SEM HPV – O FILME: O Apocalipse de uma Cineasta Estagiária

May 22, 2017 | Autor: Kelly Demo Christ | Categoria: Universidade, Filme, Pesquisa Em Estágio, Cinema E Audiovisual
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SEM HPV – O FILME O Apocalipse de uma Cineasta Estagiária

Kelly Demo Christ Assistente de direção, revisão de roteiro e claquete

Lembro bem como foi a primeira vez que o Josias Pereira, diretor do Sem HPV, me falou a respeito do filme. Trabalhei como bolsista sob sua coordenação desde meu segundo semestre da faculdade de Cinema, no projeto de extensão Oficina de Vídeo nas Escolas, e estava no sexto semestre quando ele veio com essa ideia um tanto quanto maluca de fazer um longa-metragem. Por que maluca? Bom, fazer cinema é muito difícil. Fazer cinema independente, no Brasil, no sul do Rio Grande do Sul, mais difícil ainda. Não sei se você já ouviu falar em Lei de Murphy - “se algo pode dar errado, dará” - mas ela é particularmente verídica quando se trata de cinema. Eu já tinha feito alguns curtas, um martírio atrás do outro, e por isso sabia que fazer este filme seria como pagar todos os meus pecados na terra. E lá estávamos eu e o professor Josias voltando de uma oficina ministrada para as escolas municipais de Rio Grande, quando ele começou a me contar do roteiro que estava escrevendo. Seria a história de uma garota chamada Paula cujo sonho é fazer seu próprio filme. Ela acha a escola chata, então propõe para um professor a ideia de fazer um curta como avaliação do trimestre. Na hora me identifiquei, eu mesma comecei a ter vontade de fazer cinema na mesma idade da protagonista, e gostei da ideia do filme reconstituir a vivência da garotada que conhecíamos nas escolas onde passávamos, dando oficinas e colaborando na produção de vídeos. Também achei massa porque pesquiso a relação entre o cinema e a educação, e a história tinha esse potencial pedagógico visível, podendo ser explorado em sala de aula com diversos vieses. Daí já me empolguei e comecei a dar ideias, sugeri um romance entre a melhor amiga de Paula e o rapaz bad boy que elas tinham chantageado a fazer parte da equipe de gravação dentro da trama, o que mudaria as atitudes dele para melhor. Acho também que foi nesta altura que surgiu a ideia de deixar um romance implícito

entre Arco, o menino que faz a direção de arte do curta da Paula, e Henrique, o ator do mesmo. Depois dessa conversa, eu achei que ainda demoraria para voltarmos a conversar a respeito. Mas que nada, algumas semanas depois ele me manda um roteiro de umas 80 páginas, umas 60 cenas, querendo saber minha opinião. Para vocês se familiarizarem: não tinha como esperar nada diferente vindo do Josias, a gente sempre comenta que ele não dorme. Tipo, nunca. E por isso tem esse poder sobrenatural de fazer coisas que a princípio são demoradas em pouco tempo. O primeiro tratamento (como chamamos essa versão inicial do roteiro) não estava ruim, mas tinha erros de digitação que atrapalhavam a leitura, e era praticamente composto pelos diálogos, sem descrições de personagens, roupas, lugares, etc. Tinha umas cenas soltas, não dando nem para saber onde se passava. Para vocês se familiarizarem ainda mais: eu sou extremamente perfeccionista e caprichosa com detalhes, e o Josias parece não dar a mínima para a maioria deles. Então conforme eu lia já fui arrumando tudo que atrapalhava a fluidez da leitura do roteiro, acrescentando detalhes, formatação, falas, gírias. Aliás, sobre gírias, as protagonistas são de uma geração que já nem usa o termo “CDF”, por exemplo, tivemos que explicar para elas o significado, então muita fala foi mudada durante os ensaios para dar mais verossimilhança a uma geração a qual não pertencemos mais (snif). Mesmo assim, tem muito “aff” e piada com a Bruna Marquezine que, admito, são culpa minha. Roteiro não é literatura, então não precisa de uma preocupação estética. Mas é essencial que seja absolutamente claro, pois vai servir de guia para as equipes de fotografia, som, arte, montagem, atores, etc. Se ele for bem estruturado e detalhado, vai deixar diversos detalhes previamente estabelecidos, evitando que sejam negligenciados. Josias e eu discutimos bastante a respeito da ausência de cenas que acontecessem na aula. Como estas seriam difíceis de fazer, pelo número de figurantes, deixamos o mínimo possível, porém tivemos de incluir algumas desde o roteiro original para não dar a impressão que Paula e Bruna pararam de ir à escola depois que começaram a fazer o curta. Também é interessante observar que a personagem da Sandra, a nerd da turma, seria um menino, mas alteramos em função da ótima atuação da Tamara Flores, que merecia um papel que tivesse mais destaque.

Enquanto eu revisava o roteiro, o Josias já reunia uma equipe. Inclusive, essa é uma grande responsabilidade do diretor, encontrar pessoas para trabalhar. E no nosso caso, era necessário de uma grande equipe que trabalhasse com boa vontade, e de graça. Na verdade depois ficamos sabendo que o Josias ia cobrir as despesas dos nossos almoços, e que a Vania, sua esposa, faria bolo para a gente em várias diárias. Então Josias já podia falar aquela frase do Poderoso Chefão, “eu vou fazer uma proposta que ele não poderá recusar”. Também entrou na jogada que é obrigatório cumprir um estágio de 240 horas para se formar no curso de Cinema, podendo ser qualquer atividade prática com audiovisual. A realização do filme acabou caindo como uma luva para mim e meus colegas, até porque não é fácil encontrar estágio em Pelotas na nossa área. Fiz um post nos grupos do facebook para os alunos de Cinema falando sobre o filme, e surgiram vários interessados. Outras pessoas foram convidadas de forma direta pelo Josias, ou indicados pelos já membros da equipe. Fechamos uma parceria com a Escola Cassiano do Nascimento onde gravamos a maioria das cenas do Sem HPV. Para tanto o ator e professor de teatro Chico Meirelles, e a professora Marta Troger foram essenciais. Fizemos um teste de elenco com os participantes do teatro da escola e foi como dar vida a maioria dos personagens. Tivemos pouco tempo para ensaio, pois nossos atores além de ter aula todos os dias faziam mil atividades extras, então sobrava pouco tempo para dedicar ao filme. Nas diárias isso não foi tão problemático, pois gravamos quase exclusivamente nos fins de semana e no período de férias. Também tivemos pouco tempo para testes e para reuniões. Nossa equipe técnica, assim como os atores, eram estudantes na sua maioria, então era difícil ter dedicação exclusiva ao filme. Eu mesma estava préproduzindo o meu curta-metragem de TCC, então eram dois grandes trabalhos a conciliar durante o mesmo período. As reuniões eram sempre muito rápidas, e muitas vezes o Josias e eu dividíamos as funções que tinham que ser feitas. Tivemos muitos encontros com a Digliane Andrade, que inicialmente seria assistente de produção, porém assumiu o cargo de diretora de produção. Nós organizamos cronogramas, ordem do dia, fizemos reuniões com a equipe de arte para ver o que seria necessário, e demos muitas sugestões de concepção. Por outro lado, como estudantes, acabava sendo impossível

que cada um fizesse exclusivamente aquilo que faz parte de suas obrigações, estávamos sempre nos ajudando mutuamente. A direção de arte utilizou praticamente o que estava disponível na escola e o que os atores tinham em seus guarda-roupas. Pedimos fotos de suas roupas e nos organizamos a partir do que eles tinham em casa, do que era nosso, e do que podíamos pedir emprestado. A ideia é que a paleta de cores fosse bastante variada e colorida, dei a sugestão de usar como referência o filme “Diário de um Banana” (Thor Freudenthal, 2010). A maioria das cenas seriam gravadas na Escola Cassiano, porém tivemos também cenas gravadas na casa da Marta (cozinha da casa da Paula e pátio), da Francine Antunes (nossa assistente de fotografia, que emprestou sua casa para fazer o quarto da Paula) e em alguns outros lugares da cidade, como o Hospital Santa Casa, e a Biblioteca Pública. Também quisemos fugir dos clichês: a ideia inicial do Josias era uma Paula com um jeito de moleca e sua melhor amiga, Bruna, meio patricinha. Não quisemos exagerar nessas duas características, e apesar de Bruna ter um lado bastante vaidoso, não tem aquele perfil óbvio de líder de torcida que vemos em tantas produções. Já que o Arco é gay também eram lógicas as associações das quais quisemos fugir. Construímos um personagem que tem muito estilo, mas fica longe da ideia de ser “feminino” em seu modo de vestir. A ideia de nerd bagunçada e desastrada também não serviu para Sandra, que buscou muito uma aparência moderna e com referências à cultura Pop. As redes sociais foram cruciais para que conseguíssemos nos comunicar. Criamos um grupo no facebook, onde trocávamos todas as informações, e depois vimos que seria necessário criar outro só de atores. Esse grupo chegou a ter umas 70 pessoas, incluindo principais, coadjuvantes, pais, e equipe técnica. Mais tarde ainda criamos um grupo aberto de Making Of do filme, para incluir todos os vídeos, fotos, e coisas engraçadas da gravação. Assim, divulgávamos a produção para pessoas curiosas, e de quebra não superlotávamos os outros grupos com brincadeiras (que é o nosso forte). Começamos as gravações um dia depois do dia dos namorados, dia 13 de junho de 2015. Acordei com febre, tomei um chá e um remédio, e fui para gravação medindo a temperatura no carro. Começamos com algumas cenas simples e sem falas,

mas com muitos figurantes, que eram minha responsabilidade. Mas não teve jeito, acabei não sendo tão proativa, e não ajudei muito. No segundo dia a febre não queria baixar, e eu me sentia culpada por não estar ajudando na gravação. De manhã liguei para o Josias e me certifiquei que não precisaria de mim, e ele confirmou que a segunda diária seria interna, no laboratório, praticamente só com as atrizes principais, que não fazia mal eu não ir, mas a sensação que tive era a de deixar todos na mão. No fim de semana seguinte começamos a gravar algumas externas no pátio da escola. Na minha opinião, luz natural para cenas curtas sempre são uma boa pedida, o resultado fica sempre muito bonito. Porém, a luz do sol muda rapidamente, então a gravação precisa ser muito dinâmica para evitar erros de continuidade. Nesta diária o Josias pediu que eu dirigisse sozinha uma sequência simples, enquanto ele ia organizando a próxima cena. Bateu aquela insegurança, queria a opinião de todo mundo para ver se tinha ficado bom, mas logo notei que assim não daria certo, e quem tinha que saber se tinha valido ou se precisaria repetir, era eu. Já comentei com vocês que sou muito perfeccionista, né? E sempre dizem que a pressa é inimiga da perfeição, mas no cinema é sempre uma corrida contra o tempo, e o que tive que aprender nas gravações é que às vezes é necessário desapegar do que imaginamos, fazer o máximo do momento, e partir para a próxima. Apesar da decupagem1 e da ordem do dia2 serem preparadas com antecedência, na hora sempre conversávamos o que íamos manter e o que mudar. Quase sempre o Josias e eu procurávamos simplificar a cena, deixar ela rápida de ser gravada. De manhã os atores normalmente chegavam um pouco mais calmos, dispostos e concentrados, e ao longo do dia iam se cansando de gravar e por consequência ficavam mais agitados. Estamos falando de jovens na sua maioria entre 11 e 15 anos, sendo amigos ou colegas de sala de aula, então sempre tinham muito assunto para por em dia. Aí deixávamos quem não estivesse gravando bem longe para não atrapalhar, e dávamos prioridade no cronograma para cenas que não tinham tantos atores envolvidos, enquanto a equipe ainda entrava no ritmo. 1

Decupagem é onde a gente organiza tudo que vai ser gravado. A decupagem da direção é basicamente pensar quais serão os planos utilizados, se mais abertos, se mais fechados, etc. Já a decupagem da produção é ver tudo que precisa para a cena. A decupagem da arte é ligada aos objetos , figurinos, e assim por diante. 2 Ordem do dia é o cronograma diário. Além de indicar quais cenas e planos serão realizados no dia, diz os horários dos intervalos, quando a equipe deve chegar, que hora deve partir, e assim por diante.

O Rio Grande do Sul é muito frio no inverno, e Pelotas é muito úmida, uma combinação perfeita para vários tipos de problemas de saúde. Como estávamos gravando no auge da estação, não era tão incomum as pessoas da equipe faltarem em função de doença. Se às vezes me sentia intrometida nos trabalhos alheios, a ausência de alguns só aumentava essa minha característica, e muitas vezes me vi tomando conta do trabalho das pessoas. A Grazi Cardozo precisou viajar durante as gravações, e praticamente assumi o papel de continuísta. Parece super fácil bater claquete. Na verdade é mesmo. O que é difícil é ter que bater a claquete, anotar ligeiro na planilha se a tomada valeu ou não, confirmar o número do arquivo áudio e vídeo, trocar os números na claquete, confirmar para ver se o diretor não esqueceu de gravar nada, e ainda fazer meu trabalho como assistente de direção – tudo ao mesmo tempo. É um pouco judiado isso daí. Às vezes me perguntava se o café com bolo valia a pena. O bom é que, assim como eu sempre estava ajudando a todos, todos me ajudavam também. A Bruna Fortes, a Júlia Müller, e a Digliane me ajudaram muito, também saindo de suas respectivas funções de arte e produção. Até os atores ajudavam batendo claquete – eles achavam divertido, e eu nem podia deixar sempre para não tirar a concentração deles. Acredito que conforme gravávamos, o Josias foi confiando cada vez mais em mim para me deixar sozinha na direção quando era preciso. Apesar de a confiança ser algo bom, é desafiador assumir a liderança da equipe. O Josias é hiperativo, e às vezes operava em um ritmo que eu não conseguia acompanhar. Lembro de chegar em casa muito cansada e ter muita dor nas pernas, me dando conta que tinha ficado em pé grande parte do dia, sem praticamente ir ao banheiro, sem tomar água, sem fazer nada além de trabalhar. A partir daí tentei ficar mais atenta ao meu corpo, porque muitas vezes deixava meu bem estar de lado pelas gravações sem nem perceber, e isso estava acabando comigo. Notei que minha exaustão me deixava mal humorada, e às vezes me via discutindo sem motivo com a equipe, principalmente com o Josias. Teve um dia particularmente difícil. De manhã gravamos a primeira cena da sala de aula, o que significava muitos atores que precisavam ser maquiados, vestidos, ensaiados e dirigidos. A conversa rolava solta, e estava difícil chamar a atenção deles para gravar. À tarde, o Josias precisou sair emergencialmente, e eu fiquei sozinha para

dirigir três cenas com uma equipe reduzida. Um dos atores tinha esquecido de levar uma roupa, e estava começando a chover. Lembram que eu falei da Lei de Murphy, né? Pois é. Mas olha, apesar do pânico momentâneo, as cenas saíram. E vendo o filme, nem dá para desconfiar tudo isso que rolou por trás da cena. Fizemos o que deu, adiamos uma delas por conta da chuva, e tocamos em frente. Me dá muita alegria ver que no fim deu tudo certo. Os outros dias que tiveram cenas na sala de aula foram mais tranquilos. Brinquei com a equipe que depois que eu decorei o nome de todos os atores, eles não iam fugir de mim nunca mais. E não deixava de ser verdade: nas cenas da sala de aula, assim que eles começavam a conversar, eu chamava a atenção deles individualmente, fazendo com que prestassem atenção na mesma hora. Até me deu pena, porque eu parecia a Sra. Trunchbull do filme “Matilda” (DeVito, 1996), sabem? Uma ditadora horrorosa, pronta para jogar as crianças pela janela. Mas bem, espero que eles não guardem mágoa de mim, não foi por mal. Inclusive, adoro criança. Eu perdi a conta de quantas diárias adiamos por indisponibilidade dos atores, quantas cenas mudaram em função de esquecimento de roupas, e só imagino como ficou a conta de celular do Josias depois da gente precisar ligar tanto para alguns. Mas isso é absolutamente normal quando estamos falando de uma produção com tantos atores. A Escola Cassiano se localiza numa avenida movimentada, então mais para o fim de tarde de domingo tinha muito barulho, e pela escola ser grande haviam eventos que aconteciam nos fins de semana, as vezes ao mesmo tempo das gravações. A gente aprendeu a rebolar em função de tempo e de problemas. Inventávamos justificativa na hora pela falta do casaco de um, pela troca de roupa do outro, incrementava falas, e rezava para que ninguém que assistisse ao filme notasse esses detalhes. O Josias às vezes inventava mais cenas no dia, mesmo já tendo tanta coisa para gravar, mas tudo porque ele achava que a história ia ficar mais bacana, mais completa. Pessoalmente, acho verdade quando dizem que o filme é do diretor. Em última instância é mesmo, são as decisões dele na jogada que vão decidir como o filme vai ser. Claro que isso não significa que tudo vai ser como ele imaginou, mas é de quem o resultado final se aproxima. Eu, como assistente, até dava muita sugestão. Algumas eram ouvidas, outras não. Algumas o Josias até discutia comigo, outras ele

optava por deixar de lado. Mas acredito que faça parte, porque no fim das contas o que está na tela é um resultado coletivo sim, mas responsabilidade da pessoa que assina a direção. Se ele diz que sim, então sim, e se ele diz que não, então não. A prova disso é que por mais que eu tenha discordado veemente de algumas decisões, lá estão elas no filme, porque meu trabalho vai até certo momento, e depois disso está na mão de outras pessoas. Ser diretor de uma produção significa estar apto a tomar estas decisões o tempo todo, saber o que se quer fazer, e principalmente confiar em si mesmo e na sua equipe. E na boa, apesar de ter sido difícil pacas fazer o Sem HPV, foi uma baita experiência positiva. Claro que coloquei muita coisa em risco, como o bem estar da minha gata (brincadeira, ela tá bem), e meu namoro (esse é sério), mas valeu a pena. Fortaleci muito as minhas amizades, aprendi muita coisa - inclusive, pasmem, a fazer sushi. Absorvi coisas úteis para minha carreira como cineasta, e de quebra saí com uma grande dose de autoconhecimento. Que venha o próximo!

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