Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores, por Anne Bogart

June 12, 2017 | Autor: Carolina Paganine | Categoria: Theatre Studies, Actor Training and Working Practices
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Urdimento: s.m. 1) urdume;

2) parte superior da caixa do palco, onde se acomodam as roldanas, molinetes, gornos e ganchos destinados às manobras cênicas; fig. urdidura, ideação, concepção. etm. urdir + mento.

ISSN 1414-5731 Revista de Estudos em Artes Cênicas Número 12 Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

URDIMENTO é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi autorizada pelos responsáveis ou seus representantes. A revista está disponível online em www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento FICHA TÉCNICA Editores do número: Milton de Andrade e Valmor Nini Beltrame Comitê editorial: André Carreira (responsável), Isabel Orofino e Vera Collaço Secretário de Redação: Éder Sumariva Rodrigues (bolsa PROMOP) Capa: Playing Othello (2009) Direção: Brígida Miranda e Kerrie Sinclair Atores: Oto Henrique e Kerrie Sinclair Fotos: Daniel Yencken [[email protected]] Impressão: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina - IOESC Editoração eletrônica: Déborah Salves [[email protected]] e Maria Aparecida Silva Alves [[email protected]] Design Gráfico: Israel Braglia [[email protected]] Coordenação de Editoração: Célia Penteado [[email protected]] Editado pelo Núcleo de Comunicação do CEART/UDESC Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES Catalogação na fonte: Eliane Aparecida Junckes Pereira. CRB/SC 528 Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas / Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.12 (Mar 2009) Florianópolis: UDESC/CEART Semestral ISSN 1414-5731 I. Teatro - periódicos. II. Artes Cênicas - periódicos. III. Programa de Pós-Graduação em Teatro. Universidade do Estado de Santa Catarina Biblioteca Setorial do CEART/UDESC

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo Vice Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Pereira de Souza Diretor do Centro de Artes: Milton de Andrade Chefe do Departamento de Teatro: Sandra Meyer Nunes Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Vera Regina Martins Collaço

CONSELHO EDITORIAL Ana Maria Bulhões de Carvalho Edlweiss (UNIRIO) Cássia Navas Alves de Castro (UNICAMP) Christine Greiner (PUC/SP) Felisberto Sabino da Costa (ECA/USP) Jerusa Pires Ferreira (PUC/SP) João Roberto Faria (FFLCH/USP) José Dias (UNIRIO) José Roberto O’Shea (UFSC) Luiz Fernando Ramos (ECA/USP) Márcia Pompeo Nogueira (CEART/UDESC) Maria Brígida de Miranda (CEART/UDESC) Maria Lucia de Souza Barros Pupo (ECA/USP) Mario Fernando Bolognesi (UNESP) Marta Isaacsson de Souza e Silva (DAD/UFRGS) Neyde Veneziano (UNICAMP) Rosyane Trotta (UNIRIO) Sérgio Coelho Farias (UFBA) Sônia Machado Azevedo (Escola Superior de Artes Célia Helena) Soraya Silva (UnB) Tiago de Melo Gomes (UFRPE) Walter Lima Torres (UFPR)

Conselho Assessor Beti Rabetti (UNIRIO) Ciane Fernandes (UFBA) Eugenia Casini Ropa (Universidade de Bolonha - Ítalia) Eugenio Barba (Odin Teatret) Francisco Javier (Universidad de Buenos Aires) Jacó Guinsburg (ECA/USP) Juan Villegas (University of California) Marcelo da Veiga (Universidade Alanus – Alemanha) Óscar Cornago Bernal (Conselho Superior de Pesquisas Científicas – Espanha) Osvaldo Pellettieri (Universidad de Buenos Aires) Peta Tait (La Trobe University) Roberto Romano (UNICAMP) Silvana Garcia (EAD/USP) Silvia Fernandes Telesi (ECA/USP) Tânia Brandão (UNIRIO)

UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina CEART - Centro de Artes PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado em 2001, e Doutorado, em 2009.

PROFESSORES PERMANENTES André Luiz Antunes Netto Carreira Antonio Carlos Vargas Sant’anna Beatriz Ângela Vieira Cabral Edélcio Mostaço José Ronaldo Faleiro Márcia Pompeo Nogueira Maria Brígida de Miranda Maria Isabel Rodrigues Orofino Milton de Andrade Sandra Meyer Nunes Stephan Arnulfi Baumgärtel Valmor Beltrame Vera Regina Collaço

PROFESSORES VISITANTES Marcelo da Veiga - Universidade Alanus (Alemanha) Óscar Cornago - Conselho Superior de Pesquisas Científicas (Espanha)

O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos em nível nacional e internacional. Para acesso ao calendário de atividades, linhas e grupos de pesquisa, corpo docente e corpo discente, dissertações e teses defendidas e outras informações, consulte o sítio virtual: http://www.ceart.udesc.br/ppgt

Sumário Apresentação

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Processos criativos e o trabalho do ator Processos de trans – forma – ção nos atos criativos: uma poética na troca de singularidades Alexandre Mate

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Os seres ficcionais: identidade e alteridade. Exploração-dissecaçãoinvenção de materiais de atuação Matteo Bonfitto

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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores Anne Bogart

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Combate cênico e estética da violência no treinamento para a performance Kerrie Sinclair

41

Mitopoese, dramaturgia criativa e o trabalho do ator Milton de Andrade

53

Dança, linguagens do corpo e teatralidade O solo de dança no século XX: entre proposta ideológica e estratégia de sobrevivência Eugenia Casini Ropa

61

A instabilidade do sonho: os gestos da dança contemporânea Rossella Mazzaglia

73

Mimo e pantomima Thomas Leabhart

81

“Ser” um corpo: a impregnação da consciência pelo movimento Sandra Meyer

93

Máscara, cena e pedagogia do ator Copeau e a máscara José Ronaldo Faleiro

101

A máscara-objeto no teatro de Bertolt Brecht Valmor Beltrame

111

Teatro e gênero Duas vezes Uma Mulher Só Maria Brígida de Miranda

125

Corpo, corpus e corpa: da violência de Goody, de Vinegar Tom Fátima Costa de Lima

133

Textos que fazem história Laudatio de Doutorado honoris causa a Pina Bausch Eugenia Casini Ropa

143

A encenação do drama wagneriano Adolphe Appia

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Urdimento

APRESENTAÇÃO Este número da Revista Urdimento reúne uma série de textos sobre temas e conteúdos que o Grupo de Pesquisa “Poéticas Teatrais” vem desenvolvendo em pesquisas coordenadas por docentes do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT) do Centro de Artes da UDESC. Alguns autores, como Matteo Bonfitto e Kerrie Sinclair, estiveram conosco no decorrer deste ano de 2009 em seminários teórico-práticos oferecidos à comunidade acadêmica pelo PPGT, no esforço de fortalecer os vínculos entre a pesquisa experimental, a criação cênica e a pedagogia teatral. Todos os colaboradores externos, pela propriedade do conhecimento, nos servem como referência na busca contínua de cooperação que nosso Programa desenvolve nos últimos anos, tornando-se novos parceiros na descoberta de uma compreensão viva da cultura teatral. Os artigos são aqui agrupados de acordo com algumas áreas de estudo de nosso Programa de Pós-Graduação: processos criativos, o trabalho do ator, pedagogia teatral, linguagens do corpo, teatro e gênero. Num espaço reservado a “textos que fazem história”, apresentamos também nossa homenagem póstuma a Pina Bausch, com a publicação do laudatio da professora e historiadora italiana Eugenia Casini Ropa, em ocasião do Doutorado honoris causa concedido pela Universidade de Bolonha à diretora e coreógrafa alemã, falecida em julho deste ano. Neste espaço de memória, publicamos também o texto, inédito no Brasil, La mise en scène du drama wagnérien (1895) do arquiteto e encenador suíço Adolphe Appia (18621928), teórico fundamental no movimento de reteatralização no século XX. Esperamos que os estudos aqui reunidos ampliem o debate em torno dos temas abordados e estimulem a realização de novas pesquisas na área das artes cênicas no Brasil. Agradecemos a todos que colaboraram na organização deste número, aos autores, tradutores e bolsistas do PPGT. Boa leitura!

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Milton de Andrade e Valmor Nini Beltrame Editores Apresentação.

U rdimento

PROCESSOS DE TRANS – FORMA – ÇÃO NOS ATOS CRIATIVOS: UMA POÉTICA NA TROCA DE SINGULARIDADES Alexandre Mate1

Resumo

Abstract

A reflexão aqui desenvolvida acerca do processo criativo apresenta algumas especulações quanto: ao conceito da forma; a algumas distinções entre símbolo e alegoria; à importância dos acasos na criação artística; ao homem ser um ressignificador (homo symbolicum e homo estheticus); à sofisticação pressuposta pela forma teatral; ao fato de a poética ocorrer no encontro entre artistas e público, na junção de múltiplas singularidades que concretizam uma nova e irrepetível relação.

The present study on the creative process develops some speculations: on the concept of form; on a few distinctions between symbol and allegory; on the significance of hazard during artistic creation; on man as a re-signifier (homo symbolicum e homo estheticus); on the presupposed sophistication of theatrical form; on the occurrence of poetics at the encounter between public and artists, at the joint of multiple singularities which realize new and singular rapports.

Palavras-chave: processo de criação e teatro, símbolo/alegoria/forma na criação, teatro como processo criativo.

Keywords: creative process and theater, symbol/allegory/way of creation, theater as a creative process.

[...] quem sabe se o melhor das obras de arte não surge do imperfeito domínio do material como uma primícia, uma aparição súbita, que se desfaz assim que se torna tecnicamente disponível. Theodor ADORNO. Palavras e sinais. Segundo Faiga Ostrower, em Criatividade e processos de criação (1984), o homem cria não porque quer, mas porque necessita. Em sendo intrínseca à existência a necessidade de criação estética, afirma ainda a autora que nada existe que não seja forma. Circundado e envolvido por formas (materiais ou imateriais, artísticas ou não), o homem precisa, também, dar forma às suas Março 2009 - N° 12

1 Professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho – Campus São Paulo. Doutorado em História Social – FFLCH/USP. Pesquisador de teatro e do Núcleo Nacional de Teatro de Rua. Autor do livro Buraco d’Oráculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos pelos espaços públicos da cidade. São Paulo: publicação do Grupo, 2009. Trinta anos da Cooperativa Paulista de Teatro: uma história de tantos (ou mais quantos, e sempre juntos) trabalhadores fazedores de teatro. São Paulo: IMESP, 2009 (no prelo).

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U rdimento necessidades, repeti-las ou romper com cadeias delas e a ele impostas pelos mais variados modos e expedientes. Por esta senda, no indivíduo confrontamse, ainda segundo Ostrower “(...) dois pólos de uma mesma relação: a sua criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação que será a realização dessas potencialidades já dentro do quadro de determinada cultura.” (OSTROWER, 1984, p. 5) Toda criação pressupõe a ativação e realização de um processo complexo que compreende o trânsito entre o imaginar e a sua operacionalização em forma, ou por meio de formas. Deflagrado pelo imaginar – uma ideia, uma aparição (epifânica ou não), uma prefiguração –, a trilha criativa pressupõe a transformação dos signos imaginados em símbolos e alegorias que precisam se materializar, os quais, em seu deslocamento e errância (individual/ coletiva), abriguem o signo ou o conjunto inicial a partir do qual ele se reformou ou se conformou. A palavra-conceito remete a muitos artistas e teóricos. Deles todos, para descortinar terrenos e territórios, evocar uma obra de José Lino Grünewald, sem nome, cujo assunto, imbricado à forma, pode ser surpreendente.

2 Disponível em www.jayrus.art.br/ Apostilas/ LiteraturaBrasileira/ VanguardasPoeticas/ Jose_Lino_ Grunewald_poesia.htm Acesso em 21/07/2009, às 12h01.

forma reforma disforma transforma conforma informa forma2 Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, em Procura da poesia: “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.” A criação, enquanto processo, pressupõe a transformação do pensado em matéria, em linguagem (ou forma) sígnica: visual, pictórica, sonora, corporal. Reiterando: o sonhado (e internalizado apenas no ser) não basta, é preciso transformá-lo em fenômeno comunicacional, em relação entre sujeitos distintos interrelacionados pela obra. Novamente com Drummond, em outro momento do já citado poema: “Penetra surdamente no reino das palavras [que são signos]./ Lá estão os poemas [formas em potência] que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.” (DRUMMOND de ANDRADE, 1973, p. 138-9). Com relação ao conceito de signo, símbolo e alegoria transito aqui, fundamentalmente, com as reflexões do filólogo Mikhail Bakhtin (1992), para quem todo signo é histórico e ideológico. O que se pensa, se manifesta, Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate

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U rdimento se atribui, se representa, se comunica... é mediado por signos criados pelos homens ao longo da História. No concernente, ainda, às questões sígnicas, apesar de haver algumas diferenças, é bom apresentar algumas considerações de Arnold Hauser (s/d) segundo as quais o símbolo representaria a expressão indireta de um significado impossível de ser dado diretamente, posto sua natureza ser próxima ao indefinível e ao inesgotável. A arte e as relações humanas desenvolvem-se por intermédio dos símbolos; entretanto, durante o movimento Simbolista francês, ocorrido na França, em fins do século XIX, o trabalho com a imaginação simbólica foi elevada ao paroxismo. Para Charles Baudelaire, no poema Correspondências a natureza era “[...] um templo em que vivas pilastras/ deixam sair às vezes obscuras palavras;/ o homem a percorre através de florestas de símbolos/ que o observam com olhares familiares.” (BAUDELAIRE, 1995, p. 12). Para seu contemporâneo Stéphane Mallarmé (um dos chamados “três reis magos da poética moderna”) a alegoria era concebida como tradução de uma idéia abstrata apresentada por meio de uma imagem concreta. Assim, segundo o poeta, ao se descobrir a idéia contida por “detrás” da alegoria poder-se-ia lê-la e traduzi-la, posto que a traduzibilidade – diferentemente do símbolo – seria intrínseca à sua constituição. Ainda segundo o conceito de alegoria, afirma Antonio Candido (1987): “Considero alegórico o modo que pressupõe a tradução da linguagem figurada por meio de chaves uniformes, conscientemente definidas pelo autor e referidas a um sistema ideológico. Uma vez traduzido, o texto se lê como um segundo texto, sob o primeiro, e se torna tão claro quanto ele. Está visto portanto, que o deciframento do código é altamente convencional, em relação a outros modos de ocultação de sentido, como o simbólico”.3 Em oposição à alegoria, o símbolo reuniria a idéia e a imagem resultada em uma unidade indivisível. Assim, a transformação da imagem arrastaria consigo a metamorfose da idéia, na medida em que o conteúdo de um símbolo não poderia ser traduzido de outro modo. Dentre os vários textos que discutem o símbolo, nessa perspectiva, Hegel (s/d, p. 16) afirma:

CANDIDO, Antonio. Educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987, p. 85. 3

O símbolo é algo de exterior, um dado direto e que diretamente se dirige à nossa intuição: todavia, este dado não pode ser considerado e aceite tal como existe realmente, para si mesmo, mas num sentido muito mais vasto e geral. É, assim, preciso distinguir no símbolo o sentido e a expressão. Aquele refere-se a uma representação ou um objeto qualquer que seja o seu conteúdo; esta constitui uma existência sensível ou uma imagem qualquer. Março 2009 - N° 12

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U rdimento Antes de tudo, o símbolo é um sinal. Mas na sua simples presença, o laço que existe entre o sentido e a expressão é puramente arbitrário. Esta expressão que aqui temos, esta imagem, esta coisa sensível representa tão pouco por si mesma que desperta em nós a idéia de um conteúdo que lhe é completamente alheio, com o qual ela não tem, para falar com propriedade, nada de comum. (...) A arte implica, pelo contrário, uma relação, um parentesco, uma interpenetração concreta de significação e de forma. Em sendo o artista um criador de símbolos cuja natureza manifestatória fundamenta-se em um permanente processo de troca [simbólica], o que dele emana intenta para se legitimar, enquanto fenômeno, o deslocamento absolutamente necessário no sentido da busca para a formalização da coisaideia (enquanto signo ou sinal). Michel de Certeau (1994) sobretudo em A invenção do cotidiano, afirma que a andança ou o caminhar – em qualquer uma de suas possibilidades de realização – expressam a falta de lugar. Concebido como errância permanente, a materialidade do ato criativo – a partir do ausente à procura de um próprio – converte permanentemente o não-lugar em espaço praticado, em espaço de concretude do sonho, seja ele inalcançável, alcançado, vislumbrado... O homem recebe pela cultura um caudal de signos fixados, definidos, ideológicos, mas, por necessidade de criar, ressignifica-os em partilha virtual ou vislumbrando uma partilha real. Michel de Certeau, na obra já citada, cria o conceito de re-employ (reutilização). Desse modo, ninguém, por mais alienada que possa parecer sua atitude, deixa de recriar o recebido, inclusive os signos artísticos. A transformação da página em branco do escritor (hoje, basicamente, substituída pela tela vazia do computador); a outra tela sem qualquer “mácula”, traço ou risco do pintor; o bloco de pedra ou a resina informes para o escultor; o palco (ou espaço) vazio do artista ligado às artes da representação; as “palavras que esplendem na curva da noite” “palavras buscando canal” para o poeta (mais uma vez parafraseando Drummond) intentam a errância do artista por entre os caminhos da invenção, da criação, da imaginação, da troca... O resultado dos processos de criação – a partir dos valores, da cultura, de contextos amplos e restritos, compromissos e filiações estético-políticas... – materializa e potencializa os sentidos, o trânsito com as metáforas, com o caráter polissêmico da arte... Nessa perspectiva, o processo criativo potencializa e harmoniza a necessidade e a errância do homo symbolicum – contemplando o homo sapiens, o homo faber e o homo ludens – até o “tradutor de polissemias” homo estheticus. Este último, mistura (in)orgânica dos anteriores, processa e Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate

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U rdimento reinventa para comunicar-se, ainda que não seja de todo entendido. Aliás, entender, por sua dialética intrínseca, pressupõe um afastar-se, para enxergar melhor, a partir de novos ângulos, desopacizadamente. O processo criativo, portanto, instaura cabal e formalmente novos modos de ver.4 O processo criativo pressupõe, além da capacidade de ver, o desenvolvimento e ampliação da percepção de todo tipo de intercambiamento possível entre o conceber, o produzir, o colocar em circulação e a recepção da obra. Mesmo que não exista uma apreensão total de cada etapa percorrida pelo criador, todo sujeito se faz na História, por meio da qual recebe, apreende e modifica, permanentemente, a si mesmo e aos outros interrelacionalmente. No concernente à arte propor mudanças, tanto na mentalidade quanto no comportamento, não são poucos os teóricos que pensam a arte como uma potência (tantas vezes vulcânica) que intenta a transformação e a mudança. Do conjunto absolutamente significativo de reflexões de Mario Pedrosa, dois textos de pequena extensão, são alegoricamente significativos nesse particular: Crianças na Petite Galerie e Frade cético, crianças geniais.5 À luz do exposto, do mesmo modo que alguns critérios apriorísticos deflagram e norteiam uma trajetória de andança, é fundamental que nesse caminhar se esteja atento e aberto às potências das descobertas e dos achados que vão se dando no sentido da construção, individual ou coletiva, do objeto estético. Reformuladamente, se no processo de criação, a ideia tem certa (i)materialidade ao nascer, no entrechoque de sua realização signica a materialidade ocorre potencializada pelo acaso. No acaso dá-se aquilo que pode ser nomeado como práxis vital. Intrínseco ao processo criativo não fechado, mas permeável ao acolhimento das improvisações em percurso, a manifestação da práxis vital é estimulada, buscada e mesmo provocada nas artes coletivas, como a teatral.

Expressão cunhada por John BERGER. Acerca do autor, dentre outros, cf. Modos de ver. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S.A., s/d. 4

PEDROSA,Mario. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, respectivamente, p. 71; p. 75.

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Ainda com relação à prática da práxis vital, nos processos de ensaio, independentemente do resultado final buscado, trata-se de um mecanismo que concerne ao processo, mas cujo procedimento permanece apenas nas obras performáticas ou populares. Acresça-se a isso, ainda, que a obra com partitura aberta e repleta de interstícios preenchíveis em processo de troca explícita ou absolutamente fechada, durante sua exibição (compreendendo o fenômeno teatral), que é o espetáculo, compreende sempre imponderabilidades. Intrínseco ao processo de criação, certa imponderabilidade é necessária e inevitável. O não conseguir abarcar e organizar o ato criativo cientificamente – donde sua distinção àqueles do cientificismo – implica o trânsito com o poético. Nesse trânsito, a invenção – e a não subsunção do artista aos normativismos, às modas, aos “diz que”, ao simulacro – caracterizaMarço 2009 - N° 12

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U rdimento se em uma das únicas probabilidades do não arrebatamento da aura – de que fala Benjamin (A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica) –, e que se coloca no lugar do original... Segundo Ernst Fischer (1981), ao criar o artista precisa também

FISCHER, Ernst. A função da arte. In: A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, p.14. 6

(...) dominar, controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção para um artista não é tudo; ele precisa também saber tratá-la, transmiti-la, precisa conhecer as regras, técnicas, recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser dominada e sujeitada à concentração da arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro artista; o artista não é possuído pela besta-fera, mas doma-a. A tensão e a contradição dialética são inerentes à arte; a arte não só precisa derivar de uma intensa experiência da realidade como precisa ser construída, precisa tomar forma através da objetividade.6 Em teatro, que é um trabalho coletivo por excelência, para criar (ou dar forma a) um espetáculo, performance ou exercício, em qualquer etapa da trajetória compreendida pelo processo de criação, é preciso estar atento ao que é construído pelo conjunto de criadores. Na convergência das singularidades, permeada por todo tipo de imprevistos, ocorre o domínio da própria realidade, que se reconforma: parida e alimentada no coletivo. De cada “máquina de imaginância”, as ideias individuais e coletivas, materializam-se na insustentável leve-aspereza do grupo e ganha no espetáculo sua função fenomênica. Cada dia, querendo transformar-se em obra – repetido e ensaiado tantas vezes –, o espetáculo ganha novas tessituras, dissonâncias, imprevisibilidades e a ele se atribui múltiplos e diferenciados sentidos pelo conjunto de espectadores. Assim, a poética do processo criativo em teatro realiza-se no e durante cada espetáculo. Poética da efemeridade e do não repetível. Espécie de poética do “não-traduzível”. Tradução (do latim translatio), palavra desafiante, cujas raízes semânticas compreendem também traição e difamação (do inglês traduction) e aproximase, ainda, das de tradição. Na perspectiva defendida por Fayga Ostrower, e aqui já apontada, o ato da criação – que compreende intuição, percepção e pressupõe o estabelecimento de nexo intrínseco entre o sentir e o entender – corresponde a um formar e a dar forma a alguma coisa (os signos). Forma é a expressão resultante e materializada, por intermédio da unidade dialética – repleta de tantas contradições –, entre aquele que cria e o criado. “Na mesma ordem de Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate

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U rdimento pensamento, entendemos o fazer e o configurar do homem como atuações de caráter simbólico. Toda forma é forma de comunicação ao mesmo tempo em que forma de realização.” (OSTROWER, 1984, p. 5) Instaurar um fenômeno de comunicação e de troca, decorrente da junção de diversos processos de criação individuais que se agrupam, por intermédio da forma compreendida pelo espetáculo teatral, demanda, sobretudo do criador, entender as maneiras pelas quais o conhecimento possa ser construído e partilhado em sua dimensão fenomênica. Na criação artística, mas não exclusivamente nela, o sujeito relaciona-se com outros sujeitos e com o objeto a ser transformado. Na linguagem teatral o criado, decorrente de procedimentos para contornar os embates, concerne à busca pela melhor forma, e este é repleto de densos processos de pesquisa, que não se conclui jamais... Mas o que vem a ser um espetáculo teatral? Ele tem matéria porque feito por atores, que tantas vezes fingem ser o que não são; é iluminado de modo a buscar e evidenciar efeitos plásticos, emocionais e psicológicos; ganha inserções musicais para instaurar climas emocionais, de expectativa, para chamar a atenção de contextos históricos; conta uma história repleta de iscas para “prender” o espectador, levá-lo a formular hipóteses, tornálo cúmplice... A sofisticação e complexidade da obra teatral – cujo resultado é sempre inconcluso (posto que o espetáculo é sempre novo a cada dia) –, dentre outras, pretende transportar emocionalmente, instigar racionalmente, distender comicamente. O espetáculo criaria uma espécie de fratura, no tempo e no espaço, na vida cotidiana. Por meio desse “aprisionamento libertatório” (entra na obra ou deixa arrastar-se por ele quem quer), seu principal propósito talvez fosse falar diretamente ao espírito racional, sensível. Assim como um texto provocador, o espetáculo pode despertar sentimentos dos mais diversos matizes e rigorosamente repleto de antagonismos. Elaborar uma forma sofisticada, complexa e passível de tantas entradas interpretativas requer certa epistemologia. Caio Prado Júnior, referindo-se às linhas epistemológicas, em Dialética do conhecimento (1980) desenvolve algumas reflexões, aqui apresentadas de modo esquemático, vislumbrando essencialmente uma apreensão didática. - O empirismo ou positivo lógico: A prática condiciona o pensamento e este dirige a prática.

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Pelo fato de o conhecimento, de certo modo, ser concebido como neutro, o observador transforma o conhecimento em realidade.

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U rdimento - O idealismo: O pensamento elabora conhecimento, que informa pensamento.

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Nessa perspectiva, o conhecimento é carregado de abstração, é valorativo, isto é: manifesta-se no pensamento. O conhecimento não é mais passível de ser imaginado como neutro, carrega ideologia.

- O dialético (práxis): A prática condiciona o pensamento, que elabora o conhecimento, que informa o pensamento que dirige a prática.

Nessa proposição, a prática é concebida como ponto de partida e de chegada da construção do conhecimento.

Por sua natureza (junção de tantas outras linguagens para criação do espetáculo) e “realidade” (apresentação de uma obra, com certo estatuto de verdade e de substituição da vida), a criação de um espetáculo teatral pressupõe, na condição de processo, certa epistemologia. Portanto, o poético relaciona-se grandemente com os procedimentos adotados, que tendem a dar suporte, não apenas material, à obra. Processos e procedimentos não sendo abstrações são escolhidos e utilizados pelo conjunto que se organiza para a criação da obra.

7 MONTENEGRO, Antonio Torres. "Memória e história", In: MARTINS, Angela Maria et alii. (coord.). Revista Idéias – O tempo e o cotidiano na história. São Paulo: FDE. Diretoria Técnica, 1988, p.10.

De modo bastante grosseiro, dentre tantas outras possibilidades, a adoção de certa epistemologia pode estar rigorosamente plantada em interesses comerciais; outra na tentativa de, por meio do simulacro e de tratamento ilusionista, intentar primordial e essencialmente a identificação emocional; uma última, em intentar a capacidade crítica e, por meio desta, plantar necessidades de entender as relações que regem o “outro mundo”: aquele para além da fratura proposta pela forma ficcional. Em outro contexto, refletindo acerca das interrelações da história e da memória, afirma Antonio Torres Montenegro: Na tensão da necessidade de inventar outros lugares, sendas, veredas, é que se criam formas de resistência, instituindo imaginários capazes de estabelecer e desenvolver as potencialidades contidas nos limites do engendramento dos desejos não-permitidos; é no próprio labirinto da modernidade aprisionada que se busca tecer os fios, resgatar outras formas de esculpir a realidade que se presentifica cotidianamente.7 Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate

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U rdimento Recentemente, participando de um processo de discussão acerca de um determinado espetáculo, a diretora da obra, convencida de certos procedimentos (bastante difundidos entre tantos criadores), afirma: “Quando eu crio, me tranco na sala de ensaio, me isolo do mundo real. O mundo exterior se apequena, deixa de existir... No processo de criação não importa a matéria de que sou feita. Importa apenas aquilo que se cria na sala de ensaio. Para criar é preciso isolar-se da vida, da realidade!” Evidentemente, teses dessa natureza plantam-se e são defendidas por muitos. Acreditam estes que ao “apartar-se” do mundo este já não está presentificado dentro do ser. Perpassa por tal estado de alienação ideológica certa apologia àquilo que tantos afirmam ser um abstrato “estado puro da criação”. Espécie de encontrar-se ao fugir de si (alusão a poema Autopsicografia de Fernando Pessoa), a criação, como fratura do real, assenta-se sobretudo no conceito de genialidade e alimenta-se de certo estado autista. O poético na criação, penso, é exatamente a consciência de que por meio também da arte é possível interferir no mundo, reiventando-o. Pelos escaninhos de uma tal concepção, a obra que sai da vida, volta a ela estetizada; portanto, no caso da linguagem teatral, a obra é apenas ponto de partida de um processo repleto de tantos imprevistos... À luz do exposto, e por absolutamente nada estar apartado do chão da história, o estético pressupõe uma escolha, também, de natureza epistemológicopolítica. Por meio das mediações que a arte propõe e dos processos adotados em sua construtura e partilha, pode-se escolher o modo como se pensa o poético e como este deva se expandir pelo mundo a partir das escolhas que se fez. Para terminar, quando se vê tudo o que está por aí, sobretudo na Universidade, aninho-me no universo abissal de Clarice Lispector, tão repleto de múltiplos sentidos. Alimento-me, então de formas como: Acontece que eu achava que nada mais tinha jeito. Então vi um anúncio de uma água de colônia da Coty, chamada Imprevisto. O perfume é barato. Mas me serviu para me lembrar que o inesperado bom também acontece. E sempre que estou desanimada, ponho em mim o Imprevisto. Me dá sorte.8

Referências bibliográficas

LISPECTOR, Clarice. Carta para Olga Borelli. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1970.

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ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa e prosa – volume único. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1973. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1995. BERGER, John. Modos de ver. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S.A., s/d. Março 2009 - N° 12

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Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate

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U rdimento

OS SERES FICCIONAIS: IDENTIDADE E ALTERIDADE – EXPLORAÇÃO-DISSECAÇÃO-INVENÇÃO DE MATERIAIS DE ATUAÇÃO Matteo Bonfitto1

Resumo

Abstract

O presente artigo busca examinar algumas conexões existentes entre os seres ficcionais e as tensões entre identidade e alteridade. Para esse fim, diversas referências são utilizadas, desde estudos teóricos até experiências práticas vivenciadas em primeira pessoa.

This article tries to examine some existent connections between fictional beings, identity and alterity. In order to do so, different references are used, from theoretical studies to first-hand practical experiences.

Palavras-chave: atuação, identidade, alteridade.

Keywords: alterity.

acting,

identity,

Semelhante às oscilações e flutuações que podem permear a dinâmica do olhar, que se forma a partir da combinação muitas vezes instável, entre percepção e cognição, o presente artigo envolverá, ao mesmo tempo, a descrição de um seminário teórico-prático ministrado no Centro de Artes (CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) no primeiro semestre de 2009, elaborações geradas por outras, análogas experiências, e percepções que emergirão do ato de escrever, que possibilitará, espero, uma revisão do supostamente já sabido. O referido seminário deveria relacionar a produção de seres ficcionais com as tensões entre identidade e alteridade. A fim de tentar materializar a consistência que permeou tal evento, percorrerei alguns fatos e elaborações que serviram como suporte poético e conceitual nesse caso. Pois bem, comecemos então pelos seres ficcionais.

Dos seres ficcionais à exploração de materiais Em Pavis, por exemplo, nos deparamos com uma reflexão que tenta abarcar as transformações históricas da assim chamada ‘personagem’, das máscaras gregas até o seu funcionamento enquanto actante produtor de Março 2009 - N° 12

1 Matteo Bonfitto é ator, diretor, e pesquisador teatral. Formado pela Escola de Arte Dramática da USP, pelo DAMS (Departamento de Arte, Música e Espetáculo) da Universidade de Bologna, Itália (graduação), pela Escola de Comunicações e Artes ECA - USP (mestrado), e pela Royal Holloway University of London (doutorado). Além de vários artigos sobre o trabalho do ator, publicou O Ator Compositor (Perspectiva, 2002), A Cinética do Invisível. Processos de Atuação no Teatro de Peter Brook (Perspectiva, 2009), e é um dos autores de O Pós-Dramático (Perspectiva, 2009). Leciona atualmente no Depto de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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U rdimento

Ver Pavis, Patrice; verbete ‘Personagem’, in Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007, pp. 285-289. 2

Bonfitto, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002. 3

Ver Bonfitto, obra citada, pp. 127-137. 4

signos, passando por sua individualização na dramaturgia burguesa, por sua tipificação na Commedia Dell’Arte, por sua dissolução nos dramas simbolistas, pela desmontagem da personagem em Brecht, pelo seu recentramento no surrealismo, etc... .2 Dessa forma, o estudioso francês aborda a personagem em sua dimensão semântica assim como em sua dimensão semiótica. Sem pretender desconsiderar ou minimizar a importância de tal abordagem, creio, como pesquisador e como artista, que há outros modos de apreensão dos seres ficcionais que podem gerar estímulos consistentes em termos criativos. Em O Ator Compositor,3 proponho, a partir da noção de actante – tudo aquilo que age, atua – a diferenciação entre três categorias de seres ficcionais. A utilização do termo ‘seres ficcionais’ nesse caso não é absolutamente casual. Tal escolha pretende atingir um horizonte mais amplo do que aquele associado ao termo ‘personagem’, frequentemente relacionado a indivíduos ou tipos humanos. De fato, quando pensamos em seres ficcionais, podemos considerar a possibilidade de lidar com ‘seres’ que não são simplesmente indivíduos ou tipos, mas também com criações-composições poéticas que são funcionais às estruturas narrativas produzidas em cada processo criativo. Bastaria escolher como referência, por exemplo, fragmentos de textos dramatúrgicos produzidos pelo dadaísmo, surrealismo ou pelo expressionismo para constatar tal fato. Ou poderíamos ainda considerar exemplos extraídos de uma grande variedade de manifestações cênicas contemporâneas, do teatro experimental ao teatro-dança e à performance. Foi o contato com tais manifestações, somado às experiências vividas como ator que propiciaram a elaboração das categorias mencionadas acima, nomeadas, respectivamente, actante-máscara, actanteestado, e actante-texto.4 Seguindo tal elaboração, o actante-máscara envolve o que podemos chamar de personagem-indivíduo e personagem-tipo, as quais têm como característica o fato de serem referencializadas e temporalizadas. Ou seja, tais personagens são claramente situadas e oferecem parâmetros contextuais, psicológicos e sociológicos de reconhecimento. Na medida em que tais seres ficcionais sofrem processos de modalização, passando assim a serem definidos não somente a partir do que eles ‘fazem’, mas também a partir do que ‘querem fazer’, ‘podem fazer’, ‘sabem fazer’ e ‘devem fazer’, eles podem ser destemporalizados e ter, assim, a própria funcionalidade comprometida. O actante-estado, segunda categoria referida acima, seria um produto de tais processos. Já o actante-texto emergiria de modalizações ainda mais acentuadas, que podem provocar o desaparecimento da intriga e a transferência para o texto dos predicados que contribuem para a constituição da personagem enquanto sujeito. As manifestações cênicas contemporâneas, assim como a dramaturgia produzida nas últimas décadas oferecem inúmeros exemplos de actantes-estado e actantes-texto. Enquanto Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo Bonfitto

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U rdimento Uma Noite Antes da Floresta (La Nuit Juste Avant Les Forêts) de BernardMarie Koltès pode ser vista como uma obra que tem como eixo um actanteestado, Auto-Acusação (Self-Accusation) de Peter Handke contém aspectos que estão relacionados ao actante-texto. As elaborações descritas acima foram mais tarde desdobradas e ampliadas. Entre 2002 e 2006, graças a uma bolsa concedida pela CAPES, puder viver experiências criativas com três atores de Peter Brook - Yoshi Oida, Sotigui Kouyaté e Tapa Sudana. Foi através do contato direto com as abordagens desenvolvidas por esses atores sobre a Storytelling (Arte de Contar Histórias) que a ampliação mencionada acima se deu. Longe de ser uma forma expressiva restrita ao universo infantil, as explorações da storytelling feitas por eles e por Brook envolvem práticas interculturais que geram possibilidades de criação de seres ficcionais, as quais representam uma ampliação do horizonte criativo presente no assim chamado Ocidente, onde ainda prevalece de maneira consistente as abordagens construídas por Stanislavski, Brecht, Artaud, Grotowski e Barba. As práticas desenvolvidas por Brook e seus atores associam de maneira intrínseca os seres ficcionais aos materiais de atuação. Tal associação busca materializar, por sua vez, de diversos modos e em vários níveis - experiências - e nesse sentido pode-se reconhecer uma analogia entre as práticas desenvolvidas no CICT5 e qualidades apontadas, por exemplo, por Walter Benjamin em O Narrador.6 Independentemente das especificidades históricas e contextuais, a produção de experiências representa o elo que une esse escrito de Benjamin e as explorações da storytelling, tal como desenvolvida pelo diretor inglês e seus atores. No caso de Brook e de seus atores, no entanto, a experiência não é examinada a partir de seus resultados expressivos, mas sim como um objetivo que deve ser gradualmente perseguido de maneira específica em cada processo criativo, e que emerge da ligação entre os seres ficcionais e os materiais de atuação. A fim de desdobrar a reflexão em curso, examinemos agora alguns aspectos envolvidos nessa ligação para em seguida tecer algumas considerações sobre a experiência. Em Brook os seres ficcionais têm um caráter absolutamente processual e tal fato abre espaço para um campo aberto de exploração de materiais. Em O Ator Compositor reconheço a importância dos materiais e nesse sentido proponho uma diferenciação entre material primário (corpo), material secundário (ação física) e materiais terciários (elementos constitutivos da ação física).7 Os materiais terciários envolvem tanto aspectos do aparato psicofísico do ator (memória, imaginação, etc...) quanto estímulos que podem ser utilizados no processos criativo, tal como imagens, textos, objetos, sonoridades, etc... . Os modos de exploração e de articulação de tais Março 2009 - N° 12

5 CICT (Centre Internacional de Création Théâtrale) é o nome dado ao centro de pesquisas teatrais dirigido por Brook em Paris desde 1974.

Benjamin, Walter; ‘O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov’, in Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 197-221. 6

Ver Bonfitto, obra citada, pp. 1-20.

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U rdimento materiais constituem o modus operandi do ator. Desse modo, as experiências com os atores de Brook geraram uma ampliação de possibilidades, na medida em que revelaram diferentes percursos de articulação desses materiais.

8 Descrevo a exploração de materiais, tal como desenvolvida por Brook e seus atores, em A Cinética do Invisível. Processos de Atuação no Teatro de Peter Brook, 2009.

Considerando os limites deste ensaio, não cabe aqui uma descrição detalhada de tais processos. De qualquer forma, pode-se dizer que os modos de exploração dos materiais colocados em prática pelos atores de Brook atravessam um percurso constituído por várias etapas, dentre elas a de ‘ruptura’, ‘re-composição’, e ‘naturalização de materiais’8. A ampliação referida acima está relacionada sobretudo às múltiplas funções que os materiais podem exercer na criação de seres ficcionais. A percepção dessas múltiplas funções fez com que eu reconhecesse em termos práticos que os materiais de atuação – me refiro aqui aos materiais terciários e mais especificamente aos estímulos utilizados durante os processos criativos – não têm necessariamente um valor em si, mas podem ser desdobrados, dissecados, re-significados, inventados, a partir das abordagens, a partir dos olhares que são lançados sobre eles, a partir da atitude que temos ao ‘escavar’ tais materiais. E aqui chegamos na tensão entre identidade e alteridade.

A construção de experiências: identidade e alteridade Tomemos como exemplo um bastão. Posso explorar esse material fazendo com que ele adquira diferentes significados. Ou seja, posso resignificá-lo fazendo com que ele se ‘transforme’ em uma espada, em uma caneta, em um varal, um cavalo, etc... . Mas, ao mesmo tempo, posso fazer com que ele seja um elemento que me faça assumir posturas inusitadas, que me faça experienciar tensões não-familiares, e assim, me faça perceber possibilidades expressivas antes desconhecidas. Tais processos foram vivenciados em um workshop dirigido pelo ator balinês Tapa Sudana, que será brevemente descrito a seguir. Os bastões, nessa ocasião, eram utilizados em determinados momentos como objetos vazios, e podiam, assim, ser continuamente transformados. De qualquer maneira, um outro tipo de exploração foi crescentemente desenvolvida durante esse processo. Inicialmente o trabalho com o bastão gerou muitas dificuldades, uma vez que nós, os participantes, deveríamos repetir seqüências fixas de movimentos. Além de funcionarem como mediadores entre o corpo e o espaço, nesse caso uma sala de ensaios, os bastões agiram como ‘mestres’, tal como referido por Sudana. Em outras palavras, os bastões representaram um meio através do qual o indivíduo pode crescer fisicamente, espiritualmente, e intelectualmente. De fato, corpo, emoção e pensamento constituem o ‘TRI BUANA’ (‘três mundos’) conceito explorado por Sudana em seu trabalho como ator. Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo Bonfitto

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U rdimento Conforme as sequências de movimentos eram praticadas, diferentes níveis de dificuldade emergiram. Dessa forma, o bastão se tornou progressivamente um catalisador de processos psicofísicos, através dos quais a correlação entre respiração, postura e tensão muscular pode gerar diferentes níveis de conexão entre processos interiores e exteriores. Movimentos executados com o bastão produziram gradualmente tensões musculares específicas e geraram a necessidade de explorar diferentes modos de respiração. Sudana frequentemente chamou a nossa atenção para a percepção dos impulsos e para o respeito que deveríamos demonstrar ao trabalhar com o bastão. Mais do que executar desenhos de movimentos, nós éramos estimulados a dirigir nossa atenção para as tensões existentes entre processos interiores e exteriores. Sudana nos pediu para não buscarmos ‘executar ações’ com o bastão. Nós deveríamos aprender, a partir do contato com o bastão, a não guiá-lo, a não impor a nossa vontade. Mas ao mesmo tempo nós deveríamos cultivar uma atitude ativa. Com o passar dos dias notei que o bastão estava me levando a assumir posturas não familiares, as quais eu não imaginava que fosse capaz de executar. Aos poucos, comecei a perceber a diferença entre ‘guiar’ e ‘ser guiado’, entre o conduzir um processo voluntariamente e o fazer com que a condução seja um catalisador de vários estímulos que podem ocorrer simultaneamente. Além disso, os bastões eram utilizados durante as nossas conversas em grupo. Nesses casos, eles eram deixados sobre o chão em frente a cada membro do grupo, apontando para o centro do círculo. Sudana nessas ocasiões nos pedia para não olharmos para a pessoa que estava falando, mas para o centro do círculo, para onde todos os bastões convergiam. Os bastões, portanto, exerceram múltiplas funções durante a experiência guiada por Sudana. Além de funcionar como um ‘objeto vazio’ e como um instrumento utilizado para trabalhar fisicamente, ele foi explorado a fim de expandir as potencialidades expressivas dos atores, processo este que envolveu por sua vez a produção de experiências cinéticas e o desenvolvimento da auto-consciência. Auto-consciência aqui não diz respeito somente às ocorrências individuais subjetivas mas também à interação dinâmica entre o indivíduo e estímulos sócio-culturais e/ou ambientais. Além disso, a relação entre o ator e o bastão gerou implicações associadas com processos de individuação, de acordo com as quais o indivíduo pode ampliar as próprias referências intelectuais e afetivas. Baseado em tais considerações, é possível perceber que a exploração de materiais, nesse caso o bastão, pode representar um elemento que catalisa a tensão entre as dimensões de identidade e de alteridade. De fato, o bastão é aqui considerado como um ‘mestre’, como Outro que, sendo Outro, desencadeia uma revisão do Eu em muitos níveis, e é exatamente nesse ponto que podemos retomar a reflexão sobre a experiência. Março 2009 - N° 12

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U rdimento Muitas são as abordagens possíveis sobre a experiência, conceito esse que permeia o pensamento de muitos estudiosos. Nesse ensaio utilizaremos alguns aspectos colocados nesse âmbito por Jorge Larossa Bondía. O pesquisador espanhol, ao falar sobre experiência, a coloca como “tudo aquilo que nos passa”, “nos acontece”. Desse modo, reconhece alguns fatores que podem funcionar como obstáculos da experiência, tais como o excesso de informação, o excesso de opinião, de trabalho, e a falta de tempo. A experiência, segundo ele,

9 Bondía, Jorge Larossa; Notas Sobre a Experiência e o Saber de Experiência, em Revista Brasileira de Educação, n° 19, pp. 20-28, Jan/ Fev/Mar/Abr 2002. Disponível em http://www. anped.org.br/rbe/ rbedigital/RBDE19/ RBDE19_04_JORGE_ LARROSA_BONDIA.pdf Acesso em 02/07/2009, 18:30.

[...] requer um gesto de interrupção [...] requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.9 Se refletirmos sobre o processo de trabalho descrito com os bastões, podemos fazer uma conexão direta com os aspectos apontados por Bondía. No trabalho dos atores de Brook, podemos transpor a exploração dos bastões para uma grande variedade de materiais, mas o que é importante perceber nesse ponto é a relação existente entre tal exploração, a criação de seres ficcionais e a noção de experiência apontada acima. O trabalho com os bastões, sendo gerador de experiência que se dá a partir da tensão entre identidade e alteridade, representa uma fonte de estímulos que pode ser geradora de qualidades que contribuirão para a criação de seres ficcionais em muitos níveis. A percepção de tensões musculares não-familiares, o assumir posturas inusitadas, etc..., podem fornecer muitos elementos nesse sentido. Cabe ressaltar, por fim, que os seres ficcionais no trabalho de Brook não são resultantes de uma projeção da identidade do ator, mas sim de processos de tensão entre identidade e alteridade, os quais geram uma transformação, uma ampliação do horizonte perceptivo do ator. Os seres ficcionais, portanto, são resultantes de experiências, tal como apontado por Bondía. Assim, esses foram alguns dos pressupostos que nortearam a proposta de trabalho com os estudantes do CEART. Como teríamos um tempo restrito, somente três encontros, propus que partíssemos de alguns materiais. Em função de tais limitações, achei que poderia ser mais adequado não propor, por exemplo, o trabalho com os bastões, que requer um tempo bem maior de execução. Partimos, então, de textos não-dramáticos (Manoel de Barros, Guimarães Rosa, Machado de Assis), de imagens (Francis Bacon), e de Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo Bonfitto

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U rdimento experiências pessoais. Após uma breve experimentação de algumas práticas (exploração do espaço, do contato com o outro, ações vocais, etc...), iniciamos e exploração dos referidos materiais. Atuando como um dramaturg, percorri os grupos fornecendo alguns estímulos, perguntas e provocações. Ou seja, não houve uma interferência direta na exploração cênica dos materiais, mas na atitude, no olhar através do qual eles poderiam ser explorados, escavados. O trabalho prático foi acompanhado de discussões de textos e do exame de alguns fragmentos extraídos de vídeos. Tanto os textos como os vídeos tiveram como função fornecer referências intelectuais e poéticas que pudessem enriquecer a moldura do seminário: “seres ficcionais: identidade e alteridade”. De qualquer forma, o percurso seguido privilegiou uma relação entre prática e elaboração dessa prática, em que a segunda deveria sempre seguir a primeira, e não antecipá-la. No último encontro, o material cênico produzido pelos grupos foi organizado, e desse modo, algumas perguntas que haviam sido levantadas durante o seminário, associadas a algumas ações vocais, funcionaram como elementos de transição entre as cenas. A relação entre as ações vocais, descritas abaixo entre parênteses, e as perguntas, foi definida como segue: - (Flutuar): Como você sabe se está vivendo uma experiência ou não? - (Furar): Qual a relação entre um princípio e uma técnica? - (Escorregar): Como fazer de alguma coisa um material? - (Rasgar): Se não existem técnicas universalizantes, como inventar técnicas a partir da exploração dos materiais? - (Amassar): Qual a distância que existe entre eu e o meu material? - (Gotejar): Como lidar com o outro que não está fora de mim? - (Derreter): Identidade... Alteridade ... 2 ... Palavrões! - (Acariciar): Informo? Demonstro? Penso ... penso o que não falo... Falo o que não sinto ... Sinto o que não penso ... Experiencio! A inserção de tais transições, mais do que buscar fornecer uma unidade ao todo, funcionou como um elemento de resgate de qualidades produzidas durante os encontros. Tentar descrever a importância desses encontros representa um esforço árduo, pois as palavras escritas aqui não poderão materializar as impressões, as surpresas, o não-dito que deles emergiu. Dentre as surpresas significativas, fui tocado, dentre outras coisas, pela relatividade do tempo. Esses encontros me fizeram perceber, de maneira palpável, que o tempo ‘real’ é o Março 2009 - N° 12

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U rdimento tempo da experiência, e que portanto poucas horas de relógio podem produzir momentos de qualidade, materiais ‘pregnantes’, que se trabalhados, podem fazer emanar centelhas potentes, capazes de nos remapear cognitivamente.

Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BONDÍA, Jorge Larossa. Notas Sobre a Experiência e o Saber de Experiência, em Revista Brasileira de Educação, n. 19, pp. 20-28, Jan/Fev/Mar/Abr 2002. Disponível em http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/ RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. As ações físicas como eixo: de Stanislávski a Barba. São Paulo: Perspectiva, 2002. ________. A Cinética do Invisível. Processos de Atuação no Teatro de Peter Brook. São Paulo: Perspectiva, 2009. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007.

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U rdimento

SEIS COISAS QUE SEI SOBRE O TREINAMENTO DE ATORES Anne Bogart1 Tradução de Carolina Paganine2

Resumo

Abstract

A partir da experiência de Anne Bogart como diretora, a pesquisadora propõe seis aspectos fundamentais que deveriam ser estimulados nos atores em um curso de interpretação. São eles: atitude, atenção, violência necessária, controle físico e expansão das emoções, desequilíbrio e desorientação, e interesse. Ao explicar cada um destes aspectos, Bogart questiona de que maneira eles podem ser ensinados a atores e mostra como são de uma importância crucial para o processo de criação de uma obra artística.

From Anne Bogart’s experience as a director, she proposes six necessary qualities that should be encouraged in actors in an acting program. They are attitude, attention, necessary violence, physical containment and emotional expansion, imbalance and disorientation, and interest. By explaining each one of them, Bogart questions how an actor can be taught those qualities and she also illustrates why they have a crucial importance to the process of creating an artistic work.

Palavras-chave: teatro, treinamento de atores, qualidades necessárias.

Keywords: theater, actor training, necessary qualities.

Não se pode treinar atores ou diretores para que sejam criativos, mas podemos ajudá-los a cultivarem seu eu artístico. Os jovens artistas precisam desenvolver uma relação bastante especial com o próprio trabalho. Se um programa de formação de ator não produz grandes atores, pode, através da prática e do exemplo, prepará-los para a vida de artista. O treinamento teatral pode estimular as seguintes qualidades necessárias a cada indivíduo: 1.

Atitude

2.

Atenção

3.

Violência necessária

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1 Anne Bogart é diretora artística da SITI Company, fundada juntamente com o diretor japonês Tadashi Suzuki em 1992. É professora da Columbia University, onde leciona no Graduate Directing Program.

Carolina Paganine é tradutora formada pela Universidade de Brasília (2004), doutoranda em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina. 2

Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart

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U rdimento 4.

Controle físico e expansão das emoções

5.

Desequilíbrio e desorientação

6.

Interesse

1) Atitude A atitude de uma pessoa frente a qualquer tarefa é determinante para que haja bons resultados. Atitude é fundamental. Como diz o artista plástico Christo, “não existem problemas, apenas situações”. Chamar algo de problema dá origem a uma relação equivocada com o que está acontecendo, predeterminando uma atitude pessimista e de início derrotista. É muito importante a atitude que trazemos para uma peça, um papel, um ensaio ou um relacionamento. Podemos treinar atitudes? Podemos treinar a atitude que um ator traz para um ensaio ou para sua própria carreira? Recentemente, comecei a entender o conceito de gestus de Bertolt Brecht. Gestus não é um gesto, como pensava antes, mas, na verdade, parece que gestus se refere à atitude. Brecht acreditava que o ator deveria se preocupar em não expressar sentimentos, mas “mostrar atitudes” ou gesten. Uma atitude é uma energia direcionada ao exterior. Se me sinto atraída por alguém, minha energia direcionada ao exterior é bastante específica e minhas respostas flutuam de acordo com a maneira que esta pessoa se relaciona comigo. Todas as minhas escolhas físicas, vocais e temporais são feitas em relação ao meu objeto de interesse. Quando o interesse acaba, a atitude muda. Em qualquer ocasião, minha atitude revela intenção e finalidade. Os japoneses possuem uma palavra para descrever a qualidade de espaço e tempo entre as pessoas: ma’ai. Nas artes marciais, o ma’ai é de fundamental importância por causa do perigo de um ataque mortal. No palco, o espaço entre os atores também deveria ser continuamente dotado de qualidade, atenção, potencial e até mesmo perigo. O ma’ai deve ser cultivado, respeitado e estimulado. As linhas de tensão entre os atores no palco nunca deveriam se afrouxar. Uma vez conversei com um ator que interpretava Nick em Quem tem medo de Virginia Woolf ? com Glenda Jackson representando o papel de Martha. Ele disse que a atriz nunca, nunca mesmo, deixou a linha entre ela e os outros três atores se afrouxar. A tendência com um ator menor, interpretando um personagem alcoólico e libertino, próximo ao caos, seria atenuar a tensão e se afundar no sofá. Mas com Jackson, as linhas de tensão entre ela e os outros tinham que ser produzidas a cada momento. Somente quando ela deixava o palco é que essas linhas se soltavam. Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart

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U rdimento Os alemães usam a palavra Haltung ou seu plural Haltungen para descrever as posturas em constante mudança que tomamos em relação a uma pessoa, uma tarefa ou um objetivo. Em inglês, a palavra attitude é, em geral, vista como negativa — “I don’t have an attitude” (“Eu não sou prepotente”)3 . As pessoas querem evitar que sejam vistas como “sendo prepotentes”. Gostaria de sugerir que todo trabalho começa com uma atitude frente a esse trabalho. Cada personagem e cada situação se tornam especiais através de uma sinfonia de atitudes que se modificam.

2) Atenção Eu ensino direção teatral na Universidade de Columbia. A única coisa que sei sobre dirigir é que dirigir diz respeito a escutar. Como ensinar a escuta? Como se aprende sobre atenção? Como diretora, minha maior contribuição para uma produção, a única coisa que posso oferecer de verdade a um ator, é a minha atenção. O que mais conta é a qualidade desta atenção. Com que parte de mim estou assistindo? Estou assistindo desejando bons resultados da peça ou assisto interessada no momento presente? Espero o melhor do ator ou quero provar minha superioridade? Um bom ator pode rapidamente discernir a qualidade da minha atenção, do meu interesse. Há uma linha de vida sensível entre nós. Se esta linha é comprometida, o ator sente. Se for depreciada pelo meu próprio ego, desejos ou falta de paciência, a linha entre nós estará deteriorada.

3 Em inglês, a palavra attitude pode conter uma acepção negativa de exacerbada autoconfiança. Já em português, é preciso adjetivar o cognato "atitude" como em "atitude ruim, hostil" ou substituí-la por outra palavra como "arrogante" ou "prepotente", de acordo com o contexto. (N. da T.)

Ensaiar não é forçar que as coisas aconteçam, mas sim escutá-las. O diretor escuta os atores. Os atores escutam uns aos outros. Escuta-se coletivamente o texto. Escutamos em busca de indícios. Mantemos as coisas em movimento. Investigamos. Não se ameniza os momentos como se tudo estivesse entendido. Nada ficou entendido. Trazemos nossa atenção para a situação enquanto esta se desenrola. Penso que o ensaio é como brincar com o Tabuleiro Ouija em que todos colocam as mãos sobre uma pergunta e depois seguem o movimento quando este começa a se revelar. Segue-se o movimento até que a cena libere seu segredo. Atenção significa tensão — uma tensão entre um objeto e um observador ou tensão entre pessoas. É um modo de escutar. Atenção é uma tensão sobre tempo.

3) Violência necessária O treinamento deveria ensinar ao ator a necessidade de violência em um ato criativo. Março 2009 - N° 12

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U rdimento

Em inglês, keep it, que pode ser traduzido também por outras expressões equivalentes usadas no Brasil como: "é isto", "esta é a cena", ou "mantenha isto". (N. da T.) 4

A arte é violenta. Tomar uma decisão é um ato violento. Antonin Artaud definiu a crueldade como “uma determinação, uma persistência, um rigor incansáveis”. Colocar uma cadeira em uma posição específica no palco acaba com todas as outras escolhas possíveis, todas as outras opções. Quando um ator atinge um momento espontâneo, intuitivo ou passional no ensaio, o diretor profere as palavras fatídicas: “guarda isso” , eliminando todas as outras soluções em potencial. Estas duas palavras cruéis, “guarda isso”4, enfiam uma faca no coração do ator que sabe que a próxima tentativa de recriar aquele resultado será falsa, afetada ou sem vida. Mas, bem no fundo, o ator também sabe que a improvisação ainda não é arte. Somente quando algo foi decidido que o trabalho pode realmente começar. A determinação e a crueldade, que extinguiram a espontaneidade do momento, exigem que o ator comece um trabalho extraordinário: ressuscitar os mortos. O ator deve agora encontrar uma espontaneidade nova e mais profunda dentro desta forma estabelecida. Para mim, é por isto que os atores são heróis. Eles aceitam esta violência e trabalham com ela, trazendo habilidade e imaginação à arte da repetição. É significativo que a palavra francesa para ensaio seja repetition. Decerto, pode-se argumentar que a arte teatral é a arte da repetição. (A palavra inglesa rehearsal / “ensaio”, ou re-hear, propõe “ouvir de novo”. A alemã Probe sugere investigação. Em japonês, keiko se traduz como prática. E por aí vai. Um estudo sobre as palavras para “ensaio” nas diferentes línguas é infinitamente fascinante.) No ensaio, o ator busca por formas que podem ser repetidas. Juntos, atores e diretores constroem uma estrutura que dará margem a infinitas novas correntes de força vital, vicissitudes emocionais e conexão com os outros atores. Gosto de pensar sobre a encenação, ou sobre o bloqueio, como um veículo em que os atores podem se mover e crescer. Paradoxalmente, são as restrições, a precisão e a exatidão que permitem a possibilidade de liberdade. A forma se torna um recipiente no qual o ator encontra variações infinitas e liberdade interpretativa. Para o ator, esta violência necessária ao criar um personagem para o teatro é bastante diferente da violência necessária ao atuar para a câmera. Na atuação para o cinema, o ator pode se permitir fazer algo impulsivo sem se preocupar em repeti-lo inúmeras vezes. O essencial para a câmera é que o momento seja espontâneo e fotogênico. No teatro, é preciso que seja repetível. Percebi pela primeira vez a necessidade de violência no ato criativo enquanto assistia o diretor Robert Wilson ensaiar Hamletmachine de Heiner Müller com estudantes de graduação de Artes Cênicas na Universidade de Nova Iorque. O ensaio estava marcado para começar às 19h. Cheguei mais cedo e me deparei com um clima alegre. Na última Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart

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U rdimento fileira do teatro, estudantes de pós-graduação e outros pesquisadores esperavam ansiosos, com as canetas na mão, pela chegada de Wilson. No palco, os jovens atores se aqueciam. Uma equipe de administração cênica estava sentada atrás de um batalhão de mesas compridas, colocadas na extremidade do palco. Wilson chegou às 19h15. Sentou-se no centro da arquibancada em meio ao alvoroço e ao barulho e começou a olhar atentamente para o palco. Aos poucos, todos no teatro se aquietaram até que o silêncio fosse cortante. Depois de cerca de cinco minutos torturantes em completa quietude, Wilson se levantou, caminhou até uma cadeira no palco e ficou encarando-a. Depois do que me pareceu uma eternidade, ele se abaixou, tocou a cadeira e a moveu menos de três centímetros. Quando ele deu um passo para trás para olhar a cadeira de novo, percebi que eu estava com dificuldade para respirar. A tensão no recinto era palpável, quase insuportável. Em seguida, Wilson acenou para que uma atriz se aproximasse a fim de lhe mostrar o que queria que ela fizesse. Fez uma demonstração sentando na cadeira, se inclinando para frente e movendo ligeiramente os dedos. Então, ela assumiu o lugar dele e copiou, de modo preciso, a inclinação e os gestos com a mão. Percebi que me curvava para a frente na minha própria cadeira, profundamente angustiada. Senti-me como se estivesse assistindo outras pessoas em uma situação privada e íntima. Naquela noite, reconheci a crueldade necessária da decisão. O ato determinado de posicionar um objeto em uma posição precisa no palco, ou o gesto de mão de um ator, me parecia quase um ato de violação. Para mim, isto era perturbador. Entretanto, no fundo eu sabia que este ato violento é uma condição necessária para todos os atores. A violência começa com a tomada de decisão, com um comprometimento com alguma coisa. A palavra commit5 vem do Latim committere, que significa “inflamar uma ação, unir, juntar, confiar e fazer”. Comprometer-se com uma escolha parece violento. É como a sensação de pular de um enorme trampolim. Parece violento porque tomar uma decisão é uma agressão contra a natureza e a inércia. Mesmo uma escolha aparentemente tão pequena quanto decidir a posição precisa de uma cadeira parece uma violação do fluxo livre e do curso da vida.

Dependendo do contexto, commit pode ser "comprometer-se" ou "cometer" em português. (N. da T.) 5

Para gerar a excitação indispensável, é preciso que haja algo em jogo, em risco, algo momentâneo e incerto. A certeza não nos estimula emocionalmente. Grandes interpretações exalam exatidão e uma sensação poderosa de liberdade. Esta liberdade só pode ser encontrada dentro de certas limitações escolhidas. As limitações servem como uma lente para focar e ampliar o evento para o público, bem como para dar aos atores algo com o que se compararem. Uma limitação pode ser algo simples como permanecer na luz correta e falar o texto exatamente como está escrito ou tão difícil quanto interpretar uma Março 2009 - N° 12

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U rdimento coreografia complexa ao mesmo tempo em que se canta uma ária. Estas limitações convidam o ator a conhecê-las, a perturbá-las, a transcendê-las. O público presencia o ator testando seus próprios limites, expressando algo além do banal apesar das limitações. Ser bem articulado diante das limitações é o lugar onde a violência se instaura. Este ato de violência necessária, que à primeira vista parece limitar a liberdade e reduzir as opções, por sua vez, abre muito mais opções e demanda do artista um sentido mais profundo de liberdade. A resistência fortalece e intensifica o esforço. Encontrar resistência, confrontar um obstáculo ou superar uma dificuldade sempre demanda criatividade e intuição. No centro do conflito, tem-se que apelar para novas reservas de energia e de imaginação. Desenvolvemos os músculos no ato de superar a resistência — nossos músculos artísticos. Como um bailarino, é preciso exercitar regularmente para manter a musculatura. A magnitude das resistências que se escolhe empregar determina a progressão e a profundidade do trabalho. Quanto maiores os obstáculos, mais coisas poderemos transformar com o esforço.

4) Controle físico e expansão das emoções Um grande ator, assim como uma excelente dançarina de striptease, se refreia mais do que mostra. Com a maturidade, os artistas se aproximam da grande sabedoria encontrada na combinação poderosa entre o controle físico e a expansão das emoções. O refreamento é fundamental. Pegue o momento e todas as suas complexidades, concentre-o, deixe-o acontecer e, então, o guarde. Concentrar e refrear geram energia no ator e interesse no público. Zeami, o criador japonês do teatro Nô, sugeria que o ator deveria sempre conter um certo percentual de suas emoções: “Quando sentir dez no coração, expresse sete...”. O talento mais especial de um ator é a capacidade de resistir, de conter, de domar, de conservar a energia em si, de concentrar. Com esta compressão, o ator brinca com a sensibilidade cinestésica dos espectadores e evita que eles prevejam o que está para acontecer. A cada instante, o objetivo é esconder do espectador a estrutura predeterminada e o desfecho. Pouco tempo atrás, ao visitar o Museu de Arte Moderna de São Francisco, me deparei com uma pintura gigantesca de Anselm Kiefer, intitulada Osiris and Isis. Meus planos de visitar todo o museu naquele dia foram por água abaixo. Não conseguia dar as costas a este quadro intenso, belo, vibrante, perturbador e inabandonável. Fui confrontada pela magnitude de suas idéias, formas, violência, movimento e perspectivas infinitas que se abriram quando me deparei com este trabalho. Detida no meu caminho, não podia passar pelo quadro e prosseguir para as outras pinturas. Tinha que conhecê-lo, lidar com ele. Fui desafiada e isto me transformou. Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart

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U rdimento O que nos detém no caminho? É raro que eu seja detida por alguma coisa ou por alguém que consigo compreender de imediato. Na verdade, sempre me senti atraída pelo desafio de passar a compreender aquilo que não consigo categorizar ou abandonar rapidamente, seja a presença de um ator, uma pintura, uma música ou uma relação pessoal. É a jornada em direção ao objeto de atração que me interessa. Vivemos em relação uns com os outros. Ansiamos pelos relacionamentos que mudarão nossas perspectivas. A atração pelo outro é um convite a uma jornada que mudará nossas vidas, a um novo modo de experienciar a vida ou perceber a realidade. Uma obra de arte autêntica incorpora uma energia intensa. Exige uma resposta. Pode-se tanto evitá-la ou trancá-la, quanto encará-la e confrontá-la. Ela contém campos de energia atraentes e complicados, além de uma lógica própria. Não gera desejo ou movimento no receptor, mas produz o que James Joyce chamou de “imobilização estética”. No meio do caminho, você é detido. Não se pode passar facilmente por ela e dar continuidade à vida. Você se encontra em relação com algo que não consegue abandonar de imediato. Em Retrato do artista quando jovem, James Joyce diferencia a arte estática da cinética. Ele aprecia a arte estática e despreza a arte cinética. Acredito que este conceito de estático e cinético seja desafiador e útil para se pensar sobre o que colocamos no palco. A arte cinética o faz mover. A arte estática o faz parar. A pornografia, por exemplo, é cinética — ela pode te excitar sexualmente. A publicidade é uma arte cinética — pode induzi-lo a comprar. A arte política é cinética — pode movê-lo para a ação política. Por outro lado, a arte estática o detém. Causa uma parada. Assim como a pintura de Anselm Kiefer, não o deixará passar tranquilamente por ela. A arte estática oferece um universo auto-suficiente, unificado somente em seus campos complexos e contraditórios. Não o fará lembrar-se de nenhuma outra coisa. Não desperta desejos e não o move de uma maneira tranquila. Você é detido em seu caminho por este poder extraordinário. Ao se confrontar com as maravilhosas pinturas de maçãs de Cézanne, por exemplo, não se deseja comer as maçãs. Você, ao contrário, é confrontado pela maçanidade das maçãs! Elas o detêm em seu caminho. Com Osiris and Isis, fui detida pela magnitude do drama interior específico desta pintura. Ela me convidou a lidar com ela. Fui chamada para a aventura que é uma relação. Um bom ator me detém em meu caminho. É difícil não considerar a qualidade de seu silêncio, movimento ou fala. Embora eu não esteja consciente do que é isso que eles fazem para produzir essa presença magnética, sei que não consigo desviar os olhos. Não posso seguir adiante. Março 2009 - N° 12

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U rdimento O que o ator faz para me deter em meu caminho? Como treinamos um ator para que monte os campos de energia necessários para nos deter? O que eu de fato sei é que um ator estrutura uma paisagem interna complexa e tenta permanecer presente dentro dela. O ator põe em prática, simultaneamente, as muitas linguagens do palco, incluindo o tempo, espaço, texto, ação, personagem e história. A realização disso tudo é um feito extraordinário de malabarismo com diversas coisas ao mesmo tempo. A fala se torna dramática por causa da mudança que ocorre dentro da pessoa que está presente, no momento, envolvida com o discurso. E eu também estou presente ali, em relação com esta pessoa fazendo malabarismos. A vitalidade na arte é o resultado da articulação, da energia e da diferenciação. Toda grande arte é uma arte diferenciada. O ofício do ator está na diferenciação de um momento do outro que se segue. Um grande ator aparenta ser perigoso, imprevisível, cheio de vida e diferenciação. A qualquer momento um ator se depara com um dilema em particular: escolher entre desfazer-se da experiência ou concentrá-la. É fácil se desfazer. É só deixar ir, deixar fluir sempre que se sentir cheio. Mas acredito que é importante para um ator aprender a necessidade de concentrar as irritações, os sentimentos aleatórios, as dificuldades, as paixões, tudo que acontece de momento a momento, para depois comprimi-los, deixá-los acontecer e encontrar os momentos adequados para a expressão clara e articulada. O resultado será uma expressão e não um desfazimento aleatório.

Neste caso, "discussão", "confrontação" em português. (N. da T.). 6

Os americanos foram infestados pela doença da concordância. No teatro, supomos frequentemente que colaborar significa concordar. Acredito que concordância demais resulta numa falta de vitalidade. Concordar sem refletir esfria a energia no ensaio. Não acredito que colaboração implica em fazer mecanicamente o que o diretor manda. Sem resistência não há fogo. Os alemães têm uma palavra bastante útil que não tem um equivalente adequado em inglês: auseinandersetzung. A palavra, que literalmente quer dizer “colocarse em oposição a outra pessoa”, é em geral traduzida para o inglês como argument6, por via de regra uma palavra de conotações negativas. Embora um ambiente descontraído e agradável no ensaio me deixe bastante feliz, meu melhor trabalho emana do auseinandersetzung, o que significa para mim que durante o ato criativo precisamos nos colocar em oposição uns aos outros. Significa que nos atacamos mutuamente de maneira produtiva, que talvez entremos em embate; significa que poderemos discutir, discordar um do outro, oferecer alternativas. Significa que conviveremos com uma discordância irritante e uma atmosfera animada. Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart

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U rdimento É nossa obrigação treinar o ator para que preserve presença e intensidade suficientes para colidir em vez de concordar com tudo no ensaio. Em lugar de seguir cegamente as instruções, o ator deveria trazer seu próprio calor, inteligência, sensibilidade estética e intuição para o processo. Descobri que os atores de teatro alemães tendem a trabalhar com auseinandersetzung em demasia, o que se torna debilitante e pode originar produções estáticas e impetuosas. Os americanos tendem mais para a concordância, o que pode dar margem a uma arte superficial, não-investigativa e simplista.

5) Desequilíbrio e desorientação Todo ato criativo requer um salto no vazio. O salto tem que ocorrer no momento certo e, no entanto, a hora de saltar nunca será estabelecida de antemão. Não há garantias quando se está no meio do salto. Em geral, saltar causa uma perplexidade extrema. A perplexidade é uma parceira no ato criativo — uma colaboradora fundamental. Se o seu trabalho não o deixa suficientemente perplexo, então é bastante provável que não comoverá ninguém. Podemos instilar em um jovem ator a consciência da necessidade imperativa de desequilíbrio e desorientação no processo criativo? A maioria das pessoas se torna altamente criativa em meio a uma situação de emergência. No momento do desequilíbrio e da pressão, precisamos encontrar soluções rápidas e satisfatórias para grandes problemas repentinos. São nestes momentos de crise que a inteligência inata e a imaginação intuitiva entram em jogo: a mulher que levanta um carro porque seu filho está preso embaixo, uma escolha estratégica e inspirada durante a crise de uma batalha, decisões rápidas no calor de um ensaio final antes da estréia para o público. Tenho descoberto que, do ponto de vista da criação, o desequilíbrio é mais frutífero que a estabilidade. A arte começa na luta por equilíbrio. Não se consegue criar em um estado de harmonia. Estar fora do equilíbrio produz um estado que é sempre interessante no palco. No momento do desequilíbrio, nossos instintos animais nos impelem a lutar pelo equilíbrio e esta luta é infinitamente cativante e proveitosa. Quando passar a acolher o desequilíbrio em seu trabalho, você ficará imediatamente cara a cara com sua própria propensão ao hábito. O hábito é um adversário do artista. Em arte, a repetição inconsciente de um território familiar nunca é vital ou estimulante. Precisamos tentar permanecer atentos e vivos ao nos depararmos com nossas propensões ao hábito. Encontrarse em situação de desequilíbrio lhe apresenta um convite à desorientação e à dificuldade. Não é uma situação confortável. De repente, você se sente Março 2009 - N° 12

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U rdimento deslocado e fora de controle. É aqui que a aventura começa. Quando se acolhe o desequilíbrio, você entrará imediatamente em um território novo e desconhecido onde se sentirá pequeno e inadequado em relação à tarefa por fazer. Mas os frutos deste compromisso serão abundantes. Toda grande jornada começa com desorientação. As crianças naturalmente giram umas as outras, de olhos vendados, antes de uma brincadeira. Alice cai no buraco do coelho e muda de tamanho ou viaja por um espelho para chegar ao País das Maravilhas. Nós todos, público e artistas, temos que dar chance a um pouco de desorientação pessoal a fim de abrir caminho para a experiência. Tenho medo de cair. Passei anos estudando a arte marcial japonesa Aikido por causa da quantidade de tempo que se passa de cabeça para baixo durante a prática. Tento acolher a desorientação como uma prática necessária ao meu trabalho nos ensaios. Sei que tenho que aprender a acolher a desorientação e o desequilíbrio. Sei que a tentativa de encontrar equilíbrio a partir de um estado de desequilíbrio será sempre produtiva e interessante e renderá ótimos resultados. Tento acolher a desorientação para dar chance ao amor verdadeiro. Apaixonar-se é desorientador porque os limites entre os recémenamorados não foram demarcados. Para nos apaixonar, temos que nos desapegar de hábitos cotidianos. Para sermos tocados, temos que estar dispostos a não saber como será a sensação do toque. Um grande espetáculo de teatro também é desorientador porque as fronteiras entre quem dá e quem recebe não são claras. Um artista que emociona joga com as nossas expectativas e com nossa memória. Este intercâmbio possibilita uma experiência artística interativa e viva. No ensaio e na apresentação, é necessário saltar a cada momento. Toda vez que um ator pisa no palco, ele precisa estar preparado para saltar inesperadamente. Sem esta predisposição, o palco continuará a ser um lugar monótono e convencional. Se ficar preparado para saltar no momento adequado, nunca saberá quando será este momento. A porta se abre e você tem que passar por ela sem pensar nas consequências. Você salta. Mas também terá que aceitar que o salto, por si mesmo, não é garantia de nada. Ele não suaviza a perplexidade, mas sim a acentua. De acordo com Rollo May em seu livro The courage to create (A coragem para criar), durante toda a história artistas e cientistas concordaram que, em seus melhores momentos, eles sentem como se algo se manifestasse através deles. De alguma maneira, conseguiram desembaraçar o próprio caminho. Alguns dizem que Deus se manifesta através deles. De maneira mais modesta, outros afirmam que, a fim de desembaraçar o próprio caminho e desviar do Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart

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U rdimento lobo frontal do cérebro, saem para dar uma volta na floresta ou tiram um cochilo. Eles têm que desligar a mente do que estão tentando fazer para que possam produzir conexões mais inspiradas. A mente está sempre preparada para emboscar o processo. As descobertas e inovações acontecem quando você consegue desembaraçar o próprio caminho. Os encontros com a resistência e a compressão de emoções geram uma das condições mais cruciais para o teatro: energia. A energia é gerada quando se assume a responsabilidade com a cara e a coragem e se supera o obstáculo. O êxito de um ator é proporcional à qualidade da interação com a resistência inesperada da situação. A oposição entre uma força que impele para a ação e outra força que a retém é traduzida pela energia visível e sensível no espaço e no tempo. Esta luta pessoal com o obstáculo, por sua vez, leva ao desacordo e ao desequilíbrio. A tentativa de restabelecer a harmonia a partir deste estado de agitação gera ainda mais energia. Esta batalha é, em sim mesma, o ato criativo. É natural e humano buscar a união e restabelecer o equilíbrio após o desequilíbrio do compromisso com a discordância. Recite um solilóquio inteiro de Shakespeare a partir de um estado físico de desequilíbrio. Na tentativa de manter o equilíbrio e não cair enquanto fala, cada pedaço de seu ser busca o equilíbrio, a harmonia e a união. Esta luta é positiva e produtiva. De súbito, o corpo fala com uma clareza e uma necessidade surpreendentes. A luta exige precisão e articulação. Um eu artístico é aquele que acolhe o desequilíbrio e a desorientação.

6) Interesse O interesse é a ferramenta fundamental no processo criativo. Para ser fiel a um interesse e persegui-lo, o melhor barômetro é o corpo. O coração acelera. A pulsação fica apressada. O interesse pode ser o seu guia. Sempre apontará para a direção certa. Ele define a qualidade, a energia e o conteúdo do trabalho. Não se pode fingir ou dissimular o interesse ou mesmo escolher sentir-se interessado por alguma coisa só porque foi recomendado. O interesse nunca poderá ser recomendado. Ele é uma descoberta. Quando sentir esta aceleração, você tem que agir de imediato. Terá que seguir este interesse e segurá-lo firme. Nos momentos em que o interesse desperta, quando você se encontra detido em seu caminho, perceberá imediatamente que está em uma encruzilhada. Nestas encruzilhadas, as definições e os princípios que o formaram e o guiaram até o momento presente se desintegram; o que fica é um sentimento de desorientação, uma animação descontrolada, uma sensação de falar livre e espontaneamente, um interesse. Março 2009 - N° 12

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U rdimento Se o interesse for genuíno e grande o bastante e se for perseguido com tenacidade e generosidade, o efeito bumerangue será evidente. O interesse devolve a bola sem deixá-la cair no chão, afetando sua vida e a alterando de maneira inevitável. É preciso que se esteja disponível e atento às portas que se abrem de repente. Não se pode demorar. As portas se fecham rápido. Mudará a sua vida. Surgirão aventuras que você nunca imaginou. Terá que ser fiel ao interesse e ele lhe será fiel. O maior inimigo do artista é a PRESSUPOSIÇÃO, que é, talvez, o oposto do interesse. A primeira coisa que acabará com a obra de um artista é a pressuposição de saber o que está fazendo, de saber como andar e como falar, de que o que ele “quer dizer” significará a mesma coisa para os receptores. No instante em que você pressupõe quem é o público ou qual é o momento, este mesmo momento estará dormente. Como diretora, sei que não é minha responsabilidade produzir resultados, mas sim criar as circunstâncias para que algo possa ocorrer. Os resultados virão por si mesmos. Sinto que isto é verdadeiro para todos os artistas criadores. Cuide bem da atitude, da atenção, da violência necessária, do controle físico e da expansão das emoções, do desequilíbrio e da desorientação, e do interesse. Depois, comece a trabalhar.

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U rdimento

COMBATE CÊNICO E ESTÉTICA DA VIOLÊNCIA NO TREINAMENTO PARA A PERFORMANCE1 Kerrie Sinclair2 Tradução de Cláudia Sachs3

Resumo

Abstract

O artigo trata de combate cênico, que é uma combinação de técnicas especializadas desenvolvidas especificamente para teatro e cinema, que criam a ilusão de combate físico sem causar dano aos atores. Os movimentos de combate cênico têm suas origens em técnicas medievais baseadas em tradições celtas, da La Tene, romanas, gregas e dos vikings. As armas usadas variavam de região para região, prevalecendo a popularidade de muitas armas apresentadas aqui.

This article deals with stage combat, which is a combination of specialized techniques designed specifically for use in theater and film productions and that create the illusion of physical combat without causing harm to the performers. The origins of the movements in the stage combat date back to medieval techniques based on Celtic traditions, from La Tene, and also Roman, Greek and Viking traditions. The weapons used in combat may vary from region to region, and this article presents the most popular ones.

Palavras-chave: armas, cênico, técnicas medievais.

Keywords: weapons, stage combat, medieval techniques.

combate

As origens do combate cênico Combate cênico é uma combinação de técnicas especializadas que foram desenvolvidas especificamente tanto para teatro quanto para cinema e que criam a ilusão de combate físico sem causar dano aos atores. Atores que executam técnicas de combate cênico são chamados de ator-combatente e as técnicas são comumente praticadas juntamente com o trabalho de dublês. Combate cênico é uma arte performática não diferente da dança, mas voltada para o uso de movimentos de combate derivadas de várias tradições de artes marciais. Março 2009 - N° 12

Palestra proferida no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, Abril 2009. 1

Kerrie Sinclair é Doutora em Teatro (Ph.D.) pela La Trobe University, Melbourne (Austrália). Tem formação na London Contemporary Dance School e Diploma em Dança pela National Ballet School. É Instrutora de Kung Fu (Faixa Dourada), discípula de Sifu Dana Wong e Grão-Mestre William Cheung. 2

Cláudia Sachs é atriz e professora de teatro, mestre e doutoranda em teatro pela UDESC, lecionou interpretação na UFRGS, tem formação na Escola de Jacques Lecoq (França). 3

Combate cênico e estética da violência no treinamento... Kerrie Sinclair

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U rdimento Lutas encenadas, atuadas ou simuladas em performances serviram para propósitos rituais, educacionais e estéticos. Exibições de combates simulados foram relacionadas a danças de guerra e apresentações teatrais que detalharam eventos históricos e imaginativos (WOLFRAM, 1962, p. 186-187). Exibições de antigos combates ritualizados incluem eventos de gladiadores no Coliseu de Roma (WILKINSON, 2002, p. 97) e os “duelos judiciais” da Idade Média européia (BILLACOIS, 1990, p. 5). Os movimentos de combate cênico têm suas origens em técnicas medievais de espada que são baseadas em tradições das culturas do Hallstat céltico e da La Tene, e apresentavam métodos originados de técnicas combativas romanas (espada longa (gladius / spatha), gregas (xiphos / makhaira) e dos vikings (antigo heirloom). Depois da queda do Império Romano as espadas foram desenvolvidas pelos vikings e pelos celtas (PEIRCE, 2004, p. 6) e evoluíram para armas maiores e mais pesadas para penetrarem armaduras. Técnicas combativas também mudaram do estilo natural de cortar para serem substituídas por uma nova técnica de empurrar. O novo estilo de empurrar do jogo de espada desencadeou uma moda dentro da sociedade civil que evoluiu até o duelo. Os duelos envolveram participantes que lutavam com floretes e seguiam regras que eram baseadas em códigos de cavalheiros. O duelo se tornou a forma predominante de resolução de disputa ao longo do período do Renascimento (FREVERT, 1995, p. 11). Durante o período do fim da Idade Média (107-1485) na Europa, competições de esgrima encenadas, frequentemente coreografadas, tornaramse populares nas escolas de esgrima e encontraram platéias para técnicas extravagantes que não eram práticas para situações de “combate real”, mas que podem ter influenciado tanto as técnicas de esgrima moderna como as de combate cênico (WIKIPEDIA, 2009). As técnicas de combate cênico modernas parecem ter suas origens no drama Elisabetano. Durante o período Elisabetano (1485-1603) as peças de Shakespeare estavam entre as mais populares apresentadas. Acredita-se que um ator chamado Richard Tarleton, que era um membro da companhia de atores de William Shakespeare e também um sócio da associação de armas de Defesa de Londres (The London Masters of Defense), combinou estes dois talentos para se tornar o primeiro “diretor de luta” (WOLF, 2009, p. 1). A recente popularidade do cinema de ação e de Hong Kong, além de exibições de violência extrema em entretenimentos executados ao vivo, inspiraram uma maior demanda para artistas que são treinados nestas técnicas de violência ilusória e encenada. O desempenho destes métodos e técnicas, embora encenado, ainda requer uma atitude altamente concentrada dos artistas Combate cênico e estética da violência no treinamento... Kerrie Sinclair

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U rdimento para que durante as coreografias de luta seja assegurada a segurança de todos os participantes. Isto conduziu ao desenvolvimento de técnicas que são específicas para o desempenho da violência estetizada. Embora estas técnicas tenham frequentemente derivado de métodos de arte marciais, as qualidades mentais e emocionais exigidas para executar técnicas de combate cênico com sucesso são imensamente diferentes dos preceitos mentais e emocionais exigidos para ser um bom artista marcial. Uma das grandes dificuldades de executar técnicas de combate cênico é que a ilusão de violência real deve ser sustentada enquanto a segurança dos colegas atores é mantida. Armas populares de combate cênico européias incluem o que é conhecido como “espada única” (normalmente baseada nas técnicas de florete, espada e sabre de esgrima), espada pequena, espada larga (normalmente baseada no estilo de cortar e partir das antigas formas das espadas dos vikings e dos celtas), espada de punho duplo ou mão-e-meia4, florete e punhal, florete e escudo, bastão e corda. Recentemente, tradições de armamento de arte marciais históricas estão sendo integradas no treinamento de combate cênico. Grupos de reconstrução de cenas históricas (incluindo HEMA, CLEMENTS etc.) estão na vanguarda das reconstruções que estão acontecendo e estão usando manuais históricos para reavivarem as tradições de arte marciais ocidentais.

4 Em inglês, hand-and-a-half sword. (N. da T.)

Algumas das fontes históricas mais populares incluem um documento conhecido como I. 33 que é um manual alemão de 1295 que detalha o uso da espada e do escudo, o texto de espada longa de Johannes Liechtenauer de 1389, o Manuscrito 39564, um texto sobre espada inglesa do Século XV, o “Flos Duellatorum in Armis” de Fiore Dei Liberi de 1410, o Código Guelf, um manuscrito alemão do fim do SéculoXV, Joseph Swetnam, que era um dos grandes Mestres da Defesa inglesa em espada renascentista, staff e florete, além de vários outros textos e manuscritos.

Formas de lutas e armas europeias antigas e recentes Guerreiros gregos, romanos, vikings, celtas e árabes se ocuparam frequentemente de combates corpo-a-corpo e luta próxima usando uma variedade de armas pesadas. (BENNET et al, 2005) As armas usadas variavam de região para região, mas como os guerreiros viajavam e as técnicas e designs de armas eram trocados, a popularidade de muitas armas prevaleceu. A lança é uma das mais velhas e mais importantes de todas as armas de mão usadas pelos celtas e outros combatentes europeus. Ela é uma arma relativamente simples visto que evoluiu de uma vara que tinha sido afiada em forma de ponta em uma extremidade. A ponta pode ter sido endurecida com fogo, mas foi finalmente substituída por um osso, uma pedra ou uma Março 2009 - N° 12

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U rdimento ponteira de metal. A função principal da lança era a de perfurar a armadura ou tecido do corpo e dessa forma os movimentos de combate associados com a lança refletem isto. As lanças eram usadas tanto sendo atiradas de cima de um cavalo, como de paredes ou em um melle (batalha a pé). Facas e punhais eram armas de reserva que eram usadas a queima roupa para serem empurradas em áreas fracas da armadura, para cortar um oponente, cortar gargantas e apunhalar o corpo. Elas ficaram populares no fim da Idade Média e eram usadas principalmente pelos francos, vikings e anglo-saxões (BRADBURY, 2004, p. 250). Facas e punhais podem ter uma lâmina dupla ou simples e podem ser tradicionalmente usadas para fatiar e empurrar. Historicamente elas eram feitas de cobre, latão e bronze, entretanto, evoluíram para serem feitas de ferro e aço (CLEMENTS, 2006, p. 2). Punhais são uma arma padrão estudada em combate cênico e são normalmente usados juntamente com o florete para formar a base da técnica do “florete e punhal”. A espada curta desenvolveu-se como uma progressão natural da faca longa. Espadas curtas eram usadas principalmente para empurrar, mas suas extremidades eram afiadas em ambos os lados para tornar possível também cortar (CLEMENTS e HERTZ, 2009). As espadas continuaram desenvolvendo-se em uma variedade de tamanhos, pesos e formas de lâminas. Ao longo dos séculos as espadas progrediram desde a simples forma de uma lâmina de bronze para a moderna forma de lâmina curta e rápida, bem apropriada para o combate corpo a corpo. As formas mais populares de espada incluem o sabre ou cimitarra (derivada da palavra persa Shamshir), que são espadas com um único gume usadas principalmente para cortar e picar. Acredita-se que a espada de forma curva originou-se no Oriente Médio, possivelmente na Arábia, Turquia ou Pérsia durante o Império Otomano (COWPER, 2008, p. 134). Estas espadas eram particularmente úteis quando montando cavalos, visto que a velocidade e impulso do deslocamento aumentavam muito a sua capacidade para perfurar armaduras. A cimitarra, que se parece com um machete grande, foi primeiramente usada na Inglaterra, França e Alemanha para penetrar coletes de metal. Ela apresentava uma lâmina curva que, semelhante ao sabre, tornouse útil para cavalaria. Lâminas do tipo Bastarda ou Mão-e-meia são frequentemente conhecidas como “espadas longas” ou “espadas de lâmina larga”, porém “espada de lâmina larga” é um termo que vem sendo aplicado erroneamente às diferentes armas classificadas como tendo uma lâmina mais larga e mais longa do que as armas de empurrar usadas pelos espadachins do século XVII. John Clements (2009, p. 2) escreve: Combate cênico e estética da violência no treinamento... Kerrie Sinclair

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U rdimento O aparecimento de espadas de lâmina larga pertence ao final de 1600 como uma distinção das espadas de empurrar civis. Naquele tempo, a lâmina de um cavalheiro para defesa pessoal tinha se tornado a pequena espada descendente do florete, enquanto que o exército (e especificamente a cavalaria) usava lâminas cortantes mais largas. Estas armas são na realidade uma forma de alfanje curto. As várias lâminas "mortuárias" com empunhaduras tipo gaiolas e cestas usadas pela cavalaria que começaram ao redor dos anos 1630 eram também "espadas de lâmina larga", (embora tais formas de empunhadura estivessem em uso desde 1520). Muitas lâminas do século XVIII e XIX como spadroons (antiga espada da marinha inglesa), alfanjes, espadas valãs, pallasches (tipo de sabre longo, reto, com aprox. 95 cm), espadas de cavalaria, sabres com empunhadura tipo cesta e sabres retos, sabres, e sciabola eram todas chamadas de "espadas de lâmina larga" e até hoje esta classificação continua através de colecionadores de língua inglesa […] Na verdade não há nenhuma referência histórica a espadas Medievais sendo referidas como espadas de lâmina larga, mas só "espadas", assim como também outros nomes específicos. Terminologias e nomes mudam com o passar do tempo, mas termos descritivos como "espada longa de lâmina larga" ou "espada curta de lâmina larga." não foram nunca desenvolvidos. "Espada de lâmina larga" nunca foi, então, uma "classificação" de qualquer família ou tipificação de qualquer arma Medieval com lâmina como foi o caso de outras (armas de guerra como, por exemplo, warswords, epee du guerre, longe swerds/ langenschwerter, grete-swerdes, grant espees, bastard swords/espee’ bastard, shorteswords, arming swords, riding-sword, e Schlachtschwerter ou twa-hand-swerdis). Espadas Bastarda /Longas/ Mão-e-meia possuíam uma empunhadura e uma lâmina ligeiramente mais longas que o normal, uma bola pesada na base da arma (pommel) a qual era usada tanto para contrabalançar o peso da lâmina quanto como uma maça para bater na cabeça dos inimigos. Estas espadas eram igualmente úteis para cortar e para empurrar, o que pode ter contribuído para sua popularidade. Elas podiam penetrar a maioria das armaduras e serem manejadas de forma extremamente rápida. Espadas de Ponta Dupla, também conhecidas na Escócia como ‘claymores’ eram espadas volumosas, de até 1,80m de comprimento. O enorme peso da lâmina tornava-as úteis para furar a armadura de metal e sua ponta era usada para penetrar a malha de ferro (WILSON, 1851, p. 683-684). Eram usadas nas constantes guerras entre clãs e lutas por fronteiras com os Ingleses de 1500 a 1650 e ainda em uso até a Rebelião de 1745, a força de impacto das claymores podia quebrar ossos e causar hemorragia interna em um inimigo. O comprimento da arma permitia que todas as armas inimigas, exceto os machados de guerra de longo alcance e armas de vara, fossem mantidas à distância. Março 2009 - N° 12

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U rdimento O machado tem sua origem como uma ferramenta usada tradicionalmente para cortar madeira, para caçar e preparar comida (MACKENZIE, 1927, p. 134). Os Vikings usavam machados de mão com proteções que eram usados para romper a malha de ferro e a armadura (CHARTRAND et al, 2008, p. 135). As principais ações de combate eram as de cortar e partir, mas a concussão também podia ser infligida ao inimigo se o golpe não pretendia ser mortal. Os machados podiam ser de lamina simples ou dupla de forma que os ataques podiam ser feitos tanto com movimentos para frente quanto para trás. Soldados conhecidos como ‘huscardos’ (CHARTRAND et al, 2008, p. 130-135) usavam a armadura e machados e pensava-se ser este uma resposta ao crescente usa da malha de ferro como proteção. Os machados também foram desenvolvidos como armas de arremesso; versões mais leves foram desenvolvidas pelos Francos e ficaram conhecidas como ‘Francisca’. Estes machados de arremesso eram usados para atingir inimigos à distância (HALSALL, 2003, p. 165). Maças, martelos e manguais, armas cegas, pesadas bolas ou formas hexagonais com pontas eram lançadas com a impulsão de couro ou correntes, eram as armas preferidas dos padres guerreiros ou monges, já que essas eram consideradas uma forma mais civilizadas de matar pessoas, sem causar sangramento externo.

Espadas do Período da Renascença (Séculos XIV – XVI) Espadas de cortar e empurrar são “caracterizadas por uma empunhadura curva ou combinada. A espada de cortar e empurrar era usada por criados e civis contra uma série de oponentes com e sem armadura” (CLEMENTS, 2009, p. 1). Elas eram usadas com o escudo para criar um sistema de ataque e defesa efetiva. A espada flamberge é caracterizada por uma lâmina ondulada e flamejante que criava uma vibração vibrante e efetiva quando a lâmina do oponente passava ao longo de seu comprimento. O targe era uma pequena proteção de Madeira com uma capa de couro e borda de metal, geralmente coberto com cravos ou pontas de metal. Diferentemente dos escudos, os targes eram colocados no braço, da mesma forma das proteções típicas. Usado em conjunto com a espada, seu uso declinou no Século 17 (MICHAEL e EMBLETON, 1983, p. 31).

O Período Elizabetano (1485-1603) O florete emergiu como uma arma da moda durante o período Elisabetano, mais comumente usado como arma única ou em combinação com o punhal. O termo florete geralmente refere-se a uma espada de lâmina fina Combate cênico e estética da violência no treinamento... Kerrie Sinclair

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U rdimento usada para duelar. Sendo a arma preferida dos civis, ele era ideal para “golpes de ponta […] que costumava apunhalar e furar, sem cortar e partir em dois. O formato das laminas do florete variavam entre espessos e triangulares a estreitos e hexagonais” (CLEMENTS, 2009, p. 6). “Espadas pequenas” foram desenvolvidas e utilizadas no Século 18. A espada pequena representou o ápice das espadas civis por serem muito menores e mais leves que o florete e eram usadas principalmente pelos homens civis para defesa própria e para duelar. Elas são um cabo de metal com ponta bem afiada, sendo sua lâmina muito mais espessa junto ao cabo (CLEMENTS, 2009, p. 7). As lâminas raramente eram afiadas e eram usadas para furar, mesmo assim era uma arma muito efetiva, apesar de ser usada mais freqüentemente como um acessório. Escudos são “pequenos e ágeis protetores de mão” (CLEMENTS, 2009, p.7) feitos de madeira ou metal que eram segurados com a mão e usados para “bater, desviar ou socar em golpes e empurrões” (CLEMENTS, 2009, p. 7).

Armas e formas de luta asiática clássicas e antigas Na Ásia, técnicas de combate cênico eram uma característica comum tanto no teatro Kabuki Japonês (LEITER, 1969) e Chinês (Ópera de Beijing e Pequim). Aos artistas da Ópera de Beijing e Pequim eram exigidos que executassem um extensivo treinamento acrobático (YANG, 1984, p. 230) e no estilo de arte marcial (CHANG, 1974, p. 183) de forma a executar as seqüências de movimento exigidas. As técnicas de combate cênico no cinema asiático parecem ter evoluído diretamente dos métodos de arte marcial asiáticos, os quais foram adaptados para o palco e para a tela. As armas asiáticas geralmente caem em uma de quatro categorias; armas de impacto, com lâmina, flexível e de projéteis, apesar de alguns professores identificarem-nas como duras e macias, e longas e curtas. Armas baseadas em correntes e cordas são consideradas armas macias devido à sua natureza flexível e as espadas são consideradas ‘duras’ devido a comparativamente natureza inflexível da lâmina de metal. Tanto o staff, incluindo um longo cabo de Madeira quanto a lança (Qiang), consistindo de um longo cabo de madeira ou bambu com uma ponta de bronze ou aço são consideradas armas longas. A lança foi originada de uma ferramenta de caça pré-histórica e popularizou-se como arma durante a Dinastia Shang (Século 17 a.C – Século 11 a.C) onde uma cabeça de metal afilada era adicionada à vara de bambu, rabos de cavalo foram adicionados mais tarde tanto para distrair o inimigo como para evitar que o sangue escorresse pelo cabo da arma (YANG, 1999, p. 22). Março 2009 - N° 12

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U rdimento Existem dois tipos de espadas largas que se originaram na tradição chinesa. Primeiramente a espada de lâmina simples (sabre) o qual é conhecido por dao (COWPER, 2008, p. 136). Armas que possuem lâminas e são usadas para fatiar, cortar, arrebentar e picar são consideradas como sendo dao. Elas podem ser curtas, quando então a lâmina é presa a um cabo, ou longas, quando a lâmina é presa a uma vara longa. Depois da Dinastia Zhou Ocidental (Século 11 a.C - 771 a.C), a popularidade da jian (espada de duas lâminas) aumentou. Tipos específicos da jian são conhecidos como ‘espadas retas’, e são amplamente consideradas mais difíceis de serem dominadas que as dao (espadas largas), mas são mais leves para serem brandidas em combate. Porém, durante o final da Dinastia Qin (221 a.C – 206 a.C), a importância da cavalaria aumentou dramaticamente e a jian, que era usada principalmente para apunhalar, tornou-se inadequada’ (BEALE, 2009, p. 1). Durante aquele tempo, as dao longas, que possuíam uma lâmina de um lado só presa a uma vara longa, popularizaram-se e a dao curta tornou-se popular na cavalaria. É amplamente acreditado que as espadas retas e curtas foram importadas da China e da Coréia para o Japão já que elas foram as mais antigas armas encontradas em locais históricos. Por volta de 700 d.C., os ferreiros de espadas japoneses forjaram suas primeiras espadas. Existia uma grande demanda para espadas uma vez que as constantes disputas de terra e poder eram empreendidas pelos líderes e seus soldados. (SATO e EARLE, 1983, p. 28-42). As primeiras espadas longas no Japão eram “espadas retas” de uma empunhadura. Estas espadas possuíam uma lamina dupla e eram usadas para empurrar e partir em dois. À medida que as espadas desenvolveram-se, houve uma mudança de espadas retas para curvas, já que os guerreiros achavam que as espadas curvas podiam ser manejadas mais rápida e eficazmente em um ângulo de corte horizontal, diagonal ou vertical. Estas espadas eram extremamente longas, de até 1,2m, e eram geralmente usadas por soldados a cavalo para abater oponentes que estavam ou a pé ou a cavalo. Durante a Idade Média os senhores da Guerra contrataram soldados profissionais chamados de samurai. Às pessoas comuns não era permitido, frequentemente, possuir armas e assim, estas recorreram ao uso de ferramentas de suas fazendas como armas quando em situações de combate. (PEREZ, 1998, p.39). Foi esta tradição que originou os ninjas (assassinos) os quais tinham suas próprias armas secretas. As armas tradicionais do Japão incluem o arco, a lança, a estrela ninja, e várias outras (DEAL, 2007, p. 166). Kenjutsu é o termo usado para a arte das espadas no Japão (TANAKA, 2003, p. 30), e como prática, é baseada na lutas em campo de batalha. A arte abarca a idéia que a espada não Combate cênico e estética da violência no treinamento... Kerrie Sinclair

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U rdimento é simplesmente uma arma, mas parte da cultura dos rituais shamanísticos e da expressão artística (TANAKA, 2003, p. 33). Kendo é um esporte-arte baseado na confecção de espadas e Iaido, a arte de desembainhar a espada e colocá-la de volta na bainha, assim como cortar um oponente com a mesma.

Técnica moderna de combate cênico Explorar as diferenças entre artes marciais, combate cênico e representações medievais pode esclarecer as diferentes abordagens do treinamento de combate. Cada uma destas práticas contém aspectos que podem ser considerados tanto combativos como performativos. Entender as diferenças e semelhanças entre estas práticas é vital para o pretendente a artista de combate cênico, considerando que elas podem aumentar as habilidades e a capacidade geral de um ator-combatente, mas podem também potencialmente prejudicar o praticante no seu aprendizado de cada estilo. Tony Wolf (2009, p. 4), um diretor de lutas profissional, comenta em seu artigo sobre artes marciais e o praticante de combate cênico; ele declara: “novatos e até estudantes intermediários de cada abordagem provavelmente acharão confusas as diferenças técnicas se eles tentarem ‘cruzar o treinamento’ cedo demais”. As práticas de arte marcial, sejam elas no estilo histórico ou moderno, têm a intenção de machucar ou de causar algum dano ao corpo do oponente em uma situação competitiva. Cada uma das técnicas praticadas foca em como é possível controlar o equilíbrio, o peso e a força do corpo de um oponente de forma a torná-lo vulnerável a movimentos que foram criados para imobilizar e machucar, e é uma filosofia amplamente praticada que a arte marcial deve ser abordada com uma atitude séria e com dedicação a um treinamento regular. Isto fornece um forte contraste para as práticas de combate cênico que são abordados de forma similar ao treinamento para desempenho normal. O combate cênico é amplamente ensinado em uma série de cursos curtos, tipo workshops, os quais geralmente duram várias semanas e, independentemente do quão intensivo for este período de treinamento, eles não podem preparar o combatente cênico para uma luta ou treinamento real. Isto se deve ao fato que, apesar das técnicas combativas praticadas possam parecer ser similares em forma aos movimentos da arte marcial, a coreografia do combate cênico exige distância e a direção com a qual as técnicas desempenhadas são alteradas Para concluir, parece que estudantes de artes teatrais podem se beneficiar da troca de conhecimento com os combatentes cênicos, artistas marciais e re-encenadores históricos de forma que sua arte seja informada por várias perspectivas de confronto e combate corporal na arte do teatro. Março 2009 - N° 12

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MITOPOESE, DRAMATURGIA CRIATIVA E O TRABALHO DO ATOR Milton de Andrade1

Resumo

Abstract

Neste artigo, procura-se trazer para o âmbito da pesquisa teatral conceitos próprios da psicologia simbólica com o objetivo de esclarecer o papel das funções mitopoéticas em processos criativos e no trabalho do ator. Abre-se campo para reflexões da importância da abordagem mitopoética e das funções psicológicas envoltas no trabalho teatral e na dramaturgia criativa.

This article aims at bringing concepts from symbolic psychology to the field of theater research in order to explain the role of mythopoetic functions in creative process and in actor’s work. We also reflect on the importance of a mythopoetic approach and on the psychological functions that surround a performance work and a creative dramaturgy.

Palavras-chave: mito, psicologia, teatro, dramaturgia.

Keywords: myth, theater, dramaturgy.

psychology,

Configurar e reconfigurar: eterno prazer do sentido eterno. Carl Gustav Jung A palavra mitopoese, do grego mûthopoiêis, significa literalmente “origem, criação de um mito”. Walter Boechat define a mitopoese como a capacidade espontânea da psique em produzir mitos: “a psique tem a capacidade natural e espontânea de produzir imagens mitológicas, que são imagens arquetípicas, nas mais variadas situações do cotidiano [...] Os arquétipos constituem e são responsáveis pela faculdade mitopoiética da mente humana, a sua faculdade criadora de mitos.” (2008, pp. 13 e 56). Segundo a psicologia junguiana, a mitopoese seria a capacidade da mente de recriar mitologemas em padrões culturalmente compartilhados. Os mitos nos ajudariam a fazer uso estruturado da imaginação e de nossos poderes intuitivos e seriam, também na experiência clínica através do método da amplificação2, um modo libertário de ideação e de criação de linguagem compartilhada, processos esses fundamentais no processo de individuação. Mythologein, mitologizar, Março 2009 - N° 12

Milton de Andrade é docente do Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), formado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), com Mestrado e Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de Bolonha (Itália). 1

Método próprio de Carl Gustav Jung (1875-1961) para a utilização das mitologias como "amplificação" de uma situação existencial na técnica analítica psicoterapêutica. 2

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U rdimento criar e recriar mitos, não seria somente um modo retroativo e “nostálgico” de recuperar memórias coletivas, mas uma ação vitalizadora dos vínculos entre a contemporaneidade da vida psíquica e a tradição cultural. Como forma nãodiscursiva de produção simbólica (CASSIRER, 1985), o mito extrapola os limites do discurso lógico, do pensamento dirigido e adaptativo; é solução e ampliação de sentido para as aporias (caminhos sem saída) do logos e da razão. “Vale a dizer que o discurso, com o auxílio dos mitos, ganha a profundidade dos mistérios.” (BOECHAT, 2008, p. 19). Desde Bronislaw Malinowski (1884-1942), a antropologia do século XX ressaltou a importância dos mitos na organização da vida e na ritualização da experiência. Ritos de passagem, ritos metamórficos, ritos transicionais, mesmo no individualismo das sociedades tecnológicas contemporâneas, dependem da aderência a mitologemas como agentes simbólicos e catalisadores de mudanças socialmente compartilhadas.

3 A tal propósito de apropriação da mitocrítica duraniana, vide o projeto de pesquisa "Mitologia e identidade artística: uma análise da presença de mitemas heróicos nos discursos de artistas e críticos" sob orientação do Prof. Dr. Antonio Vargas Sant´Anna e desenvolvido no Centro de Artes da UDESC, vide também SANT´ANNA, 2006.

No Brasil, vide, entre outros, o essencial O mito e o herói no moderno teatro brasileiro (1982) de Anatol Rosenfeld (1912-1973). 4

Conforme define Karl Kerenyi: “O mitologema é um material mítico que é continuamente revisitado, remodelado e plasmado, como um rio de imagens sem fim” (1983, p. 15, trad. nossa). A mitologia seria o movimento compositivo deste material (mitologema), sendo assim constituída uma unidade incindível entre tal movimento de linguagem e o material primário criativo, do mesmo modo como ocorre, por exemplo, entre a linguagem musical e seu material (o mundo sonoro). Segundo a mitocrítica de Gilbert Duran, o mitologema seria uma espécie de esqueleto da obra mitológica e o mitema a menor unidade de sentido que compõe o mito.3 Para Jung, os mitologemas são núcleos constitutivos de todo mito, “constituem expressões imagéticas dos arquétipos, que são, em si mesmos, incognoscíveis” (BOECHAT, 2008, p. 57). Representam símbolos essenciais do processo de individuação ou do desenvolvimento da personalidade. São expressões que nascem quando a função transcendente da psique gera, como solução criativa, um tertio non datur (terceiro não determinável) a partir de uma tensão de opostos irreconciliáveis. São núcleos dinâmicos essenciais que se repetem, circulam, se deslocam de mito a mito, e permitem a constante revitalização e recriação elipsóide de conteúdos simbólicos. Qualquer estudioso de dramaturgia não teria dificuldade em verificar tais processos de revisitação de conteúdos mitológicos presentes, de forma implícita ou explícita, nas mais diversas matrizes literárias e não literárias na história do teatro4. Mythologein, no campo das artes cênicas, é ação fundamental tanto nos processos subjetivos e metamórficos da arte do ator, como na arte da composição dramatúrgica e na vitalização da recepção teatral, entendida Mitopoese, dramaturgia criativa e o trabalho do ator. Milton de Andrade

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U rdimento como ato de compartilhamento, coletivização e questionamento de símbolos e valores humanos. O tecido dos mitos é o mesmo tecido dos sonhos e das fantasias (BOECHAT, 2008); é também o mesmo tecido dos “devaneios” poéticos teatrais. E é a associação de imagens míticas com experiências rituais que permite a emergência do mito como linguagem na cultura teatral. De acordo com Gaston Bachelard, os mitos não são fábulas fossilizadas, mas linhas de vida e imagens do devir: “todo mito é um drama humano condensado. E é por essa razão que todo mito pode, tão facilmente, servir de símbolo para uma situação dramática atual” (Bachelard in DIEL, 1991, p. 10), pois fala do destino humano sob seus aspectos essenciais. Conforme nos ressalta o psicólogo francês de origem austríaca Paul Diel, a significação simbólica mítica é de ordem psicológica e prefigura uma “percepção verídica” do conflito intrapsíquico através de uma “observação íntima” capaz de pressentir as motivações que sustentam as ações humanas. Esta observação íntima das motivações, também fundamental no trabalho do ator, é um fenômeno adaptativo elementar, pois o ser humano não pode sobreviver sem esta constante atenção para a intenção subjacente em toda atividade, “seja para controlar suas próprias ações, seja para projetar na psique de outros os conhecimentos assim adquiridos em relação às motivações humanas, com o objetivo de interpretar as intenções de seus semelhantes e assim encontrar um meio de se impor ou se defender. [...] Para orientar-se na vida, o homem deve evoluir em direção à lucidez sobre suas intenções secretas.” (DIEL, 1991, p. 20). Segundo Diel, a análise dos modos de elaboração desta “observação íntima” revela as atitudes do homem em relação à simbolização de suas motivações em termos de sublimação ou recalque: “Toda a simbolização do mito, segundo seu sentido oculto, encerra-se na análise dessa vergonha repressora e no valor da confissão sublimadora [...] O caminho do recalcamento é, de longe, a reação mais frequente nos homens, pois o amor-próprio obriga cada qual a esconder suas verdadeiras motivações, frequentemente inconfessáveis, e a ornar-se de motivações carregadas de uma sublimidade mentirosa.” (DIEL, 1991, pp. 19 e 20). Sendo as motivações falsas por justificativas afetivas e imaginárias, as ações também serão falseadas ou destorcidas por esta lógica cruel da ocultação e da ruptura da integridade das motivações, causa de sofrimento psíquico, que somente pode ser elaborado com a reparação desta interpretação equivocada das motivações. “É desse sofrimento e da necessidade de ultrapassá-lo que falam os mitos.” (DIEL, 19991, p. 21). Os mitos tratam da falta essencial do homem que, devido ao amor-próprio, à “mentira orgulhosa em relação a si mesmo” e à “tendência à falsa justificação”, reprime afetivamente as Março 2009 - N° 12

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U rdimento verdadeiras motivações, fixa as ações deficientes em motivações falseadas, e se depara com a culpabilidade do pressentimento e da previsão obscura de um erro vital. A saída simbólica do mito, em sua significação de ordem psicológica, aponta para uma direção sensata da vida, “é o germe de uma orientação em direção ao sentido da vida” (DIEL, 1991, p. 21). Assim, mitologizar (ato de simbolização mítica e de sublimação ativa) é instaurar no campo de batalha dramática o antídoto contra a angústia culposa gerada pelo tormento da perda de harmonização entre as motivações íntimas e as ações. “Dado que os mitos simbolizam a vida e seu sentido, o tema inesgotável de que tratam os mitos na sua linguagem enigmática são: o desejo e suas transformações energéticas (exaltação ou harmonização).” (DIEL, 1991, p. 31).

5 Van Abélard tot Zoroaster (1994). Para este artigo utilizo a tradução italiana organizada por Silvia Contarini e publicada sob título Miti e personaggi della modernità (1998). 6 Vide também na referida obra, entre outros, Dom Quixote, Dom Juan, Fausto, Hamlet, e a belíssima análise da figura de Turandot como arquétipo feminino misantrópico. 7 Para tal argumento sobre o afluxo literário na obra de Shakespeare, vide o completo BULLOUGH, 1960.

Mesmo sem entrar no detalhamento conceitual de categorias próprias da hermenêutica e da exegese mitológica, vejamos alguns exemplos de como tais funções instauradoras do mito aparecem na cultura teatral e na dramaturgia moderna, trazendo referências apontadas pela excelente obra De Abelardo a Zoroastro de Léon Stapper, Peter Altena e Michel Uyen publicada originalmente em holandês.5 Os autores fazem um apanhado na história cultural e literária, identificando figuras e obras que, mesmo sem terem relações diretas entre si e não pertencerem a um “universo coerente e autônomo como o da antiguidade”, constituem modelos culturais e mitos “depositários das certezas e sobretudo da inquietações do homem moderno” (1998, p. VII, trad. nossa). Nos limitemos, para o propósito deste artigo, somente à análise de uma das “figura teatrais” da dramaturgia ocidental trazidas pelos autores: Macbeth.6 A figura histórica de Macbeth, que reinou na Escócia de 1040 a 1057, é reinventada por William Shakespeare em The Tragedy of Macbeth (1606), seu último drama. A partir de uma série de incursões em obras literárias que vão das Chronicles of England, Scotland and Ireland (1587) de Raphael Holinshed, da Bíblia à Daemonologie (1597) do rei James I7, a fantasia mitopoética de Shakespeare faz da figura histórica do hábil e devoto soberano um indivíduo não confiável e titubeante, à merce das paixões, das predileções sobrenaturais e das ambições alheias, envolto numa atmosfera sinistra repleta de traições, sede de poder, mentiras e violência. O mitologema da competição masculina arquetípica é portado ao extremo sanguinoso. Macbeth é levado a agir mais por elementos externos do que pelas próprias emoções ou certezas interiores, acaba por se tornar uma vítima de paixões inconscientes ou ignoradas e, neste sentido, pode ser comparado a Édipo (STAPPER, 1998). Almas nervosas, infladas pela vaidade, vacilantes, que compensam sua inferioridade pela procura ativa de uma superioridade dominadora, pela ambição por um poder que se transformará na causa de sua derrota interior. Quando mata o Rei Duncan, Macbeth mata o “pai mítico de todos”, o pai de todo homem, e, impulsionado pela ambição da esposa, mulher mítica devoradora, desposa os Mitopoese, dramaturgia criativa e o trabalho do ator. Milton de Andrade

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U rdimento desejos terrestres irrefreáveis impregnados de violência. No mitologema da complementariedade dialética masculino-feminino (nos moldes de Adão e Eva), Macbeth e Lady Macbeth formam o “par fatal”. Apesar de seu sucesso viril no campo de batalha, Macbeth é extremamente frágil e influenciável diante da mulher. É uma marionete em forma de soldado (conforme sugere Eugène Ionesco em sua versão de 1972), age mecanicamente fascinado pelo poder ilimitado. Macbeth morre pelo mesmo mecanismo irrefreável reproduzido pelos seus sucessores homicidas, que anunciam que piores tempos virão; Lady Macbeth enlouquece sucumbida pelo remorso tardio, pela culpabilidade que cela a angústia culposa do erro vital em transformar motivações íntimas em ações despropositais e trágicas. Shakespeare reinventa assim uma cadeia de mitologemas, dando-lhes movimento em forma de um mito sombrio de dialética fatal: a história de Macbeth – que ciclicamente se perpetuará na nossa cultura falocêntrica de combates competitivos e mortíferos entre os homens. Mas para que tal obra prima mantivesse tal valência simbólica no decorrer do tempo, o seu substrato histórico, as referências de fatos de época e a psicologia situacional das tramas da tragédia, que se movem sempre nos limites compreensíveis e assimiláveis da consciência humana, não seriam suficientes. O poeta confere à obra um grau superior pelo seu modo visionário de elaboração de conteúdos simbólicos. A definição de Jung sobre tal modo de elaboração artística é aqui aplicável: “sua essência, estranha, de natureza profunda, parece provir de abismos de uma época arcaica, ou de mundos de sombra e de luz sobre-humanos” (JUNG, 1985, p. 78). A destruição de valores humanos, o choque emotivo e o despertar de pressentimentos inquietantes são ativados, de modo demoníaco e desarmônico, pela angústia do eterno caos, pela “terribilidade” da vivência mítica. Esta rápida análise já nos é suficiente para ressaltar um aspecto essencial na problemática da dramaturgia criativa e do trabalho de “adaptações” de clássicos da mitologia moderna, como Macbeth: a historicidade e a atualização da fábula mítica e passional podem não bastar; ou melhor, podem simplesmente reduzir uma vivência visionária numa experiência representacional, numa série de figurações, num quebra-cabeças em que faltam peças importantes, num tour de passe-passe, num mero substitutivo (sintoma), perdendo-se o caráter original, intuitivo, transpessoal e mobilizador, o pleroma, da psicologia profunda e transcendente da obra. Ressalta-se, assim, a importância de o dramaturgo, o dramaturgista ou o ator-criador se apoderarem de figuras mitológicas no sentido de recriarem expressões visionárias, frutos de uma “observação íntima”, de uma exploração intuitiva e de uma apreensão simbólica e atual da obra: “Para compreender seu sentido, é preciso permitir que ela nos modele, do mesmo modo que modelou o poeta. Compreenderemos então qual foi a vivência originária deste último. Ele Março 2009 - N° 12

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U rdimento tocou as regiões profundas da alma, salutares e libertadoras, onde o indivíduo não se segregou ainda na solidão da consciência, seguindo um caminho falso e doloroso.” (JUNG, 1985, p. 93). Todo mito, para que seja atualizado (presentificado), exige um grau de in-corporação da história e de “fisicalização” da narrativa. Material original de 1962, publicado em italiano por Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli em 2001; e no Brasil pela Perspectiva/SESC, 2007, com tradução de Berenice Raulino. 8

No texto A Possibilidade do Teatro8, Jerzy Grotowski descreve alguns procedimentos adotados pelo Teatro das 13 Filas no trabalho com os arquétipos na dramaturgia criativa e afirma que a tarefa no trabalho sobre um texto concreto é: destilar do texto dramático ou plasmar sobre a sua base o arquétipo, isto é, o símbolo, o mito, o motivo, a imagem radicada na tradição [...]. O arquétipo – como definido acima – é uma forma simbólica de conhecimento do homem sobre si mesmo, ou – se alguém preferir – de ignorância. Revelar por parte da encenação o arquétipo, a sua substância real, a sua essência, nos aproxima de fato do efeito que Broniewski caracterizou como “penetrar a fundo com a voz e com o corpo no conteúdo do destino humano”. (2007, pp. 50 e 51). Tomando o cuidado em anunciar o seu precário background filosófico junguiano, o diretor polonês pontua uma série de figuras da mitologia antiga e moderna: Prometeu, arquétipo do homem-xamã que se entrega às potências demoníacas e graças a elas obtém o poder sobre a matéria; Winkelried, arquétipo do auto-sacrifício de sangue, herói suíço que deixou-se passar pelas lanças dos inimigos e com seu sacrifício abriu a estrada da vitória para seus companheiros; Twardowski, lendário bruxo e mago polonês do século XVI, o equivalente polonês de Fausto; Caim, arquétipo do mito bíblico, sobre o qual Grotowski trabalhou em sua “releitura” do texto romântico de Lord Byron. Tais apropriações da mitologia na dramaturgia criativa eram conduzidas através de um procedimento típico que passou a ser conhecido, após a análise de T. Kudliński sobre a montagem de Caim, como “dialética da derrisão (sarcasmo) e da apoteose (divinização)”: “a dialética da derrisão e da apoteose consistia em criar um contraponto ao arquétipo poético por meio daquilo que é o seu substrato fisiológico, por meio do erotismo da esfera biológica, assimilando os atos de amor dos seres humanos ao espasmo dos pássaros ou dos insetos, através do movimento que pela associação inconsciente revela as suas fontes fisiológicas”. (GROTOWSKI, 2007, p. 57). Grotowski propunha a laicização e a “re-sacralização” do mito através do ataque ao “inconsciente coletivo” e da corporificação fisiológica do arquétipo, entendido como modelo-metáfora da condição humana, o objeto do mistério, Mitopoese, dramaturgia criativa e o trabalho do ator. Milton de Andrade

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U rdimento assim como na pré-história do teatro, o ponto mágico de convergência coletiva do jogo e da cerimônia: “O arquétipo será revelado, compreendido na sua essência, se o atacamos, o colocamos em movimento, o fazemos vibrar, se o profanamos desnudando-o nos aspectos contraditórios, através de associações contrastantes e do choque de convenções.” (2007, p. 52). O pathos corporal, o choque dos opostos e das contradições, “a luta do indivíduo contra Deus”, conduz a rebelião metafísica que demonstra a ingenuidade, a tragicidade e a redenção humanas, penetra “a fundo com a voz e com o corpo no conteúdo do destino humano” (Broniewski apud GROTOWSKI, 2007, p. 53); faz vibrar a cadeia de tabus, de convenções, as coisas sacras e o cortejo incessante de valores humanos, o rito, o cerimonial. Como nos lembra Kerenyi, citado no início deste artigo, a mitologia é o movimento manifesto dado aos arquétipos (imagens primordiais) expressos em núcleos de significação estruturais: os mitologemas (palavra/ conceito que o mestre polonês não utiliza, mas que se aplica perfeitamente ao procedimento adotado). E, no que toca a mitologização teatral, será o rito da metamorfose corporal que dará o substrato e a fonte fisiológica para tal manifestação convergente. Assim as funções simbólicas do corpo e do movimento, como formas primárias de organização da memória cultural, estão na base da recriação de um mito e de sua elaboração expressiva na arte da dramaturgia e no trabalho do ator: movimento intrapsíquico de transformação energética dos desejos e das motivações humanas em ações conflituais compartilhadas pelo rito teatral. Do mesmo modo que no mitologizar dos antigos ou no “cálculo psicológico” das terapias modernas, a função diretiva de espiritualizaçãosublimação teatral encontra, por uma via esclarecida e objetivada, e por participation mystique, a re-apresentação dos objetos desejados num percurso de conquista simbólica. Mas tal processo pode não ser “bem sucedido” do ponto de vista sublimatório quando gera distrofias e digressões espirituais, quando tal função diretiva não vem a favor da espiritualização ativa, mas produz um estado de aculturação causado por forças imaginativas autorreferentes e por uma afetividade divagadora narcísica não voltada a uma real expressão e simbolização conectada com motivações pessoais, tradições culturais e crenças compartidas. A positividade do trabalho do ator e da dramaturgia criativa, nesta perspectiva, nasce com a capacidade mitopoética em gerar imagens de significação que exprimam o desejo e o drama humanos como um antídoto contra o vazio do verbo e a solidão da consciência. Março 2009 - N° 12

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U rdimento Referências bibliográficas BOECHAT, Walter. A mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis: Vozes, 2008. BULLOUGH, Geoffrey. Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare. London: Routledge & Kegan Paul, 1960. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1985. DIEL, Paul. O simbolismo na mitologia grega. São Paulo: Attar, 1991. FLASZEN, Ludwik e POLLASTRELLI, Carla (org.). O teatro laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969: textos e materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com um escrito de Eugenio Barba. São Paulo: Perspectiva/SESC, 2007. JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985. _______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. KERENYI, Karl. Prolegomeni allo studio scientifico della mitologia. Torino: Boringhieri, 1983. PATAI, Raphael. O mito e o homem moderno. São Paulo: Cultrix, 1974. SANT'ANNA, Antonio Vargas. Apontamentos para o estudo da identidade artística. Revista Urdimento, UDESC: Florianópolis, v. 7, pp. 75-82, 2006. STAPPER, Léon; ALTENA, Peter; UYEN, Michel. Miti e personaggi della modernità: dizionario di storia, letteratura, musica e cinema. Milano: Bruno Mondandori, 1994.

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U rdimento

O SOLO DE DANÇA NO SÉCULO XX: ENTRE PROPOSTA IDEOLÓGICA E ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA1 Eugenia Casini Ropa2 Tradução de Adriana Aikawa da Silveira Andrade3

Resumo

Abstract

O ensaio propõe uma interpretação poética e ideológica da dança solo, forma coreográfica típica da modernidade, seguindo suas mudanças desde o século XX aos nossos dias e pondo-a em constante relação com as ideias e expectativas da sociedade e da cultura em que nasce.

The essay develops a poetic and ideological interpretation of solo dance, considered as a typically modern choreographic dance form; it illustrates its changes through the Nineteen hundreds to our time, while constantly relating it to the ideas and expectations of the societies and cultures in which it originated.

Palavras-chave: Século XX, solo.

Keywords: century, solo.

história,

dança,

history,

dance,

20th

Nas primeiras décadas do século XX, na Europa assim como nos Estados Unidos, são postas simultaneamente em prática na política, na sociedade, na cultura e na arte estratégias de mudança ou de evolução reformistas ou revolucionárias, com fins materiais e ideais por vezes muito diferentes e até contrastantes entre si, mas todas voltadas a uma renovação da sociedade da época. Desse processo complexo e, às vezes, contraditório de pensamento e de práticas sócio-culturais, frequentemente estimulado ou mesmo distorcido por impulsos utópicos e por uma mitificação ambígua tanto do potencial regenerativo do indivíduo como da força evolutiva da comunidade, participam também as artes e os artistas. Especialmente a dança, com sua revolução radical ético-estética, que ganha corpo nos mesmos anos entre Alemanha e Estados Unidos e que se propõe a abarcar o ser humano em sua totalidade psicofísica, mostra-se completamente envolvida na busca de estratégias de renovação. Por uma vez, Março 2009 - N° 12

Este texto é uma adaptação da apresentação no Congresso "La Danse en solo, une figure singulière de la modernité", organizado pelo Centro Nacional de Dança e pelo Teatro da Cidade de Paris nos dias 29 e 30 de setembro de 2001. 2 Eugenia Casini Ropa é professora de História da Dança na Universidade de Bolonha, Itália, diretora do curso de graduação em Disciplinas do Espetáculo e da Associazione Nazionale Danza Educazione Scuola (DES), que promove a dança em âmbito educativo. Estudiosa de teatro e dança do século XX, entre suas publicações, lembramos especialmente os volumes: La danza e l’agitprop (1988) e Alle origini della danza moderna (1990). 1

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U rdimento 3 Adriana Aikawa da Silveira Andrade é tradutora profissional e Mestre em Estudos da Tradução pela UFSC.

4 Cf., em italiano, CASINI ROPA, 1990 e CARANDINI & VACCARINO, 1997.

põe-se inclusive na vanguarda, oferecendo-se como laboratório experimental de um corpo, um movimento, uma expressão, um modo de ser e comunicar novo para um homem, uma mulher e um mundo que querem se regenerar. E, sobretudo nas primeiras décadas, a nova dança para o novo século é individual e individualista, realização solitária de personalidades singulares e únicas, que escolhem e elaboram novas modalidades expressivas e performáticas e se colocam como modelos exemplares não só no interior da própria disciplina artística, bem como na sociedade em transformação.4 Daquele momento em diante, a dança solo se torna e permanece uma forma característica e constante por todo o século - e ainda o é no início do século XXI – como uma necessidade do artista moderno seja de pesquisa introspectiva como de uma maneira pessoal de refletir o mundo. Todavia, sua contribuição à reflexão e à crítica social assume nuances diversas de acordo com os diferentes contextos históricos. As características ideológicas e inclusive políticas da dança solo revelam-se sob vários aspectos. Às vezes existe, de fato, um valor ideológico totalmente consciente, que a dança se propõe a transmitir tanto através de sua forma quanto de seus conteúdos mais ou menos explícitos; mas há também um valor ideológico implícito, que a dança exprime por si mesma, pelo simples fato de existir assim como é no contexto da própria época, e até independentemente de uma consciência precisa. Proponho-me neste ensaio a discutir rapidamente algumas das implicações ideológicas do solo de dança no século XX, a partir de três breves olhares exemplificativos lançados de pontos de vista diferentes. O primeiro olhar, mais panorâmico, identifica principalmente o fio condutor das suas tensões ideológicas projetuais no que concerne o social e, em particular, o âmbito da questão feminina; o segundo, por sua vez, considera uma influência maior do pensamento social e político em seus modos expressivos e trata da dialética entre indivíduo e comunidade; o terceiro, enfim, é uma rápida olhada às motivações – entre o poético, o ideológico e o funcional – do autor-dançarino contemporâneo.

Solo/mulher As criações das iniciadoras da história moderna da dança são solos por necessidade histórica e poética. Nascem de personalidades únicas de talento especial e criatividade quase profética – verdadeiros “sinais” estéticosociológicos de mudança – decididas a encarnar sua visão pessoal de mundo numa qualidade nova de seu corpo em movimento. Que essas iniciadoras sejam mulheres e, além disso, inicialmente americanas, não é nada casual e dá um significado ideológico especial ao seu trabalho. O solo de dança no século XX... Eugenia Casini Ropa

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U rdimento As primeiras manifestações da nova dança, aquela que rompe com as regras tradicionais do balé acadêmico, proclamando a estética da “natureza” contra a do “artifício” e que apresenta a dançarina sozinha com seu corpo e suas emoções reveladas na cena, são uma provocação viva não somente à instituição coral, uniformizada e tecnicista do balé, mas à completa concepção da mulher e de seu papel na sociedade. Fruto de imaginações criadoras isoladas, resumem em si e repropõem com eficácia todas as aspirações do despertar feminino da América e da Europa na aurora do novo século. Nos solos de Isadora Duncan (mas também nos de Ruth St. Denis e de Loïe Fuller)5 se manifesta, de fato, uma concentração das aspirações e reivindicações da mulher da época, que está se emancipando e se prepara para assumir um papel propositivo na sociedade. É verdade que nos teatros americanos ou europeus de vaudeville, as bailarinas já se exibiam sozinhas em seus repertórios de skirt dance6, mas tinham pouca reputação tanto artística quanto social e dependiam unicamente do humor dos empresários e do público, por serem atrações eróticas de série, semelhantes no aspecto e facilmente substituíveis. Embora buscassem uma emancipação no trabalho e no sucesso, e algumas delas possuíssem habilidades notáveis como dançarinas, não faziam mais do que reafirmar o sistema discriminatório ao qual pertenciam. Exibiam uma máscara do próprio corpo e representavam um status feminino e artístico subalterno com relação à classe e cultura, ligado a um gosto masculino retrógrado e sensual do espetáculo de dança, apreciado como puro entretenimento digestivo.7 As novas solistas destroem e viram essa visão do avesso: transformam a representação de um papel em expressão de uma pessoa; seus corpos não são uma máscara, pelo contrário, como se dirá na Alemanha, vestem a alma como uma luva. Uma completamente diferente da outra fisicamente e nas escolhas estéticas, apresentam-se como individualidades descômodas e inconformadas, não assimiláveis à rotina existente, à qual, de fato, se opõem. Filhas da americanização do pensamento delsartiano8, abraçam a crença na unidade indissolúvel entre corpo e espírito no ser humano e em sua expressão; apresentam-se como paladinas de um corpo feminino liberado pela reforma das roupas e pelas conquistas no âmbito da saúde; exaltam as peculiaridades expressivas e culturalmente maiêuticas da mulher; tornam-se criadoras de suas performances em primeira pessoa e empresárias de si mesmas; e, sobretudo, lutam para dar à sua dança o estatuto de Arte e de Cultura. Suas estratégias culturais e artísticas, que se traduzem em poéticas pessoais e em solos, são diferentes, mas alcançam com perspicácia elementos bem presentes no clima cultural do momento. Duncan escolhe a Grécia e a Natureza, modelos éticoestéticos então dominantes no pensamento evolucionista e nacionalista da classe culta ocidental, para suas danças "pagãs" e vitalísticas, que ostentam um corpo liberado; St. Denis inspira-se no Oriente e em seus mitos, que também Março 2009 - N° 12

As três dançarinas americanas, que tiveram uma enorme influência na Europa, são consideradas as "mães inspiradoras" da dança moderna. Da ampla, mas quase sempre celebrativa bibliografia específica, limito-me a citar os estudos que se enquadram melhor ao tema aqui tratado: DALY, 1995; KENDALL, 1979; LISTA, 1994. 5

A skirt dance (dança da saia) era a forma de dança em voga nos espetáculos de variedades ingleses e americanos de final dos Oitocentos. Alegre e saltitante, unia passos da dança popular com movimentos do balé e temperava tudo mostrando pernas torneadas e ágeis, com um grande abano das saias amplas, sabiamente manejadas. Para redescobrir a skirt dance, vide SPERLING, 2000, p. 53-56.

6

Cf., sobre a condição da bailarina de vaudeville, os primeiros capítulos em CHALFA RUYTER, 1979.

7

A vasta difusão americana da teoria da expressão de François Delsarte, revista sob a 8

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U rdimento (cont.) forma de "ginástica harmônica" e de normas gerais de comportamento, caracterizou a educação feminina que se estende às últimas décadas dos Oitocentos, dando origem inclusive a um amplo número de publicações. 9 Sobre os valores sociais do corpo cênico da dançarina dos Oitocentos até hoje, vide: BANES, 1998. 10 É de se notar como essas primeiras dançarinas ressaltam, inclusive com atributos privados de vida e comportamentos sociais anticonformistas (é o caso de Duncan e Fuller), ou seja, que se ostentam como exemplos (como acontece com St. Denis), a vontade de sair dos esquemas: atitudes pessoais que ressoam nas exibições públicas de seus solos, aumentando seu valor de proposta subversiva. 11 Após a Primeira Guerra Mundial, a mulher consegue maior liberdade e reconhecimento social, mas a definição de seu papel, ainda incerto, se lança na conquista de espaços e prerrogativas ainda masculinas. Sobre a "masculinização" estratégica do pensamento

exerciam naquele tempo um fascínio potente e misterioso na cultura ocidental, para compor suas danças exóticas, que subliman o erotismo da fêmea em cena na espiritualidade do rito; Fuller reelabora e amplia a popular skirt dance, usando tecnologias de iluminação sofisticadas inventadas por ela mesma, criando fantasmagóricas “serpentinas” que influenciam o simbolismo, o art nouveau, o futurismo e moldam a técnica, território masculino, à fantasia feminina. Todas, porém, ao traduzir motivações e influências profundas e pessoais em uma concepção e um uso novo do corpo, do movimento e da energia, acabam por revelar necessidades latentes ou evidentes da sociedade em que vivem9. Suas exibições solo exaltam e impõem à atenção um novo modelo de mulher que não é de série, mas uma mulher-pessoa, uma individualidade livre no corpo e na mente, criadora da própria arte e profissional competente, que influencia a construção global de uma nova cultura.10 Uma observação à parte, mas não indiferente, é interessante: nesse processo individual de afirmação de uma arte e de uma imagem feminina culturalmente enobrecidas e projetadas para o futuro, a feminilidade é exaltada em seus dotes peculiares e "naturais" de sensibilidade e harmonia psicofísica recuperados, enquanto é atenuada e mitigada a sexualidade. Nos solos das primeiras artistas da nova dança o apelo sexual é conscientemente atenuado, mascarado por um uso diverso da energia, velado por uma pátina de distanciamento ético e esvaziado de sua carga erótica. Para afirmar a cultura nascente da “Nova Mulher” emancipada e da arte da dança que a representa, é preciso cortar os pontos em comum com a imagem sensual da mulher-bailarina, e a nova dançarina, embora encerre em si a essência de seu “gênero” renovado, perde parte de sua conotação sexual, em favor de uma conotação mais espiritual. Esse fenômeno será ainda mais evidente, em seguida, nas grandes intérpretes dos anos vinte e trinta, como Mary Wigman ou Martha Graham e, de modo geral, em muitos solos femininos de dança do século XX, nos quais haverá um uso cada vez mais intenso da energia e, por vezes, com uma qualidade realmente andrógina da pessoa e do movimento. Durante o século, os modelos femininos da sociedade que os solos das dançarinas criticam modificam-se notavelmente. Da proposta tardo-romântica, viva e utópica de Duncan, de uma mulher vista como símbolo de beleza corpórea e espiritual e única salvação do mundo contra a lógica masculina da tecnologia e da luta pelo poder, se passa logo aos solos mais inquietantes e problemáticos de Wigman e Graham. Em pleno modernismo, não mais presas aos mitos de originalidade natural ou de retorno ao passado, essas artistas frequentemente buscam nas elaborações e nos arquétipos do inconsciente contemporâneo uma O solo de dança no século XX... Eugenia Casini Ropa

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U rdimento identidade feminina adequada aos próprios tempos (além de profissionalmente e socialmente concorrente ao outro sexo). E para afirmá-la, lutam, incorporando energias masculinas e, às vezes e em parte, dessexualizando-se11. Seu modelo de mulher, exposto nas criações individuais dos anos vinte e trinta, supera o conceito universalista anterior de harmonia, graça e beleza, para adotar um corpo “generativo” mais tenso e atormentado (que pode chegar ao grotesco12) e que privilegia, através de manifestações simbólicas, a revelação da psique e das modernas problemáticas existenciais.13 Dos anos sessenta em diante, a pesquisa pós-moderna impõe um corpo (e uma qualidade de movimento) não mais idealizado, exemplar e simbólico, mas histórico, democrático e quotidiano, e nega o viés psicologista anterior14. A adoção de gestos e vestes quotidianos e casuais implica evidentemente na aceitação da realidade historicamente contingente do sujeito. A dança, todavia, normalmente desestruturada pela cisão, pelo acúmulo e pela repetição, manifesta uma ânsia de análise metalinguística que demonstra uma urgência análoga de desconstrução e atribuição de sentido à qualidade do próprio existir como indivíduos no presente. Por vezes, a crítica à condição da mulher se torna mais direta e explícita nos solos femininos. Com o florescer do feminismo contemporâneo, muitas dançarinas descobrem e revelam com lúcida ironia a alienação e as neuroses da mulher na sociedade de consumo. Lucinda Childs, Susanne Linke, Reinhild Hoffmann, por exemplo, lutam em cena contra objetosfetiche que as prendem ao papel de donas-de-casa e consumidoras e parecem inibir nelas qualquer uso não neurotizado do próprio corpo15. A este modelo de feminilidade atormentada parece contrapor-se a proposta de um corpo/mente cada vez mais envolvido com a própria sexualidade, funcional e curioso em relação às próprias possibilidades dinâmicas, que são experimentadas quase cientificamente, sem inibições e sem utopias, lucidamente e sem se deixar levar pela emotividade nem pela busca de significados ulteriores16. Em seguida, a difusão da autoconsciência de matriz feminista e a diminuição geral das tensões ideológicas contribuem, depois da despersonalização pós-moderna e da indiferença à expressividade emocional, para que os solos se tornem normalmente mais introvertidos e se refugiem no intimismo e no autobiografismo, frequentemente explorados pelo instrumento da improvisação dinâmica. É uma proposta à mulher para que ela redescubra sua história individual num reencontro com a pessoa entendida holisticamente, consciente de um corpo e uma mente interativos e confiante de produzir autonomamente uma “dramaturgia” do movimento falante e pessoal. Às vezes, aparece à espreita, por trás da autossuficiência e na solidão criativa, o abandono complacente de uma renúncia solipsística, de uma introversão afásica, que inibe a comunicação e recusa a intervenção crítica direta, sinal da vontade de fugir de uma realidade cada vez mais privada de valores propositivos. Março 2009 - N° 12

(cont.) coreográfico no início da carreira de Graham, vide FRANKO, 1995, p. 38-74. O grotesco é especialmente característico das criações alemãs. Pense na dança da bruxa (Hexentanz) ou nas outras figuras dramáticas de Wigman ou nas deformações satíricas de Valeska Gert. Cf. BURT, 1998; PETER, 1987. 12

13 É a afirmação "expressionista" das protagonistas da dança moderna: se Wigman dá corpo aos estados da alma, Graham madura encarna os arquétipos clássicos da psique feminina propostos pela psicanálise.

Sobre as tendências pós-modernas da dança vide especialmente: BANES, 1983 e 1987.

14

Em Carnation (1964) Childs manipula obsessivamente bobes, esponjas e escorredor de macarrão, terminando com um desabafo contra a sacola de compras; em Im Bade Wannen (1980) Linke limpa de modo maníaco uma banheira reluzente; em Solo mit Sofa (1980) Hoffman luta com uma roupa-capa que a une indissoluvelmente ao sofá de casa. 15

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U rdimento 16 A própria Childs, em seu período "analítico", ou Trisha Brown, com suas composições matemáticas, são exemplos gritantes. (Cf. BANES, 1987, nos capítulos dedicados a elas).

As vicissitudes ideológicas e políticas da Alemanha entre República de Weimar e III Reich são emblemáticas nesse sentido (mas a questão urge igualmente, mesmo se em termos politicamente diferentes, na Rússia da nova era soviética e nos Estados Unidos dos anos trinta). Sobre a dialética singular entre indivíduo e comunidade no pensamento, na arte e na cultura do corpo da Alemanha das primeiras quatro décadas do século, vide, em especial, o estudo fundamental de BAXMANN, 2000. Para uma leitura da relação dança/ pensamento político nos Estados Unidos do século XX, é iluminador o já citado FRANKO, 1995. 17

Em italiano, vide JAQUES-DALCROZE, 1986. 18

Solo/coro Ao longo dos primeiros quarenta anos do século XX, portanto, o solo se torna uma constante nas criações de dança. Aliás, são os próprios pressupostos teórico-filosóficos da dança moderna que impõem logicamente esse modelo. Se a nova dança funda-se no princípio de que qualquer homem ou mulher é potencialmente dançarino(a), e que cada dançarino(a) pode dar forma simbólica e/ou mimética à expressão completa de si pelo movimento e ritmo, segundo normas derivadas de princípios naturais, então é totalmente lógico – e necessário – que cada artista identifique e elabore suas próprias formas pessoais. Essa visão profundamente individualista da dança e da arte em geral reflete um modelo de pensamento burguês tardo-romântico, já bem radicado na cultura de início de século e claramente alimentado pela evolução dos estudos sobre o psiquismo individual e a personalidade, pelas novas idéias científicas relativistas e por filosofias como a nietzschiana. Ele convive, porém, e entra em conflito ou em dialética ativa, com outras linhas ou variantes do pensamento cada vez mais difundidas, promovidas com semelhanças ambíguas, tanto à direita como à esquerda, pelos nacionalismos crescentes e totalitarismos nascentes, que tendem a privilegiar e propor modelos coletivos de sociedade e de cultura, nos quais os indivíduos e suas ideias fundam-se, “espontaneamente” uniformizadas, numa comunidade de intenções e ações. Nasce assim, no dizer e no fazer político e pedagógico, no social bem como na arte, uma dicotomia ideológica entre a exaltação do individualismo, como modelo de plena realização pessoal do homem e do artista, e a tensão, normalmente com uma força utópica imponente e impulsora, voltada para uma sociedade e um pensamento comunitários e unânimes17. Como conciliar estas duas visões contrastantes e harmonizar os indivíduos em um todo, sem perder a identidade e a riqueza propositiva dos sujeitos nem a coesão e a força da coletividade? Este conflito se reflete amplamente na dança, transformando-se frequentemente em uma dialética complexa entre individualidade e coralidade. Alguns mestres muito importantes - e nesse caso são inicialmente do sexo masculino – buscam, mais tradicionalmente, métodos comuns a incorporar ou, de modo mais inovador, motivações compartilhadas a serem externalizadas, para homogeneizar "coros dançantes" com bases novas. Émile Jaques-Dalcroze, por exemplo, através de seu método pedagógico de sensibilização ao ritmo musical, harmoniza os grupos, formando os indivíduos numa “euritmia” que olha nostálgica para o mito da Grécia clássica, mas que em suas formas conhecidas consegue fluir facilmente numa bem estruturada ginástica ritmada.18 Rudolf von Laban, por sua vez, cria coros de movimento dinamicamente coesos a partir da base “eucinética” da gestualidade do trabalho comum ou da expressão comum de O solo de dança no século XX... Eugenia Casini Ropa

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U rdimento estados interiores19. Sonha – conforme os mitos comunitários do momento – com um “templo dançante”, em que os movimentos expressivos e peculiares de cada um se reúnem numa base antropológica formada pela comunhão profunda de crenças, necessidades e modos de vida. Uma perspectiva artisticamente estimulante, mas politicamente ambígua e perigosa: o poder nazista logo perceberá sua incongruência em relação à própria estratégia massificante e a exilará junto com a “degenerada”, e expressiva demais, nova dança, voltandose decididamente às poderosas liturgias ginásticas e marciais. A vontade de encontrar modos adequados ao novo controle espaçotemporal do corpo na era da mecanização leva a visões geométricas, matemáticas e arquitetônicas das formas corpóreas intrinsecamente despersonalizantes, funcionais e eficazes para os grandes números. Reavalia-se na arte o conceito grego de technè, que submete à técnica os materiais de criação. Estuda-se a marionete para roubar os automatismos de seu funcionamento; considera-se o organismo humano semelhante a uma máquina biológica a ser aperfeiçoada20. A organicidade pulsante de corpo e alma, conquistada por outros a muito custo, torna-se um perigo ou um obstáculo por suas respostas muito sujeitas à imprevisibilidade dos estados emocionais e dos impulsos expressivos individuais; melhor seria a eficiência programável de respostas gínico-musculares automatizadas. Nesta perspectiva, que valor assume, de um ponto de vista ideológico, o solo de dança? De um lado continua a ser o lugar artístico da manifestação orgulhosa e irrenunciável da pessoa e da personalidade, em sua singularidade e variabilidade; o lugar solitário, mas autossuficiente da revelação do imaginário e do patrimônio de memórias e sentimentos individuais; o lugar do abandono e da gestão livre do corpo e do movimento. Como tal, parece definitivamente resistir e constituir uma crítica viva a uma ideologia social e política da coralidade induzida e da uniformização eficiente, que conduz inevitavelmente ao controle projetual do corpo e limita as escolhas tanto nas formas quanto nos significados. Porém, o corpo do indivíduo que dança, ao cumprir uma função não somente centrífuga mas também centrípeta em relação ao social, pode se tornar inclusive o lugar da síntese expressiva e comunicativa de pensamentos, sentimentos e características coletivas. Neste sentido, é interessante reler as perguntas retóricas, falsamente ingênuas, que Béla Balász, grande teórico do cinema das origens e militante do teatro revolucionário operário alemão, se fazia justamente em 1929 sobre a arte coletiva impulsionada pelo socialismo: o que é arte coletiva? Uma massa uniformizada que age como um só corpo ou um indivíduo sozinho que com criatividade revela no próprio corpo o espírito de uma massa com a qual se identifica? Faz-se desaparecer o homem no coro ou se faz aparecer o coro no homem?21 Março 2009 - N° 12

Em italiano, LABAN, 1999; ed. orig. LABAN, 1950.

19

Os elementos de discussão e experimentação introduzidos pelo modernismo começam a ser adotados também no âmbito das artes do movimento: lembremos as tentativas futuristas ou as de Schlemmer na Bauhaus, bem como a experiência biomecânica de Meyerhold ou a construtivista de Foregger, na Rússia. Se a pesquisa destes artistas é poeticamente motivada, os sistemas de poder usam alguns de seus princípios em direção massificante. 20

Cf. CASINI ROPA, 1980, pp. 105-106.

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Cf. DUNCAN, 1980.

22

Cf. WIGMAN, 1963.

23

24 Cf. Giannina Censi. Danzare il futurismo, organizado por VACARINO, 1998. Contém também manifesto La danza futurista (1917), de F.T. Marinetti, p. 98-99.

Já Duncan, mergulhada em sua mitologia pessoal, afirmava resumir em si o espírito do coro grego. Sentia-se intérprete de princípios, aspirações e sentimentos universais, filtrados pela sensibilidade e pelos meios pessoais. Experimentou inclusive as dificuldades da criação de um verdadeiro coro de individualidades dançantes através de suas escolas. Para criar uma verdadeira comunidade dançante, convenceu-se, com o tempo, de que não bastavam os exemplos a imitar ou as regras a seguir, era preciso fazê-la crescer unida no desejo de beleza e no direito à auto-expressão sobre bases sociais igualitárias. E lhe pareceu, por um instante, ter encontrado o contexto ideal na Rússia de Lênin22. Também Graham e Wigman, assim como outras dançarinas de sua época, embora personalidades fora do comum, têm o forte sentimento de pertencimento a uma comunidade social e cultural, além do de classe: a própria geração e/ou nação. Captam seus temas e sentimentos e os levam a extremo nos solos, ainda que por meio de particularidades e do estilo do próprio corpo e da própria estética: compartilham motivos gerais e os destilam em essência universal ou de época. A dor de Lamentation (1930), incorporado no longo tronco móvel de Graham, não é a dor de Martha, mas a de todos, e em Frontier (1935) é a solidão e a esperança indomada de gerações de jovens mulheres que se revela. Assim, Gesicht der Nacht (1929) e outros solos de Wigman emanam a angústia da guerra e da morte comum à geração que viveu o primeiro conflito mundial e, frequentemente, a sublimação do eu em favor do compartilhamento é ressaltado por ela e tornado “absoluto” pelo uso da máscara23. Tanto Wigman como Graham, entretanto, com a intenção de criar ecos de suas próprias propostas temáticas e expressivas, coletivizando-as, sentiram logo a necessidade de circundar os próprios solos por um coro real, usado como amplificador ou antagonista. Desse modo, o solo de dança oscila, nos anos da afirmação das grandes democracias e dos grandes totalitarismos, entre o fascínio da automultiplicação na coralidade, com o risco da pasteurização ideológica e do conformismo expressivo, e a resistência – muitas vezes intrinsecamente provocatória – numa autonomia expressiva que risca de se tornar isolamento político e pessoal e provocar sua expulsão como um corpo estranho. Nos vários contextos, serão determinantes os acontecimentos e as escolhas políticas que, geralmente, conseguirão quase extingui-lo24, até o renascimento pós-moderno nos anos sessenta-setenta.

Solo/hoje Para concluir, o olhar pousa sobre o retorno preponderante do solo nas últimas décadas do século XX, sobre a "necessidade" poética e existencial para o dançarino-autor e sua suposta posição ideológica. O solo de dança no século XX... Eugenia Casini Ropa

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U rdimento Na sociedade atual, que avança cada vez mais rapidamente em direção à globalização, dominada pela massificação dos gostos, das necessidades e dos comportamentos, bombardeada por uma espetacularidade difundida, superficial e envolvente, muitos dançarinos sentem a necessidade do isolamento, do silêncio, da suspensão do julgamento e da reflexão trabalhosa sobre os próprios meios e os próprios fins. Querem criar um face a face com o próprio material concreto básico, seu corpo-mente, que se libera do ruído midiático e da inquietude empresarial para viver a experiência artística psicofísica mais pobre e direta, e ao mesmo tempo, talvez, mais rica e total. No solo, pensamento e ação são uma coisa única. Como diz Laban, no trabalho profundo consigo mesmos buscamos, ainda e sempre, alcançar aquela área de “silêncio interior” na qual nasce a dança, aquele território em que o pensamento ganha vida através do movimento, sem a mediação da palavra25. Esse renascimento do solo é composto, dos anos sessenta em diante até hoje, por vários fatores individuais ou compartilhados26, às vezes contraditórios entre si: por exemplo, a necessidade de reelaborar de modo próprio os materiais elaborados com outros coreógrafos em trabalhos de grupo ou de encontrar a própria estrada na dança, partindo de uma formação heterogênea, feita de breves contatos com professores, técnicas e poéticas diversas; ou, pelo contrário, a necessidade de elaborar sozinho novas formas e temáticas que serão depois levadas ao trabalho de grupo. Mas influenciam também a convicção democrática de não poder ou querer impor aos outros seus próprios movimentos; a maior rapidez, praticidade e, sobretudo, profundidade do trabalho solitário, sem ter que verbalizar, explicar e adaptar ideias e movimentos; a possibilidade de usar formas de improvisação sem limites criativos; a liberdade mentalmente excitante de criar parceiros imaginários (pessoas, coisas ou ambientes); o fascínio e o medo do desafio a si mesmo ao criar sozinho e se propor ao público, tentando ser compreendido; a exploração de aspectos psicológicos e autobiográficos, que permite no solo uma forma de auto-análise e de pesquisa da identidade pessoal; e assim por diante. Do ponto de vista ideológico, tudo isso parece ainda constituir um comportamento contracorrente e de resistência. O solo em época de modas massificadas, a diversidade individual em época de assimilação em escala planetária, a criação artesanal em época de grandes cadeias de negócios, a profundidade introspectiva em época de exterioridade exibida, a fé na expressão corpórea orgânica e na relação individual presencial em época de exaltação do inorgânico e da comunicação virtual parecem querer constituir um bolsão de resistência, rebelde ao controle e à pasteurização.

Laban considera que a verdadeira arte do movimento fundase na capacidade que o artista tem de "pensarem-movimento" (contraposto a "pensar-empalavras"), ou seja, transformar diretamente os estímulos sinestésicos em impulsos cinestésicos (cf. LABAN, 1999, p. 21).

25

É interessante, a este propósito, o artigo de Sally Banes, Going Solo, publicado em "Dance Ink", n. 3-4, no inverno de 199293 e, em seguida, reeditado por ela na coletânea BANES, 1994, pp. 348-352, que propõe os pontos de vista sobre o solo de dançarinos americanos pósmodernos. 26

Por outro lado, essas escolhas ético-poéticas normalmente pensadas e rigorosas ou, de todo modo, indomáveis ao conformismo e, às vezes, até Março 2009 - N° 12

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U rdimento aparentemente ascéticas, também são frequentemente, e cada vez mais em alguns países, uma verdadeira estratégia de sobrevivência da dança e dos dançarinos, uma direção quase obrigatória em tempos de recessão econômica ou de falta de incentivo público à arte, eternamente pouco valorizada. Se as políticas culturais dão sempre menos espaço e apoio à pesquisa artística - e a dança artística está cada vez mais entre as primeiras penalizadas - dançar solos pode ser, de fato, o único modo prático de continuar o próprio trabalho e sobreviver materialmente. Um grupo exige tempos e espaços adequados, remuneração, organização, estrutura e tem exigências maiores e custos de circulação; o solo pode nascer em um salão, viajar num carro, ser apresentado em espaços pequenos e alternativos, independentemente da indústria do espetáculo. Dançar solos quer dizer também poder fugir das lógicas quantitativas das subvenções públicas e autogerir, além dos próprios instrumentos criativos, a própria vida profissional. Assim sendo, entre necessidade expressiva e tática, em luta contínua pela existência da própria arte, na alvorada do século XXI o solo de dança continua a produzir, sem clamor, mas com insistência tenaz, através da presença incongruente e do contágio empático de seus corpos vivos e falantes no movimento, sua crítica silenciosa, direta ou indireta, à sociedade que o circunda e o gera.

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A INSTABILIDADE DO SONHO: OS GESTOS DA DANÇA CONTEMPORÂNEA Rossella Mazzaglia1 Tradução de Adriana Aikawa da Silveira Andrade2

Resumo

Abstract

Baseado nas práticas e visões que conduziram à multiplicidade dos corpos dançantes, este ensaio identifica a origem e os desenvolvimentos estéticos das atuais concepções da dança contemporânea. Aplicando à dança as reflexões fenomenológicas e sobre a pós-modernidade, mostra o potencial de uma mudança metodológica desde a história dos corpos dançantes à “história do gesto”, que ilustra o percurso das visões artísticas nas práticas da dança em sua renovação herética.

Defining what practices and visions have led to the multiplicity of contemporary dancing bodies, this essay traces the origins and aesthetic developments of present conceptions of dance. By assimilating the assumptions of postmodern and phenomenological approaches to the study of dance, it also suggests a methodological breakthrough in dance history from a history of the dancing body to a history of gesture that might account for the path that has recurrently transferred the heretic artistic visions into the concrete renovation of dance forms.

Palavras-chave: gesto, contemporânea, história.

Keywords: gesture, contemporary dance, history.

dança

A dança no século XX caracterizou-se por revoluções contínuas em busca do retorno às origens, que inspirou as poéticas de coreógrafos insatisfeitos com as formas teatrais existentes, impulsionados pela urgência de uma visão artística subjetiva e pela vontade de realizá-la. A origem não constitui, de fato, um momento remoto e distante a ressuscitar, mas um núcleo que os coreógrafos frequentemente sentiram pulsar dentro de si, que esperava crescer e ganhar forma, tal como o embrião humano, que ao mesmo tempo gera a vida e perdura nos tecidos do corpo. Para os coreógrafos, portanto, a origem sempre foi a união da intimidade de um sonho pessoal em relação à dança com a necessidade premente de renovar as formas conhecidas, investindo corpo, alma e mente. Somente nos anos oitenta do século passado a experimentação coreográfica Março 2009 - N° 12

Rossella Mazzaglia é professora da Universidade de Bolonha, onde concluiu, em 2004, o doutorado em "Estudos teatrais e cinematográficos", tese co-orientada pela Universidade de Paris 8 e, em seguida, dedicouse a uma assídua atividade didática e de pesquisa. Autora de vários ensaios sobre as vanguardas americanas e sobre o corpo dançante, publicou uma monografia sobre a coreógrafa americana Trisha Brown (2007) e organizou um número monográfico de "Culture Teatrali" sobre Dança/900 (2006). 1

Adriana Aikawa da Silveira Andrade é tradutora profissional e Mestre em Estudos da Tradução pela UFSC. 2

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U rdimento parou de buscar novos códigos e linguagens, ao descobrir que da mistura dos gêneros existentes também podia nascer uma dança contemporânea que fosse o reflexo do próprio tempo, das contradições e esperanças do próprio presente. Seguiu-se, então, uma multiplicidade de formas e imagens do corpo dançante, à qual é possível associar uma clara projeção onírica. Não que os coreógrafos e os espectadores das últimas décadas tenham deixado de sonhar: no final do século XIX, tinha sido o cisne a comover o público e os artistas, enquanto no início do século XX foi o brilho de luzes e cores de Loïe Fuller ou ainda a dança livre de Isadora Duncan a envolver e transportar os espectadores à atmosfera quase hipnótica de uma espontaneidade desejada; depois, foi a vez da dramática introspecção de Martha Graham a assumir sobre si o conflito interior do homem moderno e a conduzir o público aos meandros de sua interioridade. Movidos por alucinações de forte eficácia, esses e outros coreógrafos buscaram promover um próprio ideal de corpo que resolvesse a defasagem que sentiam em relação ao contexto cultural, artístico e social em que viviam através de formas de dança emocionantes e inovadoras. Já faz trinta anos que os códigos de movimento fechados ou, de todo modo, reconhecíveis, deram lugar a uma multiplicidade de corpos dançantes, que projetam visões da dança muito diferentes e contrastantes, nas quais é impossível distinguir uma clara subjetividade criativa. Na dança contemporânea não existe, de fato, um ideal de corpo universal ou pelo menos dominante; pelo contrário, reconhecemos uma pluralidade de corpos rizomáticos, constituídos por um mosaico de gestos, estilos, técnicas e gêneros heterogêneos. Às formas históricas de dança acadêmica e de dança moderna uniram-se, por exemplo, os princípios da contact improvisation, de técnicas de release ou de educação somática, além da gestualidade quotidiana e de outras mais teatrais, que compreendem inclusive o uso da voz. Os diferentes tipos de movimentos e de presença cênica se entrelaçam de vários modos nos estilos de coreógrafos de diversos países e veios estéticos, negando, portanto, a existência de um modelo unívoco de corpo e celebrando, sobretudo, a contaminação e o ecletismo das linguagens e das culturas. A mudança da dança nas últimas décadas é o resultado da mistura dos gêneros teatrais, iniciada pelas vanguardas nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Entre os anos cinquenta e sessenta predominaram, de fato, em todos os âmbitos artísticos, processos e produtos estéticos que exaltavam a imediatez criativa de produtos prontos e categorizáveis. Simultaneamente, o modelo expressivo que via no corpo o “barômetro da alma” foi substituído, na dança, pela ênfase no movimento em si e por si. Um grupo de jovens experimentadores nova-iorquinos, formado, em boa parte, por alunos de Merce Cunningham, que adotou o nome de Judson Dance Theater, tentou, além A instabilidade do sonho: os gestos da dança comtemporânea. Rossella Mazzaglia

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U rdimento disso, propor gestos cotidianos e um “movimento natural” e eficiente em cena, destruindo a imagem do dançarino especializado e virtuoso. Os coreógrafos e dançarinos do grupo buscaram, através da reforma na dança, reformar também a percepção da realidade, como os outros artistas de sua época: experimentar a cotidianidade de modo consciente, tal como nos happenings de Allan Kaprow, nos combine paintings de Robert Rauschenberg ou na música concreta de John Cage, não refletia somente uma moda, mas era o modo de rediscutir o “espaço” da existência de todos os dias. Por trás dos símbolos do cotidiano, que nos lembram os espetáculos do Judson Dance Theater – os quais traziam os dançarinos em simples e revolucionárias ações de comer, beber e caminhar em cena – escondiase, porém, a vontade de reencontrar o prazer da vida e de conduzi-lo à própria arte. O método variava, mas incluía o uso maciço da improvisação, o aprendizado de técnicas orientais e, em geral, um aperfeiçoamento progressivo da consciência corporal livre de posturas rígidas e vocábulos preestabelecidos, como na dança moderna e no balé. Promotores de propostas que se canalizaram em seguida na contracultura americana do final dos anos sessenta, os coreógrafos seguiram a utopia de uma civilização emancipada da restritiva moral puritana e da sufocante ética do trabalho, que repercutiu no sonho de uma corporeidade livre das técnicas codificadas. Então libertado de ideais preconcebidos que tinham o efeito de produzir clones, o corpo da dança podia seguir a sensação física individual, a partir da qual deixar surgir sempre formas mutáveis de dança. Como todas as utopias, a dos experimentadores americanos também estava impregnada de retórica e mistificações, mas algo daquele sonho perdurou e foi ciclicamente retomado na dança, pois antecipava uma sensibilidade estética transformada e a concepção de arte da sociedade contemporânea. Em especial, promoveu uma percepção fenomenológica da realidade e introduziu a visão pós-moderna do corpo, que ainda hoje alimentam a dança teatral. Embora não totalmente conscientes, os inovadores daquele tempo adotaram uma idéia de corpo em relação aberta com o mundo (no lugar do fechamento artificioso do corpo maneirado), que nas últimas décadas os estudiosos de dança retomaram a partir da noção de “corporeidade”, que significa, de fato, um entrelace polissensorial, “jogo quiasmático instável de forças intensivas e de vetores heterogêneos”. Um exemplo claro da corporeidade é dado pela contact improvisation, baseada na improvisação entre vários dançarinos, que surge a partir de pontos de contato que se estabelecem e se deslocam ao longo da superfície epidérmica dos corpos em movimento. Na contact improvisation o dançarino deve, de fato, se deixar moldar pelo peso do outro, acolhê-lo e contrabalanceá-lo e, consequentemente, readaptar a própria Março 2009 - N° 12

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U rdimento postura e ação física: as transfigurações de sua dança derivam, portanto, do fluxo ininterrupto de sensações físicas, estimulado pela interação entre percepção do próprio corpo e do ambiente externo. A ênfase no aspecto cinestésico mais do que no visual não remete, como dito, só a questões de mecânica corporal, mas corresponde à projeção de um desejo que lembra a vontade da neo-vanguarda americana de se reapropriar do próprio corpo, que nas décadas seguintes manifestou-se também em formas de dança mais complexas e articuladas. Contra a ofuscante mundanidade que vende imagens e sensações “pré-confeccionadas”, experimentar em primeira pessoa, sem seguir as recomendações publicitárias e da moda, parece quase ilegítimo; e a dança, como um ato sensório que se apossa da pessoa toda, assume, então, um poder anárquico: ao corpo dançante se pede, por isso, que realize o sonho de uma vida plena, que integre dimensão afetiva e racional. Além disso, a noção da corporeidade convida a pensar o corpo da dança contemporânea como uma espécie de mapa mutante, uma rede de influências e conexões provenientes de várias técnicas e linguagens, estudados pelos dançarinos e manipulados pelos coreógrafos de acordo com suas escolhas estilísticas e temáticas. Esta interpretação da corporeidade revela seu caráter pós-moderno, que pode ser esclarecido observando a equivalente mudança perceptual provocada na vida diária pela substituição dos dispositivos lineares pelos de rede, ou seja, com a chegada das tecnologias da comunicação (da digital à microeletrônica): a realidade que nos circunda, de fato, também parece funcionar em termos hipertextuais e não segundo lógicas narrativas lineares. Partindo de uma metáfora do romancista Italo Calvino sobre a revolução informática, podemos dizer que também na dança realizou-se uma segunda revolução, depois daquela que, no fim do século XIX, havia erodido as certezas do código acadêmico. O resultado não foi, porém, a criação de uma outra máquina de aço, isto é, de um novo código com engrenagens e normas próprias, como nas codificações passadas do movimento (que enrijeciam o corpo dentro de uma imagem e uma forma fechada e apriorística), mas a difusão de um fluxo mutável de informações, que circulam sob forma de princípios ou ingredientes readaptáveis, desconstruindo, assim, as armaduras anteriores do corpo. Na construção do corpo dançante entraram, então, gestos, poses, indicações de movimento muito variadas, que se compõem e decompõem dependendo das exigências dramatúrgicas, estilísticas e coreográficas de cada autor, produzindo um remodelamento contínuo da dança, que aproveita todos os tipos de influência. Deste modo, o corpo não é mais especializado numa técnica aprendida ao longo de anos de aprendizagem, mas adquire os próprios instrumentos de vários lugares; é um corpo que substituiu a verticalidade da A instabilidade do sonho: os gestos da dança comtemporânea. Rossella Mazzaglia

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U rdimento memória pela horizontalidade da imanência, que pode ser identificada com a noção filosófica do rizoma, com a qual Gilles Deleuze e Felix Guattari definiram o mapa mutante da realidade em que vivemos, continuamente percorrido por “fluxos desterritorializados”. Muitos dançarinos nos anos oitenta e noventa estudavam, de fato, todas as técnicas codificadas de dança, ginástica e acrobacias para formar um “corpo de aluguel”, capaz de se adequar a qualquer exigência e oferta do mercado. Em determinados contextos, sensíveis à influência da dança pós-moderna americana, substituiu-se ou acrescentou-se à base acadêmica a pesquisa de uma fisicidade flexível, marcada pelas técnicas de release, de educação somática e pela contact improvisation, que se tornou uma das técnicas de formação transversal de muito dançarinos. Seguindo a matriz expressionista, a dança-teatro alemã é frequentemente considerada modelo de teatralidade, com sua mistura de dança, voz e gestualidade cotidianas geralmente exasperadas por repetições minuciosas e apaixonadas. Na Europa nasce, assim, uma dança autoral, que compreende tanto as releituras dos clássicos em chave contemporânea como os estilos coreográficos inéditos, que recompuseram de modo diverso os estímulos do veio americano e a influência da dança-teatro, evitando, de todo modo, a especialização técnica dos dançarinos em uma única linguagem corpórea. As neo-vanguardas americanas anteciparam, nesse sentido, a abertura ao múltiplo, que se desenvolveu plenamente no final do século e que reflete a pluralidade da atual época pós-moderna. Os traços que caracterizam a pósmodernidade que se aplicam a cada âmbito da criação contemporânea são, especificamente, a renúncia aos universais e às grandes narrações (grandes histórias) em favor da anti-narração ou das “pequenas histórias”; a passagem de um código principal de movimento a idioletos individuais; e o já discutido abandono da linearidade narrativa. A ruptura com o corpo expressivo e com a profundidade introspectiva constitui também a premissa para desdobramentos inesperados da dança, derivados, em parte, da difusão das teorias pós-estruturalistas de matriz francesa durante os anos oitenta, que questionam a relação entre representação da subjetividade, linguagem e cultura. Reaproveitando traços teatrais, a dança europeia, de fato, usou o corpo como um sinal e um simulacro, mostrando, assim, o poder discursivo da representação teatral. Se nos anos sessenta e setenta os coreógrafos haviam celebrado as qualidades positivas da imanência (contra a história e a memória), dos anos oitenta em diante a dança mostrou a outra face da transitoriedade, que usou para ressaltar a incongruente projeção de identidades instáveis. Também nesse caso, a mistura linguística foi somente o aspecto mais Março 2009 - N° 12

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U rdimento visível de uma mudança de percepção em relação à pessoa, que participou da dessacralização da imagem do dançarino: o emprego de códigos unívocos tinha, de fato, remetido a uma imagem íntegra e incorruptível do indivíduo, então elevado ao grau de herói na cena; em seu lugar, a multiplicidade de formas associada à pluralidade de abordagens físicas criou uma imagem fragmentária e prosaica do sujeito. Em torno ao final do século, a nova coreografia europeia (principalmente francesa e italiana) ampliou ainda mais a reflexão sobre o corpo, que ganhou outras possibilidades comunicativas. Os artistas aliaram ao estudo de abordagens físicas ligadas à dança e às técnicas de educação somática também a leitura filosófica, das ciências humanas e cognitivas, levando à cena um “corpo crítico” da dança teatral e da sociedade. Como na melhor tradição de ruptura, os jovens contemporâneos também procuraram recolocar em discussão as formas costumeiras de teatro, os modos de produção e a presença do corpo em cena, que por vezes é “marcado” por maquiagens, escritas e até vestido ou despido várias vezes, expondo sua inautenticidade ou, de todo modo, desorientando o expectador. O caráter auto-reflexivo das últimas tendências da dança contemporânea ilumina, portanto, um outro aspecto do rizoma da corporeidade: a rede de influências e linguagens que se mostram no corpo dançante não é mais somente o fruto de uma visão poética ou de uma cultura, mas é o espaço de negociação entre ideais e práticas, entre sociedade e indivíduo, entre o próprio olhar e o do outro. Por isso, a radicalidade do corpo dançante, como corpo social e discursivo, põe sempre à prova sua capacidade de discutir e abalar a percepção da realidade contemporânea, seguindo assim uma herética e corajosa pesquisa da origem que atravesse passado, presente e futuro. Por fim, se a palavra corpo parece quase obsoleta e foi, de fato, substituída pela complexa noção de corporeidade, é também verdade que nenhum dos dois termos é capaz de explicar a necessidade visionária que impulsionou no passado e ainda hoje impulsiona os coreógrafos à criação. Sem abandonar nenhuma das palavras às quais nos apegamos, poderíamos, pelo contrário, pensar a história dos corpos como uma história do gesto, entendendo, com este termo, um ato imanente e efêmero, mas também intencional e que pressupõe um percurso, que exprime melhor a dinâmica defasagem entre realidade existente e desejo, a partir da qual os coreógrafos deram vida ao próprio originário e primeiro passo de dança, cada um em seu tempo. Os sonhos cristalizados do passado são, assim, substituídos pela instável mutabilidade de um imaginário que, por definição, está em contínuo devir e que, ao mesmo tempo, apresenta um ponto de partida metodológico para rever a história do corpo dançante. A instabilidade do sonho: os gestos da dança comtemporânea. Rossella Mazzaglia

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MIMO E PANTOMIMA1 Thomas Leabhart2 Tradução e notas de Luciana Cesconetto Fernandes da Silva3

Resumo

Abstract

Neste texto o autor esboça brevemente a história do mimo desde a antiguidade até o inicio do século XX, esclarecendo alguns fatores importantes para a construção do mimo moderno. O autor distingue a tradição da pantomima silenciosa do século XIX do mimo moderno identificando os motivos que geraram a compreensão equivocada do mimo como uma arte silenciosa.

In this text, the author makes a brief outline of mime history from ancient times to the beginning of the twentieth century, explaining some important facts to the development of modern mime. The author differentiates nineteenth century silent pantomime from modern mime, pointing out the reasons that led to a misinterpretation of mime as a silent art.

Palavras-chave: mimo, pantomima, mimo corporal.

Keywords: corporeal mime.

mime,

pantomime,

O nome Marcel Marceau tem sido sinônimo de mimo nas últimas décadas, e, muito embora ele ocupe uma pequena parte deste livro, é graças às suas extensivas turnês, desde o início da década de 50, que se deve grande parte do recente e vasto interesse nessa arte antiga. Ele e outros mimos como a Companhia Mummenschanz são os elementos mais visíveis de um retorno ao movimento expressivo que tem manifestações no teatro contemporâneo de Grotowski, Mnouchkine, Peter Brook e outros. Estes indivíduos e grupos que lideram a atenção do universo teatral derivam tanto de uma tradição que podemos delinear até os primeiros anos deste século, quanto do trabalho revolucionário do professor e diretor francês Jacques Copeau, e, subsequentemente, de seu pupilo Étienne Decroux assim como dos alunos deste: Jean Louis Barrault e Marcel Marceau. Os professores Jean Dasté e Jacques Lecoq também provêm diretamente da escola de Copeau4. Eu devo distinguir a tradição da pantomima silenciosa do início do século XIX, pela qual Marceau é fortemente influenciado, do mimo moderno que usa sons, palavras, assim como movimentos metafóricos. Março 2009 - N° 12

1 O presente artigo consiste na introdução do livro Modern and post-modern mime, de Thomas Leabhart (1987, p. 1-16). 2 Thomas Leabhart foi aluno e assistente de Étienne Decroux entre 1968 e 1972. É editor do Mime Journal e Professor de Teatro no Pomona College (Califórnia). Leabhart ministra frequentemente cursos de Mimo Corporal em Paris através da Associação Hippocampe e é membro da ISTA (International School of Theatre Anthropology). 3 Luciana Cesconetto Fernandes da Silva é professora da Universidade Federal de Pelotas. 4 Jean Dasté foi aluno de Jacques Copeau e ator na Companhia do Vieux-Colombier dirigida por Copeau. Jacques Lecoq trabalhou diretamente com Jean Dasté [N. da T.].

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U rdimento Visto que a tradição da tão conhecida pantomima evita sons e palavras, será útil esboçar brevemente a história do mimo até o início do século XX, isto é, até a escola de Copeau. O silêncio no mimo é uma questão importante. O mimo necessita ser silencioso? Brendan Gill escreveu no New Yorker de 28 março 1983: No coração da pantomima está a angústia sublimada da fala perdida; mesmo quando nós estamos sendo entretidos, nós mensuramos esta perda e sentimos pelo performer mudo a simpatia despertada por qualquer profunda e inescapável omissão. Estar na presença de um silêncio não natural, imposto, é efetivamente render-se à condição de surdo; se Marceau não tivesse tomado o cuidado de incluir acompanhamento musical nas suas estranhas narrativas não-verbais, eu me pergunto se nós não iríamos rapidamente achá-las insuportáveis. Parece-me, todavia, que a maioria do mimo, do início dos tempos até o presente, tem sido acompanhada por algum tipo de som: falas providas pelo narrador, pelo coro ou pelo mimo; sons percussivos produzidos pelo choque de uma parte do corpo contra o outro ou contra o chão; ou o tipo de mimo vocal que os estudantes de Copeau experimentaram, usando ruídos pré e pósverbais, risos e outros sons expressivos que não são palavras. Em 1890 foi encontrado um pergaminho com 13 peças de mimo escritas por Herondas, um escritor grego que viveu na Alexandria por volta de 270 a.C. (ver The Mimes of Herondas, tr. Guy Davenport, 1981). Essas miniaturas de dramas espirituosos e às vezes depravados parecem confirmar que no mundo antigo ao menos alguns performers chamados mimos falavam, e até mesmo memorizavam textos escritos por outros. E mesmo quando os performers pantomimos (distintos dos performers mimos) não falavam, as suas performances eram raramente desacompanhadas de palavras, canções e música instrumental. Alguns poetas antigos também recitavam seus próprios trabalhos e acompanhavam os recitais com gestos expressivos. Diz a lenda que Livius Andronicos, ao perder sua voz em 240 a.C, contratou um ator para recitar enquanto este desenvolvia a parte gestual de sua performance. Ainda que esta história seja apócrifa, alguém sentiu a necessidade de inventá-la para explicar por que os performers mimos individuais seriam silenciosos, se em função da adversidade ou da escolha estética, enquanto as performances em si geralmente tinham algo verbal bem como componentes musicais. Um livro publicado em Paris em 1751 entitulado Recherches historiques et critiques sur les mimes et sur les pantomimes [Pesquisas históricas e críticas sobre os mimos e as pantomimas] indica, pelo seu título, que o autor, Jacques Méricot, considerou que existia alguma diferença entre os dois termos “mimo” Mimo e pantomima. Thomas Leabhart

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U rdimento e “pantomima”, expressões hoje utilizados frequentemente de forma aleatória. Méricot sugeriu que a pantomima era inteiramente silenciosa enquanto o performer mimo era acompanhado por um ator que falava por ele. Essa separação permitiu à pessoa que se movia desenvolver-se mais plenamente e à pessoa que fazia uso da palavra a falar sem perder a respiração. Tal arranjo permite especular que possivelmente os primeiros performers do Bharata Natyan (dança-teatro do sul da Índia) eram contadores de histórias que as ilustravam com gestos e danças e, como a dança foi se tornando mais complexa e atlética, as partes vocais foram tomadas pelos cantores profissionais. Willson Disher atribuiu a suposição corrente de que a pantomima é silenciosa à Duchesse du Maine [Duquesa du Maine], que em 1706, querendo glorificar as Nuits des Sceaux5, decidiu apresentar o quarto ato de ‘Horácio’ de Corneille como um ballet de Mouret [...]. Fora do conceito literário ela chamou isto de “Balé-Pantomima”. Sua reivindicação era de que o show-mudo era uma arte pertencente aos antigos. Nenhum savant indicou que ‘imitador de tudo’ não significa alguém sem palavras. ...Os galantes lexicógrafos da Inglaterra, daquele dia até este, insistem que pantomima significava showmudo simplesmente porque a Duquesa du Maine disse que o era (DISHER, 1925, p. 225). Embora na maioria dos períodos o mimo e a pantomima incluem alguma forma de palavra produzida por um primeiro ou segundo performer, além da música e dos sons percussivos produzidos pelos performers ou músicos, existem alguns períodos importantes nos quais a pantomima ocorreu sem textos falados em função de sanções governamentais que os proibiram em certos teatros. Essas restrições produziram uma forma de performance que pode ser bela e completa em si mesma. Contudo, em função destes períodos relativamente breves, esperar que todo mimo deva ser silencioso é o mesmo que pensar que todos dançarinos devam usar sapatilhas de pontas. Mesmo assim, enquanto eu escrevo estas palavras, a maioria do público que vai ao teatro, a maioria dos historiadores e a maioria dos performers mimos vão definir mimo como uma história contada silenciosamente. Por quê? Luis XIV expulsou os atores italianos de Paris em 1697 porque, dizem, estes zombaram da sua amante, Madame de Maintenon. A rivalidade entre atores italianos por um lado, e a Comédie Française e o Opéra (os teatros dos reis) por outro lado, gerou um descontentamento de proporções tão ardentes que os atores italianos (exilados para a Margem Esquerda6) foram liberados pelas autoridades a atuar com a condição de que os atores não falassem. Por volta de 1700 a pantomima silenciosa teria então nascido e os franceses Março 2009 - N° 12

5 Foram chamadas de Nuits des Sceaux as festas grandiosas que a Duquesa du Maine deu entre 1714 e 1715 no castelo e nos jardins de Sceaux (Ile-de-France). Nestas festas eram apresentadas óperas, balés, peças e poemas como divertimentos [N. da T.].

Trata-se da Rive Gauche: margem esquerda/margem sul do Sena, região não elitizada onde concentravam-se artistas e intelectuais de Paris [N. da T.]. 6

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U rdimento mostrariam mais uma vez seu gênio para impor suas misteriosas restrições e então, triunfantemente, inventaram formas astutas de cerceá-los. Em 1716 o banimento foi suspenso e os atores italianos foram aceitos de volta à Paris, no entanto, a quantidade de teatros assim como o gênero teatral permitido ainda eram controlados. Em 1750 o Boulevard du Temple, então no subúrbio de Paris, se tornou a área oficial dos teatros de feira, os quais foram restritos de diferentes formas: o primeiro teatro licenciado deveria apresentar somente dança na corda, e cada um subsequentemente tinha outra árdua limitação. A área se transformou rapidamente numa atmosfera de carnaval: números com animais, marionetes, malabaristas, acrobatas e arlequinadas enchiam as ruas, que eram margeadas por cabarés e cafés. Isto deve se parecer muito com a imagem reproduzida no filme Les enfants du paradis. A restrição mais absurda foi, possivelmente, uma que exigia que os atores representassem atrás de uma tela de gaze. Quando o ator Plancher-Valcour soube, em 14 de julho de 1789, que a Bastilha havia sido tomada, ele se atirou através da tela de gaze gritando “salve a liberdade” (ROOT-BERNSTEIN, 1984, p. 178). Na Inglaterra em 1717, o ator John Rich foi atraído por esta novidade francesa já que ele tinha menos habilidade para falar do que para gesticular. Ele popularizou rapidamente a nova pantomima silenciosa na Inglaterra, e as inovações inglesas por sua vez influenciaram os franceses. Rapidamente os grupos itinerantes de pantomimas estavam representando na França, Holanda, Alemanha, Áustria e Dinamarca. As restrições legais determinaram o repertório, o tamanho do elenco, o número de músicos. Foi somente em 1791 que o diálogo ou as canções puderam ser incluídas na pantomima que persistiu na França. Apesar das sanções oficiais, o entretenimento popular floresceu: trinta e cinco teatros foram construídos no Boulevard du Temple por esta época. O número cresceu para 100 depois que a Assembléia Nacional retificou decretos em janeiro de 1791 permitindo a qualquer cidadão estabelecer um teatro público e apresentar peças de qualquer tipo. Neste período, diálogos e canções, os quais haviam sido privilégio apenas dos teatros dos reis, foram imediatamente incluídos nas pantomimas para produzir um novo gênero híbrido chamado “melodrama” (CARLSON, 1974, p. 27). Restrições foram impostas novamente em 1807 por Napoleão, que regulamentou o número de teatros em Paris bem como os seus gêneros e repertório, e Jean-Gaspard Deburau começou sua meteórica carreira em 1819 no Théâtre des Funambules no Boulevard du Temple. A dinastia que ele estabeleceu continuou pelo início dos anos 1920, muito embora as restrições na fala tenham sido eliminadas ainda na época de Deburau. Mimo e pantomima. Thomas Leabhart

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U rdimento No final do séc. XIX na França, a rigidez acadêmica foi arrastada para dentro do teatro, do mimo e da dança. O gênio de Deburau foi substituído por uma longa sucessão de imitadores que recriaram a forma extrema, mas perderam a chama interna; a pantomima tornou-se um assunto de mãos e rosto, o corpo coberto por volumosas vestimentas. A dança no Opéra de Paris, reduzida a estátuas posando com música, apoiava-se fortemente nas extremidades do corpo, enquanto o torso era rigidamente preso por espartilhos. O teatro naquele tempo foi uma exaltação das personalidades de certas estrelas, cercadas por atores medíocres. A época era oportuna para mudanças, e, se as coisas não estavam tão ruins quanto os revolucionários as pintaram, havia ao menos alguma verdade nas reivindicações a ponto de a renovação ter sido uma necessidade imperiosa. Esta renovação, no entanto, não veio de dentro das artes em questão, mas como um resultado dos novos interesses da ciência, da tecnologia e do esporte. A preocupação do séc. XIX em “estabelecer e descrever (...) os reais fatores da locomoção animal em geral e da locomoção humana em particular” (SPARSHOTT in SOURRIAU, 1983, p. ix) pode ser vista no trabalho da pesquisa do movimento independente, trabalho este que, iniciado no século XIX, teve um efeito significativo no mimo, no teatro e na dança do século XX. Eadweard Muybridge nascido Edward Muggeridge em 1830 na Inglaterra, começou fotografando movimentos em Palo Alto, Califórnia, em 1872, quando Leland Stanford, um antigo governador da Califórnia, providenciou fundos para Muybridge fotografar a corrida de cavalos de Stanford a fim de ver se todas as quatro patas deixavam o chão simultaneamente. Nestes experimentos, Muybridge desenvolveu uma técnica de utilização de vinte e quatro câmeras para fazer fotos de ação sequencial. Ele continuou sua pesquisa na Universidade da Pensilvânia, onde foi patrocinado pelo pintor Thomas Eakins e por volta de 1885 ele já tinha produzido 100.000 fotografias de cavalos, de animais domésticos e selvagens, e seres humanos. O seu trabalho assim como o do francês Jules Marey, autor de La machine animale [A máquina animal], usaram novas tecnologias para expandir o conhecimento do movimento em áreas que ultrapassavam a percepção humana normal. Muybridge palestrou nos EUA e Europa utilizando um zoopraxiscope, um instrumento que ele inventou para mostrar slides de vidro numa rápida sucessão, criando o efeito de movimento. Em 1887 ele publicou Animal Locomotion [Locomoção animal], em 1889 Animals in Motion [Animais em movimento], e em 1901 The Human Figure in Motion [A figura humana em movimento]. Sua documentação sobre o que ocorria no movimento natural foi uma revelação para aqueles cuja profissão era a representação da forma estilizada ou teatral deste movimento. Thomas Eakins foi demitido de seu trabalho como professor em uma escola de arte por usar modelos nus; no quarto Março 2009 - N° 12

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U rdimento de século seguinte, dançarinos e mimos praticamente nus se apresentaram no palco. Escultores como Rodin, na França, preferiram trabalhar com modelos nus em movimento do que com os moldes de gesso com os quais se aprendia a desenhar nas academias. Isadora Duncan se apresentou para Rodin, que a desenhou enquanto ela dançava no seu estúdio. O filosofo francês Paul Souriau nasceu em 1852. Como Muybridge, ele tentou entender o movimento, porém com a filosofia ao invés de câmeras como ferramenta. Um de seus principais trabalhos intitulou-se The Aesthetics of Movement [A estética do movimento]. Souriau entendeu Gustave Eiffel, seu contemporâneo, que tinha perguntado, “As atuais condições de força não estão sempre de acordo com as condições secretas da harmonia? O primeiro princípio da estética arquitetural é que as linhas essenciais de um movimento sejam determinadas pela adequação perfeita das suas intenções” (SOURRIAU, 1983, p.100). Isso mostra a atmosfera que destruiu as academias do século XIX. François Delsarte ensinou voz para a oratória e para a representação teatral, em Paris, de 1839 até 1871. Aos catorze anos ele foi admitido no Conservatório em Paris para estudar voz, apesar de sua pouca idade e dos requisitos para entrar nesta instituição. Em seis meses, como consequência de um ensino impróprio, ele perdeu sua voz. Destemido, ele se propôs a descobrir a ciência por trás da arte. Ele criticou o treinamento dado no Conservatório como mera imitação do professor, e observou que os docentes estavam muitas vezes em desacordo. Ele concluiu que “nenhuma teoria sustentaria a execução”, e se lançou na “conquista da ciência que faria de mim um grande artista” (STEBBINS, 1977, p. 445). Os ensinamentos de Delsarte tiveram que viajar aos EUA para, através de Ted Shawn, Ruth St. Denis e Isadora Duncan, influenciar a dança moderna americana antes de, finalmente, provocar algum efeito na dança do Opera de Paris, um quarto de século mais tarde. Shawn, St. Denis e Isadora apresentavam-se praticamente nus naquela época, e seus experimentos corajosos com figurinos leves e soltos estavam em oposição direta ao estilo de roupas e à moralidade daquele tempo. Seus exemplos ajudaram a libertar os corpos de homens e mulheres dos espartilhos, sapatos e outras roupas apertadas, e, algo que muitas vezes esquecemos, lembrar às pessoas quão linda e graciosamente o corpo pode se mover quando este não está refreado. Eles incorporaram as imagens de Muybridge, conectando suas fotografias de homens e mulheres nuas com movimentos tão fluidos quanto o seu zooprazciscope era capaz de produzir. As aplicações dos princípios de Delsarte libertaram o torso como um elemento expressivo, permitindo ondulações desta parte do corpo que antes era rigidamente contida. A escala dinâmica de tensão-relaxamento da dança moderna, baseada na lei de Delsarte da reação-recuo é comparável ao princípio da respiração muscular encontrada no mimo moderno. O uso criativo de massa, peso e gravidade é tão importante Mimo e pantomima. Thomas Leabhart

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U rdimento no mimo moderno como o é na dança moderna. A afirmação de Shawn de que os movimentos abstratos da dança moderna são baseados em gestos concretos, ecoa da alegação de Decroux de que “O abstrato é a flor do concreto”. O grande interesse de Decroux nos contrapesos tem um respaldo na lei de Delsarte do equilíbrio, o qual esboça quatro tipos de ajustes que o corpo faz em resposta para certos esforços (SHAWN, 1954, p. 64 - 71). Um culto às ginásticas tomou conta da Europa no século XIX (a fim de manter a população em boa forma para a guerra e como um antídoto às debilidades físicas nos trabalhos fabris). Um dos principais expoentes franceses deste movimento foi o Tenente Georges Hébert, contemporâneo de Copeau quando este abriu sua escola no início do século XX. Hébert desenvolveu um sistema de educação física e de análise do movimento que Copeau incluiu no currículo da escola do Vieux-Colombier em 1922-23 (LEIGH, 1979, p. 34). A obra L’Éducation physique de l’entrainement complet par la méthode naturelle [A educação física do treinamento completo pelo método natural] de Hébert inclui diagramas cena por cena (de acordo com o método de Muybridge) da forma natural de representar movimentos esportivos. Alguns anos mais tarde Étienne Decroux criou um número substancial de modelos de ensino para sua técnica do mimo moderno através da análise dos movimentos dos esportes na sua forma de composição parte por parte. Paul Bellugue, que foi professor de anatomia na École des Beaux Arts em Paris, de 1936 até 1955, é a última das nossas maiores figuras que ajudou a pavimentar o caminho do mimo moderno. Bellugue proferiu muitas vezes demonstrações de leitura sobre dança e esportes com a assistência de Étienne Decroux, que ilustrava alguns dos princípios descritos por Bellugue. Quando este escrevia “A beleza é a forma visível do gesto econômico”, ele repetia Souriau citando Eiffel. Ambos, Decroux e Jacques Lecoq, o qual começou sua carreira como professor de educação física e terapia física, citaram largamente Bellugue. Este dedicou uma grande parte de sua carreira à análise dos esportes, da dança e da escultura. Sua afirmação de que “A cultura do dançarino e a do atleta se embasa nos mesmos princípios: simplificação, depuração e organização dos gestos” (BELLUGUE, s.d., p. 110) é uma afirmação com a qual ambos, Decroux e Lecoq, concordaram imediatamente. A revolução industrial do séc. XIX naturalmente gerou o interesse na análise dos movimentos como uma via de estabelecer uma eficiente interação entre o homem e a máquina. Não é de se surpreender que os artistas tenham passado a criar movimentos expressivos baseados nestas pesquisas, como em L’Usine [A Usina] de Decroux, em inúmeros outros futuristas, construtivistas assim como nos ballets mécaniques [ballets mecânicos] da Bauhaus. Jean Louis Barrault escreveu, “Não podemos hesitar em dizer: deve haver, no fundo de Março 2009 - N° 12

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U rdimento cada ator, um elemento do robô. A função da arte é a de conduzir este robô em direção ao natural; fazer, por meios artificiais, uma imitação da natureza. É porque o violino é uma caixa oca, como um corpo morto, que ele é tão satisfatório para ser preenchido com a alma” (BARRAULT, 1949, p. 29). Isto se parece muito com a descrição de Paul Souriau sobre as três qualidades demandadas pelo movimento para que este tenha valor estético: “a beleza mecânica do movimento, sua expressão, e o prazer perceptível que ele oferece” (SOURRIAU, 1983, p. xx).

Esta é a tradução literal para o português do termo traduzido do francês por Leabhart. Nos escritos de Copeau sobre a escola do Vieux-Colombier, no entanto, encontramos o termo "techniques mimiques" que significa literalmente "técnicas mímicas" [N. da T.]. 7

8 Decroux utiliza a expressão "Casa" no sentido de "seu próprio corpo" [N. da T.].

O mais importante de todos para uma compreensão do teatro contemporâneo e do mimo contemporâneo é o trabalho de Jacques Copeau. Este reagiu fortemente contra o que ele viu ser a decadência do teatro em Paris no início do século XX. Para vencer a debilidade que ele entendeu ser inerente ao sistema do estrelato, com suas atuações afetadas e insensíveis tratamentos dos textos, ele propôs um novo teatro com a “renormalização” do ator no seu centro. Este ator “renormalizado” deveria ser treinado para desaprender toda a artificialidade que ele havia adquirido. Para produzir o tipo de ator que ele requeria, Copeau fundou a École du Vieux-Colombier, a qual tinha um currículo calculado para dar aos atores um treinamento muito mais completo que aquele estreitamente especializado encontrado no Conservatório. Os alunos de Copeau estudavam literatura, história, fala, voz e ofícios do teatro, e tinha também uma forte ênfase no treinamento físico. Copeau acreditava que a agilidade física, o trabalho com a máscara, a atuação em grupo e a habilidade com o mimo estavam no coração das idades de ouro do teatro: os períodos que produziram as peças de Nô, os dramas gregos, os mistérios medievais, a commedia dell’arte, e as peças de Molière e de Shakespeare. O treinamento físico na École du Vieux-Colombier envolvia acrobacias, balé clássico, ginástica, esportes e trabalho com máscaras, então conhecido como mimo corporal7. O estudo do mimo corporal com Copeau na École du Vieux-Colombier inspirou Étienne Decroux a dedicar sua vida à pesquisa das possibilidades expressivas do corpo humano depois que o trabalho do ator foi liberto da tirania do que Decroux chamou de “artes estrangeiras”: literatura, cenário, música, dança, figurino e outras. Decroux, todavia, nunca tencionou que o teatro permanecesse sem voz; ele prescreveu a fala ordinária por um período de trinta anos, ou até que o ator tivesse tomado o comando de sua própria casa8, quando então as artes estrangeiras poderiam ser introduzidas novamente de acordo com a necessidade, estando o ator firmemente no controle. Decroux, reagindo fortemente contra a pantomima de rosto branco que ele tinha assistido nos café-concerts quando criança, vislumbrou um mimo moderno que seria um registro tão claro e belo da essência como o são as Mimo e pantomima. Thomas Leabhart

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U rdimento pinturas de Mondrian e a escultura de Brancusi, dois dos contemporâneos de Decroux. E, embora Decroux tenha trabalhado inicialmente com a pantomima ilusionista (mimo objetivo), seu trabalho posterior foi mais subjetivo, explorando caminhos da expressão do pensamento em movimento, estudando a forma que o pensamento esculpe o corpo, e examinando com grande detalhe a maneira com que o esforço físico forma o corpo (contrapesos). O esforço do homem de Prometeu contra a gravidade singularizada em qualquer situação dramática específica é central no trabalho de Decroux, o qual tem sido, por cinquenta anos, diametralmente oposto ao entretenimento encantador ou humorístico. Embora Decroux tenha uma carreira longa e cheia de sucesso como um ator de palco, tela e rádio, suas performances de mimo não encontraram grande aclamação do público, talvez em função de sua tendência ao abstrato, à sua estrutura não linear que encontramos na maioria dos trabalhos modernistas em outras artes. A maior contribuição de Decroux ao mimo foi como professor, inventor da técnica do mimo corporal e como teórico. Jean-Louis Barrault trabalhou de forma muito próxima a Decroux quando este desenvolveu o mimo corporal. A improvisação, para a qual Barrault trouxe grande habilidade física e considerável imaginação, foi uma parte vital do trabalho deles, e suas primeiras descobertas foram catalogadas e classificadas por Decroux. Depois de um período de trabalho criativo utilizando as descobertas do mimo moderno, incluindo mimo vocal, Barrault escolheu continuar seu trabalho no teatro falado. Depois da Segunda Guerra Mundial, outro brilhante aluno de Decroux começou sua carreira no mimo: Marcel Marceau. Depois de seus estudos com Decroux, este desenvolveu um personagem chamado Bip que é mais próximo do paradigma do século XIX da pantomima branca silenciosa que do mimo desenvolvido por Decroux. Marceau tornou-se o mais brilhante e bem conhecido performer de pantomima silenciosa de nosso tempo ou talvez de todos os tempos. Logo após a Segunda Guerra Mundial Jacques Lecoq iniciou seu trabalho como professor de educação física, e, através de estudos com Jean Dasté e outros que entenderam a teoria e a prática da École du Vieux-Colombier, desenvolveu aspectos das redescobertas de Copeau no seu próprio ensino que é tão influente. Lecoq valorizou o trabalho da máscara neutra e expressiva, a improvisação e a commedia dell’arte, e é principalmente responsável pelo renascimento do clown como um artista de teatro. Sua pesquisa mais recente focou sobre o bufão. É claro que a performance silenciosa também é associada com o início do cinema, onde a doce adversidade da tecnologia limitada proporcionou um forte estímulo às carreiras de Chaplin, Keaton e muitos outros. Ironicamente, Março 2009 - N° 12

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U rdimento foi um filme falado feito durante a ocupação germânica na França em meados dos anos 40 que determinou a carreira de Marceau e, consequentemente, nossa compreensão comum e equivocada do mimo como “contação de história silenciosa”. Les enfants du paradis, um clássico criado por Marcel Carné e Jacques Prévert, recriou a vida e os tempos de Jean-Gaspard Debureau. Jean-Louis Barrault, o ator e mimo francês que estudou com Decroux, atuou no filme como Debureau. Decroux também atuou na obra como o pai de Debureau. Neste filme tremendamente popular e altamente aclamado, Decroux e Barrault recriaram o mimo branco ilusionista e silencioso de um período inicial; é importante observarmos quanta mudança ocorreu nesta pintura, grande parte em função da pesquisa do mimo moderno que Decroux e Barrault estavam então fazendo. Quando o filme ganhou seu primeiro sucesso popular, o jovem Marceau, um aluno de Decroux no fim dos anos 40, teve aí uma visão do que sua própria carreira poderia tornar-se. Verdadeiro com sua intuição, Marceau foi ser para o século XX o que Debureau foi para o século XIX. Marceau extraiu muito da tradição francesa do século XIX assim como da pesquisa do mimo ilusionista que Decroux estava então fazendo, mas que rapidamente repudiou. A outra fonte primária da síntese brilhante de Marceau foi a representação silenciosa de Chaplin e de Keaton. O paradigma de Marceau dominou o campo. Seu nome foi, por décadas, sinônimo de mimo. Através de várias idas e vindas da história, os breves períodos nos quais o mimo foi silencioso são relembrados na sua performance silenciosa. A era pós Marceau no mimo é certamente mais vista como um retorno à tendência atual desta arte. O mimo que assistimos em festivais internacionais em todo o mundo, o mimo que deriva principalmente da pesquisa e técnica de Lecoq e Decroux, é tão distante da “contação de história silenciosa” quanto pode ser imaginado, e, como temos visto, nisto ele reconcilia-se com o mimo conforme ocorreu na maioria dos períodos da história. Registros dos períodos Romanos e Gregos relacionam, em sua grande maioria, a pantomima e o mimo com a fala e a narração cantada, tanto através do performer mimo quanto por outro ator ou pelo coro. Indubitavelmente os teatros orientais fundamentaram-se cedo nisto. Como os elementos vocais e de movimento da performance foram ampliados e voltaram-se para a virtuosidade, tornou-se incrivelmente necessário para eles organizarem-se em performers especialistas ao invés de manteremse como contadores de histórias solo fazendo tudo. Alternativamente, onde havia somente um performer, a apresentação organizava-se melhor, por exemplo, não coincidindo a maior parte da demanda vocal com o movimento mais acrobático. Mimo e pantomima. Thomas Leabhart

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U rdimento Durante os tempos medievais o mimo muitas vezes foi apresentado por menestréis vadios ou atores de vida errante, ou como parte de dramas seculares ou religiosos. Novamente, parece raro ter sido silencioso. A commedia dell’arte, uma forma de teatro baseada na improvisação e contendo movimentos vigorosos e acrobáticos assim como diálogos fixos e improvisados, foi imensamente popular por toda a Europa desde o século XVI até o século XVIII. Este teatro tem muito em comum com os primeiros tipos mencionados acima: ele era apresentado ao ar livre, usava máscaras, e era normalmente o esforço de um grupo itinerante trabalhando junto numa família fechada ou em um grupo semelhante a uma família. O mimo branco silencioso, como nós acabamos de entender, fez suas primeiras aparições na década de 20 do século XIX, quando Jean-Gaspard Debureau tornou-se o ator mais popular de seu tempo com suas pantomimas de Baptiste. Ele floresceu em um teatro cercado por restrições governamentais impostas primeiro por Louis XIV, continuaram através dos reinados de Louis XV e Louis XVI, e mais tarde foram revividas por Napoleão. Estas restrições criaram as pantomimas silenciosas nas quais as partes de textos necessárias eram fornecidas por placas ou por músicas cantadas pelo público [...]. Quando estas restrições governamentais foram finalmente eliminadas depois da morte de Debureau, a forma na qual ele se sobressaiu continuou por alguns anos, e a corrente em voga da atividade teatral consistiu nos melodramas, operetas e outros entretenimentos populares que utilizavam canções e falas. O estilo de movimento exagerado que nós muitas vezes associamos ao melodrama ocorreu sem dúvida como um resultado do período no qual os entretenimentos populares eram privados de fala. Marceau e, antes dele, Debureau levaram a pantomima branca ilusionista às suas maiores extensões; o mimo contemporâneo voltou-se ao modelo da síntese assim como os performers pós-modernos incluíram a palavra, canções e outros elementos teatrais no seu trabalho. Fazendo isso, eles começaram a assemelhar-se aos mimos dos tempos medievais e antigos que falavam ou que eram acompanhados por falas ou textos cantados, recitados por narradores ou pelo coro. À medida que examinamos o mimo desde 1900 até o presente, nós descobrimos que o mimo não é uma disciplina rara e totalmente separada da tendência atual do teatro, mas sim uma forma multifacetada de expressão a qual está no coração do teatro – um teatro do ator criativo que determina a síntese do movimento, texto, música, luz e cenário. O mimo revelase como o berço do movimento, tanto quanto dos impulsos vocais através dos quais o ator-criador expressa primeiramente os estados internos. Muito mais que uma diversão suficientemente agradável, muito mais que um show-mudo, o mimo constitui de fato as entranhas do teatro. Março 2009 - N° 12

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U rdimento Referências bibliográficas BARRAULT, Jean-Louis. Child of silence, tr. Eric Bentley, Theatre Arts, 28-31, Out. 1949. BELLUGUE, Paul. A propos d’art de forme et de mouvement. Paris: Librairie Maloine, s. d. . CARLSON, Marvin. The Golden Age of the Boulevard. Drama Review, 18, no. 1, 25-23, 1974. DISHER, M. Willson. Clowns and Pantomimes. London: Constable, 1925. LEABHART, Thomas. Modern and post-modern mime. New York: St. Martin’s Press, 1997. LEIGH, Barbara Kusler. Jacques Copeau’s School for Actors. Mime Journal, Allendale, Mich., 1979. ROOT-BERNSTEIN, Michele. Boulevard Theatre and Revolution in Eighteenth Century Paris. Ann Arbor: University of Michigan Research Press, 1984. SHAWN, Ted, Every Little Mouvement. Pittsfield, Mass.: Eagle Printing, 1954. SOURRIAU, Paul. The aesthetic of mouvement. Amhest: University of Massachusetts Press, 1983. STEBBINS, Genevieve. Delsarte System of Expression. New York: Dance Horizons, 1977.

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"SER" UM CORPO: A IMPREGNAÇÃO DA CONSCIÊNCIA PELO MOVIMENTO Sandra Meyer1

Resumo

Abstract

O artigo problematiza a relação entre corpo e consciência, propondo um olhar crítico à idéia de corpo (do ator e bailarino) como instrumento. A consciência do corpo não partiria de uma conduta intencional ou vígil do sujeito, mas de processos desencadeados pela ação do corpo propriamente dito no mundo, caracterizando o que Gil (2001) e Serres (2004) chamam de “consciência inconsciente”.

This article questions the relation between body and conscience and proposes a critical look at the idea, formed by actors and dancers, of the body as an instrument. In this way, body conscience would not come from the subject’s intentional or alert behavior, but rather from processes stimulated by an action of the body within the world, making up what Gil (2001) and Serres (2004) have called “unconscious conscience”.

Palavras-chave: corpo, consciência corporal, consciência inconsciente.

Keywords: body, bodily awareness, unconscious conscience.

O corpo, reduzido à condição de res extensa pela engrenagem filosófica cartesiana, sujeitou-se por muito tempo às condições do mecanicismo e seus princípios de inércia e de ação e reação. Enquanto máquina física mensurável e observável a partir de seu movimento, o corpo passou a ser considerado em si mesmo, separado do que o anima, o espírito. É a “invenção do corpo” tal como o conhecemos na modernidade (GUIRALDELLI, 1996, p. 45). Desde então, o homem já não era mais seu corpo, ele passou a possuir um corpo. E o homem que se opôs externamente a seu corpo, teve então que tentar dominálo através de sua mente e racionalidade. Contudo, a partir do final do século XIX o corpo foi sendo reconhecido cada vez mais como agente ativo nos processos cognitivos e o pensamento e o conhecimento foram perdendo a sua hegemonia enquanto procedimentos puramente representacionais localizados na mente. A idéia de que as estruturas Março 2009 - N° 12

Professora do Curso de Bacharelado e Licenciatura em Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. Doutora em Arte, Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1

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U rdimento cognitivas emergiriam dos modelos sensório-motores ganhava cada vez mais adeptos no século XX. Caminhava-se, desta forma, para uma junção mais íntima entre ação corporal, experiência, pensamento e conhecimento.

2 A importância fundamental do movimento para o desenvolvimento harmônico e integral do ser humano vem sendo comprovada cada vez mais pela psicologia moderna, desde Jean Piaget (1896-1980). Para ele, a educação deve propiciar à criança um desenvolvimento dinâmico que envolva o sistema sensóriomotor e as operações abstratas.

A área cognitiva desenvolveu-se enormemente nos últimos trinta anos, através da convergência de especialidades tais como a química, a neurobiologia, a filosofia, a matemática, a biologia molecular, a psicologia, a física e a inteligência artificial, entre outras, delimitando uma recente área do conhecimento: as ciências cognitivas. 3

É quando o corpo e o movimento aparecem relacionados ao pensamento na filosofia e, como estratégia de conhecimento, fundamentalmente, na psicologia moderna2 e nas ciências cognitivas3. Alguns filósofos abriram uma perspectiva de aproximação entre a ciência, de concepção objetivista, e os contextos pragmáticos da experiência humana, importantes para um delineamento da cognição enquanto ação corporificada e do pensamento aliado ao corpo e ao movimento. O filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) buscou expandir a noção de ciência incluindo a perspectiva do “mundo-vida” - a fenomenologia pura - que uniria ciência e experiência, compreendendo que a cognição leva a marca de nossa experiência e de nossa estrutura corpórea. Seguindo a lógica de Husserl, Merleau-Ponty (1908-1961), enfatizou o contexto pragmático e corpóreo da experiência humana. Ele tentou apreender a imediatez de nossa experiência não reflexiva, sujeitando a consciência e a percepção às leis dos órgãos do corpo. “O mundo – o mundo humano – é o que é porque meu corpo – o corpo humano – tem um determinado equipamento de órgãos receptores que, necessariamente, filtram os estímulos e impressões que recebo” (apud JANA, 1995, p. 61). Merleau-Ponty credita ao corpo a reflexividade anteriormente entendida apenas como faculdade intelectual, atribuindo ao sensível “o estatuto ontológico fundante de toda e qualquer gnosiologia” (MANTOVANI, 2003). Procurando também enlaçar ciência com experiência humana, Humberto Maturana e Francisco Varela (1994) optaram por uma perspectiva dinâmica entre organismo e ambiente, propondo o entendimento do conhecer não no seu sentido meramente representacional, como se houvessem informações ou objetos de um mundo pré-dado, portanto, fora de nós, que captamos e colocamos em nossa cabeça. Este entendimento de cognição (que não é atividade “puramente” mental) não vê o mundo como pré-dado e independente do receptor, mas implicado diretamente na sua estrutura sensório-motora. O domínio cognitivo não seria pré-dado nem representado, mas emergiria na experiência imediata no mundo. Varela abraça a idéia de mente como uma rede emergente e autônoma, acoplada diretamente com o mundo: “A riqueza plástica do sistema nervoso não está no fato de guardar representações do mundo externo, senão em sua contínua transformação, que permanece congruente com as transformações do meio como resultado de cada inter ação que o afeta”. (MATURANA, 1994, p. 113). No teatro, Antonin Artaud (1896-1948) já expunha em sua metafísica da carne a angústia desta desapropriação do corpo e do exílio do espírito, clamando pelo espírito como corpo próprio, do pensamento não "Ser" um corpo: a impregnação da consciência pelo movimento. Sandra Meyer

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U rdimento separado. Como salienta Jerzy Grotowski (1933-1999), Artaud antecipou todos os reformadores do teatro deste século, pois teve a coragem de ir além da corrente lógico-discursiva, dos moldes tradicionais de representação (GROTOWSKI, 1992). O ator do século XX, buscando reintegrar a sua dimensão “interior e exterior”, ou “física e espiritual”, ou “expressiva e técnica”, encontrou o “instrumento” de trabalho mais concreto para estes fins - o seu corpo. Ao invés de evocar um estado mental ou emocional, o ator passou a utilizar a materialidade de seu corpo em ação para superar estes conceitos dualistas. Quando o ator coloca seu corpo como um instrumento ou canal da expressão “interior”, é como se não fosse ele seu próprio corpo, nem esse corpo produzisse expressão em si mesmo, mesmo que não deliberadamente. É quando o ator usa seu corpo para “ilustrar um movimento da alma” (GROTOWSKI, 1992, p. 98). Mas, antes de tudo, o ator é seu corpo, e não “alguém” que mora dentro deste corpo e o utiliza como uma espécie de instrumento, que pode ser “tocado” a seu serviço. A visão de um “piloto”, que trata de manusear bem sua máquina corporal a serviço da expressão, ainda que valorizado o papel do corpo, revela a separação entre corpo e mente que ainda contamina o fazer teatral. Até mesmo Descartes, visto como o grande “vilão” do dualismo corpomente reconhecia que, pelas sensações (dor, fome, medo), “não estou só alojado em meu corpo como um piloto em seu navio, mas, além disso, a ele estou unido muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado que componho como um só todo com ele” (DESCARTES, 2008, p. 134). Caso contrário, não sentiríamos a dor como sendo em nosso corpo próprio, e teríamos unicamente um entendimento separado, como se o piloto reparasse externamente algum defeito em seu navio (corpo) sem ser por esse afetado. O ator do início do século XX precisou se convencer que tinha um corpo, e desenvolveu técnicas para poder instrumentalizá-lo devidamente. Através de técnicas que se desenvolveram para este fim - ainda que vezes restrito a soluções gestuais previsíveis - o corpo do ator esteve sempre presente. Estava o ator, estava o seu corpo, evidentemente. Mas, ainda, um corpo comandado por um “piloto”, mesmo que dedicado. Passado este momento, o corpo poderia ser visto ainda como o “instrumento” do ator? Abandonado o dualismo, pode-se dizer que o ator é seu próprio corpo. Como salienta Barba, “o corpo não é um instrumento, não é algo que alguém possa forçar a se expressar” (BARBA, 1995, p. 92). Merleau-Ponty, ao falar da permanência do corpo próprio questiona a idéia do corpo como objeto do mundo, “mas como meio de nossa comunicação com ele, o mundo não mais como soma de objetos determinados, mas como horizonte latente de nosssa experiência, presente sem cessar, ele também, antes de todo pensamento determinante” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 137). Março 2009 - N° 12

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4 Palestra proferida no Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, SESC / São Paulo (1996). Iniciativa do SESC e do Centro de Pesquisa TeatralCPT, o evento contou com a presença de Grotowski e do ator e diretor inglês Thomas Richards, além de teóricos de diversos países.

O corpo, “rio das impulsões da vida” é, para Grotowski, por exemplo, massacrado pela educação contemporânea. “Aprendemos a lidar com o raciocínio, e o pensamento é mais lento que a reação, não se pode achar que tudo se controla pela cabeça4. Ele definia como catastrófico tentarmos controlar cada parte do corpo com a cabeça, via a natureza corporal regida no seu todo. Grotowski buscou alternativas, a seu modo, para o senso comum que atribui o controle do corpo a uma central de comando racional efetuada pelo cérebro e, principalmente, questionava sua efetividade nos processos de conscientização do corpo. Processos de “conscientização” corporal, muitos dos quais provenientes das correntes liberadoras do corpo da década de 60 do século XX, propõem comandos por parte do intelecto para a percepção de determinada parte do corpo, que podem acabar numa eficiência ilusória, principalmente se nos fundamentarmos no que atualmente vem-se pesquisando em relação às questões da consciência. A visão de consciência corporal descrita acima carrega uma idéia de dominação do corpo pela mente de herança cartesiana pois, ensina que, voltando-se a atenção para determinada região do corpo, imprime-se nela um status de existência consciente. Estimula-se um “eu observador” a comandar um processo de acordar o corpo para determinado procedimento. O percurso das teorias cognitivas na atualidade tende a retirar da cena da consciência o papel psicológico ou metafísico do eu ou do self, como algo fora dela, observando-a. Para muitos dos cientistas-filósofos que pesquisam estas questões na atualidade (DAMÁSIO, 2000; DENNETT, 2007) o corpo sempre está consciente do movimento, em alguma instância. Existe uma operacionalidade consciente - embora não a percebamos - todo o tempo, não necessitando de um “eu” para legitimá-la. Haveria uma percepção que se daria ao nível subpessoal, não intencional, onde há um acionamento constante, porém, sem o comando do homem. Do contrário, teríamos que constantemente “ordenar” aos nossos centros vitais que funcionassem, caso contrário morreríamos ou, de outra forma, poderíamos exercer um comando racional sobre os micro inimigos que nos provocam doenças. Da mesma maneira, milhões de sinapses ocorrem a cada segundo em nosso sistema nervoso e determinam o que apreendemos e aprendemos do mundo sem o nosso “consentimento”. A simples demanda intencional do sujeito, ao dar uma instrução a uma determinada parte do corpo, não garante a sua eficácia. A consciência do corpo já está nele, e é atuando diretamente com o corpo e não no corpo, ou sobre o corpo, que atingimos uma funcionalidade mais plena deste. Seguindo esta mesma lógica, a consciência do corpo poderia ser o que o filósofo José Gil (2004, p. 14) chama de “avesso da intencionalidade”. Gil questiona a noção husserliana de que toda a consciência é “consciência de”, ou seja, a partir de uma conduta intencional para com o mundo. A consciência do corpo seria de "Ser" um corpo: a impregnação da consciência pelo movimento. Sandra Meyer

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U rdimento outra ordem, uma espécie de “impregnação da consciência pelo corpo” (GIL, 2004, p. 14). Não temos consciência do nosso corpo como temos de qualquer objeto que percebemos fora de nós, como se fosse o tal piloto olhando o seu navio. É o corpo em movimento, enquanto instância de recepção das forças e intensidades do meio, que organiza os estados perceptivos e conscientes: “A impregnação da consciência pelos movimentos do corpo é a própria da natureza da consciência” (GIL, 2004, p. 15). Convém nos determos mais nesta premissa. O corpo está sempre presente, seja nos estados de consciência refletida ou irrefletida. A consciência que temos de nosso próprio corpo não se daria em processos de alteração do regime normal, do que chamamos de consciência vígil, mas constituise como um regime subjacente a qualquer estado de consciência, dado que “não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência” (GIL, 2004, p.17). Gil chama de “consciência inconsciente” o que caracteriza o estado de consciência do bailarino quando dança e tem domínio (e não o controle) de seu gesto: “Trata-se de ‘libertar o corpo’ entregando-o a si próprio: não ao corpo-mecânico nem ao corpo-biológico, mas ao corpo penetrado de consciência, ou seja, ao inconsciente do corpo tornado consciência do corpo (e não consciência de si ou consciência reflexiva de um ‘eu’)” (GIL, 2001, p. 28). Como conseguir tal efeito? Agindo. Michel Serres recorre à mesma metáfora, ao descrever a atuação de um esquiador ou pianista. Estes prescindem do controle da mente e “não gostam da consciência que não lhes prestam nenhum serviço [...] a aprendizagem mergulha os gestos na escuridão do corpo; alíás, os pensamentos também; saber é esquecer. A virtualidade ágil e a passagem para a ação exigem um certo tipo de inconsciência” (SERRES, 2004, p. 43). Para habitar melhor nosso corpo e termos um comando sobre ele é preciso esquecer-mos dele, ao menos em parte, num jogo entre embrar e esquecer, estar consciente e inconsciente. Grotowski, a exemplo, sugeria ao ator buscar não ideias justas, mas práticas justas. É pelo corpo, como um todo, que o aprendizado se debruça. Grotowski sabia empiricamente que a experiência da consciência está no corpo em ação, e emerge do organismo como um todo. Em vez da idéia cartesiana de corpo sendo “inspecionado” pela mente ou espírito, ou de um “homúnculo” controlando tudo, haveriam estados auto-organizativos sucessivos do próprio organismo como um todo. Peter Brook, Eugenio Barba e o diretor brasileiro Antunes Filho seguem trilhas semelhantes, cada qual com sua metodologia, quando buscam o ato total do ator pela ação do seu corpo na experiência. Stanislavski e Meyerhold já sinalizavam o aprendizado do ator como resultante da experiência de seu corpo em ação no mundo, sintonizados com as teorias comportamentalistas de sua época. Março 2009 - N° 12

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U rdimento A ideia do eu como uma “unidade em movimento”, ou seja, encarnado, leva a novas maneiras de enunciar razão e emoção. Se o eu nos apresenta uma dificuldade em ser apreendido, parece ser mais por seu estado de constante mutabilidade, de movimento que se faz e se desfaz, do que por sua herança cartesiana de inexistência no mundo físico. O que dificulta a sua descrição como algo que “é”. É justamente por estar em movimento, e ocorrendo num organismo vivo, que o eu e suas manifestações não podem mais ser apresentados como fenômenos desencarnados, entidades não físicas. Entendidos como manifestações do eu, estão a emoção e a razão. E no teatro do século XX, os enunciados sobre estas questões ainda se repetem. A emoção é tratada como coisa do espírito e, por isso, evanescente, e, justamente por Constantin Stanislavski (1863-1938), indiscutivelmente um dos diretores mais influentes e importantes desse século, ainda que ele tenha revisto seus métodos iniciais. O pensamento discursivo, por sua vez, é tratado pela grande maioria dos diretores de atores como impeditivo para uma atuação plena e criativa do ator. Os conceitos sobre razão e emoção, se revistos através um viés “encarnado”, dotados portanto de movimento e corporalidade, propiciam uma revisão destes tradicionais dualismos do pensamento ocidental. A mente não pode ser mais vista como algo extrínseco ao corpo, mas, antes, o próprio modo de operacionalidade do organismo. E o processo racional, muitas vezes, torna-se o vilão muito mais pelo tipo de pensamento que o caracteriza, do que pelo próprio ato de raciocinar, presente inexoravelmente no homem. As ciências cognitivas, mesmo que em enunciados diversos e, por vezes, não concordantes entre si, salientam a operacionalidade biológica dos conceitos de auto-organização e das referências neuronais para desmistificar certas abordagens que apresentam as questões da mente e consciência como inefáveis, por verificarem que é no próprio organismo que elas se organizam. Não fosse a possibilidade de sentir os estados do corpo, lembra Damásio (1996, p. 16), “que estão inerentemente destinados a serem dolorosos ou aprazíveis, não haveria sofrimento ou felicidade, desejo ou misericórdia, tragédia ou glória na condição humana”. Para tratar da interação corpo-mente, e de um ator que, antes de tudo, pensa com seu corpo, os diretores optaram por um entendimento do conhecimento como ação experenciada pelo corpo, e não só como reflexo de processos mentais ou racionais. As questões do corpo em ação na experiência teatral tornou-se, para os diretores de atores, uma via de transcendência: de uma postura lógico-discursiva ou psicológica, presente nos procedimentos mais tradicionais de formação do ator, para uma forma de atuação mais imediata ou, com menos mediações possíveis, do corpo/ mente do ator no mundo. Negando um tipo tradicional de representação, os diretores de atores olharam para distintos procedimentos em determinados "Ser" um corpo: a impregnação da consciência pelo movimento. Sandra Meyer

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U rdimento períodos: Stanislavski cedeu à memória corporal do ator, Artaud clamou por um corpo com densidade voltaica, não separado da mente, Grotowski dirigiu-se à organicidade dos rituais, Barba às formas de energia do ator presente nas tradições da dança e do teatro orientais, e o diretor brasileiro Antunes Filho, ao pensamento budista. Ao tentarem superar o dualismo mente-corpo, os diretores de atores citados apresentam a perspectiva do pensamento fundir-se na ação, de um “pensar em ação”, “pensar em movimento”, ou de um “corpo que pensa”, tentando aproximar intenção e ato. Eles atribuíram ao corpo do ator a possibilidade de desencadear o conhecimento, ampliando, a seu modo, o conceito de cognição enquanto procedimento exclusivamente mental. Porque o conhecimento parece mesmo ser desencadeado pelo corpo em ação no mundo, os diretores de atores aqui citados apontaram para as técnicas corporais como a maneira mais consistente para os processos de aprendizado do ator – o que ampliou esta opção para além do ambiente sócio-cultural propício às questões do corpo que se estabeleceu desde o início do século XX. O entendimento de um corpo que pensa, não dissociando-o da mente, pode ser lido de forma similar nas teorias cognitivas através do conceito de mente encarnada, corporificada, defendida por Damásio e Varela. Ainda que os diretores de atores não descrevam sua opção pelo corpo via ciências da cognição, inseridos num mesmo meio ambiente, arte e ciência enunciam discursos semelhantes. Se visto sob este prisma, o conhecimento passa a ser, então, corpóreo. Não só porque serve-se da anatomia do corpo, mas porque é encarnado, vivido em ação na experiência. O corpo (enquanto organismo) agindo no mundo desencadeia os processos cognitivos. O cérebro, ou o sistema cerebral, como lembra Damásio, é extremamente dedicado aos interesses do corpo. É o mais fiel e cativo público das atividades teatrais do corpo que, já carrega, em si, doses de razão e emoção em seu circuito operacional neuronal. Sem a participação do corpo em movimento e o que ele apresenta como referência aos processos mentais, não há ação ou cognição possível.

Referências bibliográficas BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel. Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Hucitec, 1995. BROOK, Peter. O Ponto de Mudança. Quarenta anos de experiências teatrais: 1946-1987. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. DAMÁSIO, António. O Erro de Descartes. Emoção, Razão e o Cérebro Humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. _______. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Março 2009 - N° 12

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U rdimento DELEUZE, Gilles. Deleuze/Spinoza. Les Cours de Gilles Deleuze. Cours Vincennes. Paris, 24 jan 1978. Disponível em: Acesso em: 24 mai 2009. DENNETT, Daniel. Tipos de Mente. Rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DESCARTES, René. Discurso do Método. Meditações. São Paulo: Martin Claret, 2008. GIL, José. Abrir o corpo. IN: FONSECA, Tânia. ELGELMAN, Selda (Orgs.) Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre: Editora a UFRGS, 2004. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. _______. Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards. Palestra proferida no SESC Anchieta, São Paulo. 13 a 16 de outubro de 1996. GUIRALDELLI Jr., Paulo O Corpo de Ulisses. Modernidade e Materialismo em Adorno e Horkheimer. São Paulo: Editora Escuta, 1996. JANA, José Eduardo Alves. Para Uma Teoria do Corpo Humano. Lisboa: Epistemologia e Sociedade, 1995. MATURANA, Humberto. VARELA, Francisco. El árbol del conocimiento. Chile: Editorial Universitaria, 1994. MANTOVANI, Harley Juliano. Arqueologia Fenomenológica de MerleauPonty. Revista Eletrônica Metavnoia UFSJ. São João del-Rei, n. 5, p.43-54, jul. 2003. Disponível em: . Acesso em: 26 jul 2009, 23h30. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. VARELA, Francisco. THOMPSON, Evan. ROSCH, Eleanor. A mente incorporada. Ciências cognitivas e Experiência humana, Barcelona: Gedisa Editorial, 2003.

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Copeau e a máscara José Ronaldo Faleiro1

Resumo

Abstract

Este texto se propõe a apresentar alguns princípios e práticas desenvolvidos na Escola do Vieux-Colombier, de 1920 a 1924, em Paris, sob a condução pedagógica de Suzanne Bing e Jacques Copeau. Experiências aí realizadas, com o corpo em silêncio e com o rosto encoberto pela máscara, têm tido seguidores ao longo do século XX até os dias de hoje.

This paper aims to present some principles and practices originated from the Vieux-Colombier School (1920 - 1924), in Paris, under the direction of Suzanne Bing and Jacques Copeau. Pedagogical activities realised then, with the body in silence and with masks, are nowadays a reference in the theatre.

Palavras-chave: máscara, pedagogia teatral, formação do ator.

Keywords: mask, pedagogy of theatre, actor´s preparation.

All´alta fantasia qui mancò possa; Ma già volgeva il mil disio e ´l velle (...) Dante, Divina Commedia, canto XXXIII, vv. 142-3 do Paraíso. Leitor infatigável, Copeau certamente não desconhecia a posição milenar da Igreja em relação à máscara. Enquanto numa cultura como a japonesa, por exemplo, ela constituía um elemento imprescindível, no Ocidente cristão é vista como condenável, já que, com ela, os seres humanos pretenderiam não só transformar-se, mas também, de certo modo, «apagar a figura que Deus lhes deu» (BORROMEU, in MARINIS, 2000, p. 160). Tal concepção persiste dos primórdios do Cristianismo até, praticamente, o século XIX. Na segunda metade do século XVIII, as objeções à máscara por parte de Carlo Goldoni e Jean-Georges Noverre (para citar apenas os dois) residem no fato de que ela oculta o rosto, anula a sua individualidade e expressão. De fato, atraído pela sentimentalidade da época dos «Coœurs Sensibles» [Corações Sensíveis], que criará a Comédie larmoyante [Comédia Lacrimosa], Goldoni afirma que “a máscara causa muito dano à ação do ator: seja na alegria, seja Março 2009 - N° 12

1 Professor no Departamento de Artes Cênicas e no Programa de PósGraduação (Mestrado e Doutorado) do Centro de Artes/ Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutor em Artes do Espetáculo pela Universidade de Paris X – Nanterre, França.

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"A conquista da 'máscara' foi, para todos e para Marcello, um caminho progressivo que esbarrou num número impreciso de fatos: da falta de uma tradição viva, e, portanto de um hábito mental e físico, à falta de técnica verdadeira, de 'instrumentos' idôneos" (STREHLER, 1974, p. 170). V. também as considerações de Dario Fo sobre o fato, no Manual Mínimo do Ator (1998, p. 46-47) e MARINIS, 2000, p. 162-163). 2

na dor (...), é sempre o mesmo couro que se mostra, e por mais que gesticule e mude de tom, não comunicará jamais, pelos traços do rosto, que são os intérpretes do coração, as diversas paixões com as quais a sua alma se agita” (in CHANCEREL, 1941, p. 4), e Noverre, combatendo violentamente a máscara imposta até então aos bailarinos, pergunta, na carta IX das suas Lettres sur la danse [Cartas sobre a Dança], “por que a eclipsar [a fisionomia] no Teatro com uma máscara, e preferir a Arte grosseira à bela natureza? (...) Poderão as paixões trespassar o véu que o artista interpõe entre o espectador e ele?” (idem, ibidem, p. 6). Tal perspectiva ainda está presente na metade do século XX europeu (a estréia de Arlequim, Servidor de Dois Amos, pelo Piccolo Teatro de Milão, ocorre em 1947), a ponto de o ator Marcello Moretti considerar que a máscara exercia “uma espécie de tirania” sobre ele (STREHLER, 1974, p. 168)2. Na França, o Journal de bord des Copiaus [Diário de Bordo dos Copiaus] (GONTARD, 1974, p. 137 e 138) registra a aceitação e a reticência do público relativamente a espetáculos com máscaras realizados em maio de 1928 na Borgonha; e em 1932, HUSSENOT confirma que os franceses não gostam da máscara, “a pretexto de tratar-se de algo morto, rígido, inexpressivo, que não conseguiria substituir o rosto humano (...)” (1932, p. 8). Foi, portanto, dentro desse contexto de desconfiança em relação à máscara que Jacques Copeau utilizou esse objeto, muitas vezes tido por “um rosto falso atrás do qual esconder os traços da face com o objetivo de não ser reconhecido», e procurou torná-lo também um «instrumento capaz de revelar uma realidade oculta” (SARTORI & LANATA, 1984, p. 9). Ele não estava sozinho nesse proceder. Juntamente com nomes como Adolphe Appia, Constantin Stanislavski, Vesevolod Meyerhold, Jacques Copeau encarou a questão da renovação do teatro por meio da formação do ator. Como eles, desejou que o ator se tornasse um criador, que ultrapassasse a submissão ao texto escrito, adquirisse o domínio técnico de todos os seus meios de expressão e chegasse a uma composição artística não-naturalista que reduzisse ao mínimo a casualidade e as incertezas da inspiração, como ocorre com “as expressões de uma máscara ou os movimentos da marionete” (MARINIS, 2000, p. 165). Seguindo esse ponto de vista, ao referir-se ao “velho teatro japonês”, Charles Dullin confessa dever muito a este, por ter fortalecido as suas idéias sobre uma renovação do espetáculo teatral, e afirma que os atores japoneses, com sua perfeição técnica, “devem muito às marionetes e às máscaras” (1946, p. 59-60, 61), as quais, portanto, passam a ser modelos para um ator que deve ter controle sobre si mesmo (inclusive do seu rosto), visto que “tudo que é acidental é contrário à Arte” (CRAIG, s.d., p. 88). O primeiro exercício com máscara realizado na Escola do VieuxColombier, ainda em organização (1920), foi registrado pelas notas de Suzane Bing. “Diante de cinco ou seis amigos da casa”, numa terça-feira, 22 de junho, o Copeau e a máscara. José Ronaldo Faleiro

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U rdimento grupo de alunos apresentou a Copeau uma charada. Para representar o adjetivo “sujo”, o primeiro quadro se situava num banheiro, onde adolescentes assistidos pelo funcionário da escola faziam a higiene matinal. Um retardatário, ainda completamente adormecido, esfregava rapidamente a ponta dos dedos e do nariz. Usava uma máscara cinza; a dos colegas era branca (BING in COPEAU, 2000, p. 225). Bing observa que as pernas e os pés dos alunos parecem não participar do jogo, o que reforça a idéia de trabalhar corporalmente com eles (id., ib., p. 226). Segundo ela, Copeau percebe que “poderão ser feitas, principalmente com as crianças (...), coisas que nunca foram experimentadas em cena” (id., ib., p. 225). As suas notas de agosto de 1920 representam uma etapa fundamental na reflexão pedagógica de Copeau, que escreve em seu diário, em 13 de agosto de 1920: “(...) nada existirá enquanto não houver a Escola”. Por um lado, existe a idéia de um ensino articulado, compreendido não como ponto de encontro de várias técnicas, mas como o resultado de um método geral único. Por outro lado, ele se distancia dos “cabotinos do músculo” e da “afetação” que os novos métodos correm o risco de produzir. Em sua opinião, os problemas prioritários na formação do ator são: o conhecimento e a experiência do corpo humano e a busca de uma “sinceridade” compreendida como um estado de calma, de descontração, de silêncio, de imobilidade indispensável para chegar à expressão e para harmonizar ação externa e interna do ator, num agir/ reagir físico que não seja falseado por uma premeditação excessiva (COPEAU in JOMARON, 1992, p. 734-736). Assim, tratar-se-á, na Escola do Vieux Colombier (1921 – 1924) de ministrar cursos de cultura teatral, de cultura geral e, principalmente — na trilha de Craig, Stanislavski, Dalcroze — de disciplinas técnicas que visem a um treinamento corporal, gestual e vocal mais completo. Portanto, o ensino será baseado na educação corporal. O texto será um ponto de chegada, não de partida, o que não significa que sua importância fique diminuída. Na verdade, para que a palavra exista, na ação dramática, ou para que volte a ser “justa, sincera, eloquente e dramática”, o ator deverá ser, “acima de tudo, um ser que age, uma personalidade em movimento” (COPEAU, 1974, p. 114). A máscara na Escola é, então, o principal meio técnico e expressivo para os exercícios e para as dramatizações. Trabalhar com ela compreende, assim, uma série de exercícios gradativos. Da imobilidade e do silêncio com as máscaras neutras, até à dramatização coral. Os trabalhos práticos dos alunos, realizados a partir de dezembro de 1921, com a orientação de Louis Jouvet, foram consignados por Marie-Hélène Dasté num caderno (como fabricar e utilizar colas e óleos, corantes químicos e vegetais para tecidos e diversos materiais...) A primeira parte do caderno trata de Modelagem, Moldagem, Execução das Máscaras. Sete matérias e procedimentos diferentes foram tentados por sete alunos ou equipes. A receita foi conservada, quer se tratasse de cola e papel deixado de molho, de tarlatana colada, de pequenas tiras de papel e tarlatana, de moletom branco Março 2009 - N° 12

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U rdimento embebido em goma laca quente (com farinha espessante), de camadas de pano unidas por cola de pasta e reforçadas com tarlatana, com pano, tarlatana e reforço de papel para a testa e a face, e até pasta feita de serragem de madeira, de caulim e de água resinosa, cozida no forno... Tais máscaras não são perfeitas: pequenas demais, estreitas, impedem o movimento e a articulação das palavras. Machucam os atores. Aquecem sobremaneira, porque os olhos e a boca ficam excessivamente colados ao rosto. Algumas têm um cheiro desagradável e rugosidades dentro delas. Feitos em janeiro de 1922, os primeiros exercícios com máscara deram força e segurança aos participantes — “uma espécie de estabilidade e de consciência de todos os seus gestos e de si mesmo” (DASTÉ in COPEAU, 2000, p. 274). Copeau não desejava criar atores isolados das realidades práticas da cena, dos bastidores e do ateliê, mas sim seres polivalentes capazes de trabalhar, em equipes, para a realização de todos os instrumentos de um espetáculo. Assim, toda a última parte do caderno contém receitas de pasta plástica; de pomada e de pó para a pintura de Pierrot [Pierrô]; procedimentos de pintura e corantes com anilina; pintura a óleo e pintura com cola, sem esquecer, em cada caso, a limpeza dos pincéis e dos recipientes (id..ib. p. 275). Em reação a um ensino preocupado com “modelar ‘especialistas’ (...) tendo em vista um diploma ou um contrato, como se a prática de uma ‘especialidade’ não pudesse se coadunar com uma cultura geral” (CHENNEVIERE in id., ib., p. 276), o ensino da Escola do Vieux-Colombier “ganha força na sua unidade. Não basta que o programa seja rico e diverso: é preciso, sobretudo, que seja coerente. Não basta que os professores sejam peritos em sua parte, é preciso que colaborem efetivamente uns com os outros. (...)” (in id., ib. p. 277). Nas anotações relativas às atividades de 1921-1922, Marie-Hélène Dasté (in id., ib., p. 298-301) passa a limpo algumas aulas e projetos de exercício. Por meio dessas páginas, podemos inteirar-nos de princípios expostos por Copeau sobre o trabalho com a máscara: — Todo movimento é determinado por uma finalidade e tem a sua forma e o seu ritmo próprios. Para que um movimento seja legível, precisa ser contínuo, ir até o fim e tender a uma finalidade; — Ter o sentido dramático é poder apropriar-se de outrem: sair de si mesmo para apropriar-se de outrem, identificar-se a outrem. Não podemos doar-nos se não nos possuímos — (...) Para possuir a si mesmo, é preciso concentrar-se, recolher-se. É preciso um recolhimento anterior a qualquer ação. É nesse recolhimento prévio que se faz a préformação da ação. A pré-formação da ação é envolvida no silêncio do recolhimento — depois vem o suspense, o ataque, e por fim a ação. Copeau e a máscara. José Ronaldo Faleiro

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U rdimento — Estado — necessidade de adorar — instinto dramático — celebração — rito — culto — ação=drama — finalidade — movimento — ritmo e sentido dramático. — O suspense é o ponto intermediário, quase imperceptível, entre o recolhimento e o ataque. (...) — O movimento não é o complemento do texto — a ação é a coisa principal e a palavra é, ao contrário, apenas o seu complemento. — Todo movimento deve permanecer puro e simples, desenvolver-se até o fim, ser contínuo e ter um sentido. — Estado prévio a qualquer ação: recolher-se (silêncio, descontração) recolhimento (pré-formação) suspense ataque. — Toda expressão tem um movimento, seja exterior (centrífugo), seja interior (centrípeto). — Para ser dramática, uma expressão precisa ser legível; para ser legível, precisa ter um sentido e ser contínua. — O corpo é o instrumento, o meio de expressão. Quando uma parte desse instrumento foi impressionada ou tocada, essa parte é a primeira que se estende, que se dirige para a coisa que a tocou ou impressionou, e leva consigo todo o corpo. A direção é dada pela parte do corpo mais sensível à causa da ação. — Se alguma coisa toca a vista, começa-se por virar os olhos para o ponto que os atrai, e depois a cabeça acompanha o movimento e puxa inclusive o corpo. A direção é dada pelos olhos. — Ouvir: é o ouvido que se estica e dá a direção ao resto do corpo. — Para pegar, é a mão que se estica primeiro e dirige o movimento que se desenvolve até ser ultrapassado o espaço necessário para pegar o objeto (...). — Todo movimento deve ter uma progressão constante. Ele não pode chegar a um grau muito forte e depois recair, e depois subir novamente, sem perder a sua forma e tornar-se incompreensível para o espectador. Considerando que, “com a máscara, sentimos subitamente uma força e uma segurança totalmente desconhecidas” e que, “com o rosto encoberto, recobra-se confiança e ousa-se o que nunca se ousaria com o rosto descoberto”, já que “a máscara impõe grande força e amplitude em cada movimento, exige movimentos completos e desenvolvidos até o fim, que tenham o mesmo caráter calmo, regrado e forte, o mesmo estilo que a própria máscara”, e que Março 2009 - N° 12

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U rdimento “expressamos com a máscara de um modo muito mais legível e impressionante sentimentos que se tem o hábito de expressar pelo jogo do rosto”, são executados na Escola exercícios com máscaras (o texto não explicita de que tipo de máscaras se trata), para dar-se conta da importância das mãos quando o rosto é substituído pela máscara; para escolher o movimento ou a posição — um(a) só — mais expressivos daquilo que deve ser expresso, e o levar ao seu mais alto grau de desenvolvimento; para perceber a direção e a continuidade da ação, e a relação de duração entre as várias fases da ação (in id., ib. p. 301-305). Vejamos dois exemplos de exercícios sobre a direção e a continuidade da ação: Exercícios feitos por Monique: 1º/ a parte atraída do seu corpo é o olho. Seu movimento tem por direção o assoalho. a. o começo: ela põe a máscara. b. ausência de ação ou outra ação prévia: ela caminha na sala de cabeça baixa. c. percebe no chão um pedaço de linha ou um alfinete. Sua caminhada é suspensa gradualmente. d. ela vê, olha com atenção. e. a curiosidade desencadeia o movimento, que se desenvolve para baixo, guiado pelo olho, que olha para o chão — o corpo se dobra na direção do objeto. Quando se acocora no chão, sua mão estica com apenas dois dedos estendidos, porque o objeto é muito pequeno. f. ela toca o objeto, pega-o — ela o examina, e depois o joga fora: fim da ação. 2º/ a parte atraída do seu corpo é o ouvido. O seu movimento tem por direção o lugar de onde vem o som que ela percebeu. a.o começo: ela põe a máscara. b.ausência de ação ou outra ação prévia: sentada no canto da mesa, de viés, com as costas voltadas para a porta, de onde virá o som que vai impressionar o seu ouvido, ela está lendo um caderno. c.percebe o som. d.seus olhos abandonam o caderno — ela escuta — a atenção nasce; guiada pelo ouvido, a sua cabeça se desvia levemente — depois o corpo, seguindo o mesmo movimento, começa a virar, enquanto a mão que segura o caderno cai sobre os joelhos; um primeiro pé toca o chão, ela pousa o caderno, desce completamente da mesa, escuta de novo, imóvel (plataforma); sempre guiada pelo ouvido, começa a caminhar na direção do som que ela Copeau e a máscara. José Ronaldo Faleiro

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U rdimento ouviu — o corpo está inclinado, guiado pelo ouvido — perto da porta ela escuta novamente. e.depois as mãos se aproximam da porta — ela abre, escuta, e a fecha outra vez: fim da ação.» (in id., ib., p. 303). No decorrer do mesmo ano, foram praticados também exercícios de conjunto, com indicação de tempo. Os exercícios individuais, improvisados, possuíam títulos: O ser que vai comer geléias no armário, O roubo, O ser que se sentou num formigueiro, Um ser que saiu à noite no vento e na chuva, Dor de barriga, Batalhas, O despertar dos seres depois do inverno, O ser que está com frio e que desabrocha no sol. Este último foi improvisado diante dos espectadores no exame de fim de ano, em 1922: Ela chega. Atitude ensimesmada, braços cruzados. Tirita de frio — Dá umas olhadas súplices para o sol — Olha ao seu redor — Senta-se tiritando de frio; enfia a cabeça entre os joelhos — Faz uma bola com o corpo — Breve pausa — Depois começa o desabrochar do pequeno ser, causado pelo sol que sai das nuvens. A seguir vem o despertar, que continua, e acaba o desabrochar e o degelo do ser paralisado pelo frio. (in id., ib., p. 306-7). Constam também da relação mais de um jogo com diabinhos, nos quais os atores-aprendizes contracenam com um fantoche, carinhosamente chamado por eles de Goldoni, em homenagem ao dramaturgo italiano. Esses jogos serviram para formar «um coro de demônios em surdina que dão uma idéia da perfeição» (DUBECH in id., ib., p. 312). Vê-se aqui a interligação da Escola com o Teatro do Vieux-Colombier, pois em 16 de junho de 1922 estreou, com a direção de Copeau, Saül [Saul], de André Gide. Na ocasião, um crítico assim se pronunciou: O Sr. André Gide não tem bobos da corte, como Shakespeare. Ele os substitui por uma trupe de demônios que é pitoresca, inquietante, burlesca. O Sr. Copeau se empenhou em nos apresentar essa companhia de personagens irreais. São quase animais. Fazem pensar nos macacos que conversam com as feiticeiras de Gœthe. Os papéis são confiados aos alunos do Vieux-Colombier. Eles evoluem com arte. Seus movimentos, suas atitudes são admiráveis. Suas máscaras são expressivas e tristes. (...) Em Saül [Saul], os demônios rondam o trono, brincam com o cetro e com a coroa, esvaziam a taça régia. Um deles salta nos ombros do soberano errante. (...) As entradas dos demônios merecem toda a nossa admiração (...) (NOZIÈRE in id., ib., p. 311) Março 2009 - N° 12

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U rdimento 3 Esses exercícios serão reutilizados mais tarde na Borgonha, no trabalho dos Copiaus, e, em Paris, no dos Comédiens Routiers [Atores Itinerantes]. 4 O projeto mais importante diz respeito a duas fábulas: La belle au bois dormant [A Bela Adormecida no Bosque] e Le chant du jeudi [O Canto da Quinta-feira]. — Esse tipo de trabalho foi retomado por Chancerel com os Comédiens Routiers [Atores Itinerantes]. 5 Notas de Vitray para a abertura das aulas (programa de novembro de 1923): "(1) Utilização da máscara para aumentar a consciência das possibilidades do corpo; (2) pôrse em estado de disponibilidade; (3) continuidade, direção do movimento: a parte do corpo mais interessada guia o movimento; (4) desenvolvimento do sentido da duração e da estrutura de uma cena, por meio de improvisações de duas a quatro pessoas, estabelecendo claramente o início, o ponto culminante e a conclusão;

No exame de fim de ano, em 1922, foram apresentados nove exercícios de máscara. Um deles, intitulado As Feiticeiras, foi inventado e executado coletivamente, a partir de uma série de exercícios simples, individuais e coletivos (continuidade do movimento, atenção, escutar e perceber; sentar-se, levantar-se em diversos tempos, exercícios preparatórios à composição dos demônios de Saül [Saul] (DASTÉ in id., ib., p. 313, 315). Portanto, as máscaras expressivas, evitadas no início dos estudos, devido ao risco de influenciar o aluno e de falsear o seu modo de trabalhar, foram gradativamente utilizadas durante essa educação do movimento silencioso, quando o aprendiz já tivesse condições de assumi-las sem afetação, após ter-se familiarizado com a máscara nobre (neutra), e ter feito exercícios de mimo alegórico (O Cansaço, A Fome, O Medo, etc.), base das improvisações e das dramatizações dos anos seguintes3. Com improvisações de grupo, foram estudados também o movimento não humano e as personagens-tipo da Comédia Nova (um dos objetivos de fundo de toda a pesquisa de Copeau), integrando os estudos de pantomima com os exercícios fonéticos e verbais, e relacionando os exercícios com o estudo da cultura e do teatro gregos nos cursos abertos (direção de Louis Jouvet, Georges Chennevière e Copeau), o que convergiu para uma versão do mito de Psique, composta, recitada, dançada e cantada coletivamente. O estudo da máscara prosseguiu no segundo ano (1922 – 1923), juntamente com o do mimo, no curso de Educação Dramática (integrado com os outros, sobretudo com Teoria e Dicção). Prosseguiu também o trabalho de dramatização de fábulas, mitos e provérbios4. Foram incorporados então os conceitos de base da escola: o movimento estilizado (pantomima); as máscaras; a composição rítmica. No terceiro ano (1923 – 1924) os alunos foram estimulados a desenvolver as pesquisas sobre o mimo, a máscara, a voz, os grommelots [gromelôs, blablação] e as improvisações sobre personagens-tipo, por meio de novos exercícios mais complexos e roteiros mais longos5. Esse trabalho resultou em dois espetáculos de conclusão da experimentação pedagógica de Copeau no Vieux Colombier: Kantan6 e uma antologia de trechos variados como apresentação de fim de ano. O trabalho de ator realizado por Jacques Copeau não visava, portanto, a tornar o ator um virtuose do músculo, um atleta ou um saltimbanco, mas um ser humano consciente de suas possibilidades expressivas. Adquirida a expressividade física, tratava-se de pôr o corpo do ator a serviço do poeta dramático e do encenador. A expressão do corpo em silêncio, a improvisação silenciosa e o uso da máscara, na Escola do Vieux Colombier, desempenhavam uma função instrumental. Não constituíam um fim em si mesmas. O caminho ia da privação inicial do texto à sua redescoberta, no final dos estudos. A apresentação de fim de ano dos alunos iniciava sempre por exercícios puramente físicos, e acabava pelas dramatizações coletivas faladas, depois de haverem sido Copeau e a máscara. José Ronaldo Faleiro

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U rdimento propostos vários exemplos de improvisações mímicas e sonoras, individuais e coletivas. Nessa trilha, os espetáculos dos Copiaus e dos Comédiens Routiers [Atores da Estrada], os primeiros passos do mimo corporal de Decroux e dos mimodramas de Barrault dão grande importância às cenas mimadas. Pouco a pouco, pelo que Barba chama “a deriva dos exercícios”, o que era um meio se torna um fim em si. Ao fechar a Escola e o Teatro do Vieux-Colombier, em Paris, em 1924, Jacques Copeau instalou-se na Borgonha, primeiramente em Morteuil, depois em Pernand-Vergelesses, com trinta e cinco pessoas, para constituir uma espécie de laboratório de pesquisas e produções teatrais. A aventura teve duração efêmera (de outubro de 1924 a fevereiro de 1925), devido a problemas financeiros. Os remanescentes em Pernand fundaram a companhia intitulada Les Copiaus. O seu Journal de bord [Diário de Bordo] (GONTARD org., 1974) registrou os fatos significativos da trupe (1924-1929): pesquisa de personagens, improvisações, trabalho corporal e vocal, confecção e utilização de máscaras, cujo ensino foi atribuído a Marie-Hélène Dasté. Ao abandonar Paris e o seu teatro/escola, Copeau queria dedicar-se à preparação de uma «Comédia Nova», com a busca de tipos fixos atuais (o burguês, o nobre, o vendedor de vinho substituiriam Arlequim, Pierrô, Colombina). Gerações sucessivas adotaram, direta ou indiretamente, a prática e os ensinamentos de Copeau (Charles Dullin, Louis Jouvet, Léon Chancerel, Étienne Decroux, Jean Dasté, Jacques Lecoq, Ariane Mnouchkine), na França e através do mundo. Suas considerações sobre a máscara continuam a fornecer elementos de reflexão: O ator que atua com máscara recebe desse objeto de papelão a realidade da sua personagem. É comandado por ela e a ela obedece irresistivelmente. Assim que a põe, sente surgir nele uma existência de que (...) nem sequer suspeitava. Não é somente o seu rosto que se modifica, mas toda a sua pessoa, o próprio caráter dos seus reflexos, em que já se pré-formam sentimentos que ele era igualmente incapaz de experimentar e de fingir com o rosto descoberto (COPEAU, 1929, p. 14-15).

Referências bibliográficas

(5) o estudo das relações entre as partes de uma ação e de uma improvisação — idéia da construção dramática; (6) mimo e trabalho coral para desenvolver a sensibilidade em relação ao espaço dos outros atores e a adesão à estrutura de base por meio de jogos, charadas e histórias, como pura improvisação". — V. Marco DE MARINIS (1993, p. 87). A apresentação de um Nô é justificada pela oportunidade que ele dá a Suzana Bing de reunir os estudos musicais, dramáticos e plásticos que haviam sido trabalhados durante três anos. Além disso, trata-se de interessar-se pela forma dramática mais rigorosa, a que requer do intérprete uma excepcional formação técnica. O teatro japonês aparece como desafio e como formidável meio de verificação de três anos de intenso trabalho pedagógico. 6

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U rdimento

A MÁSCARA-OBJETO E O TEATRO DE BERTOLT BRECHT1 Valmor Beltrame2

Resumo

Abstract

O estudo pretende encontrar na obra de Brecht contribuições para o uso da máscara no teatro. Inicialmente trabalha com as contribuições deixadas por ocasião da montagem da peça O Círculo de Giz Caucasiano. Posteriormente concentra-se na análise da peça didática A Decisão. São evidenciadas as falas das personagens e a atualidade das mesmas para o ator que pretende usar a máscara como recurso na interpretação teatral.

This paper aims at exposing the contributions of Bertolt Brecht’s work to the use of mask in theater. First, we deal with the contributions made by the staging of the play The Caucasian Chalk Circle. Then we focus on the analysis of the learning play The Decision. Here we draw attention to the characters’ speeches and their contemporary aspects in order to help performers who intend to use the mask as a tool for stage performance.

Palavras-chave: máscara, ator, peça didática, Brecht.

Keywords: mask, learning play, Brecht.

performer,

O presente estudo pretende encontrar contribuições sobre o uso da máscara no teatro evidentes na obra de Bertolt Brecht (1898-1956). Sabemos que foi na montagem da peça O Círculo de Giz Caucasiano, em 1954, com o elenco do Berliner Ensemble que ele dirigiu primeira vez atores usando máscaras. Iniciamos esta incursão recorrendo às poucas informações contidas nos registros desta encenação. Posteriormente, concentramos o estudo nas contribuições contidas da peça didática A decisão. A escolha deste texto se dá primeiramente pelo enigmático que paira sobre o mesmo. “Poucas horas antes de sua morte, em conversa com Manfred Wekwerth, Brecht definiu A decisão (Die Massnahme), escrita em 1930, como modelo para o teatro do futuro” (KOUDELA, 1991, p. 59). Além disso, Brecht proibiu a encenação do texto, enquanto ele vivesse. E, por último, na leitura do texto encontramos formulações importantes capazes de gerar reflexões sobre o tema: máscara. Março 2009 - N° 12

1 Uma primeira versão deste artigo foi publicada na Revista Científica da UDESC em 1993. Para a atual publicação fizemos ajustes, adaptações e atualizações.

Professor no Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC. Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisa distintas manifestações do teatro de animação. 2

A máscara-objeto e o teatro de Bertold Brecht. Valmor Beltrame

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U rdimento As informações relativas ao uso da máscara-objeto efetuadas por Brecht, são escassas e dispersas. Sua obra constituída de Epische Schaustuecke peças épicas de espetáculo e Lehrtuecke - peças didáticas, além de prosa, poesia, teoria e escritos sobre literatura, política e sociedade, não está separada esquematicamente por temas e assuntos. Certamente isso se deve ao fato de ter produzido uma obra inteiramente ligada com a sua prática de diretor, encenador, poeta e Stücke-schreiber - escrivinhador de peças. Uma obra ligada com a poesia e o fazer teatral. A opção pela permanente investigação e observação crítica sobre o que fazia, contribuiu para que suas reflexões acerca deste tema estejam distribuídas ao longo de sua obra. É preciso considerar também a vida no exílio durante certo período de sua vida adulta e os problemas decorrentes das idéias e posições políticas implícitas em sua arte. Onde buscar informações sobre a máscara? Iniciar pelas montagens do Berliner Ensemble? Garimpar o Stücke-schreiber? Em seus escritos teóricos? Procurar na sua poesia? Principiar pelo parágrafo 70 do Pequeno Organon é um bom caminho: A exposição e sua comunicação por meio do estranhamento constituem a tarefa principal do teatro. Nem tudo depende do ator, ainda que nada possa ser feito sem o levarmos em conta. A fábula é interpretada, produzida e apresentada pelo teatro como um todo, constituída de atores, cenógrafos, encarregados das máscaras e do guarda-roupa, músicos e coreógrafos. Todos eles conjugam suas artes para uma ação comum, sem evidentemente renunciar à sua autonomia (BRECHT, 1967, p. 216). Pode-se constatar neste parágrafo, a necessidade de todas as artes ou habilidades atuarem numa perspectiva que contempla a unidade, isto é, estarem em função daquilo que Brecht considera fundamental, a fábula. O poeta chama a atenção para que se evite o uso ilustrativo da mesma, recaindo no fácil esteticismo ou formalismo. Fica implícita a negação do uso da máscara como mero adereço ou adorno. A máscara é utilizada como ferramenta a serviço do trabalho do ator, cuja tarefa maior é narrar a fábula através da sua atuação. Ao afirmar que “Todos eles conjugam sua arte para uma ação comum sem evidentemente renunciar à sua autonomia” o Stücke-schreiber chama nossa atenção para o pensamento dialético: “A marcha do conhecimento aparece assim como uma perpétua oscilação entre as partes e o todo que se devem esclarecer mutuamente” (GOLDMANN, 1979, p. 6). Ou seja, a máscara ou qualquer outro recurso (música, figurino, cenário) tem um valor em si, indispensável enquanto contribuição plástica e sígnica presente na sua forma e expressividade. A máscara-objeto e o teatro de Bertold Brecht. Valmor Beltrame

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U rdimento Mas este valor não está dissociado da totalidade do espetáculo. Pelo contrário, ao mesmo tempo em que essa expressividade constitui um valor particular, a máscara, perfeitamente integrada na encenação, auxilia na compreensão geral do espetáculo teatral. As informações sobre o uso da máscara pelos atores do Berliner, quando montaram o Círculo de Giz Caucasiano, sob a direção de Brecht, podem auxiliar o entendimento sobre a mesma. Philipe Ivernel (1988), estudando seu uso diz que nesta montagem os atores usaram a máscara rígida ou máscara-objeto cobrindo total ou parcialmente o rosto. A opção foi deixar as figuras populares ou as personagens subalternas com o rosto nu, e mascarar os ricos e poderosos. Aí já é possível observar o aproveitamento que Brecht faz da máscara como recurso estético e ao mesmo tempo, instrumento capaz de auxiliar na compreensão da obra. Nesta peça, que discute entre outras questões a propriedade, faz-se necessário evidenciar as diferenças de classes sociais, bem como destacar o comportamento dos personagens, possibilitando ao público a compreensão dos antagonismos existentes entres eles. O relato de um momento dos ensaios da peça, quando Helena Weigel interpreta a mulher do governador é significativo para essa compreensão. Ivernel conta que se sugeriu inicialmente, o uso de uma máscara inteira: Era uma máscara bonita, mas a sua confecção dava a impressão de personagem chinesa. Além disso, o efeito de sorrir quando ela se encontrava com o ajudante, se perdia. Brecht gostaria de mantêlo. Entra-se em acordo para utilizar uma máscara relativamente reduzida, nariz e olhos (IVERNEL, 1988, p. 162). Novamente a confirmação: a máscara é um instrumento a serviço do trabalho do ator para auxiliar na compreensão da fábula. Quando Brecht prefere manter o sorriso da personagem, mulher do governador, ao encontrar-se com o ajudante, e para isso elimina a máscara inteira, cortando-a e deixando apenas o nariz e os olhos, demonstra mais uma vez que prioriza o sentido, prioriza a apreensão do conteúdo que o texto e a interpretação do ator põem em discussão. A máscara é utilizada para destacar o Gestus Social que contém a palavra e a ação. Ao mesmo tempo, evidencia a máscara como elemento constitutivo do espetáculo: se o sorriso dessa personagem é importante quando se relaciona com o ajudante, a meia-máscara contribui para provocar a necessária expressão de surpresa/espanto no público, apontando assim, para uma personagem cujo comportamento precisa ser desvelado. Março 2009 - N° 12

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U rdimento O enigmático que a máscara pode provocar, longe de introduzir um elemento psicológico, aumenta a curiosidade, no sentido de desvendar a personagem, que se mostra, mas ainda não de todo. Existe algo ainda a ser compreendido na relação que se estabelece com Groucha, a criada, aqui representante da classe subalterna. Neste sentido, a máscara mostra o comportamento da personagem, é recurso visual e também é conteúdo narrativo (fábula). É notório que o uso da máscara interfere diretamente na representação, no trabalho do ator. Jacques Lecoq, diz que: “ela define os gestos do corpo e o tom da voz. Põe o texto acima do cotidiano, filtra o essencial, e abandona o banal, ela torna visível” (LECOQ, 1987, p. 115). Ariane Mnouchkine, referindo-se à experiência com máscara no Thêatre du Soleil relata: Se os atores que querem improvisar no teatro contemporâneo não encontram rapidamente os meios de tomar certa distância a fim de chegar a uma forma, eles correm o risco de patinar, de ficar no psicológico, no paródico, no superficial e outras armadilhas que nós queremos evitar. Nos demos conta de que a máscara impunha tal trabalho sob o signo teatral, sob a maneira de representar as coisas, que constituía uma disciplina de base e esta disciplina tornou-se para nós indispensável (MNOUCHKINE, 1988, p. 231). O diretor do Bread and Puppet Theatre, Peter Schummann, afirma que a máscara possui sua própria linguagem e que existe tão simplesmente por causa desta estranha relação de uma escultura com o corpo humano. Dario Fo, por sua vez, comenta: A máscara requer um conjunto singular de gestos e estilos. O movimento do corpo vai mais além do habitual movimento dos ombros. [...] Enquanto atua com a máscara os gestos do ator devem ser grandiosos e exagerados. [...] O ator que escolhe atuar com uma máscara deve passar por um regime especifico de exercícios para alcançar uma atuação perfeita - uma fluidez de movimentos que vem quase naturalmente. (FO, 1991, p. 8) As afirmações destes diretores confirmam a importância da máscara na montagem do espetáculo, na preparação do ator, na relação que se estabelece entre o ator e as figuras ou formas com as quais contracena. Brecht destaca mais um valor indispensável à máscara quando afirma que a mesma pode nos remeter a uma melhor compreensão da fábula e a evidenciar o Gestus Social: “todo elemento formal que nos impede de captar as causas sociais deve desaparecer, todo elemento formal que nos ajuda a compreender a causalidade social deve ser utilizado” (BRECHT apud PAVIS, 1999, p. 175). A máscara-objeto e o teatro de Bertold Brecht. Valmor Beltrame

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A Máscara em A DECISÃO O teatro épico, de acordo com Brecht é composto de uma dramaturgia que pode ser subdividida em tipologias, sendo uma delas as peças épicas de espetáculo - Epische Schaunstücke e as peças didáticas - Lehrstücke. Optamos por centrar este estudo nas contribuições da peça didática A Decisão. Antes de adentrar na análise da peça selecionada, faz-se necessário explicitar, mesmo que rapidamente, o conceito de peça didática e porque Brecht produziu este tipo de dramaturgia. Em Brecht: um jogo de aprendizagem, Ingrid Koudela diz que: “a peça didática estabelece uma nova relação com o público. No jogo teatral todos são atuantes e observadores de si mesmos e do Gestus Social. O escrevinhador de peças se preocupava com o processo de aprendizagem. Queria a mudança de atitude do participante de um experimento pedagógico”. (KOUDELA, 1991, p. 25). Noutro momento afirma: o ato artístico coletivo com a peça didática realiza-se por meio da imitação e crítica de modelos de atitudes, comportamentos e discursos. Ensinar/aprender tem por objetivo gerar atitude crítica e comportamento político. As peças didáticas são modelos que visam ativar a relação entre teoria/prática, fornecendo um método para intervenção do pensamento e da ação no plano social (KOUDELA, 1991, p. 4). Como é possível perceber, a peça didática torna-se instrumento para apreender o pensamento dialético. Pressupõe a superação do senso comum e exige atitude crítica, reflexiva. Implica em perceber que a metafísica é um instrumento limitado para compreensão da realidade, acrescentando-lhe a dialética. O jogo, a atuação e observação de si mesmo, o prazer de brincar, permite ao participante confrontar sua visão de mundo com a dos outros participantes e com as proposições feitas no texto dramático por Brecht. A observação e a reflexão de situações provenientes do cotidiano, apoiadas no texto dramático são o material de estudo. Conhecer o contexto social no qual as peças didáticas foram escritas e encenadas, também merece destaque e por isso vele recorrer aos estudos de Koudela: Brecht escreveu a maioria das peças didáticas em uma situação histórica na qual uma série de circunstâncias tornavam possível a sua realização. Havia grandes corais e teatros proletários que ansiavam por novas formas e materiais políticos. Havia grupos de radioamadores e de agitadores que necessitavam realizar seu trabalho político com meios musicais e teatrais simples. Março 2009 - N° 12

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U rdimento E havia (ao menos algumas) escolas que elaboravam uma pedagogia de vanguarda. Havia uma série de excelentes atores que dominavam o efeito de estranhamento e o método de interpretação épico. Havia, enfim, uma luta de classes aguçadas, e a consciência de classe era altamente desenvolvida. As peças didáticas eram escritas com vistas a essa situação cultural geral, como um meio de atuação política, entre outros (KOUDELA,1991, p. 8-9). A análise da peça didática A Decisão estará limitada ao texto dramático, uma vez que não dispomos de informações sobre a sua encenação sob a direção de Brecht. Esta peça conta a história de um jovem militante do partido comunista incumbido de auxiliar na revolução em marcha na cidade de Mukden. Tal tarefa é efetuada em segredo com outros três agitadores políticos vindos de Moscou. Numa grave circunstância, o jovem militante aceita ser morto pelos três agitadores para não ser obstáculo à causa comum. No retorno da missão, os sobreviventes se apresentam ao coro-tribunal para relatar a morte do companheiro. Para permitir um julgamento sereno sobre a atitude tomada, relatam, voltando atrás no tempo, os acontecimentos que os obrigaram a tal decisão. O coro ouve, discute e absolve os três agitadores. A transcrição de um trecho da cena 2 da peça, pode nos remeter novamente ao foco central deste estudo: Cena 2 - A Anulação O Diretor da Casa do Partido - (Entrega aos Quatro Agitadores as máscaras e eles as colocam) - A partir deste momento vocês não são mais ninguém, a partir deste momento, e talvez até o seu desaparecimento, vocês são operários desconhecidos, combatentes, chineses. Nascidos de mães chinesas, pele amarela, falando apenas chinês, no sono e no delírio (BRECHT, 1988, p. 241). É fundamental perceber a capacidade de síntese do dramaturgo alemão ao se referir à neutralidade exigida do ator que usa a máscara e à importância de não confundir traços da personalidade do ator com o comportamento da personagem que ele apresenta. Nesta pequena fala ele destrói a possibilidade da interpretação psicologizante, aponta para a personagem arquétipo, síntese e tipo social. A frase “a partir deste momento vocês não são mais ninguém” consegue reunir de forma sintética aquilo que muitos encenadores contemporâneos postularam sobre o uso da máscara. Além da perda da individualidade/ identidade, da negação do subjetivo, do particular, Brecht destaca a personagem tipo quando diz: “vocês são operários desconhecidos, combatentes, chineses” ou seja, refere-se a representação do genérico, do papel. A máscara-objeto e o teatro de Bertold Brecht. Valmor Beltrame

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U rdimento A fala dos Quatro Agitadores quando dizem no principio da Cena 2 - A Anulação: “[...] por isso precisamos, antes de atravessar a fronteira, anular nossos rostos”, é muito próxima de orientações que encenadores contemporâneos fazem a seus atores. Basta lembrar uma cena do filme Bodas de Sangue (texto de Garcia Lorca, dirigido por Carlos Saura) quando Antonio Gades, ensaiando os atores/bailarinos da companhia, dá conselhos aos mesmos: “- não movam as sobrancelhas ao entrar em cena [...]” (acompanhando os atores acrescenta): “- o olhar é fixo, não corre de um lado para outro.” Nessa visão, os traços pessoais, as particularidades podem comprometer a qualidade artística da cena. Sobrancelhas levantadas, olhos que correm de um lado para o outro, produzem uma série de expressões que provocam uma compreensão contrária da que a cena propõe. Por isso Gades solicita aos atores que “ao atravessar a fronteira, anulem seus rostos”. Ou, em outras palavras, que transformem seus rostos numa máscara, sem expressões particulares, pois eles representam um tipo genérico, o homem em geral, o ser humano. A proximidade da formulação feita por Brecht com as postulações feitas por diretores contemporâneos é visível. “Anulação”, neste caso, tem a conotação de omitir para fazer, negar para poder agir, conscientemente deixar de ser, mesmo que por um momento, para poder representar outro papel e assim realizar os intentos. Referindo-se a eliminação de particularidades e traços que caracterizam a individualidade da personagem Jacques Lecoq afirma: “A gente não pode imaginar a máscara se chamando ALBERTO e acordando no seu leito. A máscara é uma espécie de denominador comum dos homens e mulheres. Ela sintetiza o ser humano que existe no mundo e no qual todos podem se reconhecer” (LECOQ, 1987, p. 115). A diretora francesa Mnouchkine, ao reportar-se sobre a máscara diz: Ela faz ressentir as coisas com o corpo e não apenas com a cabeça. Mas o encontro com o espectador é essencial. A personagem mascarada existe desde de que agente a reconhece. E a gente reconhece porque ela exprime qualquer pessoa e ao mesmo tempo todas as pessoas que se assemelham a ela. É isso que a valida aos nossos olhos, o que ela nos faz descobrir de humano em nós (MNOUCHKINE, 1988, p. 232). Professores de Teatro e encenadores no Brasil tais como Ana Maria Amaral, Felisberto Costa, Heloise Cardoso, Jair Correia e o Grupo Fora do Sério, Maria Helena Lopes, Maria Thais Santos, Tiche Vianna, Venício Fonseca e Érica Retll no Grupo Moitará compartilham em seus trabalhos concepções muito próximas das apresentadas por Lecoq, Mnouchkine e Brecht. Certamente tais práticas são “contaminadas” e enriquecidas pelas idéias dos Março 2009 - N° 12

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U rdimento diretores europeus. Isso confirma, de um lado, a atualidade do pensamento do dramaturgo alemão e de outro, conforme Felisberto Costa (2006, p. 57), o entretecido antropofágico resultante das experiências efetuadas por artistas brasileiros proporcionou a eles uma liberdade criativa em que cada qual tece os seus próprios caminhos, dado que as escolhas não se atam de forma indelével às suas matrizes. Esta aparente perda da individualidade, o despir-se de sua identidade e traços pessoais, o convite para a representação da personagem tipificada, síntese do ser humano presente nas falas de Lecoq e Mnouchkine, estão sintetizadas na fala do Diretor da Casa do Partido: “–A partir deste momento vocês não são mais ninguém... vocês são operários desconhecidos, combatentes, chineses”. Mas, ao mesmo tempo, é interessante notar que a missão da qual tais personagens estão incumbidas só pode prosperar por sua contribuição individual. Assim, Brecht recupera a importância do particular, do individual em função do coletivo. Em seu diário de trabalho, numa nota do dia 21/04/41, faz comentário sobre o processo de despersonalização que ocorre no sistema capitalista onde o lucro, o consumo, e os valores individuais impedem o ser humano de se realizar plenamente: “assim como o capitalismo prepara os homens para a massificação para a depravação e desindividualização, ele cria o acervo comum do nada...” (BRECHT, 1977, p. 272). O poeta evidencia, mais uma vez, sua relação com os ideais humanistas do socialismo que negam as desigualdades humanas e sociais, defendendo a necessidade de construção das condições concretas para o homem realizar sua “humanidade”. Estas idéias permeiam as cenas da peça em estudo. Em A Decisão, a personagem Jovem Camarada, explicita seu desejo de trabalhar para que a revolução socialista se concretize, mas age de forma contrária a estes princípios. A sua insistente negação para metamorfosear-se aparece em diversas cenas: Cena I Os Quatro Agitadores - Primeiro fomos para a cidade baixa. Ali, os cules puxavam uma canoa pela corda na margem do rio. Mas o chão era escorregadio. Quando um deles escorregou e o inspetor bateu nele, dissemos ao Jovem Camarada: siga-os e faça propaganda entre eles. Diga-lhes que você viu sapatos para puxadores de canoas em Tientsin, com travas de madeira para não escorregar. Procure fazer com que eles exijam sapatos iguais a esses. Mas não tenha pena deles! E nós perguntamos: Você esta de acordo? E ele estava de acordo e foi depressa, mas logo ficou penalizado. (BRECHT,1988, p. 243) A máscara-objeto e o teatro de Bertold Brecht. Valmor Beltrame

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U rdimento Esta é a primeira cena em que o jovem camarada nega metamorfosearse, em assumir a máscara (papel), atitude fundamental da personagem para a concretização da tarefa do grupo. O seu sentimento anterior se sobrepõe à nova máscara (papel), que a missão exige, e ele é identificado (desmascarado) diante do inspetor que chicoteia os cules. Relacionando esta atitude do Jovem Camarada com o uso da máscaraobjeto, é possível afirmar que a representação fortemente apoiada nas emoções pessoais do ator pode comprometer a qualidade da interpretação. O objetivo do uso da máscara não é apagar a emoção no trabalho do ator. O efeito de estranhamento visa conter a emoção, assim, a máscara-objeto é usada como recurso para dar outra qualidade à cena, para evidenciar os gestos; ela não esconde, mostra; sua expressão aparentemente fixa lhe dá mais expressividade quando habitada pelo ator: auxilia na seleção de gestos mínimos e indispensáveis para mostrar cada ação, elimina gestos inúteis, em excesso, que normalmente comprometem a compreensão da cena: Cena 4 - A Pequena e a Grande Injustiça Os QUATRO AGITADORES - Fundamos as primeiras células nas fábricas e formamos os primeiros quadros, organizamos uma escola do Partido e lhes ensinamos a produzir clandestinamente a literatura proibida. Depois conseguimos ter influências nas fábricas têxteis e quando o salário foi reduzido, uma parte dos operários entrou em greve. Mas como a outra parte continuou trabalhando, a greve ficou ameaçada. Dissemos ao Jovem Camarada: fique no portão da fábrica e distribui os panfletos. O JOVEM CAMARADA (entrega um panfleto para um deles, o outro permanece parado ao seu lado) - Leia e passe adiante. Quando tiver lido, vai saber o que fazer. (O primeiro pega o panfleto e segue seu caminho) O POLICIAL (tira o panfleto do primeiro) – Quem lhe deu esse panfleto? O PRIMEIRO - Não sei, alguém me deu quando estava passando. O POLICIAL - (se aproxima do segundo) - Foi você quem deu o panfleto para ele? Nós da polícia procuramos aqueles que distribuem panfletos como este. O SEGUNDO - Não dei panfletos para ninguém. O JOVEM CAMARADA - É crime instruir os ignorantes sobre a sua situação? Março 2009 - N° 12

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U rdimento O POLICIAL - Os ensinamentos de vocês levam à coisas terríveis. Se vocês doutrinarem uma fábrica como essa, ela não mais reconhecerá o sue próprio dono. Esse pequeno panfleto é mais perigoso do que dez canhões. O JOVEM CAMARADA - O que está escrito ai? O POLICIAL - Isso eu não sei. (Para o segundo:) O que está escrito aí? O SEGUNDO - Não conheço o panfleto. Não fui eu quem o distribuiu. O JOVEM CAMARADA - Eu sei que não foi ele. O POLICIAL (para o jovem camarada) - Foi você quem deu o panfleto para ele? O JOVEM CAMARADA – Não. O SEGUNDO (para o primeiro) - O que vai acontecer com ele? O PRIMEIRO - Ele pode ser preso. O JOVEM CAMARADA - Por que você quer que ele seja preso? Você não é proletário também seu guarda? O POLICIAL - (para o segundo) - Venha comigo. (Bate-lhe na cabeça.) O JOVEM CAMARADA - (impelindo-o) - Não foi ele. O POLICIAL - Então foi você mesmo! O SEGUNDO - Não foi ele. O PRIMEIRO - Corre, homem, corre. Você está com o rosto cheio de panfletos. (O policial derruba o segundo.) O JOVEM CAMARADA - (aponta para o policial, falando para o primeiro) - Ele acaba de abater um inocente, você é testemunha. O PRIMEIRO - (agride o policial) Seu cachorro vendido! (o policial puxa o revolver) O JOVEM CAMARADA (grita) – Socorro/ Camaradas! Socorro! Estão matando inocentes! (O Jovem Camarada agarra o pescoço do policial por trás. O primeiro operário curva lentamente o seu braço para trás. O tiro dispara, o policial é desarmado e abatido.) A máscara-objeto e o teatro de Bertold Brecht. Valmor Beltrame

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U rdimento O SEGUNDO OPERÁRIO - (levantando-se para o primeiro) - Matamos um policial, não podemos mais ir à fabrica. (Para o Jovem Camarada) e você é o culpado. OS QUATRO AGITADORES - E ele teve que se pôr a salvo em vez de distribuir panfletos, pois o policiamento foi reforçado. (BRECHT, 1988, p. 248-251). Uma leitura superficial deste trecho da peça pode concluir que se trata apenas de desobediência do Jovem Camarada. Porém, confirma-se novamente a perda da perspectiva do coletivo, do comportamento dialético. O jovem Camarada não consegue fazer a metamorfose, suas emoções pessoais se confundem com o papel, com a personagem que deve representar. Faltalhe disponibilidade para o jogo, para sair e entrar na máscara-papel, e não consegue perceber os limites que a emoção impõe nesta situação. CENA 5 - O Que é um Homem, afinal? OS QUATRO AGITADORES - Lutávamos diariamente contra as antigas associações, a desesperança e a submissão, ensinávamos os operários a transformar a luta por uso de armas e a arte de fazer manifestações. Depois ouvimos que os comerciantes estavam brigados com os ingleses que dominavam a cidade por meio da alfândega. Para tirar proveito da briga entre os dominadores em favor dos dominados, enviamos o Jovem Camarada com uma carta para o comerciante mais rico. Nela estava escrito: Armem os cules! Dissemos ao jovem camarada: comporte-se de forma a conseguir as aramas. Mas quando a comida chegou à mesa ele não soube calar. O comerciante - (para o Jovem Camarada) E agora vamos comer meu arroz de boa qualidade. O Jovem Camarada (levanta-se) - Não posso comer com o senhor. OS QUATRO AGITADORES - Foi o que lhe disse e não houve zombaria nem ameaça que o levasse a comer com aquele a quem desprezava, e o comerciante o expulsou e os cules não foram armados (BRECHT, 1988, p. 252-254). O movimento como princípio para ação e reflexão é fundamental em Brecht. A incapacidade do Jovem Camarada, mesmo que momentânea, de parecer-se com o seu oposto, sua incapacidade de mascarar-se, impediu a concretização dos seus intentos. Falta-lhe a disponibilidade para encontrar no seu contrário o princípio capaz de gerar a transformação. O uso da máscaraobjeto exige a representação de ações claras, objetivas, concretas e dificulta a Março 2009 - N° 12

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U rdimento representação de abstrações, sensações. O ator precisa incorporar a máscaraobjeto ao seu corpo, ou seja, ter um domínio completo sobre a mesma. Quando o ator não tem uma convivência profunda e suficiente com a máscara, a mesma transforma-se em estorvo, impedindo a representação adequada. Ator e máscara ajustam-se em função da cena. A fala dos Quatro Agitadores ao Jovem Camarada: “[...] – comportese de forma a conseguir as armas,” é transparente para a compreensão de que se trata de uma competência a ser conquistada. A orientação de relacionar-se adequadamente com o “comerciante mais rico” feita à personagem poderia ser dita em outras palavras ao ator: ajuste bem a máscara ao teu rosto, prepare-se para representar adequadamente, abandone as emoções pessoais e assuma o desafio proposto para a personagem. Cena 6 - A Traição O JOVEM CAMARADA - Aqui há opressão. Sou a favor da liberdade! OS TRES AGITADORES - Cale-se! Você esta nos expondo. O JOVEM CAMARADA - Não posso calar-me, porque estou com a razão. OS TRÊS AGITADORES - Esteja ou não com a razão - se você falar, estamos perdidos! Cale-se! O JOVEM CAMARADA - Já vi demais.Não me calarei por mais tempo.Por que calar-me ainda? Se eles não sabem que têm amigos, como se levantarão? Por isso coloco-me à sua frente, Como aquele que sou e diz o que é. (Ele tira a máscara e grita): Viemos ajudá-los, viemos de Moscou.(Ele rasga a máscara). OS QUATRO AGITADORES E olhamos, e no crepúsculo vimos seu rosto desvelado, humano, aberto, sincero. Ele havia rasgado a máscara. E das casas os oprimidos gritavam: Quem incomoda o sono daqueles exaustos? E uma janela se abriu, e uma voz gritou: Aqui há elementos estranhos! Peguem os provocadores! Assim fomos descobertos! E já ouvimos os canhões. No centro da cidade, os ignorantes falavam: agora ou nuca! E os desarmados gritavam: saiam de suas casas! Mas ele não parava de berrar em plena rua. E o abatemos. O erguemos e deixamos rapidamente a cidade. (BRECHT, 1988, p. 261) A máscara-objeto e o teatro de Bertold Brecht. Valmor Beltrame

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U rdimento A descrição de trechos destas cenas da peça A Decisão evidenciam que as máscaras negadas pela personagem são o signo de uma resistência. A morte do Jovem Camarada se dá no limite de recusa dessa possibilidade de assumir novas e constantes máscaras-papéis, em função das exigências da realidade social. Sua insistência para permanecer imutável, sua negação ao movimento, à metamoforse, o condena. A cena A Traição é clara em relação à priorização ao compromisso e desejo do grupo e sobreposição ao individual, ao sentimento pessoal. Ou, conforme o professor Felisberto Costa: “dessa forma, distancia-se da psicologia de um indivíduo e busca um substrato comum a todos e não o particular” (2005, p. 34). Concluindo, é possível perceber o desejo de Brecht em ver um ator destituído de afetações, maneirismos e clichês, longe de uma interpretação psicológica, traído por frivolidades. O ator precisa lembrar a seu público que está fazendo teatro, representando, e com isso ajudando a desvendar as relações sociais entre os homens. Não quer um ator mergulhado nas emoções da personagem que interpreta, nem nas suas emoções pessoais. Para Brecht, o ator deve manterse inspirado na teatralidade da própria vida, prestando continuamente atenção ao que acontece ao seu redor, colhendo assim, material para seu trabalho. Nessa perspectiva a máscara não é só recurso ou técnica a serviço do ator, mas um valioso instrumento para a compreensão da arte teatral.

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DUAS VEZES UMA MULHER SÓ1 Maria Brígida de Miranda2

Resumo

Abstract

Este artigo analisa dois espetáculos distintos, realizados por grupos teatrais de Santa Catarina a partir da peça teatral Una Donna Sola, um dos monólogos que compõe Tutta casa, letto e chiesa (1977), de Franca Rame e Dario Fo. O texto de Rame e Fo pode ser visto como um representante do teatro político, mais especificamente do teatro feminista nos anos 1970. Ao abordar assuntos como violência doméstica e a falta de poder e agência das mulheres italianas o texto reflete não apenas as tendências da segunda onda do movimento feminista, mas também a luta de Rame e Fo para darem visibilidade à violência de uma sociedade patriarcal e um governo conservador.

This article analyses two different productions, staged by theatre groups in Santa Catarina, that were based on the play Una Donna Sola, one of the monologues that forms part of Tutta casa, letto e chiesa (1977), by Franca Rame and Dario Fo. Rame and Fo’s text can be seen as representative of political theatre, and more specifically, of the feminist theatre of the 1970s. In broaching subjects such as domestic violence and the lack of power and agency of Italian women, the text reflects not only the tendencies of the second wave of the feminist movement, but also the struggle of Rame and Fo to give visibility to the violence of a patriarchal society and of a conservative government.

Palavras-chave: Una Donna Sola, teatro feminista, estudos de gênero.

Keywords: Una Donna Sola, feminist theatre, gender studies.

O monólogo Una Donna Sola conhecido como Uma Mulher Só, bastante encenado no Brasil, foi trabalhado de formas bem distintas e inovadoras em uma produção de Florianópolis de 2003 de Malcon Bauer e Milena Moraes, e uma produção de 2006 da Metamorfose Companhia de Teatro, de Joinville. Ambas produções adaptaram o texto e conceberam os espetáculos de acordo com suas percepções do contexto brasileiro. Irei abordar alguns aspectos das adaptações do texto, tratando principalmente das estratégias de encenação usadas por cada produção e analisando tanto as opções que reforçam e radicalizam o formato e conteúdo feminista do texto original, como as que tendem a encobri-lo. Março 2009 - N° 12

Uma primeira versão deste texto foi apresentada oralmente no Seminário Internacional Fazendo Gênero 8: Corpo, Violência e Poder, na Universidade Federal de Santa Catarina, no Simpósio temático Atos de violência: representações de agressão à mulher no palco http://www. fazendogenero8. ufsc.br/st04.html. Agradeço os comentários dos participantes pelo debate enriquecedor, especialmente à minha colega, Profa. Lúcia Romano. Uma segunda e breve versão impressa foi publicada como divulgação no Jornal A Notícia em 29 de março de 2009, com o título Imersas em Ser Mulher. 1

2 Ph.D. em Teatro (La Trobe University/ Austrália), Master of Arts in Theatre Practice (University of Exeter/Inglaterra), Graduada em

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U rdimento (cont.) Educação Artística (UnB). Professora Assistente do Curso de teatro do CEART/UDESC, atuando no PPGT Grupo Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, na área de teatro feminista e gênero. É atriz e diretora teatral.

A primeira vez... Malcon Bauer dirigiu Milena Moraes na montagem de Florianópolis, de 2003. Tive oportunidade de assistir a apresentação em 2004 em uma pequena sala de ensaio do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). O espaço familiar e a encenação com alunas do curso já me permitiam uma sensação de familiaridade, quebrada, porém, pela dinâmica proposta para a entrada dos espectadores: Paula Bittencourt e Greice Miotello estavam com um adesivo colado à camisa que indicava seus nomes e sugeria que elas não estavam apenas fazendo contra-regragem, mas que assumiam um 'personagem'; personagem que tinha o nome delas. Paula e Greice, ao receberem os espectadores na porta de entrada da sala, mostravam seus adesivos e indicavam o assento nas cadeiras dispostas formando uma roda, um círculo de apenas uma fileira, onde Milena Moraes já ocupava uma das cadeiras. Paula e Greice indicavam que mulheres deveriam sentar-se em disposição circular e os homens deveriam sentar-se em uma fileira em linha reta, distante dois metros do círculo. Próxima ao círculo, havia uma mesinha escolar com água e cafezinho, disponíveis para as participantes – sim, 'participantes' parecia ser a condição que a cenografia, a dinâmica do uso do espaço e a proposta de atuação impunham a nós, que chegamos como espectadoras/es. Um espaço exclusivamente de mulheres que aquele círculo criava reverberava as propostas de empoderamento e de proteção típica do que foi chamado por Shirley Castelnuovo and Sharon R. Guthrie de “gynocentric spaces” [espaços ginocêntricos] (1998, p.70). Ao investigarem a relação entre práticas feministas e artes marciais, fisiculturismo e práticas esportivas nos Estados Unidos, Castelnuovo e Guthrie apresentaram um estudo de caso do Dojo A Thousand Waves, um dojo só para mulheres, de treinamento de Seido karate. Para as autoras, a "diferença fundamental" que distingue este dojo de outros é a ênfase na "cooperação e equalidade" em vez da "competição e dominação" (Castelnuovo and Guthrie, 1998, p.73). Neste caso, uma conquista de práticas corporais e não intelectuais, em que o espaço ginocêntrico do Dojo contribui para o empoderamento de mulheres, por meio de uma prática física como experiência coletiva. A mesma noção do espaço ginocêntrico é encontrada nos grupos de mulheres ou grupos de consciência propostos no movimento iniciado pela New York Radical Women e se espalhando pelos Estados Unidos. O termo "consciousness raising" descreve o processo, pelas palavras de Anne Forer: Na Velha Esquerda, eles costumavam dizer que os trabalhadores não sabem que são oprimidos por isso, precisamos conscientizá-los. Uma noite em um encontro eu disse 'Alguém poderia Duas vezes Uma Mulher Só. Maria Brígida de Miranda

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U rdimento por gentileza, dar um exemplo tirado da própria vida de como experienciam a opressão enquanto mulheres? Eu preciso ouvir algo para despertar a minha própria consciência. Katie estava sentada atrás de mim e as palavras ecoaram na mente dela. Desde então ela meio que, fez delas uma instituição e a chamou de despertar da consciência. (apud BROWNMILLER, 1999, p. 21) [tradução da autora] Milena, como a personagem Maria, situa o texto de Rame e Fo em uma experiência similar de opressão como mulher, contada para o 'nosso grupo de conscientização'. Embora fosse uma representação, as opções de encenação e a performance de Milena tinham o potencial de fazer das mulheres não mais espectadoras, mas participantes, com a possibilidade de terem suas histórias pessoais de opressão também contadas. Embora isso não se tenha efetivado, pois a encenação não cria o momentum para a intervenção de outras participantes, a sensação é de uma potencialidade. Isso é acentuado pela participação de Paula, que sentada estrategicamente no círculo de mulheres articula de forma codificada sua participação: com um gestual advindo da dança e um murmúrio de palavras ininteligíveis em alguns momentos, a atriz faz o contraponto a Milena/Maria. Nesse contraponto, é como se Paula fosse a representante das outras mulheres que têm histórias para contar, mas que ainda se calam. Uma mão que se levanta e retorna, o gesto repetido, o olhar para o chão... a codificação da timidez, incerteza. Talvez, em algum outro momento, algumas vezes mulheres tenham rompido esta barreira entre ficção e realidade, personagem e pessoa e interferido realmente na cena, contando nesse grupo de mulheres as suas próprias vivências. No dia em que assisti isso não ocorreu. Quando assisti a esse trabalho, em 2004, duas opções de encenação me incomodaram e por isso me fizeram pensar em que medida esta encenação poderia ser pensada como potencialmente fazendo um teatro que poderia ser chamado feminista, mas que, por outro lado, reafirmava valores conservadores de uma sociedade patriarcal. Um destes aspectos era a presença de homens assistindo ao espetáculo, do lado de fora do círculo, mantendo, assim, a posição privilegiada do espectador no teatro de palco italiano. Nesta apresentação específica eu também com espectadora/participante era vista pelos homens, porém, sem poder vê-los - eu, e todas as mulheres ali presentes, paradoxalmente, éramos colocadas nessa categoria do corpo passivo. O meu corpo e o de todas as mulheres daquele círculo eram objetificados pelo olhar dos homens em fila, reinstituindo uma prerrogativa historicamente dada e construída, o olhar é masculino. Essa discussão é feita por Jill Dolan, no livro The Feminist Espectator as Critic, quando ela analisa as estratégias espaciais do teatro de palco italiano para destacar o corpo do ator e tornar anônimo e Março 2009 - N° 12

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U rdimento privilegiado o olhar do espectador. No caso do palco italiano a perspectiva e a iluminação contribuem para privilegiar e proteger o olhar do espectador e objetificar o corpo do performer. Estranhamente, mesmo que esta encenação de Uma Mulher Só tenha proposto um espaço bem diferenciado do palco italiano, criando até uma potencialidade para a participação da platéia feminina, o corpo masculino ainda permanecia com observador privilegiado, um voyer, pois preservado em sua fisicalidade pelo anonimato. Um outro aspecto que criava um conflito entre a categoria feminista, na qual tento inserir essa encenação, é o seu final. Enquanto no texto Maria, depois de expulsar de sua vida (matar?) todos os homens que lhe maltratam (cunhado atrofiado e tarado; o jovem amante; o vizinho voyer; o cobrador mafioso), espera pacientemente com uma arma em punho pela chegada do marido, e diz "pode vir que eu estou esperando", na encenação de Malcon e Milena, Maria, nesse grupo de mulheres, diz de forma triste e resignada que, apesar dos maus-tratos, cárcere privado e abuso que ela sofre do marido e dos homens que a circundam, ela deve continuar com o marido, pois, afinal, “ela tem os filhos e as contas para pagar”. Nesse momento, a minha sensação é a de estar em um grupo feminista de conscientização. Percebo-me em um grupo de apoio a vítimas de violência e terapia e, também, na situação da maioria das mulheres brasileiras que, desprovidas de renda própria ou dinheiro suficiente para construírem uma vida independente, estão resignadas à vida de convivência com dependência do próprio agressor. Como diretora, penso que algumas peças feministas tendem a, de alguma forma, mostrar uma situação de opressão e ao mesmo tempo apontar possibilidades de sair da opressão. Elas apresentam saídas. No caso de Uma mulher só, a saída para a mulher é radical, matar os homens, ainda que seja também uma metáfora; vemos a necessidade de destruir o homem enquanto opressor para que algo de novo apareça, para que uma nova mulher possa se estabelecer.

A segunda vez... Prédio da Fábrica Antarctica em Joinville, transformado em espaço cultural. A sala de teatro mantém a separação do espaço do palco e espaço da platéia. A platéia, em forma de U, demarca o espaço de palco semi-arena, onde cadeiras da platéia e palco estão no mesmo nível. Todo o piso do palco é preenchido por uma piscina de alguns centímetros de altura. Todos os objetos de cena estão dentro da piscina: à esquerda um tanque com uma torneira aberta deixa a água transbordar e cair no chão/piscina. Baldes, panelas, vassoura, um e outros objetos do universo considerado doméstico bóiam pelo espaço do palco. À direita, uma penteadeira de metal envelhecido, exibe a moldura oval Duas vezes Uma Mulher Só. Maria Brígida de Miranda

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U rdimento sem espelho. Meias-calça esticadas pelas pernas criam uma teia que demarca o limite físico e simbólico entre o espaço da personagem, o apartamento de Maria e o exterior/espaço cênico/espaço da platéia. Este cenário de Lucas David estimula o meu olhar, como espectadora, a ver os objetos, os artifícios que fabricam um certo modelo de 'feminino'. Neste caso, os objetos pessoais, a vestimenta para as pernas, são os próprios objetos que a aprisionam e a impedem de mover-se para fora. Essa construção cênica do corpo da mulher e suas prisões permeiam pelo menos mais dois aspectos da encenação, que eu gostaria de explorar aqui: o figurino e a fisicalidade das duas atrizes que simultaneamente interpretam a personagem Maria. O figurino amplia e aprofunda o questionamento já proposto pelo cenário. As roupas íntimas, rendadas e de nylon cor-da-pele que se multiplicam penduradas nos varais que cruzam o cenário, são, ao longo da peça, peças íntimas que são vestidas, retiradas, lavadas e novamente penduradas. Estes gestos não apenas marcam a intensidade da repetição e da força muscular envolvida nesse trabalho doméstico, mas são também atos e gestos que ao cobrir (vestir) e descobrir o corpo feminino, parecem-me, nesta encenação, subverter a esperada erotização do corpo das duas mulheres em cena. As atrizes teatralizam ações cotidianas de vestir e tirar calcinhas, sutiãs, baby-dolls, anáguas e vestidos sem apelar para os gestos codificados no universo do erótico/sensual/pornô. A ação cotidiana parece tirar das peças íntimas o valor de fetiche que, por sua vez, ao serem vestidas e retiradas, mostram os artifícios da erotização, no entanto, sem erotizar do corpo das atrizes. É importante notar que o corpo das atrizes está sempre vestido. Vestem um body, um macaquinho cor-da-pele, onde em pinceladas fortes e rápidas pintaram os dois seios, umbigo, vagina, nádegas e marcas de celulite. Ao ver o corpo das atrizes coberto por um body (curioso o nome usado em inglês para esta roupa: body = corpo), sou provocada, como expectadora, a perceber essa estratégia de representação do 'corpo da mulher'. As atrizes não expõem o que demarca no seu próprio corpo a diferença sexual entre homens e mulheres – vagina e os seios –, elas vestem e apresentam o que demarca a diferença sexual – body pintado – ou seja, passo a ver o corpo feminino (o sexo como biológico) como também uma construção, como uma representação. O artifício do body cor-da-pele de SOS uma mulher só, remete, a meu ver, ao argumento de Judith Butler em Problemas de Gênero. Judith Butler propõe a desnaturalização do sexo biológico, da diferença sexual como um fato da natureza. Para Butler, não apenas gênero, mas o próprio sexo são construções socio-culturais. O que tem esse body? A meu ver, David Lucas como artista, pintor, constrói o corpo da mulher, Maria. Ao pincelar, ele Março 2009 - N° 12

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U rdimento constrói o que é o corpo da mulher (o tronco, onde são pintados seios, umbigo, vagina, nádegas) e ao pintar a celulite, há uma demarcação da idade: uma mulher madura, e não uma menina ou jovem. De novo temos a reiteração de um modelo historicamente consolidado, o da pintura e o do binômio homem (sujeito/artista/agente/ativo) e mulher (objeto/ modelo/paciente/ passivo). Paradoxalmente, porém, este corpo 'de mulher', como categoria, construído pelo homem artista, cobre o corpo das duas atrizes. Estes corpos são visivelmente corpos treinados em regimes de dança e acrobacia, são corpos musculosos que em feitos de equilíbrio e força e truques acrobáticos apresentam uma fisicalidade oposta à fisicalidade de Maria enquanto donade-casa e vítima de violência. Essas camadas de corpos me remetem ao duplo ator de Bertolt Brecht e a forma de atuação permite que eu veja a personagem e veja a atriz ao mesmo tempo. Eu não me iludo que Sabrina ou Angêla são Maria, pois vejo Sabrina e Angêla representando Maria. Mais que isso, eu desconstruo a noção de fragilidade e incapacidade do corpo feminino ao ver duas mulheres demonstrando força e controle em cena, exatamente nos momentos em que a personagem está passando por uma crise histérica; crise de pânico e por um momento de devaneio. A atriz me ajuda a ver que a representação da histeria pode ser exatamente a forma de desconstruir a noção de que corpo feminino é naturalmente histérico e descontrolado. As atrizes também se permitem desconstruir e construir continuamente seus corpos enquanto belos, graciosos e femininos. Essas construções e desconstruções visíveis da feminilidade poderiam ser analisadas a partir de outra proposta de Butler, que seria ver a definição de sexo e o gênero, na chave do masculino e feminino, como uma performance que precisa ser continuamente repetida para criar a ilusão de naturalidade. Nessa encenação, vejo-me, novamente, ao final da peça, desorientada em função das opções da direção. O final do texto de Rame e Fo – as atrizes com armas em punho dizendo: pode vir querido... que eu estou esperando – é alterado de maneira perturbadora. Depois do final da peça/texto, as atrizes, em uma metáfora da limpeza, purificação e retirada do personagem do corpo, são banhadas por um anjo que, com um regador, joga água sobre seus corpos. Neste caso, o anjo é representado pelo mesmo ator que faz os outros papeis masculinos (o jovem amante; e o cunhado paralítico e tarado). Há a meu ver aqui uma tentativa de reconciliação entre os dois sexos proposta pela pela encenação. Mas em que medida esse final não re-estabelece a ordem simbólica patriarcal? O homem/anjo/sagrado sobe as escadas e de cima purifica com a água (benta?) as mulheres atrizes/marias? O anjo, assim, é homem, o mesmo homem que perpetua os atos de violência contra a mulher Maria é agora redimida e, do alto, aspergindo este líquido que tem um tom divino, seja pelo paradigma pagão, lembrando Zeus caindo como chuva dourada sobre o corpo de Dânae, Duas vezes Uma Mulher Só. Maria Brígida de Miranda

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U rdimento aprisionada em uma torre por seu próprio pai; seja pelo paradigma cristão, com a figura angelical anunciado à Maria – que se faz “a escrava do senhor” – para que seja feita a Sua vontade, nosso olhar, nosso corpo, onde ficam? E a história e inserção destas peças no contexto e proposta política de seus autores?

A terceira vez... por uma nova conclusão Concluindo, creio ser necessária uma terceira via, uma terceira vez. Penso deste modo em função dos conflitos que vivi como espectadora e que foram discutidos em ocasiões distintas com os membros dos dois grupos: Milena, Malcon, Sabrina, Ângela, Nando, Samuel e Lucas. Preocupou-me certa inconsistência fruto provavelmente da falta de um aporte teórico-crítico que poderia sustentar a encenação, na medida em que lidavam com uma peça feminista, embora em nenhum momento nestas encenações eles tivessem tido interesse de se colocar como feministas, apesar de ambos grupos quisessem tratar questões relativas as mulheres. Nenhum grupo, seja por convicção ou simplesmente por preocupação histórica, tem de representar peças feministas, mas se o fazem, é plausível que se exija certa coerência na proposta, o que naturalmente depende também de um suporte teórico na análise e interpretação de um texto que além de seu valor estético tem uma inserção política (sobre o tema, veja MIRANDA, 2008). Felizmente, a pesquisa em teatro e gênero tem crescido, no Brasil e no exterior. Acredito que poder debater esses espetáculos com os realizadores provocou também um novo olhar sobre o que estão construindo, e isso acarreta transformações na maneira de representar questões de gênero no teatro. No caso de Uma mulher só, espero que uma terceira via/vez venha à luz em Santa Catarina. Que bem vista e bem dita seja Maria, com arma em punho, tal qual foi concebida por Franca Rame e Dario Fo.

Referências bibliográficas CASTELNUOVO, Shirley & GUTHRIE, Sharon R.. Feminism and the Female Body. Boulder: Lynne Rienner. Place of Publication, 1998. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. DOLAN, Dolan. The Feminist Espectator as Critic. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1991. FO, Dario e RAME, Franca. Female Parts: One Woman Plays. Pluto Press: London. 1981. _______. Tutta casa, letto e Chiesa. 1977. Disponível em Acesso em 14 de agosto de 2009. Março 2009 - N° 12

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U rdimento MIRANDA, Maria Brígida de. Quem tem medo do teatro feminista? A experiência de Vinegar Tom: da pesquisa à sala de aula.Blumenau: Anais da I Jornada Latino-Americana de Estudos Teatrais, 2008. BROWNMILLER, Susan. In Our Time: Memoir of a Revolution. New York: The Dial Press, 1999.

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U rdimento

Corpo, corpus e corpa: da violência de Goody, de Vinegar Tom Fátima Costa de Lima1

Resumo

Abstract

Reflexões de uma atriz sobre a interpretação de Goody, personagem da montagem teatral de Vinegar Tom, encenada pelos formandos da Universidade do Estado de Santa Catarina no ano de 2008, sob a direção de Maria Brígida de Miranda. Goody tortura mulheres, seu ofício na Inquisição inglesa do século XVII. Os corpos torturados tornam-se, neste artigo, espelhos que revelam a violência de Goody contra seu próprio corpo de caçadora de bruxas.

This paper consists of an actress’ reflections on playing Goody, a character in the play Vinegar Tom, staged by the graduating class of 2008 at the University of the State of Santa Catarina and directed by Maria Brígida de Miranda. During the seventeenth century English Inquisition, Goody works torturing women. In this paper, the tortured bodies are seen as mirrors which reflect Goody’s violence against her own witch hunter’s body.

Palavras-chave: personagem, corpo, atriz.

Keywords: character, body, actress.

Uma mulher de idade avançada cuja profissão é praticar violência contra outras mulheres. Seu trabalho, além de normalizado e legal, é altamente estimado e estimulado numa época histórica em que o diabo assombra o corpo feminino e deve fazê-lo para que a instituição mais poderosa do Ocidente tenha como justificar tal poder. Esta mulher, certamente abençoada pela Igreja e seu Deus, é Goody, a assistente de outro personagem, um bemsucedido caçador de bruxas do Barroco inglês. Criação moderna de uma personagem clássica, a vilã barroca tem uma curta e forte aparição no final do texto dramatúrgico Vinegar Tom, criação original de Caryl Churchill com o grupo Monstrous Regiment. Como explica Cláudia Mussi (que também traduziu o texto para a montagem catarinense), a “primeira montagem de Vinegar Tom no Brasil, com tradução inédita, aconteceu na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) nas disciplinas obrigatórias Montagem I e Montagem II (2007.2/2008.1) sob a direção da professora Drª. Maria Brígida de Miranda” (Mussi, 2008, p.1). O espetáculo foi encenado pela turma de Março 2009 - N° 12

Professora do Departamento de Artes Cênicas da UDESC. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da História-CFH-UFSC. Atriz e cenógrafa. 1

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U rdimento formandos do Departamento de Artes Cênicas. Eu, autora do presente artigo, fui convidada para substituir a atriz titular da personagem Goody, Mariana Cândido, em algumas sessões de teatro. É, então, como atriz e pesquisadora que me apresento neste pequeno texto. Goody é uma personalização do paradoxo barroco. Representante do Bem Oficial, diminutiva, “boazinha”, ela encarna a fonte dos medos de todas as mulheres de que se aproxima. À primeira vista, é uma personagem objetiva e plana, quase estereotipada, em sua extrema certeza da função de assistente do inquisidor. Juntos, ela e Packer chegam a uma pequena vila para, com métodos eficazes, arrancar sob tortura a confissão de mulheres delatadas por suas próprias vizinhas. A peça, nas três quartas partes iniciais, desenvolve o enredo desta pequena cidade em que camponeses cruzam seus miseráveis cotidianos. As mulheres, de amigas cordiais ou vizinhas que se freqüentam, evoluem, por uma série de motivos aparentemente mesquinhos, a uma situação de delação em que algumas acusam outras de bruxaria e, por fim, acabam todos e todas na Praça Central à espera dos representantes da Inquisição. Obviamente, texto e espetáculo estão repletos de meandros dramáticos interessantes para a pesquisa teatral. Infelizmente, não poderei dedicar-me a eles, pois certamente não há tempo ou espaço para tal aprofundamento. Restringir-me-ei apenas ao final de texto e espetáculo, a partir do momento em que Goody e seu chefe surgem na cena. Quando os dois chegam ao palco, a mudança cenográfica é evidente. Temos aí uma ruptura abrupta, típica da fragmentação que Walter Benjamin (2004) atribui aos dramas trágicos do Barroco alemão. O pequeno aglomerado de poucas famílias recebe, com excessivo respeito devido ao máximo temor, as duas autoridades que deverão sentenciar as mulheres acusadas. De recatados cômodos de casas e clareiras de florestas que preenchiam o lento tempo de pequena cidade, a cenografia, com a entrada da dupla inquisidora, é a primeira a se modificar. Torna-se a praça principal, as câmaras de tortura e o cadafalso final onde serão enforcadas as pecadoras. A ambientação cênica é no mínimo interessante, pois, ao optar por um não naturalismo ou realismo, aposta na imaginação de espectadoras e espectadores para materializar diferentes espaços dramatúrgicos. Apesar de representantes do Terror, Goody e Packer não agem exatamente contra esta população: foram chamados pela cidade e, nas palavras de Goody para Alice, uma das mulheres penitenciadas, eles atuam “para sua próprio bem, sabe? Salvar você do diabo. Se deixarmos você ficar como está, será condenada para sempre e é melhor uma dorzinha agora do que uma eterna...” (CHURCHILL, 2008, p. 35). Goody é, por outro lado, extremamente consciente e orgulhosa de sua profissão. Segundo ela, Corpo, corpus e corpa: da violência de Goody... Fátima Costa de Lima

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U rdimento Na Inglaterra, não temos meios [de tortura] tão minuciosos [quanto os de outros países], nossos meios são lentos, mas eles acham a verdade no fim, quando um homem bom e habilidoso como Henry Packer está investigando. Ele vale tudo o que lhe é pago, e eu ganho o mesmo, o que é muita bondade dele insistir nisso. (Idem) Seu elogio ao chefe e evidente submissão não são mais do que uma estratégia para suportar sua própria crença na importância de suas ações. Ela segue, na continuidade de seu extenso monólogo, pregando as vantagens econômicas deste serviço: Embora algumas pessoas digam: ‘O que, o preço de uma vaca só para enforcar uma bruxa?’ Mas eu lhes digo que pensem no prejuízo que uma bruxa traz às suas propriedades, como uma vaca morta hoje, um cavalo amanhã2, sem contar as cabras e ovelhas e galinhas. Por este preço você obtém a sua salvação, além de se ver livre de alguma doença ou até de uma morte inesperada. (Ibidem) Mais do que uma ameaça, esta fala traduz a satisfação de Goody com o que faz, ao ponto de se permitir ser porta-voz de sua profissão ao público do teatro, a quem se dirige ao dizer esta fala, por opção da diretora do espetáculo. Mas, porque fala ao público do teatro? Quais são os possíveis sentidos da fala de uma inquisidora barroca ao público do século XXI? Porque uma personagem fictícia com cerca de quatrocentos anos de idade pode dirigir-se a espectadoras e espectadores de hoje? Como uma mulher como Goody ainda pode sobreviver, mesmo que no teatro, e gerar sentidos quando se pavoneia de ser uma eficiente torturadora de mulheres para uma platéia muda que a assiste?

Deve-se notar aqui que esta fala se reproduz aqui um pouco modificada em relação à tradução de Mussi, para dar voz à atriz tanto quanto à personagem. Na tradução original, se lê "como as vacas mortas, um cavalo", bem como "porcos e ovelhas e galinhas". 2

De Benjamin, sua pesquisa sobre o Trauerspiel – drama de luto, drama trágico ou drama barroco – alemão constrói, para além da análise do objeto artístico, uma ponte, fruto de uma arquitetura anamórfica, entre o barroco e o moderno. Contudo, a deformação, o excesso e a extravagância tão evidentes na personagem Goody talvez forneçam pistas para explorar vestígios de seu corpo em corpos femininos atuais. Devo esclarecer, antes de prosseguir, que não possuo competência ou intenção de explorar aqui um viés sociológico ou mesmo humanístico do corpo. O corpo desta mulher barroca escrita na década de 70 será confrontado brevemente com a fragilidade de outro corpo feminino, tanto quanto ele pode autoperceber-se nesta pesquisadora-atriz. É quase uma dissecação de cadáveres, bem ao gosto dos artistas e cientistas barrocos, o trabalho de retirar a lápide para exumar os ossos ou suas cinzas e colocá-los, como numa espécie de aula de anatomia comparada, juntos: um corpo historicamente morto e cenicamente vivo, o de Goody. Outro Março 2009 - N° 12

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U rdimento corpo, historicamente vivo, mas que precisou, de certo modo, morrer para deixar viver Goody, este é o corpo da atriz. Imaginemos, por um momento, dois cadáveres-fantasmas estirados sobre uma mesma e grande maca numa pequena e abafada sala de um IML qualquer, entregues às operações postmortem das ruínas dramatúrgicas de uma mulher segura e violenta e de outra mulher, insegura e quase desesperada na batalha que travou contra si mesma para promover a aparição de sua personagem. Este artigo torna-se então, ao mesmo tempo, cenotáfio e tumba. Cenotáfio, porque é a cova de um corpo que ainda não está ali, o corpo vivo da atriz. Tumba, porque Goody, assim como todas as mulheres do barroco, já não é mais do que esqueleto ou cinzas, vive apenas em nossa arte. Mais especificamente, a breve especulação sobre os corpos da personagem e da atriz talvez possam esclarecer um ao outro. O corpo de Goody pode ser mais do que uma mera máquina de torturar? Foi esta exatamente a agenda oculta da atriz em relação à personagem. A leitura alegórica da arte que propõe Benjamin sobre a dramaturgia barroca alemã fundamenta, neste viés, uma possibilidade da convivência de opostos - não o lugar do Belo, como sustentam as artes renascentista e romântica – numa mesma obra, no meu entender plenamente adequada a esta personagem cuja constituição advém, justamente, de seu íntimo distanciamento daquilo que ela é, uma mulher. A teórica francesa de arte Christine Buci-Glucksman (2002, pp. 7577), postula traços comuns entre a alegoria moderna e a barroca. Em primeiro lugar, a alegoria apresenta uma intenção destrutiva do real, desnuda-o e fragmenta-o, fazendo com que apareça em forma de ruínas. O que o corpo explícito da personagem Goody faz aparecer ao ser tratado como alegoria do corpo feminino? O que resta de seu andar seguro e sua voz de arauto da Inquisição após sua destruição alegórica? O que ela não mostra às mulheres amarradas que ela sacrifica com seus instrumentos de tortura? Se, como segue Buci-Glucksman, a alegoria, na arte, leva ao limite ótico da obra, aquele que permite ler entre o visível e o invisível, o que desta leitura decorre são ambivalências. Quais são as ambivalências de Goody? Quais as incertezas incrustadas na rigidez de seu corpo se, por uma análise crítica, fosse amarrado e perfurado à sua própria maniera de grande profissional da Inquisição? Na esteira de Benjamin, Buci-Glucksman afirma que as obras alegóricas barroca e moderna conduzem, ambas, a uma versão catastrófica e imaginária da história. Goody protagoniza, em Vinegar Tom, a catástrofe contra-reformista do século XVII. Mas, segundo Buci-Glucksman, a obra expressará aquilo que ela denomina como dois sentimentos. Um deles é do Trauer, do luto, sua dor e aflição. O outro, do Spiel, seu caráter transitório, seu movimento, sua passagem, seu jogo, seu teatro. Somente nestas condições a obra revela sua verdade. Assim, o corpo martirizado do tirano barroco do Trauerspiel de Benjamin atualiza-se Corpo, corpus e corpa: da violência de Goody... Fátima Costa de Lima

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U rdimento no corpo feminino moderno de Buci-Glucksman, para quem “a mulher não é somente a alegoria da modernidade. Ela é também o protesto heróico contra esta modernidade das grandes utopias antropológicas”. (Idem) Podemos ver Goody como uma figura destas “grandes utopias antropológicas”? Penso que sim, quando ela mesma declara que “Assim [sendo uma torturadora] eu me mantenho saudável mantendo este grande país saudável”? (CHURCHILL, 2008, p. 35) Não é ela quem comenta com seu chefe, o caçador de bruxas Henry Packer, que “Nós merecemos nosso salário”? (Idem) Não é ela quem desafia as maldições da velha suposta bruxa Joan Noakes em sua última fala sob tortura, imediatamente antes que a torturadora a arraste para seu enforcamento: “Quem acreditaria nisso [em você]?” (Ibidem, p. 39) Goody certamente faz parte dessa imensa antropologia do Ocidente que submeteu os corpos, no barroco, ao ferro e ao fogo, e hoje os submete à vigilância internalizada e generalizada de que fala Foucault (1999), panoptismo que nos libera das Goodys que nos vigiariam do lado de fora porque elas já vivem dentro de nós. Contudo, será possível perceber a Goody, invisível, fora de nós? Goody é a personagem que menos tempo permanece nas cenas de Vinegar Tom. Sobe por primeira vez ao palco no final do espetáculo e pouco fica, pouco fala. Entretanto, a autora lhe reservou o maior texto corrido deste texto teatral. Ademais, é uma das raras vezes em que uma personagem, neste espetáculo, dirige-se, solitária e sem contracena com o elenco, apenas ao público. Em sua fala, sozinha, paradoxalmente estabelece o diálogo a platéia atônita. Neste momento, ela enuncia as virtudes de sua profissão de caçadora de bruxas. Algumas falas já foram aqui anteriormente citadas. Agora vou me deter sobre uma outra que me incomodava como um zumbido insistente no ouvido enquanto trabalhava na criação da personagem. No final de seu “bife”, Goody defende seu ofício com os seguintes termos: “Melhor que ficar em casa sendo uma viúva. Eu terminaria como uma mulher velha, você vê, leve da cabeça e cheia de ódio com seus feitiços e poções”. (CHURCHILL, loc.cit., p. 35) Eis as questões que, para mim, ainda ecoam: o que teme Goody? De que essa poderosa mulher tem medo? Qual imagem ela possui, daquilo que teme? Referindo-se à sua outra possibilidade de vida, eu diria que Goody, em primeiro lugar, refere-se a seu próprio corpo: o corpo desta mulher, se não fosse uma caçadora de bruxas seria, simplesmente, o corpo da própria bruxa. Em sua própria imaginação, só há duas opções: ser torturadora ou torturada. Além de bruxa, uma mulher sem homem, porque “viúva”. Ora, é interessante reparar como, no texto, a condição de viúva é reservada à bruxa maior, delatada por suas vizinhas, em oposição à Margery, delatora, a única Março 2009 - N° 12

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U rdimento casada dentre elas. Seu homem, Jack, é não somente um dos pivôs da delação, como também assegura, junto com a mulher, que se chegue à situação trágica final, da tortura e do enforcamento. Além de tornar-se bruxa e sozinha, Goody teme também o destino da mulher “leve da cabeça”. Sua estranha racionalidade apaga em sua mente os vestígios da própria demência. Ou alguém imagina que uma mulher possa tranquila e profissionalmente torturar outra a não ser que tenha, para isso, sacrificado sua própria lucidez? O que, entretanto, autoriza Goody a esta perversa compreensão da loucura? A própria sociedade barroca com suas rigorosas regras eclesiásticas aderidas a uma configuração de Estado autoritário e especialmente cruel com os corpos das mulheres. Em suas desrazão feminina - e perversa razão barroca - Goody é, enfim, extremamente coerente com o mundo em que vive. O Malleus Maleficarum (traduzido para português como Martelo das Feiticeiras ou Martelo das Bruxas) é um livro escrito em 1484 e publicado em 1486 (ou 1487), por dois monges alemães dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger. Tornou-se uma espécie de "manual contra a bruxaria", amplamente utilizado pelos inquisidores para identificar bruxas e os malefícios causados por elas, além de conter procedimentos legais para torturá-las a sim de acusá-las e condenálas." Disponível em: http://www. spectrumgothic.com. br/ocultismo/livros/ malleus.htm 3

Por último, investigo: de que sentimento ela se livrou? Do ódio. O ódio, em sua fala, se cola às “poções” das bruxas barrocas. Este ódio vedaria a Goody ser a cuidadosa profissional que ela é. Esta energia de fundo sentimental e limítrofe faria com que a personagem perdesse a postura corporal da torturadora. Portanto, Goody é uma mulher sem ódio. Tortura seguindo regras, os preceitos dispostos em manuais como o Malleus Malleficarum3 que, na cena, é atualizado em duas alegorias modernas dos personagens históricos Kramer e Sprenger: através de uma leitura brechtiana, eles se tornam personagens masculinos modernamente caracterizados por atores homens. Quanto à imagem que Goody faz dela mesma nestas duas linhas de fala é interessante como, ao dizer este pequeno texto, o corpo da atriz se arcava, já nos ensaios, quase que instantaneamente na direção das palavras que pronunciava. O poder da linguagem conduzia seu corpo ao de uma mulher que nem de longe preserva a postura ereta dez Goody. Neste pequeno intvalo em que descreve a mulher que ela não quer ser, a atriz perdia a firmeza das mãos necessárias ao corte da carne sem prejudicar as partes, o que levaria a torturada a uma morte precoce, antes que ela confessasse seus pecados. A atriz abandonava a coluna firme daquela que tranquilamente, em meio a uma sessão de tortura, descrevia às torturadas como havia encontrado sinais – um caroço, uma mancha ou um terceiro seio – no corpo de outras vítimas; ou quando elas confessavam suas relações com o demônio, este corpo estranho. Jean-Luc Nancy (2006) especula sobre a experiência de ter recebido, em seu próprio corpo, um coração transplantado. Discorre sobre um corpo estranho ao corpo humano que, por esta operação invasiva, se torna intruso a si mesmo. Falando da condição do humano, ele não leva em conta Corpo, corpus e corpa: da violência de Goody... Fátima Costa de Lima

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U rdimento especificamente a condição feminina de carregar outro corpo. Uma estranha miopia masculina faz com que o autor não consiga pensar no que é estranhado e entranhado em nosso corpo desde que a linguagem nos nomeou mulheres, em oposição ao que é adâmico. Quando fala de corpus em outro texto seu, Nancy (2000) supõe corpos contemporâneos que, profundamente imagéticos, lograram ultrapassar sua condição de res extensa, de meros ocupantes dos espaços que nunca foram seus. Agora, aquilo que vem é o que nos mostram as imagens. Os nossos milhões de imagens mostram-nos milhões de corpos – como jamais eles forma mostrados. Multidões, acumulações, tumultos, montões, filas, ajuntamentos, pululamentos, exércitos, procissões, colisões, massacres, carnificinas, comunhões, dispersões, um excesso, um transbordar de corpos sempre em massas compactas, sempre reunidos (nas ruas, em conjuntos, megalópolis, periferias, lugares de trânsito, de vigilância, de comércio, de tratamento, de esquecimento) e sempre abandonados a uma confusão estocástica dos mesmos lugares, à agitação, que os estrutura, de uma incessante partida generalizada. (NANCY, 2000, pp. 39-40) Embora avançando na sua relação com o cenário, o mundus corpus, Nancy insiste, e com ele nós, em tratar todos os corpos como humanos e genéricos. Talvez seja mais instigante pensar, com Mario Perniola (2005), em muitos corpos, com muitos sexos, a fim de reconhecer alguma especificidade no corpo feminino: no outro sexo, pensar inéditos gêneros e sexualidades. Escrevendo, seguimos falamos de corpo, no masculino. E quanto a nossos corpos de mulheres, quando fazemos nosso teatro? Gostaria, neste final, de abandonar um pouco Goody e Vinegar Tom para discutir a última questão à luz de um episódio recente que vivi numa oficina do encontro Vértice Brasil ocorrido em julho de 2008, em Florianópolis. Mulheres do teatro local, nacional e mundial se encontraram em uma semana de intensa programação com oficinas, pequenas apresentações, palestras, ceias coletivas etc. Dentre os muitos eventos, tive a oportunidade de participar da oficina A Presença da Performer Feminina, ministrada por Jill Greenhalgh, fundadora do Projeto Magdalena - Rede Internacional de Mulheres no Teatro Contemporâneo. Nesta oficina estivemos, cerca de vinte mulheres, por horas praticando “exercícios físicos, moldando a energia”, como consta da página oficial do evento. Tais exercícios físicos consistiam em, num círculo, jogarmos bastões umas para as outras. A ministrante exigia que tais bastões fossem atirados “retos”. Aos seus comandos, em espanhol, de “Palo reto!” e “Palo duro!”, aquelas mulheres se esforçavam por Março 2009 - N° 12

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U rdimento atingir o nível de excelência do exercício. Num dado momento Greenghalg, exemplificando a base corporal que fundamentava aquela prática, solicitou que respondêssemos com o corpo a uma palavra que ela pronunciaria. Foi interessante observar os vinte corpos respondendo quase exatamente igual e de improviso (sic), à palavra “samurai”.

Estou utilizando aqui noções da linguagem lacaniana sobre conceitos e operações daquilo que é inconsciente. Para maiores esclarecimentos, sugiro a leitura de Lacan (1998) e Harari (1990). 4

No final desta manhã, a ministrante incluía numa roda as participantes que ela escolhia, uma a uma. Quatro atrizes não foram chamadas. Eu era uma delas. Por algumas destas “reais” armadilhas “daquilo que é inconsciente”, porém, entendo que não conseguiria livrar-me o meu “eu” o suficiente como para observar a “causa” de minha própria “falta” naquele exercício final4. Mas pude perceber que outra atriz, também excluída, apresentava um corpo visivelmente despido da prontidão e da força de guerreiro que o exercício requisitava. Pensando sobre os treinamentos contemporâneos das atrizes, a questão que surge é se aquela mulher preparada para torturar outras mulheres ficou no barroco. Pergunto-me se os treinamentos das atrizes já não deveriam, nos dias de hoje, procurar aquilo que é do corpo feminino. Se o teatro não deveria colocar no palco corpos grávidos, corpos que amamentam, corpos com TPM, corpos femininos que são diferentes mesmo quando expostos ao seu mais banal cotidiano, ao invés de procurarmos os modelos masculinos de guerreiros samurais e seus “palos” retos e duros, no teatro. Perniola, em livro já citado neste texto, critica a cena libertária dos anos 60 que, segundo ele, se tornou conservadora em suas duas vertentes atuais: do teatro da santidade e do teatro atlético. Qual deles é o nosso? Que teatro estamos fazendo? Há outros teatros possíveis? Creio que Goody pode contribuir com nossa reflexão de mulheres na cena de teatro. Em algum momento de sua fictícia vida, de sua curta duração nos palcos, ela se presta a imaginar e a informar ao público a mulher que ela não foi. As falas da personagem trilham, transportados na voz da atriz o “significado da palavra ser e dos indicadores de enunciação”, a direção de uma gramática da linguagem que se conforma, segundo Agamben (2006), como “estrutura originária da negatividade”. É esta a compreensão de linguagem que conduz à atitude dialética, ainda que fantasmática, de uma personagem que opera, embora não seja exatamente este seu desejo, e sim da atriz, a crítica do corpo feminino. Creio que tal procedimento exige, antes mesmo da reflexão de uma mulher sobre o que ela não se imagina sendo, o ato de ver-se, simplesmente, como mulher. Barrocamente, para o bem e para o mal. Se em algo disto se pode vislumbrar um vestígio de sentido, resta aqui a proposta de que nos dediquemos com mais carinho e cuidado ao exercício auto-reflexivo, necessariamente crítico, a fim de que possamos nos referir algum dia, quem sabe, à nossa própria corpa. Corpo, corpus e corpa: da violência de Goody... Fátima Costa de Lima

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Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Um seminário sobre o lugar da negatividade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução de João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. BUCI-GLUCKSMAN, Christine. La folie du voir. Une esthétique du virtuel. Paris: Galillée, 2002. CHURCHILL, Caryl. Vinegar Tom. Tradução de Cláudia Mussi. Florianópolis, 2008 (não publicada). FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1999. HARARI, Roberto. Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan. Tradução de Marta M. Okamoto e Luiz Gonzaga B. Filho. São Paulo: Papirus, 1990. LACAN, Jacques; texto estabelecido por MILLER, Jacques-Alain. O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. Mussi, Cláudia. As estratégias brechtianas nas canções de Vinegar Tom. Blumenau: Anais da I Jornada Latino-americana de Estudos Teatrais, 2008. NANCY, Jean-Luc. Corpus. Tradução de Tomás Maia. Lisboa: Passagens, 2000. _______. El intruso. Traducción de Margarita Martinez. Buenos Aires: Amarrortu, 2006. PERNIOLA, Mario. O sex appeal do inorgânico. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Studio Nobel, 2005. SPRENGER, James e KRAMER, Heinrich. Malleus Malleficarum. El martillo de los brujos. Buenos Aires: Ediciones Orion, 1975. Disponível em: .

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TEXTOS QUE FAZEM HISTÓRIA

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LAUDATIO DE DOUTORADO HONORIS CAUSA A PINA BAUSCH1 Eugenia Casini Ropa2 Tradução de Milton de Andrade3 Magnífico Reitor e caríssimos colegas, senhor Prefeito e autoridades, senhoras e senhores, a láurea ad honorem que o nosso Ateneu enseja conferir tem características mais do que insólitas. Em primeiro lugar, porque a laureanda é uma mulher, evento raríssimo nestas cerimônias; depois, porque esta mulher é uma artista e não uma estudiosa no sentido próprio do termo, não escreveu livros e nem elaborou teorias ou sistemas complexos. E, por último, porque esta mulher artista provém de um território quase que ignorado pela cultura oficial e pouco considerado também no âmbito das outras artes: a dança. Quantas desvantagens para uma só pessoa! E, no entanto, Pina Bausch está hoje conosco, na mais antiga das universidades da Europa, para receber o mais alto dos honores acadêmicos. Porque Pina Bausch, mulher e artista da dança, contribuiu para mudar a face do teatro da segunda metade deste século que termina, recolhendo a hereditariedade e reelaborando-a criativamente e de modo genialmente peculiar. Compôs obras que nos sondam e nos refletem, nós homens e mulheres deste tempo, tão cândida como impetuosamente, e as elaborou numa forma tão notadamente audaz, porém necessária e orgânica em seu conteúdo, que nos toca a fundo, com aquele provocante e talvez catártico desconforto interior que somente os grandes ritos teatrais sabem induzir. O Tanztheater, ou seja, teatro de dança, foi desde o início a denominação, simplesmente descritiva, da companhia da Bausch em Wuppertal. Somente mais tarde este termo teria assumido, no país e no exterior, o caráter de uma verdadeira e própria definição de estilo, de um gênero em si mesmo, de enorme influência sobre artistas de todas as partes. Tornou-se somente teatro-dança, forma mista mas coesa, em que dois componentes se fazem gradualmente menos distinguíveis até dar vida a um vínculo totalmente novo e incindível. Março 2009 - N° 12

1 Conferência proferida em ocasião do Doutorado honoris causa concedido a Pina Bausch pela Universidade de Bolonha (Itália) em 25 de Novembro de 1999. [Nota do Editor]. 2 Eugenia Casini Ropa é professora de História da Dança na Universidade de Bolonha, Itália, diretora do curso de graduação em Disciplinas do Espetáculo e da Associazione Nazionale Danza Educazione Scuola (DES), que promove a dança em âmbito educativo. Estudiosa de teatro e dança do século XX, entre suas publicações lembramos especialmente os volumes: La danza e l’agitprop (1988) e Alle origini della danza moderna (1990). 3 Milton de Andrade é docente do Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de Bolonha (Itália).

Laudatio de Doutorado Honoris Causa a Pina Baush. Eugenia Casini Ropa

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U rdimento Na reunificação dos dois termos e dos seus modos expressivos e comunicativos parecia realizar-se um sonho antigo, talvez aquela mítica euritmia constantemente revisitada na história da cultura ocidental moderna, na qual a divisão dos gêneros criou secularmente barreiras quase que insuperáveis. Mas o Tanztheater de Pina Bausch, como se destina ao tempo que o gerou, responde a uma visão de globalidade muito diferente do harmônico sonho totalizante de Wagner e de Appia. Na tentativa de definir o Tanztheater, muito se fala de um “método” criativo Bausch, mas talvez a única verdadeira metodologia, que Pina Bausch descobriu e seguiu nos anos, seja aquela de eliminar métodos pré-constituídos, aquela da processualidade, da exploração contínua, da necessidade de recolocar cada vez em discussão si mesmo e o próprio trabalho, explorando novos percursos. Os seus primeiros trabalhos, até a metade dos anos 1970, seguiam ainda substancialmente caminhos coreográficos usuais e elaboravam a partitura dançada a partir de escolhas musicais miradas e específicas. Isto vale tanto para os mais ou menos breves e incisivos rudimentos quase abstratos, que suscitavam o primeiro interesse dos críticos, como para as mais extensas e corais obras dançadas com a música de Gluck. A sua dança é ainda fundamentalmente aquela de estilo moderno e a composição, de cunho intenso e original, visualiza plasticamente a música, desenhando e enfatizando cada íntima razão de ser da partitura, estendendo-se com amplo respiro e sabedoria espacial num todo de compacidade harmônica. A inquietude e a ânsia de pesquisa começam a infiltrar-se no trabalho de Pina Bausch nos anos imediatamente sucessivos. A música da ópera de Béla Bartok, Barba Azul, é radicalmente fragmentada, balbuciada, assim como a narrativa, que se volta continuamente, atormentada, sobre si mesma. Logo entre as árias clássicas começam a insinuar velhas canções populares, músicas de filmes, jazz e cantos populares; entre os gestos amplos e fluentes da dança moderna se introduzem movimentos rígidos e quebrados ou caricaturais e grotescos, gestos cotidianos repetidos e compostos em cantilenas gestuais; o tecido quase que compacto da composição dramatúrgica se quebra, se divide em quadros, cenas e momentos aproximados e sobrepostos por analogia, por contraste ou por simples casualidade. No fim dos anos 1970, dá-se início àquele tipo de processo criativo por perguntas, respostas e montagem que se tornará caracterizante, fonte inesgotável de material dramatúrgico e dinâmico. No trabalho em cada nova Stück (peça), como se denominarão ora adiante os espetáculos não mais definíveis com as velhas terminologias, Pina Bausch coloca a seus dançarinos longas séries de perguntas para explorar com eles os temas e os problemas que a assolam naquele momento. Laudatio de Doutorado Honoris Causa a Pina Baush. Eugenia Casini Ropa

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U rdimento Com um paciente trabalho maiêutico, às vezes quase que psicanalítico, obtém as suas respostas em palavras, em movimentos, em ações, em música: fragmentos de vivência, recordações, emoções, observações, nas quais as pessoas se revelam, e que se acumulam como preciosa matéria prima teatral. Os dançarinos, até então somente executores, se transformam gradualmente em atores, criadores, produtores de material cênico original, enquanto que Bausch, de coreógrafa, se faz cada vez mais diretora. A dança propriamente dita tende passo a passo a desaparecer, para ressurgir às vezes de improviso em breves sequências de efeito de estranhamento, em caminhadas rítmicas, em inesperadas acrobacias. Muito mais frequentemente é conservada latente sob a superfície, como instrumento de revelação orgânica, de dilatação e de evidência do corpo; corpo que permanece no centro da cena e que é exposto na sua crua fisicalidade e na sua contingente historicidade. Ao movimento corporal se agrega uma outra manifestação, a voz: gritos, risadas, choros, partes de frases, pequenos contos ou poesias, ecos dos muitos sons e palavras que pronunciamos ou que nos atingem a cada dia da vida. Logo se definem, e incidem com as perguntas nos materiais, as temáticas dominantes: derivam das necessidades, dos medos, das esperanças, das angústias do artista, da sua capacidade de compreender e de compartilhar, do seu olhar penetrante sobre o mundo e seus problemas, numa busca de identidade que é ao mesmo tempo pessoal e histórica. O amor, acima de tudo, em todas as nuances, da ternura ao erotismo, a urgência em dar e receber, e os temores, as dificuldades, as distorções da relação interpessoal, sobretudo de casal. A condição desesperada e ridícula dos universos feminino e masculino, ávidos, mas incapazes de uma real comunicação. E a pesada frustração da mulher destinada a sucumbir ao tosco e violento predomínio masculino. Um jogo de papéis que é jogo de massacre recíproco cruelmente desmascarado, e atenuado por lampejos desencantados, quase afetuosos, de ironia. Depois as manias, as neuroses, os hábitos deformantes e grotescos da vida cotidiana, suas vazias aparências, clichês que se impõem às pessoas. Mas também, ternamente, as indeléveis recordações da infância e os padecimentos nostálgicos da memória, a leveza dos jogos de crianças e a alegria das pequenas coisas e dos pequenos gestos reconfortantes. Em sintonia com outros criadores do teatro contemporâneo, a montagem das improvisações temáticas se torna então, para Pina Bausch, a técnica compositiva prevalente, mas nela a construção total do sentido ocorre em termos completamente peculiares, próximos de uma sensibilidade cinematográfica. Mais que sintática ou estratificada, a estrutura de suas peças se apresenta como paratática ou simultânea, os elementos se aproximam frequentemente sem qualquer evidente relação temporal ou de causa e efeito, como numa colagem multicor de materiais diversos. As músicas, presentes Março 2009 - N° 12

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U rdimento somente de tanto em tanto, diversas e contrastantes, antigas e modernas, de arte e de consumo, sempre emocionais, às vezes instrumentais e rétro até próximas do kitsch, envolvem ações e pensamentos, e acrescentam a sensação de acúmulo sensorial e emotivo. Fragmentos dos mundos interior e exterior, imagens brevemente colhidas ou recuperadas do armazém da memória, sonhos, tormentos, visões, lutas e jogos, carícias e feridas, produtos da alma e da vida real, ações, movimentos, palavras, músicas, sons, cores, odores, objetos, materiais, se compõem assim num arranjo inquietante, despedaçado e repetitivo, ao qual serve sempre de agregador algum elemento unificador que recobre a cena, no mais nua. Terra, água, folhas, flores, cactos, caixas ou tijolos fornecem de fato o leitmotiv material e uma moldura simbólica aos disparatados acontecimentos que se desenvolvem. E no mais, por último, pela extraordinária sensibilidade rítmica de Pina Bausch, pela sua insuperável medida na desmedida, esta desconcertante e babélica colagem milagrosamente acaba por concluir-se num único e envolvente desenho, que parece conservar na alcançada compacidade a provisoriedade de um mundo à beira da crise. Espelho deformante, mas fiel da desarticulação e multiplicidade do sistema de relações e de vida no qual estamos imersos, o Tanztheater de Pina Bausch é, então, uma dança do teatro ao mesmo tempo macabra e apotropaica: um feliz ritual artístico de fim de século. Herdeiro da ironia e do grotesco da dança expressionista e do Kabarett alemão – pós-brechtiano pela relação com o cotidiano, o estranhamento constante e a direção de montagem de direção; pós-artaudiano pela centralidade que assume a linguagem corporal – o Tanztheater de Pina Bausch ativa essas ascendências no interior de modalidades de pensamento e de criação artística estreitamente contemporâneas. Desintegração e perda de significação das linguagens, contaminações e passagens entre arte e vida, ruptura das fronteiras entre gêneros, papel dramatúrgico do performer, que se revelam juntos nos seus Stücke, parecem então verdadeiramente restituir um sentido turbado, atual e personalíssimo à idéia de Gesamtkunstwerk: um teatro total que renuncia a uma concepção apriorística harmonizadora a favor de uma contraposição heterogênea e polifônica de elementos “fora do lugar”, que encontram de vez em quando a legitimidade das suas relações recíprocas somente no interior do processo criativo e dramatúrgico de cada obra. É esta busca constante de sentido a partir do território por muito tempo culturalmente desvalorizado da dança, e por ela artisticamente e antropologicamente também reivindicado e revalorizado como um inalienável nível primário da criação teatral, que faz sim que Pina Bausch possa ser apontada, e por nós hoje honorificada, entre os maiores criadores/inovadores contemporâneos do teatro ocidental. Laudatio de Doutorado Honoris Causa a Pina Baush. Eugenia Casini Ropa

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A ENCENAÇÃO DO DRAMA WAGNERIANO1 Adolphe Appia Tradução de José Ronaldo Faleiro2 Estas poucas páginas talvez pareçam, a quem se der o trabalho de lê-las, excessivamente concisas, e, consequentemente, considerando a natureza do tema, um pouco obscuras. Mas não sabendo se terei algum dia a ocasião de publicar a série bastante considerável de trabalhos que o tema comporta, quero pelo menos ter apresentado uma espécie de sumário deles. Compreender-se-á que se trata muito menos, aqui, dos dramas de Richard Wagner em particular, do que das condições de equilíbrio da forma de drama criada por ele. Essas condições possuem, é claro, uma importância artística considerável, e este estudo tem como finalidade resumi-las; não é, porém, a única finalidade que persigo. Que uma arte de um alcance tão geral não tenha podido encontrar em nossa cultura atual os meios mais elementares de viver e de se manifestar, aí está um sintoma significativo da falta absoluta de harmonia que domina as nossas faculdades receptivas em relação a uma obra de arte. Ademais, qualquer esforço que for tentado para reconstituir a harmonia nativa dessas faculdades adquirirá um alcance muito mais amplo do que poderia parecer à primeira vista; e a minha única esperança ao publicar este pequeno trabalho é, portanto, chamar a atenção para essas questões, e acelerar assim, talvez, um ensaio prático de representação normal, o único que seria capaz de provocar a convicção junto a um público esclarecido. A.A.

Noções preliminares Wagner criou uma nova forma de drama3. Em seus escritos teóricos, fixou definitivamente o que se pode denominar as condições abstratas dele. A aplicação que apresentou dessas novas formas nos seus dramas parece subentender como resolvidas as condições representativas. Ora, não é o caso; e um grande número de equívocos e de dificuldades acumulados contra essa obra de arte se originam na desproporção entre os meios que o autor utilizou para a notação do drama, e aqueles que ele encontra, no estado atual da Março 2009 - N° 12

Publicado originalmente em APPIA, Adolphe. La mise en scène du drama wagnérien. Notions préliminaires [A Encenação do Drama Wagneriano. Noções Preliminares], p. 260-266, notas p. 443-445, in Œuvres Complètes [Obras Completas]. Édition élaborée et commentée par Marie L. Bablet-Hahn. Introduction générale par Denis Bablet [Edição elaborada e comentada por Marie L. Bablet Hahn. Introdução por Denis Bablet]. Tome I, 1880-1894. Lausanne: L´Âge d´Homme, 1983. As notas do editor francês foram aqui suprimidas (N. do T.). 2 Professor do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de PósGraduação em Teatro do CEART/UDESC, Bacharel e Licenciado em Artes Cênicas pela UFRGS, Mestre pela Universidade de Paris III-Sorbonne e Doutor em Teatro pela Universidade de Paris X – Nanterre. 1

A encenação do drama wagneriano. Adolphe Appia

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U rdimento 3 Ele a designa em alemão pela palavra Wort-Tondrama, o que significa um drama no qual o poeta utiliza a palavra e o som musical. Esse tipo de drama é, de certo modo, a síntese do Wortdrama, o "drama em palavras", ou seja, drama falado, e do Ton-drama, o único "drama musical" verdadeiro, no qual o poeta só emprega a música, como Beethoven em Coriolano, na Sinfonia Heróica, etc., Berlioz na Sinfonia Fantástica, Liszt nos Poemas Sinfônicos. Nunca é demais lembrar que Wagner protesta formalmente contra o termo "drama musical" aplicado às suas obras de teatro. Como a língua francesa não se presta a um equivalente de Wort-Tondrama, direi "drama wagneriano" ou "drama do poetamúsico". Peço apenas que se dignem observar que por "drama wagneriano" não entendo designar exclusivamente os dramas de Richard Wagner, mas, em geral, a nova forma criada por ele.

encenação, para a sua realização. Não falo aqui sequer das novas exigências impostas por esse drama aos intérpretes: elas são evidentes. Há, portanto, um vazio para preencher. No entanto, ao olhar mais de perto, percebe-se que se trata, sobretudo, de uma arrumação, e que todos os elementos para ordenar são fornecidos tacitamente pelo próprio drama. A continuação destas páginas esclarecerá o que essas afirmações podem ter de paradoxal. Para evitar lembrar com excessiva frequência o ponto de vista em que me situo, e atenuar certas durezas necessárias nos argumentos, devo dizer que esse ponto de vista é exclusivamente o do encenador, o qual, embora dê vida à obra de arte, de modo algum toca no fato desta obra. É o Drama falado, e não a ópera, que deve fornecer o ponto de partida. O que distingue o drama wagneriano do drama falado é o emprego da música. Ora, a música não somente dá ao drama o elemento expressivo: ela também fixa peremptoriamente a duração. Pode-se afirmar, portanto, que do ponto de vista representativo a música é o Tempo; e não compreendo por isso «uma duração no tempo», mas o próprio Tempo. Ela dá, consequentemente, as dimensões: primeiro as proporções coreográficas em sequência, desde os movimentos de multidão até os gestos individuais; depois, a partir daí, com maior ou menor insistência, as proporções do quadro inanimado. No drama falado, é a vida que fornece aos intérpretes os exemplos de duração (Tempo): o autor não pode fixar a da palavra, embora imponha um mínimo de exigências pela quantidade do texto; e a ação não dá precisão nem ao desenvolvimento das evoluções nem às proporções do cenário. No drama do poeta-músico, ao contrário, a duração é rigorosamente fixada, e fixada pela música, que altera as proporções que a vida teria fornecido. Pois a maioria de nossos gestos acompanha a palavra, ou é palavra subentendida; e alterar a duração desta é alterar a duração daqueles. Além disso, a música, por natureza, precisa se desenvolver, de modo que as evoluções que a palavra (subentendida) não fixa, mas que a vida, por sinal, nos ensina, também são alteradas pela duração dos desenvolvimentos indispensáveis a esse meio de expressão, mas exteriores (como encenação) à vida dramática, e à qual se referem apenas vagamente, ou até distorcem. Eis condições essencialmente diferentes das condições do drama falado. Se a ópera não houvesse vulgarizado a mudança na duração natural, não teria sido possível compor integralmente o drama wagneriano sem se preocupar com essa alteração capital. Portanto, já não será a vida que dará aos intérpretes os exemplos de duração e de sequência, mas a música, que os impõe diretamente; e esta, A encenação do drama wagneriano. Adolphe Appia

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U rdimento alterando a duração da palavra, altera as proporções dos gestos, das evoluções, do cenário: assim, o espetáculo inteiro é transposto. O que caracteriza o drama do poeta-músico e constitui o seu alto valor é o meio que possui, graças à música, de expressar o drama interior, enquanto o drama falado só pode significá-lo. Visto que a música é o Tempo, ela dá ao drama interior uma duração que deve corresponder a um espetáculo. Na vida, os movimentos da alma, do corpo e do espírito são simultâneos. Se a música expressasse os movimentos da alma por um simples acréscimo de intensidade, o problema (representativo) não existiria. Mas não é o caso; e disso resulta que à alteração na duração da palavra vem juntar-se essa coisa complexa da duração necessária à expressão do drama interior. Ora, considerando a natureza especial da música, o drama interior não consegue encontrar o lugar suficiente ao seu desenvolvimento nos exemplos de duração que a vida fornece ao drama falado. É isso o que distingue definitivamente o drama wagneriano do drama falado, do ponto de vista prático do encenador, e sem entrar nas considerações de outra ordem que separam as duas formas desde a origem de ambas. Trata-se, portanto, de um drama em que são alteradas todas as proporções de duração e de seqüência que a vida fornece ao drama falado, e ao qual vem acrescentar-se uma duração nova: a do drama interior, que a vida não lhe fornece (como duração)4. Portanto, os meios representativos do drama falado não conseguiriam servir a ele; e os da ópera, que pela sua duração seriam de uso cômodo, também devem ser descartados, por serem motivados apenas por um prolongamento arbitrário no tempo, sem necessidade dramática. Daí decorre que a encenação do drama wagneriano deve ser composta unicamente dos elementos que o drama wagneriano lhe fornece, e que é a técnica teatral (cujas condições atuais têm em vista apenas o drama falado e a ópera) que deve se conformar às novas exigências. Será que algum dia tais exigências poderão ser fixadas? Não, por serem dependentes apenas do próprio drama, e por não se apoiarem nem numa convenção, como a ópera, nem na imitação mais ou menos fiel da vida, como o drama falado. Cada drama determina, pois, a sua encenação, e a técnica teatral propriamente dita serve aqui somente como limite flutuante, sem determinar nada.

4 Não entendo dizer com isso que a música não possa expressar simultaneamente o drama interior e a ação representativa; faço alusão apenas ao fato da duração do drama interior que exige cenas que ela possa preencher, e que pode também transbordar por um espetáculo vazio (espetáculo no sentido necessário ao drama falado).

A conclusão inevitável é que o drama do poeta-músico recai inteiramente no autor, e que este não pode esperar unidade, se a parte representativa (a direção [la régie]) — cujas proporções (a duração), afinal de contas, ele fixa rigorosamente por meio da música — não entrar na própria concepção do drama. E aí reside o que opôs, e ainda opõe, dificuldades intransponíveis para Março 2009 - N° 12

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U rdimento a manifestação dos dramas de Richard Wagner, e para a compreensão da idéia do drama novo, de que são a aplicação. Só se pode, pois, tratar a encenação do drama wagneriano teoricamente, visto que os próprios princípios da encenação, para cada obra em particular, são determinados unicamente pela obra em si; e a parte abstrata dessa teoria, que forma o tema do presente capítulo, é forçosamente muito restrita, pois só pode levar em consideração as nossas exigências mais gerais de equilibro, sem ousar atribuir-se um objeto preciso. Quando se fala de representação, supõe-se um público. A representação de um drama tem como finalidade unicamente convencer esse público da realidade da vida que anima esse drama. Quem quiser convencer alguém se deixará guiar por todos os indícios que puder encontrar sobre as capacidades das pessoas a que se dirige. Se quisermos convencer o público atual da realidade do drama wagneriano, que indícios tal público nos fornecerá para nos guiar em nossa tarefa? Primeiro, ele tem o gosto deturpado. Daí decorre que ele é fraco, o que o deixa numa grande passividade. Essa passividade se manifesta de várias maneiras: inércia para sair das formas aprovadas sem exame; impotência para suportar a intensidade musical; e, sobretudo, incapacidade de reunir as partes constitutivas do drama, ou, em outros termos, impotência de concentração. Atenhamo-nos a essas três manifestações, que resumem bem a situação atual. A inércia para sair das formas aprovadas necessita que se apresente ao público o drama numa forma que não possa causar nenhum equívoco. A sua impotência para suportar a intensidade musical, impotência que o paralisa e lhe tira o uso dos outros recursos, obriga a dar ao espetáculo dos olhos uma intensidade correspondente, a qual possibilita que o espectador perceba todas as suas sensações. Quanto à impotência de concentração, ela já ficará sensivelmente diminuída, se conseguirmos realizar as duas condições precedentes; e quando a concepção representativa caminhar pari passu com a do próprio drama, a representação já pedirá ao espectador apenas os esforços de que ele facilmente for capaz. Dessas três condições, só duas dependem de nós; a terceira (a concepção representativa que anda junto com a concepção do próprio drama) constitui um problema que tão-somente o dramaturgo pode resolver. No futuro, exclusivamente a ele, portanto, caberá a preocupação pelo equilíbrio da sua obra perante o público. Atualmente possuímos outros exemplos do drama wagneriano unicamente nos dramas do próprio Richard Wagner; e, como essa terceira condição que acabamos de indicar A encenação do drama wagneriano. Adolphe Appia

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U rdimento não foi preenchida por ele, conclui-se que as condições presentes do drama wagneriano não são as condições normais dessa obra de arte; e que, ao tratá-las, somos forçados a não considerar essas condições normais que permaneceram desconhecidas para nós. O problema dos procedimentos que encontrar para convencer o público atual é, portanto, duplamente delicado, e esse público tem direito a toda a deferência. Dissemos que a sua fraqueza exigia uma forma representativa que afastasse o equívoco, e uma intensidade de espetáculo que correspondesse à intensidade da música. O que distingue do ponto de vista representativo o drama wagneriano do drama falado é que em vez de lançar mão da duração na vida, ele próprio a fixa rigorosamente: tão-só uma inteligência precisa desse fato fornecerá o caráter distintivo que não poderá deixar dúvida sobre a existência original do drama assim compreendido. Desse ponto de vista superior, o perigo da ópera desaparecerá completamente. Para a intensidade do espetáculo, é necessário entrar em acordo sobre o sentido da palavra «intensidade» em matéria representativa: tratase da maior ou menor quantidade de gosto incluído na escolha do luxo decorativo, de uma pesquisa sutil de colorido, de violência ou de lirismo na mímica, etc.? Para um drama que não fixaria sozinho a duração (a sequência e as proporções), poderíamos hesitar: para o drama do poeta-músico, é nele mesmo que devemos encontrar toda e qualquer vida, é ele que dá essa vida, e qualquer intensidade que venha de fora permanece letra morta para o público, e, assim, deixa de existir, do ponto de vista dramático. Consequentemente, a maior ou menor intensidade representativa desse drama está na razão direta das relações mais ou menos adequadas da sua encenação com a vida dada pelo drama. Para o drama wagneriano do porvir, a responsabilidade caberá ao dramaturgo; atualmente é a nós que ela cabe, e a tarefa é pesada. Vemos que nos resta uma única condição teórica que possamos fixar antes de toda e qualquer aplicação; e essa condição que devemos considerar como a base da encenação do drama wagneriano é que a vida nos é dada exclusivamente pelo próprio drama. Portanto, em resumo: sendo a música o Tempo, ela dá as proporções; de tal maneira que a encenação do drama wagneriano já não tem que procurar os exemplos de duração na vida, mas que toda e qualquer vida se encontra fixada rigorosamente pelo próprio drama; daí resulta que esse drama recai inteiramente no dramaturgo, que cria, de certo modo, o Tempo e o Espaço, e que, possuindo o meio de justificar a sua criação, se torna o evocatório mais poderoso que exista. Como os dramas de Richard Wagner não preenchem essa condição, e são os únicos que possuímos do novo gênero, as condições Março 2009 - N° 12

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U rdimento atuais dessa obra de arte não são, pois, as suas condições normais. Se, contudo, quisermos convencer o público da vida original delas, a maneira de apresentálas a ele se torna uma questão muito delicada. Ora, ocorre que as condições impostas por esse público estão de acordo com a condição fundamental do drama wagneriano, a saber: que é apenas nesse drama que temos de encontrar a vida. Assim, o encenador dos dramas de Wagner deverá deixar-se guiar exclusivamente, servilmente, por tudo o que o drama que ele quer representar lhe revele da sua vida própria. Portanto, ao fixar as condições abstratas do seu drama, Wagner fixava tacitamente as condições representativas deste, já que elas estão necessariamente contidas nele; e apenas na aplicação que deu a elas foi que deixou de perseguir rigorosamente a sua consequência.

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