIA COSTA (n. 21), 91, MK-AMBOS (n. 11), Vor §§ 3-7, Rn 64. 32 Uma situação de que a doutrina há muito se deu conta: assim, já em 1889 Lammasch sublinhava que mesmo com a adopção universal do princípio da territorialidade a existência de múltiplas prossecuções não seria completamente anulada (H. LAMMASCH, «Ueber die Wirksamkeit strafrechtliche Urtheile des Auslandes», Der Gerichtssaal 41 (1889), 1). Em sentido contrário, Novella Galantini Sustenta que «se todos os países adoptassem o sistema da territorialidade […] obter-se-ia uma unilateralidade de processamento» (N. GALANTINI, Il principio del “ne bis in idem” internazionale nel processo penale, Milano: Giuffrè, 1984, 68-9). Como se dirá em texto, o actual desenho da territorialidade não providencia, contudo, o processamento exclusivo por parte de um Estado, antes concorre para a multiplicação de pretensões penais estaduais e, em consequência, para a sobreposição de jurisdições. 33 Na verdade, a «ideia de que o lugar da infracção é uma coisa fácil de determinar é, na maioria dos casos, uma ideia errónea, tal como é ilusório pensar que a infracção se realiza necessariamente num só local» (D. FLORE, «Reconnaissance mutuelle, double incrimination et territorialité», in: La reconnaissance mutuelle (n. 20), 74). 34 Foi esta a via adoptada na legislação portuguesa: artigo 7.º, n.º 1, do Código Penal. Soluções similares são correntes, como se disse, em muitas leis penais – v. g., Itália: art. 6; Alemanha: § 9; Áustria: § 67.2; Suíça: art. 7. No direito norte-americano distingue-se entre subjective e objective territoriality: a primeira exige que um elemento do crime (offense) ocorra no Estado, enquanto que para afirmar a objective territoriality é necessário que o «effect or result of criminal conduct impacts on the asserting state, but the other elements of the offense take place wholly beyond its territorial boundaries» (C. BLAKESLEY (n. 21), 47). 35 Cf. H. THOMAS (n. 20), 114, A. EICKER (n. 18), 14-16, O. LAGODNY (n. 22), 16.

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fronteiras do Estado36. Também os casos de omissão potenciam conflitos positivos, uma vez que o facto se considera cometido em todos os locais em que o omitente se encontrar durante o tempo da omissão37. Se a tudo isto fizermos acrescer, ainda, a importante circunstância de nas hipóteses de comparticipação criminosa o facto se ter por praticado no local em que qualquer um dos agentes, mesmo mero cúmplice, haja actuado, bem se compreende como o alcance do princípio de territorialidade se pode expandir amplamente. Aliás, esta «expansão» tem-se acentuado nos últimos tempos: entre outros aspectos38, sublinhe-se a tendência que vem sendo adoptada em diversas legislações para considerar como locus delicti das situações de tentativa «o local em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido»39. bb) A aplicação dos restantes factores de conexão espacial reconhecidos no plano internacional pode conduzir, também, a situações de concorrência de jurisdições estaduais sobre os mesmos factos e a consequentes hipóteses de bis in idem. A sobreposição não se mostrará muito expressiva quando o exercício dos poderes punitivos do Estado se fundar unicamente na circunstância de o agente do crime ser seu nacional (princípio da nacionalidade ou personalidade activa), apesar de nos dias de hoje as situações de múltipla nacionalidade apresentarem maior frequência40; ou quando decorrer apenas do chamado princípio da protecção dos interesses nacionais41. Essa sobreposição já assumirá, porém, contornos mais alargados quando se considere o funcionamento do princípio da personalidade passiva: a diversidade de nacionalidades das vítimas que facilmente resulta de um crime de massas (pense-se nos ataques terroristas a Nova Iorque ou Bombaim) faz emergir plúrimas pretensões punitivas estaduais42. Mais relevante para efeitos de concorrência de jurisdições é, sem sombra de dúvida, o

Um caso de condução sob efeito do álcool na fronteira germano-austríaca deu origem, precisamente, a um duplo processo: por um lado, as autoridades austríacas, no âmbito de um procedimento simplificado (Straferkenntnis), sancionaram o condutor com uma pena pecuniária administrativa (Verwaltungsgeldstrafe); por outro lado, e com base nos mesmos factos, um tribunal alemão aplicou pena de prisão de seis meses cuja execução veio a ser suspensa em recurso. Sobre o caso, R. EINDRISS/J. KINZIG (n. 11), 665-668. 37 Cf. C. MARKEES, «Mehrfache territoriale Gerichtsbarkeit, ne bis in idem und Auslieferung», Schweizerisches Jahrbuch für internationales Recht 1985, 123. 38 Tenha-se presente, por ex., que a nossa lei, desde 1998, considera o facto praticado também no lugar em que «o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido» (art. 7.º, n.º 1, parte final). Sobre este ponto, J. FIGUEIREDO DIAS (n. 10), 212-213. 39 Estes os termos introduzidos na nossa lei com a reforma de 1998 (art. 7.º, n.º 2, do Código Penal). Sublinha a estranheza, no plano dogmático, em considerar-se «como local da prática do facto o lugar onde o facto efectivamente não chegou a praticar-se», J. FIGUEIREDO DIAS (n. 10), 213. Solução ainda mais ampla é a contida na lei germânica, que abrange os meros actos preparatórios puníveis. Nesta linha «expansionista» caminha também a jurisprudência norte-americana em que a tradicional recusa em estender a jurisdição às hipóteses de tentativa realizadas no estrangeiro tem dado lugar, sobretudo no tráfico de estupefacientes, ao alargamento da objective territoriality de modo a abranger os meros crimes tentados em que o efeito projectado se devesse verificar nos Estados Unidos. Sobre este ponto, com amplas referências, veja-se C. BLAKESLEY (n. 21), 50, ss. 40 Chamando a atenção para este facto, v. H. THOMAS (n. 20), 117, A. EICKER (n. 18), 17. 41 A. EICKER (n. 18), 19. Para uma análise minuciosa do princípio da protecção, v. I. CAMERON (n. 21), passim. 42 H. THOMAS (n. 20), 117, A. EICKER (n. 18), 20. 36

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princípio da universalidade ou da aplicação universal43 (universal jurisdiction, Weltrechtsprinzip¸Weltrechtsplegeprinzip). No essencial, ele significa que uma ordem jurídica estadual se aplica a factos cometidos no estrangeiro, mas que «atentam contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional»44. Como tem sido sublinhado, o critério da universalidade assenta num princípio de solidariedade internacional45 perante manifestações criminais particularmente graves porque dirigidas contra bens jurídicos de elevada relevância no contexto do direito internacional, sobretudo na vertente protectora dos direitos humanos mais elementares46. De todo o modo, e focando a questão do prisma que nos (pre)ocupa (do concurso de jurisdições sobre o mesmo crime), é patente que o princípio agora em análise gera com grande facilidade situações de competências cumulativas47. Também por isso (embora, bem entendido, não prioritariamente por isso), se compreende que, apesar de se restringir a um leque relativamente reduzido de crimes e se lhe atribuir, em geral, carácter residual48, só podendo exercer-se a jurisdição com base neste princípio quando os outros princípios conectores não operem49 ou apenas quando estejam verificados ulteriores requisitos, como a presença do agente no território do Estado que invoca o critério da universalidade e a impossibilidade da sua extradição50, também por isso, dizíamos, continue a ser este o factor de conexão a suscitar Sobre o princípio da universalidade (universal jurisdiction) e as complexas questões de legitimação político-jurídica e de recorte dogmático que lhe são inerentes, existe já vasta literatura, que não cessa, aliás, de se expandir em ritmo acelerado. Para uma primeira aproximação, v. L. BENAVIDES, «The Universal Jurisdiction Principle: Nature and Scope», Anuario Mexicano de Derecho Internacional 1 (2001), 19-96, que apresenta um amplo panorama bibliográfico, MK-AMBOS (n. 11), Vor §§ 3-7, Rn 47-57, S. Z. FELLER, «Concurrent Criminal Jurisdiction in the International Sphere», Israel Law Review 16 (1981), 42, D. OEHLER (n. 21), Rn 878 ss., A. SÁNCHEZ LEGIDO, Jurisdicción universal penal y derecho internacional, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004, esp. 253 ss., R. MERKEL (n. 10), 237 ss. 44 J. FIGUEIREDO DIAS (n.10), 226. 45 D. OEHLER (n. 21), Rn 147, R. MERKEL (n. 10), 250-1. 46 Os termos em que a nossa lei consagra o princípio em causa expressam com clareza o que se refere em texto: o art. 5.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal (na formulação resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) indica taxativamente os crimes de escravidão (art. 159.º), tráfico de pessoas (art. 160.º), rapto (art. 161.º), abuso sexual de crianças (art. 171.º), abuso sexual de menores dependentes (art. 172.º), lenocínio de menores (art. 175.º), pornografia de menores (art. 176.º), danos contra a natureza (art. 278.º), poluição (art. 279.º) e poluição com perigo comum (art. 280.º), aos quais acrescem os crimes de terrorismo, nos termos do art. 8.º da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto (Lei de combate ao terrorismo), e os crimes contra o direito internacional humanitário previstos na Lei n.º 31/2004, de 22 de Julho (cf. o art. 5.º deste diploma). 47 H. THOMAS (n. 20), 115, A. EICKER (n. 18), 21. 48 Importa ter presente, com efeito, que, de modo diverso do que sucede em maior ou menor medida com os restantes critérios de determinação do âmbito espacial, no princípio da universalidade não se verifica uma conexão entre o agente e o Estado titular da pretensão punitiva. Na verdade, se esta conexão é manifesta no princípio da territorialidade e da nacionalidade activa, ela ocorre ainda quando o fundamento da aplicação da lei assenta na ideia de protecção, seja do bem jurídico lesado (princípio da protecção dos interesses nacionais), seja da própria vítima (princípio da nacionalidade passiva). Cf. A. EICKER (n. 18), 25. 49 L. BENAVIDES, Anuario Mexicano de Derecho Internacional 1 (2001), 32. 50 Como exemplo deste carácter subsidiário veja-se a nossa lei, art. 5.º, al. c), do Código Penal que faz depender a competência jurisdicional portuguesa da dupla condição de o agente ser encontrado em Portugal e não possa haver extradição, significando-se, assim, que é necessário «existir alguma conexão com o poder punitivo do Estado português» (J. FARIA COSTA (n. 21), 98), ou, no panorama internacional, a resolução do Institut de Droit International (Sessão de Cracóvia, 2005, n.º 3 b)): «Apart from acts of investigation and requests for extradition, the exercise of universal jurisdiction requires the presence of the alleged ofender in the territory of the prosecuting State or on board a vessel flying its flag ot na aircraft wich is registered under its laws, or other lawful forms of controlo ver the alleged ofender»). Diga-se, de todo o modo, que a referida subsidiariedade pode ser mais 43

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maiores reservas e dúvidas, sobretudo em face da sua crescente adopção nas legislações estaduais51. atenuada ou, até, inexistente na prática. Exemplo assaz expressivo disso foi, em tempo bem recente, a polémica legislação da Bélgica em matéria de crimes contra a humanidade, em vigor entre 1993 e 2003, e que permitia o exercício de poderes jurisdicionais com base no critério da universalidade mesmo não havendo aquele vínculo mínimo de o agente se encontrar em território belga – entre outros casos, recordem-se o processo contra o ministro da defesa israelita Ariel Sharon, considerado improcedente pela Cour de Cassation (apenas) com fundamento na imunidade política (cf., sobre o caso, A. CASSESE, «The Belgian Court of Cassation v. the International Court of Justice: the Sharon and others Case», Journal of International Criminal Justice 1 (2003), 437 ss.), as queixas apresentadas em 2003, por alegados crimes de guerra no Iraque, contra G. W. Bush e outros quadros superiores da administração americana (e que suscitou virulenta reacção por parte dos Estados Unidos, responsável, em grande medida, pela imediata alteração da lei por parte da Bélgica), ou, ainda, o controverso mandado de captura internacional emitido por um juiz de instrução de Bruxelas contra Abdulaye Yerodia, antigo ministro da República Democrática do Congo, cuja conformidade à luz do ius gentium veio a ser apreciada em relevante decisão do Tribunal Internacional de Justiça, proferida em 2002 (cf. o texto da decisão e os importantes votos discordantes, sobretudo da juíza Christine van Wingaert, em: http://www.icjcij.org/docket/index.php?p1=3&k=36&case=121&code=cobe&p3=4.). Apresentando uma crítica profunda da sentença, com extensa reflexão sobre o princípio da universalidade, v. N. SCHULTZ, «Ist Lotus verblüht?», Zeistschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht 2002, 703 ss, espec. 727 ss.; cf., ainda, sobre a jurisdição universal in absentia, considerando também a decisão do TIJ, R. RABINOVITCH, «Universal Jurisdiction in absentia», Fordham International Law Journal 28 (2004-2005), 500 ss., e, em geral, A. SÁNCHEZ LEGIDO (n. 43), 268 ss. Pra uma curta mas informada notícia sobre o panorama evolutivo da lei belga, v. S. R. RATNER, «Belgium’s War Crimes Statute: a Postmortem», American Journal of International Law 97 (2003), 888 ss. 51 Entre tantas vozes críticas, mencione-se a de George Fletcher em breve mas áspera nota dirigida, precisamente, «against universal jurisdiction», que rotula de «unwise and unjust», inter alia, por inverter, sublinha, a «ordem de prioridades» estruturante da resposta criminal, em que a protecção dos interesses dos acusados constitui o valor primacial, e por violar a garantia do ne bis in idem (double jeopardy) (cf. G. FLETCHER, «Against Universal Jurisdiction», Journal of International Criminal Justice 1 (2003), 580-84, e a atenta e dura réplica de A. ESER (n. 32), 995 ss.). Refiram-se, ainda, as reservas patentes numa certa linha jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal da Alemanha quando sustenta, ao arrepio da estrita letra do § 6 do StGB, que a aplicação do princípio da universalidade depende da verificação no caso concreto de um legítimo factor de conexão (eines legitimierenden inländischen Anknüpfungspunkts) que justifique a aplicação do direito interno alemão; faltando essa específica ligação, a prossecução penal por parte das autoridades alemãs violaria o princípio da não-ingerência nos assuntos internos de outro Estado soberano (cf. as decisões do Bundesgerichthof de 11.12.1998 e 30.04.1999, sobre casos de genocídio (Völkermord) na Bósnia, Neue Zeistschrift für Strafrecht 1999, 238 e 396, respectivamente, e a anotação discordante de Kai AMBOS, ibidem, 404 (405), por considerar que no caso de crimes particularmente graves contra bens jurídicos de relevo internacional, como o genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, a “ingerência” (Einmischung) está justificada à luz do direito internacional). Note-se, no entanto, que nem sempre é claro o conteúdo deste legitimierenden Anknüpfungspunkts, como se verifica em algumas controversas decisões dos tribunais alemães fundadas no princípio da universalidade relativas a infracções por tráfico de drogas já julgadas pelas autoridades holandesas e que provocaram aceso mal-estar político entre os dois países (sobre a polémica, C. F. RÜTER, «Ein Grenzfall: Die Bekämpfung der internationalen Drogenkriminalität in Spannungsfeld zwischen den Nierderlanden und der Bundesrepublik Deutschland», Juristische Rundschau 1988, 136 ss.; na mesma linha, R. MERKEL (n. 10), 240-1 que considera, aliás, incompatíveis com o direito internacional alguns dos casos de conexão ex vi critério da universalidade previstos no § 6 do Código Penal alemão). Também Dietrich Oehler se tem mostrado profundamente crítico do amplo espectro resultante do princípio da universalidade que acaba por permitir que qualquer Estado se considere competente para julgar e punir um crime cometido em qualquer lugar do mundo e que implica, em última instância, uma «intromissão na jurisdição estrangeira». Uma situação tanto mais grave quando esta aplicação se fizer sem se tomar em conta os interesses ou a ordem jurídica do Estado onde o facto foi praticado. Atendendo a estes perigos, Oehler sustenta que mesmo nos casos em que a natureza dos crimes justifica o funcionamento do critério da universalidade, a circunstância de o crime ter sido processado no Estado em que foi cometido ou no da nacionalidade ou, ainda, no Estado cujos interesses foram atingidos pelo facto, constitui um obstáculo processual (Verfahrenshindernis) que impede o exercício do ius puniendi ao abrigo do critério da universalidade (D. OEHLER (n. 21), Rn 149; no mesmo sentido, R. EIDRISS/J. KINZIG (n. 11), 666, T. VOGLER, «Nachwort», Juristische Rundschau 1988, 139). Por outro lado, a universalidade significa que todos os

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cc) A sumária exposição sobre os critérios de conexão espacial mais correntes no contexto internacional pôs em evidência que, considerando até de modo isolado cada um deles, são numerosas as hipóteses de surgirem conflitos entre jurisdições de distintos Estados exercendo em paralelo o seu poder punitivo sobre a mesma situação criminosa52. O panorama assume um relevo assaz acrescido quando se considere o funcionamento cumulativo e entrecruzado dos diversos princípios que comandam a aplicação espacial da ordem jurídico-penal, determinante de uma rede apertada de pretensões punitivas estaduais concorrentes53. Com efeito, e embora se possa reconhecer que no conspecto internacional a primazia pertence ao princípio da territorialidade54, assumindo os restantes um carácter subsidiário daquele55, a verdade é que, como se referiu já, não só falta no plano internacional uma hierarquização dos princípios56 Estados têm competência para conhecer do crime em causa, mas não que todos o possam efectivamente conhecer em simultâneo. Caso um Estado haja exercido a sua jurisdição penal com base na universalidade todos os restantes deveriam perder competência (D. OEHLER (n. 21), Rn 906). Por isso, acrescenta ainda o autor, a questão do ne bis in idem pertence à essência do princípio da universalidade, pelo que o desconto se mostra insuficiente. Estas propostas não têm recebido acolhimento no panorama jusinternacional. 52 S. Z. FELLER (n. 42), 42. 53 Neste sentido, cf. A. EICKER (n. 18), 25, O. LAGODNY (n. 22), 23. O funcionamento em rede dos diversos critérios conectores tem sido incrementado por diversas convenções de direito substantivo, designadamente relativas à protecção dos meios de transporte marítimo e aéreo (v. g., Convenção de Tóquio de 1963 sobre infracções e outros actos ocorridos a bordo de aeronaves, Convenção da Haia de 1970 sobre a repressão de actos ilícitos dirigidos contra a segurança da aviação civil, Convenção de Roma de 1988 para a repressão de actos ilícitos contra a segurança da navegação marítima), à luta contra a criminalidade organizada e transfronteiriça (v. g., Convenção europeia de 1990 sobre o branqueamento e apreensão dos produtos do crime) e, de modo particular, contra o terrorismo (v. g., Convenção das Nações Unidas de 1973 sobre a prevenção e repressão das infracções contra pessoas que dispõem de protecção internacional, Convenção internacional de 1997 para a repressão de atentados terroristas com explosivos, ou, no âmbito do direito comunitário, a importante Decisão-Quadro do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa à luta contra o terrorismo, já transposta para o nosso ordenamento e que mereceu judiciosas observações de J. FIGUEIREDO DIAS e de PEDRO CAEIRO em «A Lei de Combate ao Terrorismo (Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto). Sobre a transposição, para o direito português, da Decisão-quadro do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa à luta contra o terrorismo», Revista de Legislação e Jurisprudência, 135.º, nº 3935 (2005), 72 ss. 54 MK-AMBOS (n. 11), Vor §§ 3-7, Rn 64, R. MERKEL (n. 10), 259, S. Z. FELLER (n. 42), 40. Como sublinha Conway, a «tradicional proeminência do princípio da territorialidade reflecte-se no facto de as leis nacionais reconhecerem com mais facilidade o efeito de res judicata a um julgamento criminal doutro Estado caso a infracção haja sido cometido exclusivamente no estrangeiro» (G. CONWAY (n. 9), 225, n. 31). 55 Não se olvida, no seguimento do cunho subsidiário referido em texto, que o nosso Código Penal (e não só) restringe fortemente a aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional: apenas «quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação» (art. 6.º, n.º 1). De todo o modo, isto não significa que o sistema de determinação da competência espacial, mesmo com estas ressalvas, se mostre capaz de contornar por inteiro as situações de bis in idem. 56 MK-AMBOS (n. 11), Vor §§ 3-7, Rn 63. Com razão acentua Eicker que os princípios da aplicação espacial da lei penal pretendem dar resposta apenas à questão da conformidade ou compatibilidade (Vereinbarkeit) da pretensão punitiva estadual com o direito internacional, mas já não esclarecem sobre uma ordem de prioridade entre os diversos critérios conectores que seja válida ou cogente no plano internacional (A. EICKER (n. 18), 26-7); neste sentido já, O. LAGODNY, «Grundkonstellationen des internationalen Strafrechts» Zeitschrift für die gesamte Strafrechtwissenschaft 101 (1989), 1005; IDEM (n. 22), 44. Como realça B. HECKER, «Das Prinzip “ne bis in idem “ im Schengener Rechstraum (Art. 54 SDÜ)», Strafverteidiger 2001, 306, as regras do direito internacional penal são diferentes das previstas no direito internacional privado, pois não são regras de conflitos, regulando apenas a aplicação dos respectivos direitos nacionais. De todo o modo, diga-se, é possível afirmar uma certa tendência ou princípio orientador na ordenação dos diversos factores de conexão, consoante o Estado ao exercer o seu poder punitivo esteja a prosseguir interesses próprios (como ocorre em todos os casos em que o fundamento é a auto-

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como nem existem sequer modelos de articulação das hipóteses de conflito jurisdicional que indiquem, numa situação que toque várias ordens jurídicas estaduais, qual o direito aplicável e a jurisdição competente para, em termos exclusivos, proceder ao julgamento57, nem a previsão protecção do Estado: princípio da territorialidade, princípio da defesa dos interesses nacionais), interesses alheios (assim, em parte, no princípio da nacionalidade e, claramente, no caso da administração supletiva) ou, por último, interesses originários do direito internacional (conexão baseada na universalidade). Cf., MK-AMBOS (n. 11), Vor §§ 3-7, Rn 65 ss, que seguimos neste ponto. 57 As numerosas e complexas questões suscitadas em matéria de sistemas de resolução de conflitos entre distintas jurisdições estaduais não podem ser abordadas no âmbito circunscrito deste estudo. Não se ignora, no entanto, que o problema que nos convoca, já por diversas vezes se referiu, emerge da circunstância de concorrerem, a propósito dos mesmos factos, diversas ordens jurídicas, todas elas fundando a sua competência jurisdicional em um qualquer critério de conexão assumido como válido pelos respectivos direitos internos. Ora, resultando as situações de bis in idem internacional desta concursualidade de pretensões punitivas e, em consequência, de múltiplos fora penais em sobreposição ou intersecção, mais adequado do que uma mera norma negativa ou de preclusão consagrando a proibição do duplo processamento sucessivo (e é nisso, basicamente, que se traduz o princípio ne bis in idem) parece ser a resolução do conflito por meio da devolução do facto criminal plurilocalizado a uma única jurisdição, ao foro mieux placé. Na verdade, o funcionamento estrito do ne bis transnacional descura as hipóteses de litispendência, com todos os pesados inconvenientes e custos daí decorrentes, tanto para o indivíduo como para a administração da justiça. Por outro lado, ainda, a regra do ne bis não determina qualquer critério de hierarquia entre as diversas jurisdições estaduais concorrentes, apenas que, caso numa delas o processo tenha sido julgado, todas as demais perdem competência judicativa – trata-se, pois, de uma mera prioridade temporal da decisão que mais rapidamente foi obtida, determinada por um puro «princípio do acaso» (assim, O. LAGODNY (n. 22), 11: Zufallsprinzip), sem curar de saber se esse Estado era ou não aquele em que os diversos interesses em jogo (da investigação, do material probatório, da defesa do arguido e da sua ressocialização caso condenado, das exigências de prevenção geral…) poderiam ser acautelados de forma mais integral e coerente. Em face deste quadro, não têm faltado propostas em ordem à elaboração de modelos normativos dirimentes das situações conflituais, verifiquem-se elas in concreto, isto é, com um conflito entre processos já efectivamente instaurados em duas ou mais jurisdições, ou mesmo na vertente mais abstracta da prevenção antecipada de potenciais conflitos, por via de regras que fixassem de modo genérico e vinculativo a ordem preferencial de competências. Nesta linha, e sem propósitos de exaustivo inventário, recordem-se, entre projectos normativos e textos legais que estabelecem critérios de ordenação entre as diversas jurisdições em concurso: a) Convenção entre as Partes do Tratado Atlântico Norte, de 19 de Junho de 1951 (Estatuto das tropas da NATO): os militares de um Estado estacionados noutro Estado podem estar sujeitos, em princípio, a ambas as jurisdições. O Estatuto regula os conflitos, atribuindo jurisdição preferencial, segundo os casos, ora ao Estado do território ora ao Estado a que pertencem as tropas (sobre o tema, com desenvolvimento, v. O. LAGODNY (n. 22), 88-97, R. KNIEBÜHLER (n. 7), 330-33; b) Draft European Convention on Conflicts of Jurisditcion in Criminal Matter (Doc. 1873), elaborado no quadro do Conselho da Europa em 1965 – tendo como pano de fundo a convicção de que um conflito de jurisdições «is undesirable and may, in particular, have the consequence, unacceptable in law, that a single person may be tried successively by courts in several States for the same offence», o projecto sustenta uma redução dos princípios de conexão ao princípio da territorialidade (que é o prioritário, ressalvada a hipótese de o crime se dirigir contra a segurança de um Estado, em que o Estado ameaçado poderia exercer o poder punitivo), da nacionalidade (ou Estado da residência), e do local da detenção, excluindo, assim, o critério da nacionalidade passiva (para uma análise mais circunstanciada desta Recomendação, v. O. LAGODNY (n. 22), 45 ss.); b) Convenção Europeia sobre a Transmissão de Processos Penais, de 1972 (art. 8); c) Convenção Europeia sobre a Transmissão de Processos Penais de 1972 (art. 8); d) Plano de Acção relativo ao reconhecimento mútuo das decisões penais (30-11/1-12 de 2000, publicado no JOCE C 12, de 15 de Janeiro de 2001); e) Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento europeu sobre o reconhecimento recíproco das decisões definitivas em matéria penal (publicada no JOCE C 34 E, de 7 de Fevereiro de 2002); f) Iniciativa da República Helénica tendo em vista a adopção de uma decisão-quadro do Conselho relativa à aplicação do princípio ne bis in idem (JOCE C 100, de 26 de Abril de 2003, 24 ss.) em que se dá «preferência ao Estado-Membro do foro que melhor garanta a adequada administração da justiça, tomando em consideração os seguintes critérios: aa) o Estado-Membro em cujo território tiver sido praticada a infracção, bb) o Estado-Membro de que seja nacional ou residente o autor da infracção, cc) o Estado-Membro de origem das vítimas, dd) o Estado-Membro em que tiver sido encontrado o autor da infracção»; caso haja, como é provável, vários Estados competentes, a Framework grega propõe que as diversas autoridades estaduais escolham o Estado-Membro do foro ao qual deve ser dada preferência, sustendo-se de imediato a instância nos demais Estados preteridos; g) Livro verde sobre os conflitos de competência e o princípio ne bis in

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idem no âmbito dos procedimentos penais, instrumento de consulta preparado pela Comissão das Comunidades Europeias (COM(2005) 696 final, disponível em: http://ec.europa.eu/justice_home/news/consulting_public/conflicts_jurisdiction/com_2005_696_pt.pdf)– reconhecendo que o principio ne bis in idem «não evita os conflitos de competência quando são desencadeados múltiplos procedimentos penais em dois ou mais Estados-Membros», pois «só se aplica para evitar um segundo procedimento penal sobre o mesmo facto se uma decisão põe termo ao procedimento num Estado-Membro e impede, por conseguinte, um novo procedimento penal» e que «sem um sistema de atribuição dos processos à jurisdição adequada durante a sua tramitação, o princípio ne bis in idem pode produzir resultados aleatórios ou mesmo arbitrários: ao dar preferência à primeira jurisdição que pode proferir uma decisão final, produz-se um efeito análogo ao do “princípio da ordem de chegada”», pelo que «a escolha da jurisdição é actualmente uma questão aleatória», sustenta-se no Livro verde que uma solução para «o problema dos conflitos (positivos) de competência poderia ser a criação de um mecanismo de atribuição dos processos à jurisdição adequada», pois «se os procedimentos forem concentrados numa única jurisdição, a questão sobre o princípio ne bis in idem deixará de colocar-se». Assim, o documento avança uma proposta de criação de um «mecanismo que facilitaria a escolha da jurisdição mais adequada», que integraria o intercâmbio de informações entre os Estados, bem como, no caso de haver vários Estados interessados em exercer a acção penal, um debate entre eles de que poderia resultar logo a escolha da jurisdição competente. Para os casos em que tal consenso falhe, prevê o Livro verde a «intervenção de um organismo da EU que actue como mediador» e, a longo prazo, a atribuição a uma entidade da União (que o Livro verde não concretiza) de poderes vinculativos de resolução do conflito. O documento propõe, ainda, um conjunto de critérios de preferência no exercício da jurisdição, como a territorialidade, os aspectos atinentes ao arguido, os interesses das vítimas, etc. Para mais desenvolvimentos, v. os Comentários elaborados pelo Gabinete de Relações Internacionais do Ministério da Justiça português (GRIEC) sobre o Livro verde da Comissão relativo Conflitos Jurisdição e ne bis in idem, 2006, disponíveis na página http://ec.europa.eu/justice_home/news/consulting_public/conflicts_jurisdiction/contributions/portugal_pt.pdf , L. SILVA PEREIRA/T. ALVES MARTINS (n. 6), 333-353, e M. FLETCHER, «The Problem of Multiple Criminal Prosecutions: Building an Effective EU Response», Yearbook of European Law 2007 (26), 33 ss. No plano doutrinal, o tema da resolução de conflitos de jurisdições tem merecido, como se imaginará, recorrente e desenvolvida reflexão, seja acentuando a necessidade precisamente de acordos internacionais que repartam as competências de modo a evitar processamentos sobreponíveis (assim, entre tantos, H. SCHERMERS, «Non bis in Idem», in: Du droit international au droit de l’intégration. Liber Amicorum Pierre Pescatore (Hrsg. F. Capotorti, C.-D. Ehlerman et al.), Baden-Baden: Nomos, 1987, 611), seja propondo modelos mais ou menos complexos de regras de conflitos. Particularmente sugestivas neste ponto são, sem dúvida, as soluções constantes da denominada Freiburg Proposal, resultante de um projecto de investigação patrocinado pelo Max Planck Institut für ausländisches und internationales Strafrecht, e que pretende traçar, nas palavras de Albin ESER em prefácio ao referido estudo, «a model for a comprehensive solution for the avoidance of concurrent and / or consecutive transnational criminal jurisdiction on the same facts» (A. BIEHLER/R. KNIEBÜHLER/J. LELIEUR-FISCHER/S. STEIN (eds.), Freiburg Proposal on Concurrent Jurisdictions and the Prohibition of Multiple Prosecutions in the European Union, Freiburg im Breisgau: edition iuscrim, 2003, 4). Como se explicita nas considerações introdutórias, a Freiburg Proposal apresenta uma resposta em três níveis: em primeiro lugar, a coordenação de competências entre jurisdições concorrentes; de seguida, e caso aquela coordenação haja falhado in concreto, o nível de funcionamento do princípio ne bis in idem; e, por último, o nível de aplicação do mero princípio do desconto, na hipótese de terem ocorrido na situação concreta múltiplas condenações. No tocante ao primeiro nível de actuação, a proposta apresenta um princípio material orientador para a determinação do forum competente: deve ser dada preferência ao Estado que mais garantias ofereça de uma «proper administration of justice». Esta cláusula geral é depois informada por um conjunto de critérios concretizadores: território do facto, nacionalidade ou residência do suspeito, nacionalidade da vítima, localização do material probatório, lugar mais adequado para a execução da pena, local da detenção, outros interesses fundamentais de um Estado-Membro (cf. § 1, n.º 3, da proposta). Prevê-se, ainda, o recurso para o Tribunal de Justiça das Comunidades como meio controlo da decisão tomada pelos Estados (§ 2) ou para determinar qual a jurisdição competente quando os Estados não tenham chegado a acordo (§ 3). Soluções similares haviam sido já avançadas também por Otto Lagodny que, em diversos estudos, tem consagrado ao problema do conflitos de distintas jurisdições estaduais ampla atenção (cf. O. LAGODNY (n. 22), IDEM, «Viele Strafgewalten und nur ein transnationales ne-bis-in-idem?», in: Strafrecht, Strafprozessrecht und Menschenrechte. Festschrift für Stefan Trechsel zum 65. Geburtstag (Hrsg. A. Donatsch, M. Forster, C. Schwarzenegger), Zürich, etc.: Schulthess, 2002, 253-267). Para Lagodny, os inconvenientes da sobreposição de múltiplas jurisdições (Strafgewaltkonflikte) não encontram resolução adequada com a garantia ínsita ao ne bis in idem, pois este apenas confere uma prioridade fáctica à decisão estadual tomada em primeiro lugar, tenha essa primazia resultado de um puro acaso (o já referido

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de uma instância à qual se deferisse com carácter vinculativo a resolução do conflito jurisdicional resultante da concorrência de pretensões punitivas dos diversos ordenamentos 58. As situações de conflitos de jurisdições, quer entre distintos Estados, quer entre Estados e Tribunais ou outras instituições de direito internacional com competência em matéria penal, constituem, pois, uma realidade corrente e em franca tendência expansiva59, com todas as Zufallsprinzip) ou seja fruto, até, de um autêntico forum shopping (O. LAGODNY, ult. ob. cit., 260-1). Pelo contrário, torna-se necessário estabelecer um «princípio de qualidade» (Qualitätsprinzip) que permita a redução dos conflitos e a determinação final de uma só jurisdição competente. No caso de haver vários Estados que, por força dos diversos princípios conectores, podem exercer a acção penal sobre os mesmos factos, a solução não reside numa escolha entre um daqueles elementos de conexão espacial, numa resposta de tipo «sim/não»; antes, numa resposta de «mais-menos (Mehr/Weniger), implícito numa ideia de «concordância prática» entre os interesses individuais e estaduais. Dessa ponderação ressaltam diversos factores: o lugar da prática do facto, razões de economia processual (grau de disponibilidade dos meios de prova, existência de outros processos contra o mesmo arguido), o Estado de residência do suspeito, exigências de socialização, o Estado em que se verificou o «ilícito-típico característico» (Charakteristisches Unrecht). Assim, conclui Lagodny, um Estado deve considerar-se o mais adequado para exercer o poder punitivo quanto mais (je merh) for o Estado da prática do facto, quanto mais meios de prova estiverem disponíveis nesse Estado, etc. (O. LAGODNY, ult. ob. cit., 264-5 e, desenvolvidamente, O. LAGODNY (n. 22), 104 ss.). A aplicação dirimente destes critérios deveria pertencer, para o autor, ao Tribunal de Justiça das Comunidades (cfr. as duas últimas obras citadas, 266 e 127 ss.). Também na doutrina portuguesa a questão não tem passado despercebida. Vejam-se, com efeito, as sugestivas considerações avançadas por Luís Silva Pereira e Teresa Alves Martins. Os autores, tendo como pano de fundo a leitura crítica do Livro verde, defendem a necessidade de se superar a sobreposição de jurisdições e a consequente possibilidade de múltiplas prossecuções e condenações – tal necessidade é baseada quer numa «aceitável ponderação do «princípio da equidade, por forma a permitir uma adequada resposta a todas as situações que constituem a fonte dos conflitos internacionais de jurisdição», quer outrossim, e ponto assaz significativo, «na concessão ao arguido dos mesmos direitos processuais na reclamação de uma unidade de acção retributiva pelos factos de que é, ainda, suspeito de ter cometido». Assim, concluem que «qualquer pessoa […] confrontada com uma perseguição criminal simultânea pelos mesmos factos em países diferentes, deveria ter a possibilidade de solicitar um mecanismo de coordenação para a atribuição de competência exclusiva a uma só jurisdição» (L. SILVA PEREIRA/T. ALVES MARTINS (n. 6), 339-340). Este último aspecto é enfatizado quando afirmam, em relação ao problema da falta de acordo entre os Estados concorrentes sobre qual a jurisdição competente para o caso, deve ser admissível «a concessão ao arguido de um direito, ainda que limitado, à escolha da jurisdição de julgamento» (ibidem, 341). De todo o modo, e para a determinação de qual deve ser o foro competente, os autores, tendo em conta o quadro normativo actualmente viável, sublinham o papel da EUROJUST como mediador adequado no processo de atribuição de competências, bem como o bem fundado de se proceder a um elenco dos critérios relevantes para a resolução do conflito – «embora não os sujeitando a uma qualquer ordem hierárquica nem lhes atribuindo um determinado valor específico por forma a que o conflito possa vir a ser resolvido através da aplicação de uma simples fórmula ou equação matemática» –, critérios esses informados pela ideia dos «superiores interesses de uma eficaz administração da justiça» (ibidem, 350-1). 58 Como se referiu na nota anterior, vão aumentando as vozes que propõem, para o espaço judiciário da União, que essa função dirimente seja confiada ao Tribunal de Justiça das Comunidades. 59 Como tem sido justamente sublinhado, o fenómeno de sobreposição de jurisdições de diferentes Estados sobre o mesmo crime apresenta uma justificação material: o interesse em evitar a impunidade do agente do crime, prevenindo, pois, situações de vazio nos regimes normativos estaduais que determinam o âmbito de validade das respectivas leis penais (conflitos negativos de jurisdições). Deste modo, se explica a crescente e cada vez mais apertada rede de pretensões penais por parte dos diversos Estados (de Netzgedanken fala, precisamente, O. LAGODNY (n. 57), 263). Por outro lado, destaca agora S. FELLER (n. 42), 43, a existência de sobreposições jurisdicionais (overlapping) mostra-se desejável por força de um fundamento ulterior: ela permite uma abordagem pluralística dos Estados na determinação do âmbito de incidência espacial das normas criminais, que é fruto das características culturais e históricas específicas de cada país. Daí que conclua: é preferível que cada Estado determine a extensão da sua própria política criminal no tocante a crimes cometidos no estrangeiro o mais possível sem limitações e sem o receio de surgirem conflitos de competências. Mas ainda que se conceda alguma razão a esta linha argumentativa, já não podemos acompanhar o autor, porém, na sua análise sobre os termos em que ocorrem hipóteses de efectivo bis in idem como consequência do overlapping. Sustenta Feller que não se trata de

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consequências negativas, quer para os direitos das pessoas atingidas por múltiplas prossecuções penais, quer até no tocante às relações políticas e judiciárias entre os Estados com competências concorrenciais sobre os factos; na verdade, eventuais respostas punitivas muito díspares para o mesmo crime por parte das distintas jurisdições estaduais, não representa apenas a salutar expressão das específicas mundividências político-criminais que cada uma das ordens jurídicas encarna – essa acentuada divergência de tratamento para a mesma fattispecie exprime ainda mais ou menos velada censura às opções tomadas pelo outro Estado60.

III

Em face do quadro global que acima resumidamente se descreveu, e que resulta, sem dúvida, da nem sempre fácil concatenação entre o desenvolvimento de instrumentos eficazes na luta contra o crime transfronteiriço, por um lado, com os não menos delicados imperativos de tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana, de modo particular dos suspeitos e arguidos em processos-crime, por outro, não surpreende a progressiva atenção que vem sendo votada ao tema (digamo-lo de forma translata) da articulação supranacional das diversas instâncias de resposta à criminalidade, rumo a uma cada vez mais eficiente cooperação internacional, se ainda não de uma generalizada aproximação ou harmonização dos diversos sistemas jurídicos – estádio ainda tributário da utopia e da «ilusão prometeica»61 de um «acorde perfeito» –, pelo menos de uma solução capaz de integrar certo espectro de ruído e de «cacofonia»62, como é a via informada pelo princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais63, e em que mecanismos como a transferência policial e judiciária de informações, bases uma questão de idem, de identidade dos crimes no sentido pleno do termo, porque a estrutura de cada um dos crimes contém um elemento vital que a outra não possui. Esse elemento diferenciador, esclarece o autor, reside no factor de conexão, no link que liga o crime a cada Estado. Assim, se a lei criminal do Estado A se aplica a uma infracção apenas porque ela foi cometida no seu território soberano, este facto é um elemento constitutivo da infracção, pois na sua ausência aquele facto nem sequer seria considerado criminoso em face da lei. Do mesmo modo, se uma infracção for cometida parte no território do Estado A e parte no território do Estado B, o crime, in toto, é considerado um facto criminoso de acordo com a lei penal de cada um desses Estados por causa da parte que foi cometida no território de cada um. Em consequência, a concreta conexão (linkage) do crime a cada um dos Estados é diferente, embora a sua classificação como conexão territorial seja a mesma. Assim, conclui Feller, existem, de facto, duas infracções, cada uma das quais contém um elemento relevante diverso, pelo que falar de «mesmo crime» não se mostra muito rigoroso. Como se escreveu, não acompanhamos esta posição, na medida em que ela confunde, em nosso entender, o problema central: a mesmidade ou identidade do crime (seja qual for o critério com que esta se há-de aferir), com a autónoma questão da conexão desse facto a uma única ou, ao invés, a duas ou mais ordens jurídicas estaduais (o problema do link) ― na verdade, a conexão plúrima não transforma, por si só, os mesmos factos em crimes distintos. 60 B. HECKER (n. 55), 306-311, C. F. RÜTER (n. 51), 136 ss. 61 A imagem é de G. KERCHOVE, «L’espace judiciaire pénal après Amsterdam et le sommet de Tampere», in: Vers un espace judiciaire penal européen/Towards a European Judicial Criminal Area (ed. par G. Kerchove et A. Weyembergh), Bruxelles: Editions de l’Université, 2000, 13. 62 Assim, F. TULKENS (n. 20), 168: «Alors que l’harmonisation vise à l’accord parfait, la reconnaissance mutuelle accepte un certain degré de cacophonie». 63 O âmbito e o propósito deste estudo não se estendem à análise, ainda que perfunctória, da ampla problemática inerente ao princípio do reconhecimento mútuo, embora se reconheça que é necessário tê-la presente no

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de dados64, meios de prova65 e processos66, bem como a possibilidade da execução de penas (de prisão67 ou pecuniárias68) e de mandados de captura69 decretados num país ser realizada noutro, ou, ainda, a consecução de modelos dirimentes dos conflitos de jurisdições70 têm constituído horizonte reflexivo sobre o ne bis in idem transnacional e europeu. Refira-se, de todo o modo, que o crescente alargamento do princípio do reconhecimento mútuo em matéria penal no direito da União Europeia (considerado como verdadeira «pedra angular» da cooperação nas conclusões do Conselho Europeu de Tampere, em 1999), entre aplausos e encómios, tem sido também alvo de muitas reservas e objecções, decorrentes da erosão que tal princípio pode traduzir para as garantias das pessoas, sobretudo arguidos e suspeitos, nos quadros do processo penal conforme ao Estado de direito. Entre as vozes mais asperamente críticas do que designa por «turbo princípio do reconhecimento mútuo», conta-se sem dúvida a de Bernd Schünemann – o reconhecimento mútuo constitui, na dura iconografia do autor, um autêntico «lobo com pele de cordeiro» ou um «cavalo de Tróia» (B. SCHÜNEMANN, «Fortschritte und Fehltritte in der Strafrechtspflege der EU», Goltdammers’Archiv für Strafrecht 2004, 193-209, esp. 202-205), por levar implicada uma expansiva executividade do poder punitivo por todo o espaço europeu, lesando de modo sensível e preocupante o necessário equilíbrio entre as liberdades individuais e as prerrogativas da investigação criminal que já não caminhariam a par, antes em duas distintas velocidades (zwei Verschwindigkeiten), com perdas para o lado da tutela das pessoas (IDEM, «Bürgerrrechte ernst nehmen bei Europäisierung des Strafverfahrens!», Strafverteidiger 2003, 116 ss., 122). Cf., no mesmo sentido crítico, C. NESTLER, «Europäisches Strafprozessrecht», Zeitschrift für die gesamte Strafrechtwissenschaft 116 (2004), 332. Para mais aprofundamentos sobre o princípio do reconhecimento mútuo, entre volumosa bibliografia, cf. as comunicações publicadas em La reconnaissance mutuelle des décisions judiciaires pénales dans l’Union européenne (n. 20) e Vers un espace judiciaire penal européen (n. 61), ANABELA MIRANDA RODRIGUES/J. L. LOPES DA MOTA (n. 15), 54 ss., R. J. B. MATOS, «O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu», Revista Portuguesa de Ciência Criminal 2004, 325 (327-342), M. de HOYOS SANCHO, «El principio de reconocimiento mutuo de resoluciones penales en la Unión Europea: ¿Asimilación automática o corresponsabilidad?», Revista de Derecho Comunitário Europeo 2005, 807-842, M. BÖSE, «Das Prinzip der gegenseitigen Anerkennung in der transnationalen Strafrechtspflege in der EU», in: Fragmentarisches Strafrecht (Hrsg. C. Momsen, R. Bloy, P. Rackow), Frankfurt am Main, etc.: Peter Lang, 2003, 233-250, S. GLEΒ, «Zum Prinzip der gegenseitigen Anerkennung», Zeitschrift für die gesamte Strafrechtwissenschaft 116 (2004), 353-367, I. BANTEKAS, «The principle of mutual recognition in EU criminal law», European Law Review 2007 (32), 365 ss. 64 Tenha-se em consideração o Sistema de Informações de Schengen (SIS). 65 Veja-se a Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, de 20 de Abril de 1959, ratificada por Portugal em 1994, a Convenção relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, celebrada entre os Estados-Membros da União Europeia, de 29 de Maio de 2000 e ratificada em 2001. Tenha-se, ainda, em consideração o projecto de Decisão-Quadro do Conselho relativa a um mandado europeu de obtenção de provas para recolha de objectos, documentos e dados a fim de serem utilizados no âmbito de procedimentos penais (COM (2003)688), objecto de propostas de alteração em 2004 e 2008 por parte do Parlamento Europeu (cf. JOCE C 10/E 659, de 29 de Abril de 2004 e a página do Parlamento Europeu de 21 de Outubro de 2008). 66 Cf. a Convenção do Conselho da Europa sobre a Transmissão de Processos Penais, de 15 de Maio de 1972, já assinada por Portugal, mas ainda não ratificada. 67 Cf. a Convenção do Conselho da Europa relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, assinada em 21 de Março de 1983 e que entrou em vigor no nosso país em 28 de Junho de 1993. 68 Tenha-se em vista, por exemplo, a Decisão-Quadro relativa ao reconhecimento mútuo das sanções pecuniárias 2005/214/JAI, do Conselho, de 14 de Fevereiro de 2005 69 O mandado de detenção europeu foi criado pela Decisão-Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13.06.2002 (JOCE L 190, de 18 de Julho de 2002) e concretizado no plano do direito interno português pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto. Para uma abordagem mais detida da figura, cf., entre nós e com referências, ANABELA MIRANDA RODRIGUES, «O mandado de detenção europeu ― na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?», Revista Portuguesa de Ciência Criminal 2003, 27 ss., R. J. B. MATOS (n. 63), 325 [343 SS.] e, em profundidade, M. GUEDES VALENTE, Do mandado de detenção europeu, Coimbra: Almedina, 2006. 70 Este aspecto da «prevenção de conflitos de jurisdições», recorde-se, encontra-se consagrado no art. 31.º, alínea d), do Tratado da União Europeia como um dos objectivos da «acção comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal», bem como no malogrado Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (JOCE C 310, de 16 de Dezembro de 2004), art. III-270, n.º 1, al. b) e no art. 82, alínea b, do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (JOCE C 115, de 9 de Maio de 2008), ainda aguardando as necessárias ratificações ao Tratado de Lisboa). Sobre o problema, com maior desenvolvimento, veja-se, supra, nota 57.

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alguns dos vectores mais determinantes no panorama complexo e em permanente reformulação que caracteriza o actual rumo da política criminal europeia e no qual a conformação normativa do princípio ne bis in idem em termos de eficácia transnacional, pelos delicados equilíbrios que demanda, constitui mesmo autêntico ponto nevrálgico71. Como, aliás, um breve relance por alguns momentos significativos do processo de configuração da garantia põe a descoberto. 1. Embora no plano do direito internacional pactício as primeiras concretizações normativas do ne bis in idem tenham ocorrido em convenções de direito material72 e nos tratados de cooperação judiciária e de extradição73, não há dúvida que a sua natureza marcadamente garantista explica que uma via privilegiada para a sua difusão se haja dado pelos instrumentos de ius gentium vocacionados para consagração e tutela dos direitos fundamentais74. No conspecto jurídico europeu, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos75 assumem, consabidamente, decisivo relevo76.

Nas palavras de Hans-Jürgen Bartsch, um «indicator of progress towards European integration would be the right of the European citizen not to be tried or punished twice for the same offence, regardless of the jurisdiction in which he had been subjected to criminal proceedings» (H.-J. BARTSCH (n. 15), 1163). 72 Uma referência a essas Convenções pode ser colhida em M. HENZELIN (n. 9), 351 ss. 73 Entre outras, refiram-se, no quadro do Conselho da Europa, a Convenção Europeia de Extradição, de 13 de Dezembro de 1957 (art. 9.º), a Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, de 28 de Maio de 1970 (arts. 53.º a 57.º), a Convenção Europeia sobre a Transmissão de Processos Penais, de 15 de Maio de 1972 (arts. 35.º a 37.º), a Convenção Europeia relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos produtos do Crime, de 8 de Novembro de 1990 (art. 18.º, n.º 1, al. e): ne bis in idem facultativo). Uma breve análise destes normativos pode obter-se em. S. EBENSPERGER (n. 10), 177-8. 74 Cf. E. SCHESCHONKA (n. 7), 40. A bibliografia sobre o tema é já bastante extensa. Para uma síntese, v. D. SPINELLIS, «The ne bis in idem principle in „global“ instruments», Revue international de droit pénal 2002 (73), 11491171; G. CONWAY (n. 9), 217-244. 75 A garantia está também consagrada ainda noutros instrumentos de ius gentium – assim, v. g., no espaço do continente americano, veja-se a Convenção Americana de Direito Humanos, assinada em San José da Costa Rica a 22 de Novembro de 1969 (disponível em: http://www.oas.org/juridico/English/treaties/b-32.html ), que no seu art. 8 IV prescreve: «An accused person acquitted by a nonappealable judgment shall not be subjected to a new trial for the same cause»; para o mundo árabe, e depois de uma primeira consagração na Carta Árabe dos Direitos Humanos (art. 16), promulgada pela Liga dos Estados Árabes em 15 de Setembro de 1994, mas que não chegou a entrar em vigor, o ne bis in idem encontrou acolhimento na nova versão da Carta, de 22 de Maio de 2004, em vigor desde Março de 2008, cujo art. 19 determina: «Ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime» (versão inglesa disponível em: http://www.pogar.org/themes/reforms/documents/dacharter.pdf). Apesar de não possuir força normativa, é devida uma referência, ainda, ao Código dos Crimes contra a Paz e a Segurança da Humanidade (Draft Code of Crimes Against the Peace and Security of Mandkind, publicado em U. N. Doc. A/51/10 e acessível em: http://untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/English/draft%20articles/7_4_1996.pdf) que prevê o princípio ne bis in idem, tanto no plano da concorrência vertical, ou seja, de concurso entre uma jurisdição estadual e a jurisdição de um Tribunal internacional (art. 12, n.ºs 1e 2, alínea a)) como horizontal, de conflito entre duas ou mais jurisdições estaduais (art. 12, n.º 2 alínea b)). Com mais pormenor sobre o panorama jusinternacional relativo ao ne bis, cf. E. SCHESCHONKA (n. 7), 52-67, H. THOMAS (n. 20), 100-112. 76 Tenha-se presente que a CEDH assume uma significativa importância no contexto da União, uma vez que a entrada de um novo Estado para a União depende da sua prévia adesão à Convenção; por outro lado, e nos termos do art. 6.º, n.º 2, do Tratado da União Europeia, a União encontra-se vinculada a respeitar os direitos fundamentais tal como são garantidos pela Convenção Europeia. A expressa assunção deste quadro referencial foi reforçada quer no Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa: art. I-9.º, n.º 2 e 3), quer no Tratado de Lisboa (JOCE C 306, de 17 de Dezembro de 2007): art. 6.º, n.º 2 e 3, em que se dispõe que «2. A União adere à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (…). 3. Do 71

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a) O texto originário da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 77 (CEDH), de 1950, não apresentava qualquer disposição expressa relativa à proibição da dupla prossecução e punição; esta seria consagrada apenas em 1984, por força do 7.º protocolo adicional. Apesar daquele silêncio textual, algo surpreendente quando, como é por demais conhecido, a matéria criminal, quer na dimensão substantiva quer no âmbito processual, em função da sua particular densidade em sede de direitos fundamentais da pessoa, é objecto de diversas e bastante importantes disposições da Convenção78, tem sido sustentado, antes e até depois do 7.º protocolo, que a garantia inerente ao princípio ne bis in idem decorreria do conteúdo normativo de outros dispositivos da CEDH79, sobretudo do seu art. 6.º80, que estabelece o direito a um processo equitativo (fair trial). Isto porque o referido preceito, na conjugação entre a cláusula intencionalmente ampla do primeiro inciso com os direitos enumerados ut exemplum pelo número 3, se apresentaria como o repositório geral de todos os pressupostos de um processo direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais». 77 A Convenção Europeia para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais foi assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950. Só em 1978 passaria a vigorar na ordem jurídica portuguesa ao ser aprovada, para ratificação, juntamente com os protocolos adicionais n.º 1, 2, 3, 4 e 5, pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro. 78 Para esta situação teve relevo, por certo, a circunstância de também a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assumido modelo da congénere europeia, omitir qualquer referência ao ne bis in idem. Sublinhando a estranheza deste silêncio, cf. M. PRALUS (n. 9), 568, 79 A consagração expressa do ne bis constante do 7.º protocolo veio retirar, sem dúvida, oportunidade e interesse à via interpretativa referida em texto: havendo agora norma explícita, parece não fazer muito sentido buscar fundamentação autónoma para o princípio na própria Convenção. Certo é que, e como já foi sublinhado, se poderá argumentar com os termos estritos que o protocolo confere à proibição em causa, designadamente ao cingir a sua eficácia à ordem jurídica interna, sem valer, pois, no contexto transnacional, pelo que o alcance da garantia que, por hipótese, decorresse logo do texto originário da Convenção, poderia ser mais alargado, bem assim com o facto de o art. 4.º, n.º 2, do protocolo consagrar vários limites ao funcionamento da proibição, ou, ainda, com a relevante circunstância de serem ainda numerosos os Estados vinculados pela Convenção mas que não assinaram o protocolo n.º 7. Referindo estes aspectos, cf. B. SPECHT, Die zwischenstaatliche Geltung des Grundsatzes ne bis in idem. Zugleich ein Beitrag zur Auslegung des Art. 103 Abs. 3 Grundgesetz, Berlin/Heidelberg/New York: Springer, 1999, 49, E. SCHESCHONKA (n. 7), 47, M. MANSDÖRFER (n. 7), 100, que realça, outrossim, o facto de a redacção do art. 4.º do 7.º protocolo não abranger as hipóteses de litispendência. De todo o modo, importa ter presente o elemento histórico incontornável que o próprio protocolo constitui: os Estados signatários consideraram necessário a inclusão da garantia em texto normativo explícito. Acresce que interpretar as disposições originárias da Convenção no sentido de admitirem já, embora só de forma tácita, o ne bis in idem, acabaria por tornar supérflua a norma do protocolo adicional, em contradição com o princípio do effet utile que concorre na a metódica interpretativa das normas pactícias. Sublinham, com razão, estes aspectos, PAEFFGEN, Systematischer Kommentar zur Strafprozeβordnung und zum Gerichtsverfassungsgesetz, (Hrgs. H. -J. Rudolphi), Neuwied: Luchterland, Stand 2005, Annex zu den Justiz-Gewährleistungen, 7. ZP, Rn 14 e, na conclusão, B. SPECHT, 51 e S. TRECHSEL, Human Rights in Criminal Proceedings, Oxford: Oxford University Presse, 2006, 385. 80 Além do art. 6.º, já se defendeu que a proibição de bis in idem convocaria a censura do art. 3.º da CEDH, na parte em que proíbe penas ou tratamentos degradantes: na medida em que um processo penal constitui para o arguido uma relevante intervenção restritiva de direitos, o duplo processamento implicaria um tratamento degradante violador, por conseguinte, do referido art. 3.º (assim, H. SCHORN, «Zweifelsfragen zum räumlichen Geltungsbereich des Strafrechts (§§ 3-7 StGB)», Juristische Rundschau 1964, 206). Parece-nos, no entanto, que esta leitura ultrapassa as possibilidades conferidas ao intérprete. Como acentua justamente Britta Specht, «o teor literal do art. 3 CEDH não abrange directamente o caso de dupla punição. (…) É difícil demonstrar por que razão havendo duas penas, eventualmente com o mesmo âmbito, a segunda pena, pelo facto apenas de ser a segunda aplicada, não só deve ter-se por ilegítima mas ainda degradante» (B. SPECHT, (n. 79), 53-4); cf., no mesmo sentido excludente, M. MAYER (n. 7), 49-50, E. SCHESCHONKA (n. 7), 50.

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conforme ao princípio do Estado de direito81, entre os quais se deveria contar a garantia do caso julgado82, mesmo com eficácia transnacional. Porém, são mais fortes os argumentos contrários, quer os de carácter histórico-sistemático implicados pela aprovação do 7.º protocolo83, quer os teleológico-materiais, como seja o facto de as garantias contidas no art. 6.º da CEDH se reportarem ao decurso e configuração de determinado processo, já não à delimitação recíproca de processos distintos ou à conformação do sistema punitivo estadual no seu conjunto84. Tal como se referiu, só em 1984, por meio de protocolo adicional85, a proibição de dupla prossecução criminal veio a receber expresso acolhimento na CEDH86. Porém, se agora é clara a inclusão do princípio ne bis in idem entre as garantias fundamentais reconhecidas pela Convenção87, com todas as consequências no plano dos direitos internos dos Estados vinculados e, outrossim, na sindicância jurisdicional a cabo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem88, já quanto à eficácia transnacional do princípio o 7.º Protocolo não se afastou do Assim, B. SPECHT (n. 79), 50, E. SCHESCHONKA (n. 7), 48, I. CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Aequitas/Editorial Notícias, 1995, 98-9. 82 De novo, B. SPECHT (n. 79), 50. Diga-se que uma leitura deste teor encontrou certo acolhimento (pelo menos como possibilidade) em algumas formulações da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, como se verifica numa decisão de 1970 em que considera: «whereas this principle, however, is not as such included amongst the rights and freedoms set forth by the Convention but there might be the question whether it might not be considered under Art. 6 (1) of the Convention witch guarantees to everyone a fair trial» e numa outra de 1981: «even assuming that a violation of this principle could under specific circumstances interfere with the right to “fair trial” enshrined in Article 6 of the Convention» (citações apud R. KNIEBÜHLER (n. 7), 335). 83 Veja-se o que ficou dito na nota 79. 84 Nestes termos, M. MANSDÖRFER (n. 7), 102. Cf., ainda, B. SPECHT (n. 79), 52-3, E. SCHESCHONKA (n. 7), 49. Como realça Stefan Trechsel, a protecção contra a dupla perseguição «is not a guarantee which requires a specific quality of the trial, but leads to the consequence that there should be no trial at all in specific circumstances» (S. TRECHSEL (n.79), 385). 85 O Protocolo adicional n.º 7, assinado a 22 de Novembro de 1984, foi aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 22/90, de 27 de Setembro de 1990. 86 Sob a epígrafe Right not to be tried or punished twice , o artigo 4.º do 7.º protocolo adicional dispõe, na sua versão autêntica em língua inglesa: «1. No one shall be liable to be tried or punished again in criminal proceedings under the jurisdiction of the same State for an offence for which he has already been finally acquitted or convicted in accordance with the law and penal procedure of that State. 2. The provisions of the preceding paragraph shall not prevent the re-opening of the case in accordance with the law and penal procedure of the State concerned, if there is evidence of new or newly discovered facts, or if there has been a fundamental defect in the previous proceedings, which could affect the outcome of the case. 3. No derogations from this Article shall be made under Article 15 of the Convention». Para uma análise pormenorizada do art. 4.º, v. M. MANSDÖRFER (n. 7), 103-133, R. ESSER, Auf dem Weg zu einem europäischen Strafverfahrensrecht, Berlin: De Gruyter Recht, 2002, 95-99, E. BLEICHRODT, «Ne bis in idem (Article 4 of Protocol No. 7), in: Theory and Practice of the European Convention on Human Rights (ed. by P. van Dijk et al.), 4.ª ed., Antwerpen/Oxford: intersentia, 2006, 979 ss. 87 O protocolo conferiu uma tutela reforçada à proibição de dupla prossecução, ao revesti-la da cláusula de intangibilidade mesmo nos contextos de estado de necessidade previstos no art. 15.º da Convenção (cf. o n.º 3 do art. 4.º transcrito na nota anterior). 88 O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já teve ocasião de se pronunciar, por diversas vezes, embora nem sempre numa linha uniforme, sobre o sentido e âmbito da princípio ne bis in idem firmado no 7.º protocolo, designadamente sobre o problema nuclear do conceito de offence. Assim, enquanto no caso Gradinger vs. Áustria, julgado em 1995 (Caso 33/1994/480/562), o Tribunal inclinou-se para um conceito de factos historicamente delimitados – a mesma conduta (cf. n.º 55 da decisão –, desconsiderando, pois, o requisito da identidade no plano normativo, já no aresto Oliveira vs. Suíça, de 1998 (Caso 84/1997/868/1080), focando também uma situação de concurso ideal de infracções, veio a adoptar posição diversa ao estabelecer que o art. 4.º «prohibits people being tried twice for the same offence whereas in cases concerning a single act constituting various offences (concours 81

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comum entendimento estritamente doméstico da proibição; pelo contrário, confirmou-o de forma clara ao restringir a aplicabilidade do ne bis aos casos apreciados pela «jurisdição do mesmo Estado»89. b) O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), de 196690, dedica uma norma expressa à garantia do ne bis in idem (art. 14. º, n. º 7), que, na formulação autêntica em inglês91, prescreve: «No one shall be liable to be tried or punished again for an offence for which he has already been finally convicted or acquitted in accordance with the law and penal procedure of each country»92. Como se verifica, o enunciado literal do preceito, ao contrário do que vimos suceder com o art. 4.º do 7.º protocolo adicional à CEDH, não exclui de modo inequívoco a eficácia transnacional da garantia. Dizendo-o com Chiavario, a cláusula final da norma: conforme à lei e processo penal de cada país, não implicaria de forma alguma uma eficácia estritamente interna, pois estaria referida «apenas à operação reconstrutiva dos critérios com base nos quais uma sentença deve considerar-se definitiva»93. Este não tem constituído, no

idéal d’infractions) one criminal act constitutes two offences», pelo que o preceito não «preclude separate offences, even if they are all part of a single criminal act, being tried by different courts» (cf. os números 26 e 27 da sentença). Sobre o tema, com outras indicações, cf. R. LÖÖF, «54 CISA and the Principle of ne bis in idem», European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice 2007, 316, K. SCHWAIGHOFER, «Überlegungen zur Reichweite des innerstaatlichen "Doppelbestrafungsverbots" nach Art 4 Abs 1 7. ZPMRK, Österreichische Juristenzeitung 2005, 174 s, R. ESSER (n. 86), 95-98. Mais em geral sobre a acção do Tribunal Europeu no reforço da posição jurídica do arguido, além da última obra citada, passim, v. a síntese de H.-H. KÜHNE, «Die Rechtsprechung des EGMR als Motor für eine Verbesserung des Schutzes von Beschuldigtenrechte in den nationalen Straverfahrensrechten der Mitgliedstaaten», Strafverteidiger 2001, 73-78. 89 Cf. S. TRECHSEL (n. 79), 385, I. CABRAL BARRETO (n. 81), 275 e o próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. Caso Göktan vs. France, processo n.º 33402/96, decidido em 2002, «[La Cour] souligne que l'article 4 du Protocole no 7 interdit de poursuivre ou de punir pénalement quelqu'un (par les juridictions du même Etat) en raison d'une infraction pour laquelle l'accusé a déjà été condamné par un jugement définitif» (n.º 43, interpolação e sublinhado nossos). De todo o modo, esta restrição não parece suficientemente justificada, contra o que diz o próprio memorando explicativo do protocolo, com a circunstância de os efeitos desta limitação do princípio ao âmbito estadual serem ténues em virtude de a aplicação internacional do ne bis encontrar (à data do protocolo) acolhimento em três outras convenções do Conselho da Europa, a saber, a Convenção Europeia sobre a Extradição, de 13 de Dezembro de 1957, (art. 9), a Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, de 28 de Maio de 1970, (art. 53) e a Convenção Europeia sobre a Transmissão de Processos Penais, de 15 de Maio de 1972 (art. 35). Como sublinha certeiramente Henry Schermers, «this regrettable lack of confidence in the partner States devalues the Protocol considerably» (H. SCHERMERS (n. 57), 608). 90 Adoptado e aberto à assinatura, ratificação e adesão pela resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16 de Dezembro de 1966, o PIDCP veio a entrar em vigor na ordem jurídica internacional em 23 de Março de 1976. No que a Portugal diz respeito, o Pacto foi aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho, vigorando no ordenamento nacional desde 15 de Setembro de 1978. 91 Nos termos do artigo 53 do Pacto, só os textos em inglês, chinês, espanhol, francês e russo constituem línguas autênticas, fazendo «igualmente fé». 92 A versão do texto oficial português, aprovado, para ratificação, pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho, tem o seguinte conteúdo: «Ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infracção da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país». 93 M. CHIAVARIO, «Le garanzie fondamentali del processo nel Patto internazionale sui diritti civili e politici», Rivista italiana di diritto e procedura penale 1978, 465 (496). Numa linha similar, cf. também, J. Le CALVEZ, «Compétence législative et compétence judiciaire en droit pénal», Revue de science criminelle et de droit pénal comparé 1980, 29.

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entanto, o entendimento maioritário94. Assim, o próprio Comité dos Direitos do Homem, no caso A. P. vs. Itália95, sustentou que o normativo em apreço apenas proíbe a dupla prossecução de um crime no âmbito do mesmo Estado96. 2. No plano do direito comunitário, o problema do ne bis in idem com eficácia transnacional para todo o espaço da União tem constituído um dos mais recorrentes topoi da política criminal comum, a ponto de se poder detectar já uma história política-normativa, feita de múltiplas propostas, declarações de princípios e de intenções legiferantes. Grande parte destas iniciativas, por razões diversas, não chegou a alcançar força normativa cogente – com efeito até ao momento, apenas as disposições da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (CAAS) relativas à proibição (artigos 54.º a 58.º), incorporadas com o chamado acervo de Schengen no âmbito do direito comunitário por força do Tratado de Amesterdão, constituem autêntico direito vinculativo com eficácia geral no quadro jurídico da União. Recordamos, de imediato, alguns momentos essenciais dessa história97, deixando para o ponto subsequente uma consideração específica dos referidos preceitos da Convenção de Schengen consagrados ao ne bis in idem. Embora já nos anos sessenta do século passado a prática jurisprudencial do Tribunal de Justiça das Comunidades haja enfrentado o problema do ne bis in idem, ainda que em matéria

Como escreve Spinellis, «it can be said that the text of Art. 14, para. 7, of the ICCPR [=PIDCP] has no international validity, but it gives only an increased authority to the provisions on ne bis in idem of the domestic law» (D. SPINELLIS (n. 74), 1152). Também Trechsel: «the reasonable solution» (S. TRECHSEL (n. 79), 386). Entre outras posições no sentido da eficácia meramente interna do preceito, sublinhe-se a da jurisprudência superior alemã, quer do Tribunal Constitucional (cf. a decisão do BVerG na Neue Juristische Wochenschrift 1987, 2158, ao considerar que o âmbito de vigência do art. 14.º, n.º 7, do Pacto, segundo o seu teor literal, não se estende a processos apreciados noutro Estado, quer do Supremo Tribunal Federal (cf. a sentença do BGH na Neue Strafrecht Zeitschrift 1998, 149). 95 O processo reportava-se a um cidadão italiano que havia sido condenado num tribunal suíço pelo crime de branqueamento de capitais. Após a execução da pena, o indivíduo veio a ser novamente julgado e condenado em Itália, país aonde regressara, pelos mesmos factos. É contra este segundo julgamento que o arguido suscita a intervenção do Comité dos Direitos do Homem com fundamento em violação do art. 14.º, n.º 7, do PIDCP. Sobre o caso, v. B. SPECHT (n. 79), 44-5, H. SCHERMERS (n. 57), 607, M. PRALUS (n. 9), 566. 96 «Article 14, paragraph 7, of the Covenant […] does not guarantee ne bis in idem with regard to the national jurisdiction of two or more States. The Committee observes that this provision prohibits double jeopardy only with regard to an offence adjudicated in a given State» (communication No 204/1986, in: S. JOSEPH/J. SCHULTZ/M. CASTAN, The International Covenant on Civil ND Political Rights, 2.ª ed. Oxford/New York: Oxford University Press, 2005, 461). Embora não tenham sido invocados pelo Comité, os trabalhos preparatórios parecem corroborar a eficácia meramente interna da norma: «it was pointed out that a state would be free to try, in accordance with its laws, persons already sentenced for the same offence by the courts of another country» (U. N. Doc. A/4299, de 3.12.1959, apud E. SCHESCHONKA (n. 7), 43). Em sentido crítico, sublinha H. JUNG, «Strafverteidigung in Europa», Srafverteidiger 1990, 517, que a decisão não se furta à «impressão de que o indivíduo foi sacrificado no altar da pretensão de vigência geral-preventiva de cada Estado isolado» (apud M. MANSDÖRFER (n. 7), 20, nota 21). 97 Referências mais desenvolvidas a esta evolução podem ser encontradas em C. AMALFITANO (n. 9), *, R. KNIEBÜHLER (n. 7), 159-168, 305-323, E. SCHESCHONKA (n. 7), 104-111, H. THOMAS (n. 20), 80-83. 94

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extra-penal98, pode dizer-se que a primeira intervenção decisiva no plano comunitário sobre a proibição da dupla prossecução ocorre em 16 de Março de 1984, com uma Resolução do Parlamento Europeu, centrada, precisamente, «sobre a aplicação na Comunidade Europeia do princípio ne bis in idem em matéria penal»99. Para além de instar os Estados-Membros a ratificar «tão depressa quanto possível» as Convenções do Conselho da Europa atinentes à matéria, a Resolução sublinhava a importância do princípio em causa, fundada sobre dois pressupostos fundamentais «a liberdade individual e a vis rei judicatae como elemento da paz social». Três anos depois, em 1987, vem a lume a Convenção entre os Estados-membros relativa à aplicação do princípio “ne bis in idem”100. Invocando expressamente o interesse da livre circulação de pessoas em todo o espaço comunitário, bem como o propósito de reforçar a confiança recíproca necessária à cooperação em matéria penal101, o documento atribui eficácia transnacional à garantia ao prescrever, no seu art. 1.º: «quem tiver sido definitivamente julgado num Estado-membro não pode, pelos mesmos factos, ser perseguido num outro Estadomembro, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida, esteja efectivamente em curso de execução ou já não possa ser executada segundo as leis do Estado da condenação»102. Apesar dos termos relativamente amplos com que a Convenção se reporta Tenha-se em vista, por exemplo, o caso Walt Wilhelm vs. Bundeskartellamt, decidido a 13 de Fevereiro de 1969, relativo à violação de normas da concorrência por parte de empresas alemãs – o Tribunal veio a considerar que o facto de as empresas terem sido objecto de condenação no âmbito do direito comunitário não precludia uma condenação autónoma por parte dos tribunais alemães, uma vez que o ordenamento jurídico comunitário, embora integrado na ordem jurídica de cada Estado-membro, constitui um ordenamento autónomo, enquanto o princípio ne bis in idem (processual) só operaria no quadro de um único ordenamento. Sobre o caso, cf. H. SCHERMERS (n. 57), 609, C. AMALFITANO (n. 9), 940-1. 99 JOCE C 104/133, de 16 de Abril de 1984*. Na origem desta Resolução esteve, de certo modo, o chamado caso Barletta: Cosimo Barletta, emigrante italiano na Alemanha, foi condenado por um tribunal alemão na pena de três anos e meio de prisão pelo crime de homicídio voluntário da sua mulher; após a libertação, veio a ser processado pela justiça italiana e condenado a nove anos de prisão pelo mesmo crime. Para além das repercussões no âmbito jurídico italiano, designadamente, em sede de constitucionalidade da norma do Código Penal italiano (art. 11.º) à luz do qual o segundo julgamento tinha sido possível ― e que mereceu, aliás, resposta negativa da Corte Costituzionale ― o caso encontrou ainda ressonância de uma proposta (doc. 1-749/81, dos deputados Glinne e Vayssade) que viria a culminar, precisamente, na referida Resolução do Parlamento. Sobre esta questão, cf. M. PISANI, L’Indice Penale 1984, 602, ss. 100 A Convenção, assinada em Bruxelas a 25 de Maio de 1987, foi aprovada para ratificação, em Portugal, pela Resolução da Assembleia da República n.º 22/95, de 10 de Abril, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 47/95, de 11 de Abril. Faz parte de um conjunto de cinco instrumentos normativos no âmbito da cooperação política europeia que os Estados-membros aprovaram com base nos correspondentes modelos do Conselho da Europa. Assim, além da Convenção sobre o ne bis in idem, o «pacote de medidas» inclui, ainda, o «Acordo relativo à aplicação entre os Estados-membros das Comunidades Europeias da Convenção do Conselho da Europa sobre a Transferência de Pessoas Condenadas» (assinada em Bruxelas em 25 de Maio de 1987), o «Acordo entre os Estados-membros das Comunidades Europeias relativo à Simplificação e à Modernização dos Modos de Transmissão dos pedidos de Extradição» (S. Sebastian, 26 de Maio de 1989), o «Acordo entre os Estados-membros da Comunidade Europeia relativo à Transmissão de Processo Penais» (Roma, 6 de Novembro de 1990) e a «Convenção entre Estados-membros da Comunidade Europeia sobre a Execução das Sentenças Penais Estrangeiras» (Bruxelas, 13 de Novembro de 1991). 101 Assim o exprime o próprio Preâmbulo da Convenção. 102 Refira-se, no entanto, que a Convenção concede aos Estados a possibilidade de oporem reservas em três importantes situações: quando os factos tiverem sido praticados, no todo ou em parte, no território do Estado; quando constituírem uma infracção contra a segurança ou outros interesses igualmente essenciais desse Estado; quando tiverem sido praticados por um funcionário desse Estado cm violação das suas obrigações profissionais (cf. art. 2.º, n.º 1, da Convenção). 98

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ao princípio, e que evidenciam o claro sentido de se efectivar o ne bis in idem no espaço comunitário103, há que reconhecer o escasso alcance prático do documento, dada a falta das ratificações necessárias para a sua entrada em vigor104. Por outro lado, o âmbito normativo e a intencionalidade político-criminal desta Convenção foram transladados por inteiro para os artigos 54.º-58.º da já diversas vezes mencionada Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, entretanto incorporada no direito da União, pelo que o sentido útil próprio do documento em apreço se esvaziou na prática. De todo o modo, há a salientar que a Convenção sobre o ne bis in idem traduziu um passo significativo no sentido de estabelecer clarificação legal numa matéria tão decisiva para os direitos dos cidadãos e as relações interestaduais no quadro europeu105. Em finais da década de 1980, o Parlamento Europeu volta a tomar posição sobre o princípio, desta feita por meio de uma Declaração que traçava os primeiros lineamenta de um catálogo de direitos e liberdades fundamentais para o espaço das Comunidades – entre eles, a proibição da dupla prossecução e punição106. Conquanto a formulação não seja de todo inequívoca, resulta suficientemente claro do contexto o carácter transnacional da garantia. A forma escolhida para o acto (declaração), desprovida de eficácia normativa cogente, manifesta bem, no entanto, que se trata sobretudo de uma tomada de posição política em ordem à póstera constituição de um regime de direitos fundamentais para o conjunto da União. Embora com alcance mais limitado no tocante ao tipo de matérias, o princípio em apreço seria de novo consagrado, em termos praticamente equivalentes aos da Convenção de 1987 e da CAAS, em dois importantes instrumentos comunitários107: a Convenção relativa à

Recorde-se que a presente Convenção sobre o ne bis in idem retomava as intenções da Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, de 28 de Maio de 1970, que já regulara a matéria (cf. art. 53.º), mas que não veio a lograr aceitação consensual, como o demonstra o escasso número de ratificações. A circunstância de já não se dirigir ao espaço alargado do Conselho da Europa, mas apenas aos Estados-Membros das Comunidades Europeias, parecia dar garantias de uma generalizada adesão – uma expectativa rapidamente gorada ao longo de um lento e pouco eficaz processo de ratificação, exprimindo o difuso cepticismo sobre as possibilidades de um efectivo ne bis in item transnacional num contexto de legislações nacionais tão díspares, a que acresceu a oposição manifesta de alguns Estados que pretendiam que a normação das matérias atinentes à cooperação judiciária se mantivesse no quadro do Conselho da Europa. Cf. R. KNIEBÜHLER (n. 7), 161-3 104 Por força do disposto no art. 6.º, n.º 3, da Convenção, «qualquer Estado pode declarar (…) que esta lhe será aplicável, nas suas relações com os outros Estados que tenham feito a mesma declaração». Nestes termos, ela é aplicável nas relações entre Portugal, Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Irlanda, Itália, Países Baixos. 105 Nesta direcção, cf. M. FLECHTER, «Some Developments to the ne bis in idem principle in the European Union: Criminal Proceedings Against Hüseyn Gözütok and Klaus Brügge», The Modern Law Review 2003 (66), 770. 106 JOCE C 120, de 16 de Maio de 1989. 107 Além das Convenções elencadas no texto, o princípio ne bis in idem tem encontrado expressão em outros instrumentos jurídico-comunitários, em âmbitos diversos e com distinta eficácia normativa. Assim, recorde-se, p. ex., o «Acordo entre os Estados-membros da Comunidade Europeia relativo à Transmissão de Processo Penais», assinada em Roma aos 6 de Novembro de 1990 (art. 7.º), a «Convenção entre Estados-membros da Comunidade Europeia sobre a Execução das Sentenças Penais Estrangeiras», firmada em Bruxelas a 13 de Novembro de 1991 (art. 5.º, alíneas d) e e)), que constituem, praticamente, letra morta, dado o insignificante número de ratificações que recolheram, bem como a mais relevante Decisão-Quadro que estabeleceu o mandado de detenção europeu (Decisão-Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13.06, JOCE L 190, de 18 de Julho de 2002) que dá tradução ao ne bis in idem no art. 3.º, n.º 2. 103

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protecção dos interesses financeiros das comunidades, de 1995108, e a Convenção relativa à luta contra a corrupção, de 1997109. A importância axial que o princípio ia assumindo progressivamente no quadro da política criminal comum encontra tradução visível no «Plano de Acção do Conselho e da Comissão sobre a melhor forma de aplicar as disposições do Tratado de Amesterdão relativas à criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça», apresentado em 1999 e que, entre outras linhas de orientação, estabelecia um prazo de cinco anos para que se tomassem medidas com vista à “coordenação das investigações penais e dos processos em curso nos Estados-Membros a fim de evitar uma duplicação de esforços e decisões contraditórias, tendo em conta uma melhor utilização do princípio ne bis in idem”110. Também o designado Corpus Juris para a protecção dos interesses financeiros da União Europeia dedica disposições normativas à matéria do ne bis in idem111. Assim, o art. 23, n.º 1, alínea b) determina: «nul ne peut être porsuivi ou condamné pénalment dans un État membre en raison d’une infraction définie ci-dessus (articles 1 à 8) pour laquelle il a dejà étè soit acquitté soit condamné para un jugement définitiv, dans l’un quelconque des États membres de l’Union européenne»112. Uma referência particular é devida, também neste contexto, à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, solenemente proclamada na cidade de Nice em 7 de JOCE C 316, de 27 de Novembro de 1995, 48. O art. 7.º, com a epígrafe Ne bis in idem, prescreve: «1.Os Estados-membros devem aplicar no respectivo direito penal interno o princípio ne bis in idem, segundo o qual quem tiver sido definitivamente julgado num Estado-membro não pode, pelos mesmos factos, ser perseguido noutro Estado-membro, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser executada, em conformidade com a lei do Estado da condenação. 2.[…] qualquer Estadomembro pode declarar que não se considera vinculado ao disposto no n.º 1 num ou mais dos seguintes casos: a) Quando os factos, objecto da sentença estrangeira, tiverem sido praticados, no todo ou em parte, no seu território. Neste último caso, a excepção não se aplica se esses factos tiverem sido praticados, em parte, no território do Estado-membro em que a sentença foi proferida; b) Quando os factos, objecto da sentença estrangeira, constituírem uma infracção contra a segurança ou outros interesses igualmente essenciais desse Estado-membro; c) Quando os factos, objecto da sentença estrangeira, tiverem sido praticados por um funcionário desse Estado-membro com violação das suas obrigações profissionais». Sobre estas normas, v. R. KNIEBÜHLER (n. 7), 308 ss. 109 O art. 10.º estabelece o princípio ne bis in idem em termos idênticos à da Convenção de protecção dos interesses financeiros da União, transcritos na nota anterior. 110 JOCE C 19, de 23 de Janeiro de 1999, 15: «Plano de Acção do Conselho e da Comissão», ponto 49, alínea e). 111 Uma breve análise deste instrumento, com outras indicações, pode colher-se em M. DELMAS-MARTY, «A caminho de um modelo europeu de processo penal», Revista Portuguesa de Ciência Criminal 1999, 233**, R. KNIEBÜHLER (n. 7), 306 ss . 112 O normativo transcrito, consagrando um amplo ne bis in idem processual, é complementado pela previsão do princípio do desconto, constante do art. 17, n.º 3 e 2: «3. Lorsque, dans la phase du jugement, un accusé est jugé à la fois pour une infraction pénale prévue aux artcles 1 à 8 et pour une infraction au droit national, et que les deux nfractions concernent les memes faits, est appliqué une peine unique, determine sur la base de la sanction maximale la plus élevée. 4. Pour toute infraction visée aux articles 1 à 8, si une sanction administrative non pénale determine par la réglementation communautaire ou la réglementation nationale a déjà étè infligée pour le meme fait, il faudra en tenir compte dans la determination de la sanction». Como resulta do teor literal do preceito, no caso de concorrência de sancionamentos pelos mesmos factos, a medida da sanção deve contemplar a pena já aplicada; por outro lado, esta previsão não se cinge ao âmbito estrito do direito penal, abrangendo ainda as próprias sanções administrativas. Em contraste com a regulamentação estabelecida para o ne bis in idem (art. 23, n.º 1, alínea b), citado em texto), em que se emprega o conceito infraction, nesta disposição atinente ao desconto usa-se a fórmula mais ampla même fait. Sublinha estes aspectos R. KNIEBÜHLER (n. 7), 307-8. 108

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Dezembro de 2000113. No seu capítulo VI, dedicado à Justiça, consagra o direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito: «Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei» (art. 50.º)114. Como é sabido, o texto da Carta veio a ser assumido primeiro pelo malogrado Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa115, de 2004, e, mais recentemente, no Tratado de Lisboa, de 2007116. Apesar de não ter alcançado ainda vigência normativa e de não traduzir uma inovação substancial em face do quadro normativo já existente no direito da União em matéria de direitos fundamentais117, a Carta constitui de todo o modo um sinal da vontade política comum em dotar a União de um corpo de direitos fundamentais integrado e abrangente118, que se impõe ao conjunto das instituições e dos órgãos da União (cf. art. 51.º da Carta), incluindo os jurisdicionais119. No que à garantia contra a múltipla prossecução diz respeito, é de assinalar o recorte amplo do art. 50.º120, tanto na atribuição inequívoca de vigência transnacional, quer horizontal, isto é, entre os diversos Estados-Membros da União, quer vertical, o mesmo vale por dizer, nas relações entre os Estados-Membros e a própria União121, bem como no aspecto JOCE C 364, de 18 de Dezembro de 2000, 1-22. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia tem suscitado, como se compreende, alargadíssima reflexão que não cabe aqui referir, mesmo per summa capita. Para uma primeira descrição do conteúdo da Carta, com análise atenta da evolução do sistema de tutela dos direitos fundamentais no contexto comunitário, v., entre outros estudos, R. M. MOURA RAMOS, «A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a protecção dos direitos Fundamentais», in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, 963-889, M. GORJÃO-HENRIQUES, «A evolução da protecção dos direitos fundamentais no espaço comunitário», in: Carta dos direitos fundamentais da União Europeia (org. Vital Moreira), Coimbra: Coimbra Editora, 2001, 18-38, A. L. RIQUITO, «O conteúdo da carta de direitos fundamentais da União Europeia», in: ibidem, 59-74, M. SCHRÖDER, «Wirkungen der Grundrecht in der europäishen Rechtsordnung», Juristenzeitung 2002, 849-854.. Numa perspectiva mais ampla, v. os ensaios recolhidos na colectânea The EU Charter of Fundamental Rights (ed. by Steve Peers e Ângela Ward), Oxford/Portland: Hart Publishing, 2004. 114 Para uma análise circunstanciada do preceito, cf. A. ESER, «ARTIKEL 50», in: Kommentar zur Charta der Grundrechte der Europäischen Union (Hrsg. Jürgen Meyer), Baden-Baden: Nomos, 2003, 548-555, R. KNIEBÜHLER (n. 7), 312-318, G. DANNECKER, «Die Garantie des Grundsatzes “ne bis in dem” in Europa», in: Festschrift für Günter Kohlmann (Hrgs. H. J. Hirsch, J. Wolter, U. Brauns), Köln: Otto Schmidt, 2003, 593 (611-614), E. SCHESCHONKA (n. 7), 109-111. 115 JOCE C 310, de 16 de Dezembro de 2004. 116 Nos termos do art. 6.º do Tratado (JOCE C 306, de 17 de Dezembro de 2007), «a União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia(…)». 117 Enfatiza, em tom crítico, este aspecto, R. M. MOURA RAMOS (n. 113), 987-8 que sublinha, ainda: «a Carta aparenta não visar alterar de modo algum o equilíbrio existente entre a Comunidade e a União, por um lado, e os seus Estados-Membros, por outro». 118 Como se declara no Preâmbulo, constitui propósito da Carta conferir maior visibilidade aos direitos fundamentais, à luz da evolução da sociedade, do progresso social e da evolução científica e tecnológica. Apesar dos justificados reparos críticos que demos conta na nota anterior, Rui Moura Ramos não deixa de reconhecer que, apesar da modéstia das soluções, a Carta pode inspirar o «quadro de valorações da jurisdição comunitária» e a promover um «efeito de irradiação sobre os demais mecanismos (nacionais e internacionais) de protecção dos direitos fundamentais». (R. M. MOURA RAMOS (n. 113), 989). 119 Sobre o ponto, com outras referências, cf. BUSSE, «Eine kritische Würdigung der Präambel der Europäische Grundrechtecharte», Europäische Grundrechte Zeitschrift 2002, 561 ss. 120 Manifestando algumas reservas, R. M. MOURA RAMOS (n. 113) 986, nota 70, considera que o desenho do princípio ne bis in idem traçado na Carta «configura uma concepção algo limitativa (…) uma vez que apenas dá relevo para o efeito a um anterior julgamento no território da União». 121 G. DANNECKER (n. 114), 596. 113

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decisivo de as restrições à aplicação do princípio decorrentes da territorialidade, defesa dos interesses nacionais e o da qualidade do agente, reiteradamente presentes nas disposições anteriores, não encontrarem acolhimento no texto agora proposto. Numa outra ordem de considerações, deve sublinhar-se a manifesta dimensão de direito fundamental individual conferida ao ne bis in idem. No rescaldo da publicação da Carta dos Direitos Fundamentais, o Conselho proporia, em Janeiro de 2001, o «Programa de Medidas para Implementar o Princípio do Reconhecimento Mútuo das Decisões em Matéria Penal»122, no qual se estabelece como medida prioritária a reconsideração do princípio ne bis in idem, designadamente com a reformulação das normas vigentes na matéria (arts. 54.º a 57.º da CAAS). O documento propugna, ainda, a revisão das reservas ao funcionamento do princípio constantes do art. 55.º da CAAS e sustenta a necessidade de clarificação do tipo de decisões capaz de desencadear o efeito preclusivo da posterior prossecução, recomendando o Conselho a inclusão nesse conjunto das resoluções obtidas no contexto de um processo de mediação penal. Em 2003, por iniciativa da Grécia, que assumia a presidência da União, é apresentada uma proposta de decisão-quadro relativa ao princípio ne bis in idem123. Como se infere da exposição de motivos, pretendia-se por meio deste instrumento normativo dar corpo estável aos diversos propósitos que vinham sendo enunciados no quadro da União124, clarificando aspectos controvertidos, como o conceito de infracção penal relevante, o conceito de idem, o âmbito de sentença para efeitos da proibição, num sentido global tendencialmente mais alargado em face do quadro jurídico vigente. Com efeito, o projecto estende o alcance do princípio ne bis in idem a factos que constituam infracções administrativas ou contra-ordenações puníveis com multa por uma autoridade administrativa, desde que o visado possa suscitar a questão perante um tribunal penal (artigo 1.º, alínea a)). Por outro lado, e no tocante ao tipo de decisões com eficácia preclusiva da dupla prossecução penal, a proposta, para além da sentença penal absolutória ou condenatória transitada em julgado, abrange, ainda, a sentença que «extinga a instância» bem como «qualquer acordo extrajudicial negociado por mediação num processo penal» (artigo 1.º, alínea b)). Por fim, o documento define o conceito de idem como a «segunda infracção penal fundada exclusivamente nos mesmos factos, ou em factos substancialmente idênticos, independentemente da sua qualificação jurídica» (artigo 1.º, alínea e))125. Embora estas soluções, quando aferidas pelas disposições de Schengen, traduzam um quadro de aplicação mais garantista, pode dizer-se que a proposta não se afastou de modo sensível do figurino em vigor, designadamente ao manter, ainda que em termos mais restritos,

JOCE C 12, de 15 de Janeiro de 2001, 10 ss. Para uma breve descrição do programa, v. M. FLECHTER (n. 105), 769. 123 JOCE C 100, de 26 de Abril de 2003, 24 ss. 124 Os considerandos mencionam expressamente o «Programa de Medidas para Implementar o Princípio do Reconhecimento Mútuo das Decisões em Matéria Penal» e o «Plano de Acção do Conselho e da Comissão» a que aludimos já em texto (cf. JOCE C 100, de 26 de Abril de 2003, 24). 125 Tal como referimos já, supra nota 57, a proposta de decisão-quadro regula, ainda, a importante matéria da resolução de conflitos de jurisdição em caso de litispendência. 122

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a possibilidade de reservas por parte dos Estados126, bem como, no tocante ao tipo de decisões com eficácia preclusiva, a vinculação ainda muito estreita ao paradigma da sentença judicial – um conjunto de factores que determinaram o seu abandono127. Em finais de 2005, foi publicado pela Comissão das Comunidades o há bastante tempo aguardado Livro verde sobre os conflitos de competência e o princípio ne bis in idem no âmbito dos procedimentos penais128. Como a designação escolhida já evidencia, este instrumento de consulta não incide de modo exclusivo ou sequer prioritário sobre o problema do ne bis in idem, antes o enquadra no mais amplo contexto da resolução de conflitos entre distintas jurisdições com competência para o processamento dos mesmos factos penais129, configurando-o, na linha, aliás, de propostas anteriores130, como solução subsidiária ou de recurso a que se lançaria mão apenas quando, por haver falhado a prévia resolução do conflito, surgisse uma situação de bis in idem. Para além deste enfoque mais alargado, a atenção dedicada ao ne bis pelo Livro verde reporta-se a um conjunto de questões decorrentes do quadro legal em vigor, isto é, as disposições da CAAS. Assim, sublinha-se em primeiro lugar, a «questão de saber se é necessário clarificar alguns elementos e certas definições, por exemplo, no que diz respeito aos tipos de decisões que podem produzir um efeito ne bis in idem e/ou o que deve entender-se por idem ou “mesmos factos”»131. Uma segunda problemática autonomizada pelo instrumento de consulta diz respeito às hipóteses de condenação, em que «o princípio apenas é aplicável desde que “a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa Cf. art. 4.º, n.º 1, que prevê reservas quando os factos criminais atentem contra a segurança interna ou outros interesses relevantes do Estado ou sejam praticados por funcionário. De fora ficou, apenas, a restrição assente na circunstância de o facto ser praticado no território do Estado. 127 Alguns destes aspectos foram objecto de modificação pelo Parlamento Europeu, no contexto do processo de consulta (cf. Resolução do Parlamento Europeu, JOCE C 76, de 25 de Março de 2004, 86), designadamente ao prescrever na emenda ao artigo 1.º, alínea b), que por julgamento se deve entender «qualquer decisão, proferida ou não por um tribunal, que tenha força de caso julgado segundo a lei nacional», bem como ao eliminar o artigo 4.º da proposta helénica relativo às reservas ao funcionamento do princípio. 128 O texto do Livro verde publicado pela Comissão das Comunidades Europeias (COM (2005) 696 final) encontrase acessível em diversos sítios da Internet. Uma versão em português pode ser encontrada em: http://ec.europa.eu/justice_home/news/consulting_public/conflicts_jurisdiction/com_2005_696_pt.pdf. Para uma análise dos traços essenciais do Livro verde em matéria de ne bis in idem, cf. SILVA PEREIRA/T. ALVES Martins (n. 6), 318 s. 129 Sobre este tema específico da criação de um sistema de regras de conflitos de jurisdições, veja-se a breve síntese da nota 57, em que se procura dar conta das propostas essenciais avançadas pelo Livro verde para a matéria. 130 Estamos a pensar designadamente na iniciativa da Grécia e na Freiburg Proposal on Concurrent Jurisdictions – ambas as propostas, como ficou já referido na nota 57, não se circunscevem ao ne bis in idem, estendendo-se, ainda, à mais ampla matéria do conflito de jurisdições. 131 Livro verde, ponto 3. Concretizando esta primeira temática, o Livro verde formula diversas perguntas: «concorda com a seguinte definição no que diz respeito ao âmbito de aplicação do princípio ne bis in idem: “uma decisão penal que foi proferida por um órgão jurisdicional ou que foi objecto de recurso para o referido órgão”?» (pergunta 15); «concorda com a seguinte definição de “decisão final”: “... uma decisão que proíbe o início de um novo procedimento penal por força do direito nacional do Estado-Membro em que a decisão foi proferida, salvo se esta proibição nacional for contrária aos objectivos do Tratado da UE”?» (pergunta 16); «é mais adequado sujeitar a definição de “decisão final” a excepções expressas? (por exemplo, “uma decisão que proíbe um novo procedimento penal por força do direito do Estado-Membro em que foi proferida, excepto se …”» (pergunta 17); «uma apreciação prévia do mérito deveria ser determinante para responder à questão de saber se uma decisão produz um efeito ne bis in idem a nível da UE?» (pergunta 18); e «é possível e necessário definir o conceito de idem ou essa definição deverá ser objecto da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias?» (pergunta 19). 126

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já ser executada …”»132. Por último, o Livro verde aborda a delicada questão das reservas e derrogações ao funcionamento princípio ne bis in idem enunciadas no art. 55.º da CAAS133 ― excepções que, segundo o documento, se podem mostrar «obsoletas na sequência da criação de um mecanismo equilibrado de escolha da jurisdição»134.

IV

Ao longo da exposição anterior já por diversas vezes se sublinhou a nuclear importância da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (CAAS) para a matéria do ne bis in idem europeu – ela constituiu a primeira e até ao momento a única fonte normativa a impor a eficácia transnacional da proibição no espaço da União. De acordo com o plano traçado para o presente estudo, e após brevíssima contextualização, procede-se à descrição das principais questões que a interpretação das pertinentes normas tem vindo a suscitar. a) No âmbito de um processo político-jurídico demorado e complexo (cujos exactos contornos não importa explicitar aqui), em que a consecução da livre circulação no espaço das Comunidades, por meio da supressão dos limites e controlos fronteiriços, constituía ponto axial, os governos francês e alemão, depois de uma primeira declaração bilateral em 1984, pela qual se estabelecia a progressiva supressão dos controlos na fronteira franco-germânica, vieram a firmar em 14 de Junho de 1985, na cidade luxemburguesa de Schengen, juntamente com os três países do Benelux, e à margem do direito comunitário, um Acordo relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns. Traduzindo mais uma declaração de intenções do que um corpo de medidas efectivas, o pacto reclamava a previsão de mecanismos complementares ou compensatórios, designadamente no tocante à dimensão da segurança

Livro verde, ponto 3. Como se sublinha, a condição de execução prévia da sanção para o funcionamento do ne bis in idem «justificava-se no sistema tradicional de auxílio judiciário mútuo, nos termos do qual a execução da sanção noutros Estados-Membros era por vezes difícil. É discutível que se continue a justificar num espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que a execução transfronteiriça é agora realizada graças aos instrumentos da UE sobre o reconhecimento mútuo» (loc. cit.). Em consonância, pergunta-se: «considera que existem situações em que ainda seria necessário manter uma condição relativa à execução, e em caso afirmativo, quais são essas situações? Em caso afirmativo, essa condição poderá ser suprimida se for estabelecido um mecanismo de determinação da jurisdição?» (pergunta 20). 133 Recorde-se que o art. 55º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen permite que o Estado oponha reservas à eficácia do ne bis quando o facto haja sido praticado no seu espaço territorial, quando atente contra a segurança nacional ou, ainda, seja cometido por funcionário. 134 Livro verde, ponto 3 e a respectiva pergunta: «em que medida podem continuar a justificar-se as excepções previstas no artigo 55.º da Convenção de Schengen? Poderão ser suprimidas se for estabelecido um mecanismo de determinação da jurisdição, ou considera necessário adoptar medidas suplementares para “compensar” a supressão das derrogações nestas circunstâncias?» (pergunta 21). 132

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interna, que se considerava fragilizada pela abolição dos controlos nas fronteiras135. A 19 de Junho de 1990, também em Schengen, os mesmos Estados signatários, uma vez mais fora do quadro comunitário, firmam um novo instrumento de direito internacional – a Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de 14 de Junho de 1985, que viria a entrar em vigor, já com a adesão de Portugal e Espanha, entretanto ocorrida136, em 26 de Março de 1995. A breve trecho outros Estados se associam, quer membros da União Europeia137, quer países não integrantes da Comunidade, como a Islândia e a Noruega138. Este horizonte normativo conhece significativas alterações com o Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997139, ao implicar a incorporação das disposições do Acordo e Convenção de Schengen no direito comunitário140. Deste modo, a matéria da Embora o aspecto da necessidade de medidas compensatórias para a quebra de segurança e o aumento da criminalidade resultantes da supressão dos tradicionais controlos nas fronteiras e que teria estado muito na base da CAAS de 1990 seja bastante enfatizado (neste sentido, cf., entre outros, C. VAN DEN WYNGAERT/G. STESSENS, «The international non bis in idem principle: resolving some of the unanswered questions», International and Comparative Law Quarterly 1999 (48), 787: «the 1990 Schengen Convention [...] was intended to compensate for the effects of the lifting of internal borders control»), não é liquído até que ponto se consegue estabelecer uma ligação objectiva de implicação necessária entre a supressão dos controlos, por um lado, e a expansão do fenómeno criminal e diminuição das margens securitárias, por outro, ou se, como sublinhou Hans Kühne, o apport de segurança interna derivado dos controles nas fronteiras mostra-se de escasso relevo (H.-H. KÜHNE, Kriminalitätsbekämpfung durch innereuropäische Grenzkontrollen? Auswirkungen der Schengener Abkommen auf die innere Sichrheit, 1992, 49 apud, C. F. RÜTER, «Harmonie trotz Dissonanz. Gedanken zur Erhaltung eines funktionsfähigen Strafrechts im grenzenlosen Europa», Zeitschrift für die gesamte Strafrechtwissenschaft 105 (1993), 32. 136 Os dois países assinaram o Acordo e a Convenção em 25 de Junho de 1991. 137 Assim, e ainda antes do Tratado de Amesterdão, e além dos casos já referidos de Portugal e Espanha, os dois Acordos foram assinados pela Itália (27.11.1990, com efeitos vinculativos a partir de 26.10.1997), Grécia (6.11.1992, com vinculação desde 8.12.1997), Áustria (28.4.1995, com vinculação desde 1.12.1997), Dinamarca, Finlândia e Suécia (19.12.1996, com vinculação a partir de 1.5.1999). 138 A República da Islândia e o Reino da Noruega, na esteira dos restantes Estados-Membros da União Nórdica, vieram a aderir aos Acordos de Schengen em 18 de Maio de 1999. 139 JOCE C 340, de 10 de Novembro de 1997, 93 ss. Para uma leitura das principais soluções introduzidas pelo Tratado no campo da cooperação judiciária em matéria penal, v. ANABELA MIRANDA RODRIGUES/J. L. LOPES DA MOTA (n. 15), 35 ss, C. URBANO DE SOUSA, «O “novo” terceiro pilar da União Europeia: a cooperação policial e judiciária em matéria penal», in: Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues (org. J. Figueiredo Dias et al.), Coimbra: Coimbra Editora, 2001, vol. I, 867-915. 140 O 2.º Protocolo anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia integra as referidas normas no quadro da União, tendo passado a vigor, segundo o seu artigo 2.°, n.° 1, nos treze Estados seguintes: o Reino da Bélgica, o Reino da Dinamarca, a República Federal da Alemanha, a República Helénica, o Reino de Espanha, a República Francesa, o Grão-Ducado do Luxemburgo, a República da Áustria, a República Portuguesa, a República Italiana, a República da Finlândia, o Reino dos Países Baixos, o Reino da Suécia. Como se sabe, o Reino Unido e a República da Irlanda não se vincularam na íntegra ao acervo de Schengen, antes a disposições pontuais, entre as quais se contam, aliás, as atinentes ao ne bis in idem – cf. a Decisão 2000/365/CE do Conselho, de 29 de Maio de 2000, sobre o pedido do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JOCE L 131, de 1 de Junho de 2000, 43) e a Decisão 2004/926/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 2004, relativa à produção de efeitos de parte do acervo de Schengen no Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (JOCE L 395, de 31 de Dezembro de 2004, 70). Note-se, ainda, que o âmbito de aplicação espacial do acervo de Schengen foi alargado de forma sensível com a Decisão 2007/801/CE do Conselho, de 6 de Dezembro de 2007 (JOCE L 395, de 8 de Dezembro de 2007, 34) que o aplicou à República Checa, à República da Estónia, à República da Letónia, à República da Lituânia, à República da Hungria, à República de Malta, à República da Polónia, à República da Eslovénia e à República Eslovaca, enquanto a República de Chipre, a República da Bulgária e a República da Roménia, embora vinculadas, estão sujeitas a um regime especial. Por último, e como se referiu já na nota 138*, a República da Islândia e o Reino da Noruega, que não pertencem à União Europeia, encontram-se vinculados às 135

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cooperação judiciária e policial em matéria penal, até aí atribuída por inteiro aos mecanismos de cooperação intergovernamental, é referenciada, de acordo com o modelo da Stufenbau, ao Título VI do Tratado da União Europeia, dito terceiro pilar141, que não traduzindo, sem dúvida, uma completa comunitarização, passou a contemplar, por força do art. 35.º do Tratado da União, um relevante sistema de controlo jurisdicional a cargo do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que tantas consequências vem produzindo na definição dos contornos do ne bis in idem europeu142. b) A norma fundamental que consagra a proibição do ne bis in idem é o art. 54.º da CAAS, que, na formulação oficial em língua portuguesa, dispõe: «Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida»143. disposições de Schengen. Existe já um acordo de associação com a Confederação Suíça (cf. a Decisão 2004/860/CE do Conselho, de 25 de Outubro de 2004, no JOCE L 370, de 17 de Dezembro de 2004, 78). 141 Recorde-se que com as Decisões do Conselho 1999/435/CE e 1999/436/CE (ambas no JOCE L 176, de 10 de Julho de 1999, 1 ss. e 17 ss., respectivamente), que definem o conteúdo do acervo de Schengen e a base jurídica de cada uma das disposições que constituem o referido acquis, as normas da CAAS respeitantes ao ne bis in idem (art. 54.º a 58.º) passaram a ser referidas aos artigos 34 e 31 do Tratado da União Europeia 142 Sobre a evolução referida, cf. ANABELA MIRANDA RODRIGUES/J. L. LOPES DA MOTA (n. 15), 38 ss. Mais concretamente sobre a competência do Tribunal de Justiça, v. N. PIÇARRA, «O Tribunal de Justiça das Comunidades e o novo espaço de liberdade, de segurança e de justiça», Themis 2000, 81 ss. 143 O quadro normativo iniciado com o art. 54.º é completado pelos artigos 55.º a 58.º: art. 55.º 1. Uma parte contratante pode, no momento da ratificação, aceitação ou aprovação da presente convenção, declarar que não está vinculada pelo artigo 54.o num ou mais dos seguintes casos: a) Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham ocorrido, no todo, ou em parte, no seu território; neste último caso, esta excepção não é, todavia, aplicável se estes factos ocorreram em parte no território da parte contratante em que a sentença foi proferida; b) Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira constituam crime contra a segurança do Estado ou de outros interesses igualmente essenciais desta parte contratante; c) Quando os factos a que se refere a sentença estrangeira tenham sido praticados por um funcionário desta parte contratante em violação dos deveres do seu cargo. 2. Uma parte contratante, que tenha feito uma declaração relativa à excepção referida na alínea b) do n.º 1, especificará as categorias de crimes às quais esta excepção pode ser aplicada. 3. Uma parte contratante pode, a qualquer momento, retirar essa declaração relativa a uma ou mais das excepções referidas no n. º 1. 4. As excepções que foram objecto de uma declaração nos termos do n.º 1 não são aplicáveis quando a parte contratante em causa tenha, pelos mesmos factos, solicitado o procedimento judicial a outra parte contratante ou concedido a extradição da pessoa em causa»; art. 56.º: «Se uma nova acção judicial for intentada por uma parte contratante contra uma pessoa que tenha sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um tribunal de uma outra parte contratante, será descontado na sanção que venha a ser eventualmente imposta qualquer período de privação de liberdade cumprido no território desta última parte contratante por esses factos. Serão igualmente tidas em conta, na medida em que as legislações nacionais o permitam, sanções diferentes das privativas de liberdade que tenham já sido cumpridas»; art. 57.º: «1. Sempre que uma pessoa seja acusada de uma infracção por uma parte contratante e as autoridades competentes desta parte contratante tiverem razões para crer que a acusação se refere aos mesmos factos relativamente aos quais foi já definitivamente julgada por um tribunal de outra parte contratante, essas autoridades solicitarão, se o considerarem necessário, informações pertinentes às autoridades competentes da parte contratante em cujo território foi já tomada a decisão. 2. As informações solicitadas serão fornecidas o mais rapidamente possível e serão tomadas em consideração para o seguimento a dar ao processo em curso. 3. Cada parte contratante designará, no momento da ratificação, aceitação ou aprovação da presente convenção, as autoridades habilitadas a solicitar e a receber as informações previstas no

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O preceito gerou desde a primeira hora particulares dificuldades interpretativas – a falta de exposição de motivos bem como de normas definitórias dos conceitos empregues, a inexistência de uma instância com competência vinculativa para a interpretação (que só surgiria, como já se recordou, a partir de 2001, com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão), bem como a assaz complexa circunstância de estarmos desde a origem em face de um texto multilinguístico144, davam corpo a alguns dos mais espinhosos problemas que se colocavam aos intérpretes e às judicaturas dos diversos Estados à medida que os casos iam surgindo145. De modo particular, o sentido e o alcance que se devem atribuir em termos normativos aos conceitos «definitivamente julgado» e «mesmos factos» constantes do art. 54. da CAAS, têm constituído acesa fonte de dúvidas e divergências no já abundante panorama doutrinal e jurisprudencial146. Em termos assaz resumidos147, e no tocante ao primeiro aspecto mencionado: o que significa «definitivamente julgado», o mesmo vale por dizer, que tipo de decisões tomadas num Estado dispõem de eficácia preclusiva em termos de ne bis in idem em face de decisões a tomar noutro Estado, as clivagens detectadas na literatura são manifestas. Inequívoco parece ser, apenas, que na norma se incluem as sentenças judiciais transitadas em julgado, quer sejam de condenação quer sejam absolutórias148. Mas saindo deste núcleo duro, tudo o mais é incerto. Assim, e para referir apenas as posições mais emblemáticas, ora se tem sustentado que apenas presente artigo»; art. 58.º: «O disposto nos artigos anteriores não prejudica a aplicação das disposições nacionais mais amplas relativas ao efeito ne bis in idem associado às decisões judiciais proferidas no estrangeiro». 144 A CAAS foi redigida originariamente em alemão, francês e neerlandês, as línguas dos primeiros cinco Estados signatários do tratado. E se já com este conjunto linguístico, o conteúdo normativo das distintas redacções não se mostra sobreponível ou equivalente por completo, as dificuldades interpretativas cresceriam em intensidade com o facto de as novas versões linguísticas da CAAS, resultante do processo de adesão de novos Estados, fazerem igualmente fé. Para uma análise extensa dos problemas implicados pelas divergências nas versões linguísticas, v. S. STEIN (n. 6), 54 ss., B. SPECHT (n. 79), 135 s. 145 Refira-se, ainda, que nem sequer o tipo de metodologia interpretativa a seguir se afigura inequívoco, pois se a CAAS constituiu na origem um instrumento de direito internacional público, é discutível se a incorporação do acervo de Schengen no contexto da União deslocou o seu «centro gravitacional», convocando, em sintonia, os cânones de interpretação típicos do direito comunitário. Julgamos que não, o mesmo é dizer, os critérios interpretativos da CAAS são os do ius gentium, de modo concreto as disposições pertinentes da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (arts. 31 a 33). Isto porque, como se disse, as normas da CAAS reguladoras do ne bis in idem encontram-se reportadas, desde Amesterdão, ao Título VI do Tratado da União Europeia, no âmbito, pois, da cooperação intergovernamental. Neste sentido, S. STEIN (n. 6), 97, s. Em sentido contrário, sustentando a via interpretativa própria do direito comunitário, v. B. SPECHT (n. 79), 120 ss., especialmente 124 e nota 318. Como se sabe, a opção por uma ou outra solução pode apresentar algum relevo no tocante ao critério teleológico da interpretação, sobretudo no aspecto do peso relativo do princípio do efeito útil, particularmente actuante no direito comunitário, e pelo qual as disposições normativas devem ser interpretadas de modo a que o fim conformador da regulamentação se possa realizar na forma mais completa possível, enquanto no domínio do direito dos tratados esse princípio pode recuar em face do principio in dubio mitius, que manda dar prevalência à interpretação que menos restrinja a soberania dos Estados. Sobre este ponto, com referências, cf., de novo, B. SPECHT (n. 79), 125-7. 146 Mencionam-se no texto os dois segmentos normativos do art. 54 que maior controvérsia vêm suscitando, mas outros aspectos suscitam também dificuldades interpretativas, designadamente os pressupostos relativos ao cumprimento e à execução da sanção. Sobre este preciso ponto, cf., por todos, B. SPECHT (n. 79), 164 ss. 147 Para uma visão aprofundada da questão, com exaustiva análise das dificuldades interpretativas suscitadas, vejam-se as importantes monografias de R. KNIEBÜHLER (n. 7), 178-274, S. STEIN (n. 6), 70-96, 198-249, 320-478, M. MANSDÖRFER (n.7), 149-179, B. SPECHT (n.79), 132-164. 148 Por todos, cf. B. HECKER (n. 56), 306, S. STEIN (n. 6), 70.

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decisões judiciais de mérito correspondem ao desenho da norma149, ora se estende o âmbito do preceito a outras decisões processuais que ponham definitivamente termo ao processo150, ora se requer em todo o caso que a decisão resolutiva seja tomada por um juiz, ora se abrangem também as decisões extrajudiciais desde que dotadas de uma intangibilidade análoga ao caso julgado, sejam proferidas pelo Ministério Público151, sejam mesmo por autoridades administrativas152, ora se defende, até, que ocorrendo um obstáculo processual que impeça a instauração do procedimento num certo Estado, fica precludido, por aplicação do art. 54.º da CAAS, um ulterior processo noutro Estado153. Como se calcula, soluções assim diversas decorrem do peso diferenciado que se atribua aos vários factores concorrentes no processo interpretativo, sobretudo da articulação entre o quadro do significante verbal corporizado no texto, rectius, nas múltiplas versões do textonorma154 (e do seu sistemático contexto 155), todas elas igualmente vinculativas, por um lado, e o telos constituinte da prescrição legal, por outro. Tem sido, com efeito, a acentuação da esfera final ou teleológica do preceito a conduzir (à tort ou à raison, não importa agora decidi-lo), às teses interpretativas mais abrangentes no tocante ao sentido de «definitivamente julgado» e à questão de saber se também decisões não judiciais, máxime, tomadas pelo Ministério Público, desencadeiam o ne bis in idem transnacional consagrada no art. 54.º da CAAS. Enfatiza-se, de forma especial, que nas intenções fundantes de Schengen se encontra, por um lado, o interesse ou fim da livre circulação das pessoas no novo espaço sem fronteiras internas, por outro, a necessidade de assegurar que a supressão dos controles entre os Estados não se fizesse com prejuízo da segurança – para o acautelar se dava corpo, precisamente, às diversas medidas em Assim, entre outros, C. VAN DEN WYNGAERT, «Anmerkung z. BGH von 13.05.1997», Neue Zeitschrift für Strafrecht 1998, 153 s*, C. VAN DEN WYNGAERT/G. STESSENS (n. 135), 802: «sentences and out-of-court settlements are not placed on na equal footin. The conclusion seems to be that a transactie [forma de resolução não judicial do processo, da comptência do Ministério público] is not a sentence and that i tis theresofore not cobered by Article 54 of the Schengen Convention» (interpolação nossa). 150 Nesta linha, v. O. LAGODNY, «Teieuropäisches “ne bis in idem”», Neue Zeitschrift für Strafrecht 1997, 266 ss. 151 Cf., entre tantos, R. KNIEBÜHLER (n. 7), J. F. BOHNERT/O. LAGODNY, «Art. 54 SDÜ im Lichte der nationalen Wiederaufnahmegründe», Neue Zeitschrift für Strafrecht 2000, 636 ss. Como se compreende, este problema tem constituído um dos mais sensíveis no contexto da aplicação do art. 54.º, na medida em que são numerosas, nos diversos Estados vinculados à CAAS, as possibilidades conferidas legalmente ao Ministério Público para resolver em termos finais o processo. Sobre este concreto núcleo problemático recaiu a primeira decisão do Tribunal de Justiça, a que faremos referência no ponto seguinte. 152Tenham-se em vista, por exemplo, algumas modalidades de Transactie/Transaction do direito belga ou o Straferkenntnis austríaco a cargo de autoridades administrativas, mas com eficácia resolutiva com carácter final, isto, em que os processos assim decididos não podem ser reabertos. Sobre estas questões, v. M. MANSDÖRFER (n. 7),146-8, B. HECKER (n. 56), *, R. KNIEBÜHLER (n. 7), 258-265, 270-272. 153 Assim, R. EINDRISS/J. KINZIG (n. 11), 668. 154 A cabal explicitação do que se refere em texto demandaria demorada sinopse dos diversos textos-norma, os quais, como se mencionou já, manifestam as incontornáveis dessintonias implicadas em toda a tradução (que é ela mesma, bem se sabe, interpretação) – essa análise está fora das intenções do presente estudo, dirigido essencialmente ao levantamento quase inventarial dos problemas. Não deixa de ser interessante referir, de todo o modo, a circunstância de, no tocante à controversa questão das decisões não-judiciais se incluírem ou não no âmbito do art. 54 .º da CAAS, a letra da versão portuguesa constituir, das várias que compulsámos, aquela que mais claramente impõe a intervenção de um tribunal. Realçando já a versão em português, v. M. BÖSE, «Der Grundsatz “ne bis in idem” in der Europäischen Union (Art. 54 SDÜ)», Goldtdammer's Archiv für Strafrecht 2003, 748. 155 Sobre este aspecto, cf., por todos, M. BÖSE (n. 153), 749 s., B. SPECHT (n. 79), 140-143. 149

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matéria policial, de política de vistos e imigração, e de cooperação judiciária constantes da CAAS. Seria neste horizonte de checks and balances que, de acordo com esta linha doutrinal, se deveria perspectivar o âmbito extensional do ne bis in idem europeu – ao estender a eficácia preclusiva de uma decisão processual definitiva tomada num certo Estado a todo o espaço da União, ao mesmo tempo que se revela expressão sensível de confiança recíproca nos sistemas de justiça estaduais e do mútuo reconhecimento das respectivas decisões, potencia-se (ou, pelo menos, não se limita) a livre circulação das pessoas que, depois de haverem sido alvo de um processo por determinado crime num qualquer Estado da União, não têm que recear novos processos noutros Estados onde, eventualmente, se desloquem156. Mas se for esta a matriz teleológica do art. 54.º, como pretende a via interpretativa que vimos referindo, bem se compreende que o seu âmbito não deva ficar restringido às decisões judiciais transitadas em julgado, antes integre também outras decisões, ainda que fundadas em razões estritamente processuais e proferidas, mesmo, por órgãos não jurisdicionais157. Menos pacífico se mostra, porém, saber se tal leitura é comportável pelo suporte textual, ainda que levado aos limites das suas possibilidades significativas. Também o sentido a atribuir ao pressuposto «mesmos factos» – os critérios de definição do idem – não se revela de resolução simples: desde logo, na questão de saber se esse quid submetido à aferição da identidade (o mesmo, o idem) há-de recortar-se em função ou com base no facto (fait, fact, Tat), entendido no essencial como o conjunto de elementos integrantes de um acontecimento histórico-normativamente delimitado, ou em função do crime, isto é, da qualificação típica (da offence, da Straftat) contida na primeira decisão158; por outro lado, na questão de saber se a definição do que seja idem deve ser remetida para os concretos ordenamentos nacionais ou se, pelo contrário, se deve fixar um conceito autónomo, isto é, um conceito que decorra imediatamente da CAAS e que nessa medida seja aplicável em todo o espaço da União, independentemente das divergências que os vários sistemas jurídicos estaduais apresentem na matéria159.

V Estes argumentos são correntes (cf., por todos, M. BÖSE (n. 153), 750-753. Como se referirá, ainda, eles informam em medida relevante a jurisprudência do Tribunal de Justiça. 157 Para L. Silva Pereira e Teresa Alves Martins, «dadas as diferenças entre os sistemas jurídicos dos Estados membros e com base no princípio da confiança mútua, afigura-se que não deverá procurar-se uma definição rígida de caso julgado ao nível da EU. Bem pelo contrário, o tipo de decisão geradora de um efeito ne bis in idem deve ser definido em termos amplos, de modo a abranger as diferenças já mencionadas» (L. SILVA PEREIRA/T. ALVES MARTINS (n. 6), 323). 158 Entre a abundante literatura, veja-se C. VAN DEN WYNGAERT/G. STESSENS (n. 135), 788-797; M. MANSDÖRFER (n. 7), 177-179; 159 No primeiro sentido, defendendo, pois, que não se mostra necessário procurar um «conceito europeu de idem», antes pertence ao Estado da primeira decisão definir, em termos vinculativos para os restantes Estados, por força do princípio do reconhecimento mútuo, os termos do objecto do processo, v. B. HECKER (n. 56), 309 s.; na conclusão, também, H. RADTKE/D. BUSCH, «Transnationalen Strafklageverbrauch in den sog. Schegen-Staaten?», Europäische Grundrecht Zeitschrift 2000, 430. Em sentido diverso, isto é, na linha de um conceito autónomo de «mesmos factos», cf. B. SPECHT (n. 79), 159 ss., H. THOMAS (n. 20), 209. Para mais informações sobre a questão, v. R. KNIEBÜHLER (n. 7), 274 ss. 156

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Estas e outras dúvidas e dificuldades decorrentes da aplicação das normas da CAAS relativas ao princípio ne bis in idem vieram a breve trecho a repercutir-se na prática judiciária dos diversos países obrigados pela Convenção, originando crescentes e (como seria de esperar) contrastantes respostas jurisprudenciais por banda das judicaturas nacionais, desprovidas, até à entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, de uma instância uniformizadora a nível da União160. Desde 2001, pois, e por força do disposto no art. 35 do Tratado da União Europeia, o Tribunal de Justiça das Comunidades passou a dispor de competência para decidir sobre a interpretação das normas do acervo de Schengen. Talvez não por mera coincidência, a primeira decisão tomada nesse contexto veio a recair, precisamente, sobre o âmbito do princípio ne bis in idem consagrado nos artigos 54.º a 58.º da CAAS – este aresto inaugural abriria caminho a uma já considerável jurisprudência, densificada, até ao momento, em oito relevantes acórdãos161. a)

Caso Gözütok/Brügge

Proferido em finais de 2003, este primeiro acórdão decidiu de forma conjunta dois processos, reunidos pela similitude das questões colocadas à apreciação do Tribunal de Justiça162 e que, no essencial, se prendem com o sentido a atribuir ao pressuposto A economia do estudo não consente uma análise dessa interessante casuística, mais abundante, como se calcula, nos países limítrofes vinculados desde a primeira hora à CAAS. Permita-se, de todo o modo, a indicação de alguns arestos mais significativos: caso Lacour, relativo a situação de bis in idem no contexto franco-alemão (v. H.-H. KÜHNE, «Ne bis in idem in der Schengener Vertragsstaten. Die Reichweit des Art. 54 SDÜ im deutschfranzösischen Kontext», Juristenzeitung 1998, 876-80, IDEM, «Anmerkung z. BGH StV 1999, 478», Strafverteidiger 1999, 4801-1, H. RADTKE /D. BUSCH (n. 159), 422, M. MANSDÖRFER (n. 15), 145; caso da Transactie, sobre os efeitos em termos de ne bis de uma resolução não judicial do processo (transactie) prevista no direito belga (v. C. VAN DEN WYNGAERT, «Anmerkung z. BGH, Beschl. v. 13.5.1997, NStZ 1998, 149», Neue Zeitschrift für Strafrecht 1998, 153-4, A. EICKER (n. 18), 85, caso Tribunal de Eupe (Holanda), em que este tribunal holandês considerou que um arquivamento decretado na Alemanha estava abrangido pelo art. 54 da CAAS (v. M. MANSDÖRFER (n. 15), 146. 161 Os arestos encontram-se com facilidade na pagina web do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias http://curia.europa.eu/pt/index.htm. As referências nas citações reportam-se ao número parágrafo da decisão. 162 Processos C-187/01 (caso Gözütok) e C-385/01 (caso Brugge). Processo C-187/01: No decurso de buscas efectuadas pela polícia neerlandesa ao domicílio de H. Gözütok, cidadão turco residente há algum tempo nos Países Baixos, foram apreendidas diversas quantidades de estupefacientes. O procedimento criminal entretanto instaurado, veio a ser arquivado pelo facto de o arguido Gözütok no quadro do instituto não judicial da transactie, previsto no Código Penal holandês e que consiste numa forma de extinção da acção penal mediante o pagamento pelo arguido de uma quantia proposta pelo Ministério Público. Entretanto, a polícia alemã prendeu H. Gözütok, que foi acusado de tráfico de estupefacientes nos Países Baixos, vindo a ser condenado numa pena privativa da liberdade com a duração total de um ano e cinco meses, condicionalmente suspensa. No recurso interposto, o Landgericht alemão extinguiu o procedimento criminal intentado contra H. Gözütok porque, nos termos do artigo 54.° da CAAS, o arquivamento definitivo do procedimento criminal ocorrido na Holanda na sequência de uma transacti seria equiparável a uma condenação definitiva («rechtskräftige Verurteilung») na acepção da versão alemã do artigo 54.° da CAAS, ainda que tal transacção não implique a participação de um juiz e não tenha a forma de um julgamento. Num ulterior recurso para o Oberlandesgericht de Colónia decidiu-se que a solução do litígio dependia da interpretação do artigo 54.° da CAAS, suscitando-se, em sintonia, junto do Tribunal de Justiça esta questão prejudicial: «Verifica-se em relação à República Federal da Alemanha a extinção da acção penal nos termos do artigo 54.° da CAAS se, em conformidade com a legislação dos Países Baixos, o procedimento criminal relativo aos mesmos factos estiver extinto a nível nacional? Em particular, verifica-se a extinção do 160

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«definitivamente julgado» presente no art. 54 da CAAS. Mais concretamente, tratava-se de saber se também decisões extra-judiciais tomadas pelo Ministério Público, pelas quais se ponha termo ao processo penal mediante o cumprimento pelo arguido de determinadas obrigações fixadas, designadamente o pagamento de certa quantia, desencadeiam o efeito de ne bis in idem daquele normativo legal. A resposta do Tribunal de Justiça foi afirmativa163. Como se expressa no acórdão, a aplicação do art. 54.º pressupõe a resolução definitiva do processo, a extinção da acção penal. Ora, nos casos em apreciação, «o procedimento pelo qual o Ministério Público, competente para este fim pela ordem jurídica nacional pertinente, decide arquivar o procedimento criminal contra um arguido depois de este ter satisfeito determinadas obrigações e, designadamente, ter pago determinada soma em dinheiro fixada pelo referido Ministério Público» constitui um «procedimento de extinção da acção penal» (n.º 27). Além disso, a imposição de obrigações ao arguido, como condição de aplicação do procedimento resolutivo, «pune o comportamento ilícito imputado ao arguido» (n.º 29), equivalendo o cumprimento das referidas obrigações à aplicação de uma sanção, para efeitos do art. 54.º (n.º 30). Por outro lado, a circunstância de os processos haverem terminado sem intervenção de uma autoridade jurisdicional e, portanto, o acto resolutivo não revestir forma de sentença não afasta a interpretação defendida; pretender o contrário implicaria não só dar relevo injustificado a «elementos formais e processuais» (n.º 31), como, ainda, esquecer que as disposições comunitárias pertinentes não fazem depender a aplicação da CAAS à «harmonização ou, pelo menos, à aproximação das legislações penais dos Estados-Membros no domínio dos procedimentos de extinção da acção penal» (n.º 32). E com isto tocamos o argumento axial da fundamentação – para o Tribunal, «o princípio ne bis in idem, independentemente de ser aplicado a procedimentos de extinção da acção penal que prevejam ou não a intervenção de um órgão jurisdicional ou a existência de sentenças, implica necessariamente que exista uma confiança mútua dos Estados-Membros nos respectivos sistemas de justiça penal e que cada um aceite a aplicação do direito penal em vigor noutros Estados-Membros, ainda que a aplicação do seu direito nacional leve a uma solução diferente». Apenas desta forma se pode dar cumprimento à finalidade declaradamente assumida pela

procedimento criminal quando uma decisão do Ministério Público que ordene a suspensão do processo após o pagamento prévio de determinados encargos (transactie, em neerlandês), obste à sequência do procedimento num tribunal neerlandês apesar de, nos termos da legislação de outros Estados contratantes, a referida decisão necessitar para esse efeito de homologação judicial?». Processo C-385/01: K. Brügge, cidadão alemão residente em Rheinbach (Alemanha), foi objecto de um inquérito pelo Ministério Público belga por crime de ofensas corporais praticadas em território belga. Num processo entretanto instaurado na Alemanha, com fundamento nos mesmos factos do processo da Bélgica, o Ministério Público de Bona, propôs a K. Brügge, ao abrigo do disposto nos §§ 153 a e § 153, n.° 1, Código de Processo Penal alemão, o pagamento de 1 000 marcos alemães. Tendo o arguido liquidado a quantia proposta, o Ministério Público alemão arquivou o procedimento criminal. Em face deste arquivamento, e por entender que a solução do caso dependia da interpretação do artigo 54.° da CAAS, o tribunal da Bélgica decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial: «A aplicação do artigo 54.° [da CAAS] permite que o Ministério Público belga accione em juízo num tribunal penal belga um nacional alemão e este o julgue pelos mesmos factos relativamente aos quais o Ministério Público alemão lhe proporcionou, mediante um acordo amigável, o termo do processo mediante o pagamento de uma quantia, que foi paga pelo cidadão alemão?» Dada a manifesta conexão das questões apresentadas, o Tribunal de Justiça veio a reunir os dois processos.

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União de criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que seja assegurada a livre circulação de pessoas (cf. n.º 36) – um tal propósito só pode ser realizado pelo art. 54.º, que visa «evitar que uma pessoa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, seja, pelos mesmos factos, submetida a uma acção penal no território de vários Estados-Membros», caso o preceito inclua «decisões que extingam definitivamente os procedimentos criminais num Estado-Membro, ainda que sejam adoptadas sem a intervenção de um órgão jurisdicional e que não tenham a forma de uma sentença» (n.º 38). Por último, o Tribunal de Justiça invoca um argumento de coerência funcional: os mecanismos de resolução extrajudicial do processo penal não são aplicáveis, regra geral, a infracções graves e puníveis com penas elevadas, antes para a pequena e média criminalidade, a mais difusa e aquela em que o recurso a formas alternativas (diversion) e à actuação de vias informadas por amplas margens de oportunidade (mesmo em sistemas informados prioritariamente pelo princípio da legalidade processual). Ergo, «a limitação da aplicação do artigo 54.° da CAAS unicamente às decisões que extinguissem a acção penal tomadas por um órgão jurisdicional ou que tivessem a forma de sentença teria como resultado que apenas beneficiariam do princípio ne bis in idem previsto nesta disposição e, portanto, da livre circulação que esta tem por objectivo facilitar, os arguidos que fossem condenados por infracções às quais, em função da sua gravidade ou das sanções de que são passíveis, não é possível o recurso à modalidade de resolução simplificada de certos processos» (n.º 40) 164.

b)

Caso Miraglia

No mesmo sentido (embora não exactamente nos mesmos termos) corriam já as detidas conclusões do Advogado-Geral Dâmaso Ruiz-Jarabo Colomer. 164 A decisão do Tribunal de Justiça suscitou, de imediato, amplíssima ressonância crítica e exaustiva análise. De entre a copiosa literatura, e sem pretensão de completude, vejam-se E. APPL, «Ein neues “ne bis in idem” aux Luxemburg?», in: Gedächtnisschrift für Theo Vogler (Hrsg. O. Triffterer), Heidelberg: C. F. Müller, 2004, 109 ss., M. BÖSE (n. 153), 744 ss., A. CALIGIURI, «L’applicazione del principio ne bis in idem in diritto comunitario: a margine della sentenza Gözütok e Brügge», Rivista di diritto internazionale private e processuale 2003, 867 ss., M. FLECHTER, «Some Developments to the ne bis in idem principle in the European Union: Criminal Proceedings Against Hüseyn Gözütok and Klaus Brügge», The Modern Law Review 2003 (66), 769 ss., I. INGRAVALLO, «Il ne bis in idem nel processo penale secondo una recente senteza della Corte di giustizia», Il Diritto dell’Unione Europea 2003, 496 ss., H.-H. KÜHNE, «Anmerkung z. EuGH (C-187/01; C-385/01 Gözütok e Brügge = JZ 2003, 303-05)», Juristenzeitung 2003, 305 ss., F. JULIEN-LAFERRIÈRE, «Les effets de la communautarisation de „l’acquis de Schengen“ sur la règle non bis in idem», Reccueil Dalloz 2003 (n.º 22/7119, 5.06.2003), 1458-60, M. MANSDÖRFER, «Anmerkung z. EuGH, Urt. v. 11.2.2003 – C 187/01 u. C 385/01», StV 2003, 313 ss., R. KNIEBÜHLER, (n. 7), 218-9, H. RADTKE/D. BUSCH, «Transnationaler Strafklageverbrauch in der Europäischen Union – EuGH, Urt. v. 11.2.2003», Neue Zeitschrift für Strafrecht 2003, 281 ss., S. STEIN, «Ein Meilenstein für europäische “ne bis in idem”», Neue Juristische Wochenschrift 2003, 1162 ss., N. THWAITES, «Mutual Trust in Criminal Matters: the European Court of Justice gives a first interpretation of a provision of the Convention implementing the Schengen Agreement», German Law Journal 2003, 253 ss., D. THYM, «Anmerkung z. EuGH 11.2.3003», Neue Zeitschrift für Strafrecht 2003, 332 ss., J. VOGEL/A. NOROUZI, «Europäisches “ne bis in idem”—EuGH NJW 2003, 1173», Juristische Schulung 2003, 1059 ss. Na literatura portuguesa, a decisão do Tribunal de Justiça mereceu a atenção de J. N. CUNHA RODRIGUES, «À propos du principe ne bis in idem. Un regard sur la jurisprudence de la Cour de Justice des Communautés européennes», in: Une Communauté de droit. Festschrift für Gil Carlos Rodriguez Igglesias (Hrsg. N. Colneric, D. Edward et. al.), Berlin: 2003, 165 ss., e de P. CAEIRO, «Cooperação judiciária na União», in: Direito penal especial, processo penal e direitos fundamentais : visão luso-brasileira (coord. de J. Faria Costa e M. A. Marques da Silva), São Paulo: Quartier Latin, 2006, 450 s. 163

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O caso seguinte165 inclui-se na mesma esfera problemática de Gozütok/Brügge: a determinação dos requisitos da decisão tomada no primeiro Estado para produzir efeitos de ne bis in idem. Eis a pergunta colocada à instância de Estrasburgo: «deve aplicar-se o artigo 54.° da [CAAS] no caso de a decisão judiciária adoptada no primeiro Estado consistir numa decisão de renúncia à instauração da acção penal, sem qualquer juízo sobre os factos e apenas assente no pressuposto de que já foi instaurada uma acção judicial noutro Estado-Membro?». Na motivação, o Tribunal, reiterando os fundamentos expendidos no acórdão anterior, designadamente sobre a teleologia conformadora do art. 54.º, defende que reconhecer eficácia de ne bis in idem a uma mera decisão de arquivamento que não aprecie de todo o mérito da causa e tomada, apenas, com base na instauração noutro Estado de processo contra o mesmo arguido por idênticos factos «teria o efeito de dificultar, ou mesmo impossibilitar, qualquer hipótese concreta de punir nos Estados-Membros em causa o comportamento ilícito imputado ao arguido» (n. 33), o que é contrário aos objectivos da União da prevenção e combate à criminalidade (cf. n.º 34) c) Caso Van Esbroeck No caso Van Esbroeck 166 suscitavam-se diversas questões167; entre elas, a determinação do conceito de mesmo crime, do conceito de idem. Na concreta situação tratava-se de saber se a importação ilícita de estupefacientes para a Noruega com origem na Bélgica e a exportação ilícita dessas substâncias a partir deste último país constituem ou não os mesmos factos para efeitos do art. 54.º da CAAS. Os tribunais belgas, que julgaram o arguido já depois de ele haver sido condenado na Noruega, consideram que não se tratava de uma situação de bis in idem168. Processo C-469/03, decidido em 10 de Março de 2005. O caso prende-se com o tráfico de estupefacientes entre a Holanda e a Itália. Já depois de instaurado um processo pelas autoridades judiciárias italianas, mas antes do julgamento, foi aberto processo na Holanda pelos mesmos factos; este procedimento veio a ser arquivado, contudo, com base no facto de estar a decorrer o processo italiano. Sobre o caso Miraglia, mas ainda antes de ser proferida a decisão do Tribunal de Justiça, v. a ampla análise de C. AMALFITANO, «Bis in idem per il “ne bis in idem”: nuovo quesito alla Corte di Giustizia», Rivista di diritto internazionale privato e processuale 2004, 85-102 166 Processo C-436/04, decidido em 9 de Março de 2006. O caso reporta-se, de novo, ao tráfico de drogas: o arguido, de nacionalidade belga, foi primeiramente condenado por um tribunal norueguês pelo crime de importação de estupefacientes da Bélgica para a Noruega. Já em liberdade condicional, van Esbroeck é conduzido sob detenção à Bélgica e aí condenado por exportação ilícita dos mesmos produtos por que havia sido condenado na Noruega. C. ROSSABAUD, «Die Vorabentscheidung des EuGH im Fall Van Esbroeck, Rs C-436/04», Österreichische Juristenzeitung 2006, 669-672. 167 Além da questão nuclear referida de seguida em texto, a causa suscitava outros problemas, designadamente de aplicação temporal da CAAS. Com efeito, no momento em que o arguido foi condenado pela instância norueguesa, a Convenção ainda não era aplicável ao Reino da Noruega. O Tribunal, seguindo, aliás, o já defendido pelo Adogado-Geral Colomer, considerou que «o princípio ne bis in idem, consagrado pelo artigo 54.° da CAAS, deve ser aplicado a um procedimento penal instaurado num Estado contratante por factos que já tenham dado origem à condenação do interessado noutro Estado contratante, mesmo que a CAAS ainda não estivesse em vigor neste último Estado no momento em que a referida condenação foi proferida, desde que estivesse em vigor nos Estados contratantes em causa no momento da apreciação das condições de aplicação do princípio ne bis in idem pela instância chamada a pronunciar-se em segundo lugar» (Caso van Esbroeck, n.º 24). 168 Como fundamento, invocou-se o disposto no art. 36, n.º 2, da Convenção Única sobre Estupefacientes, elaborada pelas Nações Unidas, segundo o qual a importação e a exportação de estupefacientes deve ser considerada uma infracção distinta, caso tenham sido cometidas em países diferentes. 165

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Outro, porém, é o entendimento do areópago comunitário, ao considerar que com a expressão «os mesmos factos» a norma visa apenas a «materialidade dos factos em causa, com exclusão da sua qualificação jurídica»169 (n.º 27) e, outrossim, do critério da identidade do bem jurídico, «susceptível de variar de um Estado contratante para outro» (n.º 32). Em suma, o «o único critério relevante para efeitos da aplicação do artigo 54.° da CAAS é o da identidade dos factos materiais, entendido como a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si» (n.º 42) – para o Tribunal, só se dará efectividade ao vector da livre circulação das pessoas se «o autor de um acto souber que, uma vez condenado e depois de cumprida a pena ou, se for caso disso, uma vez absolvido definitivamente num Estado-Membro, se pode deslocar no interior do espaço Schengen sem medo de ser objecto de acções penais noutro Estado-Membro, por esse acto constituir uma infracção distinta no ordenamento jurídico deste último Estado-Membro»170 (n.º 34). d) Caso Van Straaten Um outro caso de posse e tráfico de drogas, desta feita na Holanda e em Itália, daria azo o novo aresto171 centrado em duas questões prejudiciais: a primeira reportava-se, tal como em Van Esbroeck, ao problema dos critérios do conceito de idem; a segunda, a saber se uma absolvição por falta de prova integra o âmbito de «definitivamente julgado» previsto no art. 54.º. Em relação ao primeiro ponto, o acórdão segue na íntegra a linha defendida no caso Van Esbroeck: a identidade dos factos materiais, que se mantém mesmo quando, como ocorre na situação em apreço, as quantidades de estupefacientes e os co-arguidos não sejam idênticos nos dois processos em conflito (n.º 53). Já no que concerne a segunda questão, entende o Tribunal que o princípio ne bis in idem abrange «uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado contratante que absolve definitivamente um arguido por insuficiência de provas» – assim o exigem, por um lado, os princípios da segurança jurídica e da confiança (n.º 59) e, por outro, «o exercício do direito à

Em apoio deste entendimento, os juízes de Estrasburgo invocam a diferença na formulação literal do conceito de idem que se detecta entre o art. 54.º da CAAS: mesmos factos, e outros instrumentos de direito internacional em que o princípio encontra assento, como os artigos 14.º, n.º 7, do PIDCP e 4.º do 7.º Protocolo Adicional à CEDH: offence (infracção), que dá relevância ao critério da qualificação jurídica (cf. 28). Acresce que o critério da identidade da qualificação jurídico ou do interesse jurídico tutelado, na ausência de uma harmonização das diversas legislações, implicaria, no dizer do Tribunal, «tantos obstáculos à liberdade de circulação no espaço Schengen quantos sejam os sistemas penais dos Estados contratantes» (n.º 35). 170 Aplicando o critério da identidade dos factos ao caso concreto, o Tribunal considerou que os «factos puníveis que consistem na exportação e na importação dos mesmos estupefacientes e objecto de acções penais em diferentes Estados contratantes da CAAS, devem, em princípio, ser considerados «os mesmos factos», na acepção deste artigo 54.°», embora pertença às instâncias nacionais competentes a apreciação definitiva deste aspecto (n.º 42). 171 Processo C-150/05, resolvido em 28 de Setembro de 2006. Breviter, as autoridades holandesas processaram o arguido Van Straaten por um crime de importação de 5 kg de heroína, provenientes de Itália, e por um crime de posse de cerca de 1 kg de heroína. Veio a ser absolvido da primeira imputação e condenado pela segunda. Por sua vez, em Itália foi instaurado processo contra o mesmo indivíduo e outros co-arguidos pelo crime de exportação 169

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livre circulação», ameaçado caso não se atribua a uma decisão definitiva de absolvição por insuficiência de provas efeito preclusivo de novo procedimento (n.º 58). Acresce ainda a circunstância de nesta causa, de modo diverso do ocorrido em Miraglia, a absolvição constituir uma apreciação de mérito (n.º 60). d)

Caso Gasparini

Continuando a tarefa de aferição dos fundamentos processuais de extinção do procedimento abrangidos pelo art. 54, o Tribunal debruça-se no caso Gasparini172 sobre a relevância da prescrição. Este problema assume um interesse particular em matéria de eficácia transnacional da proibição dada as consabidas divergências entre os vários Estados europeus quer sobre os prazos de prescrição, quer, inclusive, sobre o tipo de efeitos que a passagem do tempo implica no processo penal. Isto resulta bem visível no confronto entre as conclusões da Advogada-Geral Eleanor Sharpston, em cujo background jurídico (o direito inglês) o decurso do tempo, por si só, não tem eficácia extintiva do procedimento, por um lado, e a fundamentação e consequente aresto do Tribunal. Com efeito, para a Advogada-Geral importa ter em conta, desde logo, que não há «um reconhecimento universal dos prazos de prescrição como princípio geral comum aos sistemas de direito penal de todos os Estados-Membros» (Conclusões, n.º 69); por outro lado, enfatiza que o princípio ne bis in idem se compreende quando a sociedade haja tido a «oportunidade de acertar contas com o indivíduo suspeito de ter cometido um crime contra ela» (n.º 74), o que só ocorre, porém, nas situações em que tenha havido um julgamento quanto ao mérito (cf. n.º 75) – ora, continua, se é razoável que no interior de uma única sociedade se renuncie a tal apreciação por força do decurso do tempo, isto é, da prescrição, no contexto multisocial e multinacional da CAAS aquele entendimento mostra-se bem menos razoável, senão mesmo fonte de «considerável perturbação» (n.º 76). Em sintonia, o ne bis in idem deve abranger apenas as decisões em que houve apreciação do mérito da causa (cf. n.º 77). Assim, conclui que «um órgão jurisdicional nacional só está vinculado por uma decisão que declara a prescrição do procedimento criminal, adoptada num processo-crime por um órgão jurisdicional de outro Estado-Membro, se a) essa decisão for definitiva, à luz do direito nacional, b) o processo no outro Estado-Membro tiver envolvido

para os Países Baixos de cerca de 5 kg de heroína – após julgamento à revelia, o tribunal italiano condenou Van Straaten em pena de prisão. 172 Processo C-467/04, decidido em 28 de Setembro de 2006. No caso, vários arguidos introduziram no espaço europeu, através do porto de Setúbal, e sem que se cumprissem as exigências aduaneiras, azeite refinado com origem na Tunísia e Turquia, fazendo-o transportar, depois, de Setúbal para Málaga. O Supremo Tribunal de Justiça português absolveu dois desses arguidos com fundamento na prescrição do procedimento criminal. Em face desta decisão, a Audiencia Provincial de Málaga suscitou junto do Tribunal de Justiça, entre outras, a questões de saber se (1) o princípio ne bis in idem se aplica a uma decisão de um tribunal de um Estado que absolve definitivamente um arguido por prescrição do procedimento e se, (2) havendo vários arguidos, processados pelos mesmos factos em diferentes países, e tendo alguns deles sido absolvidos por prescrição, se pode ou não aplicar aos restantes o efeito do ne bis in idem. Esta última questão veio a ser resolvida no sentido de que que o princípio ne bis in idem não se aplica a pessoas diferentes das que foram definitivamente julgadas por um Estado contratante (cf. n.º 37 do Acórdão).

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uma apreciação do mérito da causa» e c) os factos materiais e o(s) arguido(s) forem os mesmos nos processos em ambos os tribunais» (n.º 120). Foi diverso o entendimento adoptado pelo Tribunal. Para os juízes, tendo em conta que o art. 54.º exige apenas que a decisão seja definitiva, mas não explicita qual o seu conteúdo (cf. n.º 24), e considerando o objectivo primacial da norma: «evitar que uma pessoa, por exercer o seu direito de livre circulação, seja perseguida criminalmente pelos mesmos factos no território de vários Estados» (n.º 27), deve considerar-se que o ne bis in idem se aplica às decisões que absolvem «definitivamente um arguido por prescrição do procedimento» (n.º 33). e)

Caso Kraaijenbrink

O caso Kraaijenbrink173 ofereceu ao Tribunal ocasião para precisar o conceito de «mesmos factos» – desta feita, tratava-se de saber se para afirmar a identidade de factos é bastante a unidade do dolo traduzida pela circunstância de haver uma única intenção delituosa a presidir aos vários actos criminais. No aresto, reafirma-se que o único critério relevante reside na «identidade dos factos materiais, entendido como a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si», devendo as instâncias nacionais determinar se «os factos materiais das duas acções penais constituem um conjunto de factos indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto» (n.º 26 s.). Ora essa identidade não resulta da «mera circunstância de a instância chamada a conhecer da segunda acção penal declarar que o presumido autor dos factos agiu com a mesma intenção delituosa» (n.º 29). f)

Caso Kretzinger

No processo Kretzinger174, uma das questões decidendas prende-se com a parte final do art. 54.º, ou seja, sobre o requisito da execução e cumprimento da sanção aplicada pelo Processo C-367/05, decidido a 18 de Julho de 2007. No caso, a cidadã holandesa, Norma Kraaijenbrink, foi condenada, em finais de 1998, na Holanda, numa pena suspensa, pela prática naquele país de diversos crimes de receptação de capitais provenientes do tráfico de estupefacientes. A mesma arguida foi, em 2001, condenada por um tribunal belga por crimes respeitantes a operações de câmbio, efectuadas na Bélgica, entre Novembro de 1994 e Fevereiro de 1996, de montantes de dinheiro provenientes do tráfico de estupefacientes levado a cabo nos Países Baixos. Ambas as instâncias nacionais rejeitaram a aplicação do art. 54.º da CAAS por entenderem que os crimes de receptação de montantes de dinheiro provenientes do tráfico de estupefacientes praticado nos Países Baixos e as operações de branqueamento do dinheiro resultante deste tráfico, praticados na Bélgica, deviam ser considerados factos distintos neste último Estado, não obstante a unidade de intenção entre os delitos de receptação cometidos nos Países Baixos e os delitos de branqueamento de capitais cometidos na Bélgica. 174 Processo C-288/05, julgado em 18 de Julho de 2007. Em duas ocasiões, o arguido transportou, da Grécia para o Reino Unido, passando pela Itália e Alemanha, cigarros provenientes de países não pertencentes à União Europeia e em desrespeito às normas alfandegárias. Kretzinger veio a ser julgado e condenado duas vezes à revelia na Itália, num caso em pena de prisão suspensa, noutro em prisão efectiva, que não chegou, porém, a ser executada; as duas sentenças transitaram em julgado. Por seu turno, um tribunal alemão condenou também o mesmo indivíduo pelo crime de receptação dos cigarros. Considerou esta instância que as decisões italianas não obstavam ao julgamento na Alemanha porque as penas nunca haviam sido executadas. 173

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primeiro Estado, no caso em duas hipóteses distintas: a de uma pena suspensa e a de uma pena de prisão aplicada num processo em que o arguido fora alvo de detenção e de prisão preventiva, mas em que não houve execução da pena de prisão cominada. Em relação às hipóteses de suspensão da pena, a resposta do Tribunal vai no sentido de este tipo de reacção criminal preenche a condição prevista no art. 54.º: a pena ou está em vias de execução ou, decurso o tempo da suspensão, deve considerar-se cumprida (cf. n.º 44). Diversa, porém, a solução da segunda hipótese, em que a pena de prisão, decretada à revelia, nunca foi executada. Neste caso, ainda que o arguido haja estado preventivamente preso e esse tempo devesse ser descontado no prazo da prisão a cumprir, não se verifica a condição exigida pelo preceito da CAAS. g)

Caso Bourquain

Em decisão recente, o Tribunal decidiu o caso Bourquain175. Também aqui, a pergunta central prende-se com a condição final do art. 54.º que impõe, para haver efeito de ne bis que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada. Na hipótese vertente, a pena (de morte) fora cominada à revelia; nunca foi executada; encontra-se prescrita segundo o direito do Estado da condenação e foi mesmo suprimida do catálogo punitivo desse Estado. Tendo em conta este quadro, o Tribunal considerou que a condição de execução prevista no artigo 54.º «está preenchida quando se verificar que, no momento da abertura do segundo processo penal contra a mesma pessoa pelos mesmos factos que levaram à condenação no primeiro Estado contratante, a sanção decretada nesse primeiro Estado já não pode ser executada segundo as leis desse Estado» (n.º 48). h)

Caso Turanský

No último caso decidido até ao momento176, o Tribunal debruçou-se, uma vez mais, sobre os requisitos da primeira decisão para que possa gerar efeitos de preclusão. Mais especificamente, perguntava-se se «o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 54.º da CAAS, se aplica a uma decisão como a do processo principal, pela qual uma autoridade

Processo C-297/07, decidido a 12 de Dezembro de 2008. Os factos da causa reportam-se aos crimes de homicídio e deserção cometidos por Klaus Bourquain, cidadão alemão, em 1960, durante a guerra da Argélia e pelos quais um tribunal francês decretou pena de morte. Tendo-se refugiado na então República Democrática da Alemanha, o arguido nunca foi notificado da sentença proferida à revelia nem, é claro, a pena foi executada. Entretanto, a França aboliu a pena de morte e declarou amnistiadas todas as infracções cometidas nas campanhas argelinas. Em 2002, ao descobrir-se que Bourquain residia em Regensburg, o Ministério Público respectivo instaurou processo por homicídio qualificado, com base nos factos ocorridos em 1960. 176 Processo C-491/07, julgado a 22 de Dezembro de 2008. Resumidamente, o caso põe em confronto os sistemas austríaco e eslovaco a propósito de um processo por roubo praticado em Viena e imputado a Vladimir Turanský, cidadão eslovaco. Dada a circunstância de o arguido ter retornada à Eslováquia, as autoridades austríacas solicitaram às congéneres eslovacas a continuação do processo contra o Turanský, que, no decurso do procedimento na Eslováquia, veio a ser ouvido mas na veste de testemunha. O processo veio a ser arquivado, pela polícia eslovaca, com fundamento em os factos não constituírem crime ou, pelo menos, estarem já prescritos. 175

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policial, após análise de mérito do processo, ordena, numa fase anterior à acusação de uma pessoa suspeita da prática de um crime, o arquivamento do processo» (n.º 30). O Tribunal sublinha que o critério para determinar se a decisão é (ou não) definitiva e se possui força de caso julgado pertence ao direito do Estado que a proferiu (cf. 35). Diz-se no aresto que «uma decisão que, segundo o direito do primeiro Estado Contratante que instaurou uma acção penal contra uma pessoa, não extingue definitivamente a acção pública a nível nacional não pode, em princípio, ter o efeito de obstar processualmente a que sejam eventualmente instauradas ou prosseguidas acções penais, pelos mesmos factos, contra essa pessoa noutro Estado Contratante» (n. 36). Pois bem, uma vez que, no direito eslovaco, a decisão tomada não desencadeia, a nível interno, efeitos em termos de ne bis in idem, essa decisão, em consequência, não está abrangida pelo art. 54.º, pelo que a proibição de instaurar novo processo não se verifica (cf. n.º 45)

VI No termo de um percurso dirigido de forma primacial (para não dizer exclusiva) a uma inventariação dos principais problemas convocados pela aplicação do princípio ne bis in idem europeu, e já não (ou apenas a latere) para o seu cabal esclarecimento, não causará grande surpresa a ausência de conclusões e de respostas – aliás, este ponto terminal deveria constituirse (hélas!) em primeiro novo passo. De todo o modo, talvez o panorama que fica esboçado possa ter chamado a atenção para alguns pontos de fractura que o processo de integração europeia em matéria penal e processual penal, mais especificamente nos campos da cooperação judiciária, do reconhecimento mútuo das decisões e da articulação transnacional de competências jurisdicionais, apesar dos recorrentes esforços, das intenções programáticas e dos discursos políticos, continua a apresentar. Não é sinal disso mesmo a circunstância de a matéria do ne bis in idem estar ainda regulada por uma convenção firmada na origem extracomunitariamente e que, num domínio normativo assaz exposto à erosão temporal, conta já com 18 anos, não obstante a difusa acusação de já não se mostrar adequada ao contexto actual? Não é sinal disso a jurisprudência do Tribunal de Justiça que também neste domínio se vem assumindo como a instância propulsora da integração, suprindo os obstáculos normativos por via de um case law que talvez extravase os limites assinalados a esse órgão judicativo? A eficácia transnacional do ne bis in idem põe, de facto, em confronto as antinomias presentes na articulação entre os distintos sistemas jurídicos nacionais, com as suas barreiras linguísticas e condicionantes culturais, com as idiossincráticas concepções político-criminais e as específicas compreensões do papel do Estado na estruturação social, com os tiques da prática judiciária e os intraduzíveis modos-de-ser normativos de cada ordenamento – como se sabe, o mito da unificação plena em matéria penal e processual penal para o espaço europeu é tão falaz quanta a crença na diluição das diversas línguas num esperanto de ressonância universal177. E Um dos muitos exemplos destas discrepâncias tem-se verificado em matérias que parecem recolher generalizado consenso, como o da política criminal sobre os estupefacientes, e entre países que, ao menos à 177

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teria sido crasso erro pretender que Schengen superasse ou, ao menos, diluísse essas antinomias – acreditar nesta imediata possibilidade (como algum discurso político parece haver acreditado) mais não traduz, como tão claramente nos recorda Rüter, do que a fuga para uma espécie de «pensamento mágico»: «após uma integração as fronteiras já não são mais precisas – onde não existam fronteiras, há, consequentemente, integração. Era bom, era!»178. O realismo aconselha, pois, prudência na actuação política e, no plano doutrinal, recomenda estudos aturados e de largo espectro, de modo particular estudos comparativos dos sistemas jurídicos nacionais, desde o plano dos princípios informadores (em que talvez as sintonias surjam mais facilmente), ao das concretas soluções normativas e, mesmo, da praxis efectiva. É-nos grato pensar que este nosso singelo trabalho se destina a integrar uma justa homenagem da ciência jurídica ao Professor Jorge de Figueiredo Dias que, entre tantos outros contributos académicos e doutrinários, soube dar corpo institucional e alma científica a um instrumento de investigação de tão alto relevo: o Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, o qual, sob a sua direcção efectiva e criativa dinâmica, concorre de modo visível, há já longos anos, para aquele caminho realista que referimos. A edificação do espaço europeu comum, no respeito pelas liberdades fundamentais que impregnam de modo constitutivo a Weltanschaung na Europa, bem como pela diversidade cultural (e também jurídica) dos povos que a constituem, culminância da sedimentação histórica que se abre em devir fecundo, passa menos por uma dirigida harmonização de leis do que por uma sagaz articulação de equilíbrios. Nada disto é novo, como se sabe. Disse-o, de modo lapidar, Ortega y Gasset há 60 anos atrás, numa Berlim com os horrores da guerra dilacerante ainda tão vívidos e já sob o espectro sombrio do Muro: «Se comprende (…) que no todo el mundo perciba com evidencia la realidad de Europa, porque Europa no es una “cosa”, sino un equilíbrio»179.

primeira vista, se incluem num espaço cultural similar. Estamos a pensar na já acima (nota ) aflorada polémica verificada a propósito de decisões fortemente contrastantes sobre os mesmos factos tomadas por tribunais holandeses e alemães – num desses casos, relativo a factos praticados nos Países Baixos por um cidadão holandês a diferença punitiva situou-se entre condenação na Holanda em 20 semanas de prisão das quais metade foi suspensa e, para os mesmos factos, repete-se, os 10 anos de prisão cominados por um tribunal alemão que fundamentou a sua competência jurisdicional no princípio da universalidade, na situação, no valor universal da eficaz política de combate e repressão do fenómeno da droga. Como enfatiza Rüter, «não há provavelmente nenhum domínio em que os Estados sejam tão chauvinistas como no que toca à sua administração da justiça penal», cada um considera a sua como a melhor (C. F. RÜTER (n. 51), 137-8, em que se transcrevem frases da fundamentação da decisão alemã, elucidativas desta visão unilateral e de pretensa superioridade moral, como seja: «a tolerância usual na Holanda em relação ao haxixe afectou por certo de modo o arguido, diminuindo-lhe a capacidade de se determinar pelo direito». 178 C. F. RÜTER (n. 135), 33-4: «nach einer Integration bedarf es keiner Grenzen mehr – wo keine Grenzen sind, gibt es folglich Integration. Schon wäre es». Lembra-nos Kühne que é «mais fácil decretar a unificação jurídica do que praticá-la nos casos concretos» (H.-H. Kühne (n. 160), 876). 179 J. ORTEGA Y GASSET, De Europa meditatio quaedam, conferência dada a 7 de Setembro de 1949 na Universidade Livre de Berlim (sector ocidental), in: Obras completas, Tomo IX (1960-1962), 3.ª ed., Madrid: Ediciones de la Revista de Occidente, s/d, p.247 (296).

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