Sem Ítaca, não terias partido

July 26, 2017 | Autor: Renato Roque | Categoria: Annemarie Schwarzenbach, Arte Contemporanea, Fotografia, História da Fotografia
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Sem Ítaca, não terias partido Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. Sem Ítaca, não terias partido. Em Ítaca de Contantino Kavafi Renato Roque Sinopse - Neste pequeno artigo tentaremos contribuir para uma caracterização do trabalho fotográfico de Annemarie Schwarzenbach, procurando contextualizá-lo na vida e na produção literária da autora, situá-lo na história da fotografia e no ambiente da fotografia alemã, europeia e americana dos anos 30. Discutiremos a contemporaneidade do olhar da fotógrafa, no quadro do que se costuma designar por fotografia documental contemporânea. Palavras-chave: fotografia, história da fotografia, fotografia contemporânea, Ítaca, viagem

1.

Introdução

Nesta introdução faremos uma curta apresentação de Annemarie Schwarzenbach, tentaremos justificar o título que demos a este texto, em que fazemos uma associação da autora com a Odisseia homérica, definiremos o foco do nosso ensaio e estabeleceremos os objectivos que nos propomos cumprir. 1.1. Annemarie Schwarzenbach, personagem complexa e multifacetada Os deuses amam os que morrem jovens Fernando Pessoa

Annemarie Schwarzenbach foi uma jornalista, escritora e fotógrafa que nasceu na Suíça em 1908. Morreu jovem, em 1942, com apenas trinta e quatro anos de idade, mas foram trinta e quatro anos percorridos a uma velocidade próxima da velocidade da loucura1. À velocidade da loucura, os sonhos no coração não ocupam espaço, duram um tempo infinito, e têm uma massa também infinita. Albert Eintraum, O sonho e o espaço-tempo - Teoria da Relatividade Restrita dos Sonhos

Sedenta de liberdade, marcada por uma sexualidade conflituosa, por um ambiente familiar opressivo, por problemas sérios com drogas e pela ascensão do nazismo na Alemanha e nos países vizinhos, inclusive na Suíça, apesar de este país ter mantido uma pretensa neutralidade, viajou incessantemente pela Europa, Médio Oriente, África, e pelos Estados Unidos da América, entre 1933 e 1942. Observar passivamente seria falta de consciência, e isso eu não tolerava. Ainda menos queria lutar, parecia-me falso o papel que outros esperavam que eu representasse. Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia

Não conseguia ser passiva, mas não queria lutar, como ela própria escreve. O compromisso poderia estar na viagem, partir da Suíça para outros lugares. Sentimos, ao ler o que escreve,

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A velocidade da loucura é na Teoria da Relatividade Onírica de Albert Eintraum a velocidade onírica teórica limite, para a qual os sonhos não ocupam espaço, mas consomem um tempo e uma energia infinita do sonhador. 1

que Annemarie viaja também para não ter de romper com a sua família conservadora, que se se foi colocando progressivamente ao lado dos nacional-socialistas alemães. Quando percorremos a sua curta biografia, quando conhecemos as pessoas que com ela privaram, mas sobretudo quando lemos o que escreveu, percebemos imediatamente que Annemarie era uma personagem rara, que associava a iconoclastia típica de Berlim dos anos 30, onde Annemarie viveu o fim do apogeu e o início do declínio da cidade, a uma capacidade invulgar de fascínio. “Uma figura que encarna, de uma forma ímpar, um certo mal-estar europeu“, escreve Carlos Vaz Marques, no seu Prefácio de Morte na Pérsia, ou “Um anjo devastado” como a descreveu Thomas Mann, pai dos seus dois maiores amigos de juventude, e que por ela ficou fascinado quando a conheceu. A necessidade, que adivinhamos quase obsessiva, de viajar e de procurar alguma coisa, que ela mesma confessa muitas vezes não saber o que é, parece poder ser a melhor manifestação desse mal-estar de que nos fala Carlos Vaz Marques, ou uma busca de um céu, onde o anjo devastado que ela encarna, nas palavras de Thomas Mann, pudesse encontrar a paz. “A viagem é uma forma de vida particularmente intensa” escreve a autora. A viagem não tem um destino, é uma forma de vida. Um fado. Vida como errância. Liberdade como condenação. Há uma exaltação da liberdade que por vezes nos faz pensar numa influência do romantismo alemão. A admiração que demonstra pelos nómadas e pela sua liberdade, que parece ameaçada pelo progresso, parece traduzir esse romantismo (ingénuo?). São antigos nómadas que prescindiram da sua vida anterior vida livre para – prisioneiros de uma nova ordem - se vergarem às leis implacáveis do avanço tecnológico, no isolamento asiático. Annemarie Schwarzenbach, Nómadas Trabalhadores a Tempo Inteiro, Zürcher Illustrierte

Em verdade, a viagem parece ser muitas vezes mais uma fuga do que uma procura. Annemarie refere-se ela própria a essa compulsão para a viagem como uma “maldição de fuga”. Foge da Europa que se autodestrói, foge da família, foge da mãe, foge dela própria. E no fim, desiludida, fala de uma liberdade desbaratada. A liberdade só existe para quem tem força para a usar. Mas eu desbaratei a minha liberdade. Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia

A viagem dos seus textos reflecte um confronto entre o (pre)conceito da civilização ocidental e a cultura do “outro”; resulta numa metamorfose dolorosa da viajante; mas é sobretudo uma fuga caótica de algo que a persegue. A partir dessas suas viagens fantásticas escreveu, não só muitas crónicas e inúmeros artigos para jornais e revistas na Europa, mas também poesia e alguns romances, relatando quase sempre de uma forma muito íntima as suas experiências de viandante. Muitos dos seus destinos, como o Afeganistão ou a Pérsia, eram então em grande medida quase desconhecidos dos ocidentais. Annemarie esteve inclusive duas vezes em Portugal, durante a guerra, a meio percurso das viagens para os EUA, e daqui enviou artigos2, que foram publicados em periódicos suíços.

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Os artigos escritos por Annemarie Schwarzenbach durante a sua estadia em Portugal estranhamente parecem ser elogiosos do Estado Novo e da sociedade portuguesa, onde ela acreditava ver um clima de paz e de tranquilidade, que contrastava com a erupção que ameaçava a Europa. Estes artigos acabam por poder ser interessantes por evidenciarem talvez a fragilidade ideológica e política de Annemarie Schwarzenbach, que era sobretudo uma rebelde sem causas, uma mulher que tinha “apenas” uma necessidade urgente de ser livre. 2

A sua história de vida, construída a partir dos anos 30 em grande parte por viagens, é essencial para compreender a sua fotografia. Ela fotografa ao mesmo tempo que viaja e que escreve. Ao longo de toda sua vida, Annemarie Schwarzenbach revelou uma grande intimidade com a fotografia. Os muitos retratos que deixou3 revelam uma mulher jovem, bela, triste, misteriosa, sedutora. Muitas destas fotografias podem sugerir uma relação narcísica de Annemarie com a sua imagem4. A figura e sobretudo o olhar de Annemarie sugerem-nos que ela adivinhava que, um dia, nós olharíamos esse retrato e que por ele seríamos enfeitiçados. Uma capacidade de fascínio tão singela, que nos parece quase impossível não ter sido estudada, mas que, ao mesmo tempo, se nos impõe pela sua naturalidade. O seu ar andrógino, de cabelo curto e usando vestuário masculino, em vez de atenuar esse fascínio, acentua-o, independentemente da estranheza que possa despertar no nosso olhar. Em todos os seus retratos se desvenda um à-vontade fora do normal perante uma câmara. Não será difícil reconhecer nalgumas imagens poses futuramente adoptadas por modelos fotográficos. Talvez se possa conjecturar uma ligação entre esses retratos, com que Annemarie parecia conviver de uma forma tão espontânea, e a sua relação próxima com a fotografia e a forma natural como a utilizou nas suas viagens. De facto, nos seus percursos pela Europa, pelos EUA, pela Ásia e por África, por destinos exóticos e sobretudo invulgares para uma mulher europeia nos anos 30, Annemarie Schwarzenbach fez milhares de fotografias. Algumas dessas imagens – um pequeníssimo número – foram utilizadas pela autora para acompanhar as suas crónicas de viagem, correspondendo assim a um interesse crescente na Europa5 por reportagens ilustradas com fotografia. Os seus mais de 7000 negativos e as centenas de provas de época estão guardados nos Arquivos Literários Suíços, na Biblioteca Nacional Suíça, em Berna, à espera de um trabalho paciente de análise e de publicação. Mas Annemarie Schwarzenbach ficou quase esquecida depois da sua morte. Com muitas das suas obras por publicar. Muitas razões poderiam ser evocadas para que tal tivesse acontecido. Só quando a revista suíça Der Alltag lhe dedicou um número especial, em 1987, a autora foi redescoberta. E o sucesso foi imediato. São editados a seguir todos os seus livros, muitos inéditos, que se tornam rapidamente objectos de culto, não só na Suíça e na Alemanha, mas também na França6, depois da tradução para francês. Mas o mesmo não acontece com a sua fotografia. Podemos afirmar que Annemarie é uma fotógrafa quase desconhecida em Portugal7, acreditamos que o mesmo acontece na Europa e tudo indica que o mesmo ocorre na América. Bastará dizer, como prova do que afirmamos, que não encontrámos livros de fotografia de Annemarie Schwarzenbach publicados em qualquer língua, a não ser uma edição alemã, intitulada Auf der Schwelle des Fremden. Das Leben der Annemarie Schwarzenbach, 3

A sua mãe, Renée Schwarzenbach, fotografou-a de uma forma sistemática e quase obsessiva ao longo de toda a sua vida. No entanto, muitas dessas fotografias ter-se-ão perdido, pois a mãe destruiria alguns arquivos de fotografias e outros documentos depois da morte da filha. Existem também muitos retratos de Annemarie adulta com diversas autorias; poderemos realçar as imagens feitas por Marianne Breslauer, Ella Maillart, e Barbara Hamilton –Wright, fotógrafas e amigas, com quem Annemarie fez algumas das suas espantosas viagens. 4 Marianne Breslauer confirma em entrevista que recebia muitas vezes de Annemarie pedidos de cópias de fotografias que ela lhe fizera. 5 A revista Zürcher Illustrierte vai desempenhar um papel fundamental. Foi nesta revista que Annemarie Schwarzenbach publicou muitas das suas reportagens e fotografias. 6 Apesar de um crescente interesse por Annemarie Schwarzenbach, em Portugal só encontrámos o livro Morte na Pérsia, editado em 2008 7 Annemarie Schwarzenbach continua por descobrir pelos fotógrafos portugueses, apesar da importante iniciativa Auto-retratos do Mundo no CCB em 2010. 3

que assume no entanto a forma de uma foto-biografia da autora. Esta publicação reúne, juntamente com muitas fotografias biográficas, uma selecção de fotografias de Annemarie Schwarzenbach8. 1.2. Pequena justificação do título do ensaio Na viagem que a deusa lhe ordenara Homero, Odisseia (I-355)

Se o tema nuclear da obra de Annemarie Schwarzenbach parece ser a viagem, uma viagem autodiegética que nos é contada pela autora em termos muito pessoais, a sua associação a Ulisses, à Odisseia de Homero e a Ítaca, destino do herói grego, parece poder estar justificada. Teríamos assim razão suficiente para o título que escolhemos “Sem Ítaca, não terias partido”. Poder-se-á no entanto argumentar que, enquanto Ulisses na Odisseia procura a terra natal, Ítaca, e que o poema relata as aventuras fantásticas daquele grego ardiloso durante esse regresso doloroso e demorado ao seu país, Annemarie Schwarzenbach parece orientar a sua vida pela necessidade contrária de partir e de deixar para trás o seu país, fugir da angústia, personificada numa Europa que se desfaz em cacos e na figura da mãe. O argumento é verdadeiro mas verificamos nos textos da própria autora que, por um lado, quando ela parte, o que procura é um lugar onde se sinta em casa, a casa que a Europa já não pode ser, e que por outro lado, durante as suas viagens, ela expressa permanentemente uma nostalgia da Europa e uma necessidade urgente de voltar, sentindo que os seus destinos de viagem também se revelam incapazes de constituir a sua casa. Parte e regressa, como se procurasse nesse vaivém permanente o lugar onde finalmente pudesse encontrar paz, a sua casa, o seu país, a sua Ítaca, que nunca descobre onde chega, mas que busca quando parte. No seu livro Morte na Pérsia, por exemplo, publicado recentemente em Portugal, a autora confessa repetidamente o esforço que fez em cada viagem para ficar na Pérsia a viver, sem o conseguir. Forçada por uma qualquer pulsão interior, fracassa e sente-se sempre obrigada a voltar à Europa. Naquela terra, nada pode consolar. E tinha sempre a impressão de que na água prateada boiavam peixes mortos ao sabor da corrente…Não havia nada, eu chorava pela minha mãe. Como se uma alma mortal pudesse alguma vez ouvir-me. Aos poucos compreendi. Foi o princípio do medo.(…) Tentei tudo ao meu alcance para vive na Pérsia. Falhei.(…) O perigo tem diferentes nomes. Por vezes, chama-se simplesmente saudades de casa, outras vezes, é apenas o vento seco das montanhas, que acicata os nervos, o álcool, outras vezes, venenos mais letais ainda. Em certos momentos, não tem nome, nesses momentos somos acometidos por um medo inominável.(…) – Estou de partida - disse eu – nunca mais vou voltar. – Isso é o que todos dizem – respondeu ele. Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia

Assim, de cada viagem regressa à Europa, mas não consegue ficar e parte de novo. Retorna a casa, para logo começar a preparar a próxima viagem. Como um Ulisses em permanente périplo entre Tróia e Ítaca, sem saber que lugar o tornará feliz, ou como um Sísifo que carrega 8

Foi entretanto feito um trabalho muito importante pela BNS, de digitalização, de organização e de arquivo de todas as imagens de Annemarie Schwarzenbach e documentação associada. Mas o acesso a essa informação é complexo e demorado, pois as fotografias estão organizadas numa sequência cronológica e por lugar, o que obriga a procurar as imagens uma a uma; por outro lado as imagens digitalizadas a partir das provas de contacto/negativos têm pouca qualidade, muito baixa resolução e marcas de água. 4

consigo as pedras que hão-de rolar encosta abaixo, para ter de recomeçar, sempre em busca do seu lugar no mundo. Annemarie Schwarzenbach dedica dois capítulos inteiros do seu livro Morte Na Pérsia à descrição de duas visões de um anjo. Quem é o anjo? Um anjo da guarda, a deusa Atena, guardadora de Ulisses, que por ele vela? A sua mãe, Renée, protectora, mas ao mesmo tempo dominadora? A própria Annemarie? A escrita que lhe serve de confidente? Não sabemos. Mas este anjo, com quem ela conversa, como que com um amigo íntimo, talvez nos possa revelar o que norteou a sua vida e a sua obra. No primeiro encontro ficamos a saber que o anjo a salvara no último momento, pois Annemarie tinha procurado voluntariamente a morte. Porquê? Ela própria responde ao anjo que não sabe. Porque é fraca, responde. – Vi como sofrias, vi como te atormentavas, já contra toda a razão, e como depositavas a tua última esperança num milagre. O que era que te faltava? – Não sei – disse eu.(…) – Porque tu és fraca – disse ele - estás entre os mais fracos, mas és sincera. (…) – Não estou descontente – respondi eu, arriscando um reparo – sinto-me apenas tão só, e já não sei onde posso encontrar um abrigo, encontrar amparo. (…) – Tenho medo – disse eu e fitei o anjo nos olhos.(…) Com um cansaço que era já uma morte disse: «Não aguento mais.» Ele respondeu apenas: - És sincera até à obstinação. Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia

Angústia, solidão, medo, morte. Mas também sinceridade, sinceridade até à obstinação. O segundo encontro acontece quase no fim do livro, e é ainda mais marcado pela ideia de morte; a sua amiga, Ialé, está a morrer e Annemarie não obtém permissão para estar ao lado dela. – E tu nunca quiseste morrer? Porque é que pensas nisso? – Penso apenas que nos resta sempre essa saída! (…) – Leva-me para longe daqui – exclamei, e a minha voz quebrou-se, chorei alto – Leva-me para longe deste vale, leva-me para casa! Quero ir para casa!... Porque tive eu de percorrer tantos caminhos, de me perder uma e outra vez? Primeiro por aventura, depois por saudades depois porque comecei a sentir medo e ninguém me ajudava. Annemarie Schwarzenbach, Morte na Pérsia

Poderá este anjo simbolizar o que Annemarie Schwarzenbach procura na viagem, o que ela procura na escrita. Poderá simbolizar também a sua busca, ainda mais incerta, na fotografia? Chamar-se-á esse anjo Ítaca? 1.3. O foco do ensaio O foco deste nosso curto ensaio vai estar na fotografia de Annemarie Schwarzenbach, realizado entre 1933 e 1942. Já em 1932, evidenciando a importância para si da fotografia, como registo e como forma de olhar e de pensar, a autora escreveu: Tiro muitas fotografias e tento escrever alguns esboços: com isso a gente obriga-se a uma maior atenção e habitua-se a bem apontar o que se observa.

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Não conhecemos outras declarações, onde a autora se tenha referido de uma forma explícita à fotografia. Há no entanto muitas declarações de Annemarie Schwarzenbach sobre a relação que mantém com escrita. Quase nunca escrevo por causa de uma ideia, um pensamento que me surgiu em qualquer altura é apenas o ponto de partida e fornece-me os meios para poder escrever…Num livro só gosto da linguagem. Pode não haver nele senão coisas triviais, ou melhor, não haver mesmo nada. (…) Gostaria de escrever um livro que se pudesse ler devagar e em voz alta, e cada frase, mesmo sem conexão, seria plena de sonoridade e beleza.

Nestes textos em que fala da sua escrita compreende-se que os seus relatos e os seus romances de viagem são tudo menos textos convencionais, pois são textos de errância na paisagem, que reflecte a errância dentro de si. Como afirma Gonçalo Vilas-Boas no seu ensaio Um olhar pela escrita de Annemarie Schwarzenbach “O leitor começa a aperceber-se de um dos traços característicos da escrita desta autora: a dificuldade em orientar-se”. O que pode ser significativo é observar que as declarações da autora poderiam ser em grande parte facilmente transcritas para a sua obra fotográfica, também ela errante, como se procurasse “um projecto que se pudesse olhar devagar, e cada imagem, mesmo sem conexão, seria plena de luz e beleza”. Também na fotografia parece existir essa “dificuldade em orientar-se”. Não há, nem na escrita nem na fotografia, uma viagem com um ponto de partida, com um trajecto e com um ponto de chegada, mas uma errância permanente. Annemarie Schwarzenbach escreve em Alle Wege sind offen. Die Reise nach Afghanistan, que reúne um conjunto de histórias e de artigos sobre a sua viagem ao Afeganistão, em 1939: “Todos os caminhos estão abertos, e não levam a sítio algum, sítio algum”. 1.4. Principais objectivos do ensaio Os principais objectivos deste ensaio serão: a) tentar contribuir, ainda que modestamente, para uma divulgação em Portugal do trabalho fotográfico de Annemarie Schwarzenbach; b) contextualizar o trabalho de Annemarie Schwarzenbach na história da fotografia, desde a sua invenção em meados do século XIX até ao presente, integrando-o nomeadamente na fotografia que lhe era contemporânea, dos anos 30, na Europa e nos Estados Unidos; c) procurar discutir a contemporaneidade do olhar de Annemarie Schwarzenbach, no quadro do que se costuma designar por fotografia documental contemporânea.

A fotografia de Annemarie Schwarzenbach tem sido maioritariamente interpretada como um simples suporte da sua escrita, sem autonomia como objecto artístico. Uma questão pertinente seria portanto perguntarmo-nos se a sua fotografia pode ser considerada como um objecto artístico autónomo, ainda que com relações profundas com a sua escrita, com as suas viagens e com a vida da autora. O horizonte temporal e espacial deste ensaio não nos permitirá responder a esta questão complexa, quando muito poderá contribuir para evidenciar a pertinência da pergunta, o que já não será despiciente. A caracterização da fotografia de Annemarie Schwarzenbach neste artigo traz consigo duas dificuldades quase insuperáveis: 1. O seu espólio fotográfico integra milhares de imagens, como vimos, mas ele continua em grande parte por analisar e por publicar. 2. A fotógrafa na realidade nunca publicou o seu trabalho fotográfico, a não ser utilizando algumas fotografias como ilustrações das crónicas de viagem que escreveu, sendo muito difícil, apesar das notas 6

escritas pela autora9, saber como poderia para ela esse trabalho assumir autonomia, como projecto fotográfico. A segunda dificuldade que enunciámos no parágrafo anterior é particularmente difícil de superar. De facto, Annemarie não fotografou de uma forma sistemática, como faria um vulgar fotojornalista, mas de uma forma errante, imprimindo a essa errância o seu sentir e os seus estados de alma, que igualmente se fazem sentir na escrita.

2.

A fotografia de Annemarie Schwarzenbach na história da fotografia

Num pequeno artigo como este não temos espaço para contar esta história de quase duzentos anos com muitos pormenores. Tentaremos por isso dar apenas as pinceladas necessárias para conseguir um esboço de cenário que nos permita enquadrar a fotografia de Annemarie Schwarzenbach. Desde a invenção do processo fotográfico em 1826 por Nièpce10 até ao final do século XIX, a transformação da fotografia aconteceu muito rapidamente, evoluindo de um processo químico e óptico artesanal, muito complexo, e por isso acessível a muito poucas pessoas, para um processo de utilização relativamente simples e que, graças a isso, se tornou muito popular. Foram desenvolvidas técnicas que permitiram fotografar com tempos de exposição muito curtos e, desta forma, registar os eventos do quotidiano, popularizou-se a técnica do negativo, que possibilitou a cópia das imagens ad infinitum, e, finalmente, começaram a ser comercializadas câmaras relativamente leves e fáceis de transportar em viagem. Ao mesmo tempo, este período inicial da fotografia pode ser caracterizado por uma forte oposição e por uma crítica desbragada por parte dos pintores e de muitos pensadores ligados às belas-artes, entre os quais se destaca Baudelaire11, escritor que mantinha uma amizade forte com muitos pintores, destacando-se Delacroix. Os ataques à fotografia dos pintores revelavam muitas vezes um desconhecimento acerca do processo e reflectiam certamente a ameaça que sentiam, por parte desse novo processo, para a sua subsistência. Os principais argumentos de então para atacar a fotografia assentavam em duas “limitações”: a ausência de cor e o carácter mecânico e portanto não-criativo do processo fotográfico. A fotografia, sendo um mero espelho do real, não implicaria qualquer acto de criação e portanto não teria carácter artístico12. Esta situação levou muitos fotógrafos, grande parte com formação académica em pintura, por não serem capazes de contestar os argumentos apresentados, a desenvolver e a propor várias técnicas sofisticadas para coloração das 9

Annemarie Schwarzenbach tinha um método muito pessoal e rigoroso de arquivo, em que os negativos e as provas são acompanhados de muitas notas e muitas vezes organizados em pequenas séries, por exemplo de imagens diferentes do mesmo local. 10 O nome do inventor da fotografia continua objecto de alguma polémica. Em França, Daguerre foi considerado como o inventor da fotografia, pois Arago, em 1839, na apresentação oficial do processo fotográfico, na Academia das Ciências, em Paris, usou daguerreótipos como prova dos resultados extraordinários obtidos, maravilhando todos os membros da academia. Mas a imagem fotográfica conhecida mais antiga é uma imagem de Nièpce, de telhados de Saint-Loup-de-Varennes, obtida através da sua janela, em 1826. Os ingleses, por sua vez, invocam muitas vezes o nome de Henry Fox Talbot, que foi de facto o inventor do primeiro processo negativo em fotografia. 11 É particularmente célebre o seu texto crítico sobre fotografia, que integra a conhecida publicação Salon de 1859. 12 Daguerre, um dos pioneiros, quando pretendia explicar essa nova técnica extraordinária a quem ainda não a conhecia, descrevia-a precisamente como uma espécie de “espelho com memória”, ou seja, como um processo capaz de reflectir o real, mas também capaz de o capturar, registando-o de uma forma permanente. Por isso, também Henry Fox Talbot, em 1844, intitulou o primeiro livro de fotografia The Pencil of Nature. Como se a natureza se reflectisse num espelho mágico e se desenhasse a si própria através da fotografia, como se esta fosse um lápis rigoroso, mecânico e instantâneo. Essa capacidade mágica para parar o tempo, para congelar uma fracção do segundo e para desenhar com precisão e verdade o acontecimento, como um espelho com memória, continua a ser talvez a característica mais diferenciadora da fotografia, mas também porventura uma das suas maiores fontes de equívocos. 7

fotografias, ou técnicas requintadas e complexas de composição, como o positivado. Seriam uma forma de ultrapassar as limitações do processo e de criar “verdadeiras” obras de arte, que pudessem vencer a oposição e mesmo o desdém que a fotografia e os fotógrafos mereciam do circuito das artes. Esses fotógrafos, que procuraram imitar a pintura, recorrendo a estes métodos importados e estranhos à fotografia, receberam o nome de pictorialistas. E assim, durante grande parte do século XIX, muitos “fotógrafos-artistas” produziram imagens estilizadas, de um grande formalismo, utilizando diversos tipos de intervenção pictórica sobre a imagem original, para construir protótipos de beleza clássica: belas composições, belas paisagens, belos rostos e belos corpos humanos. É certo que, durante esse período, outros fotógrafos, sem esse tipo de preocupações, iam fotografando e registando o mundo desse tempo, deixando-nos muitas imagens, que possibilitaram a divulgação de acontecimentos longínquos ou de lugares exóticos em jornais e revistas13 e que hoje nos permitem olhar para registos de muitos eventos sociais e políticos do século XIX. Na altura, os pictorialistas brilhavam, eram os “artistas”, os outros eram simples fotógrafos, mas a história, com a sua ironia, se encarregaria de inverter as coisas. Mas o relativo (in)sucesso dos pictorialistas14 foi de curta duração. Receberam desde cedo a oposição de alguns fotógrafos que, apesar de continuarem a procurar na fotografia uma beleza referenciada na criação artística da pintura, defendiam a pureza do processo fotográfico, que deveria assumir a sua diferença para com a pintura. São por isso, às vezes, designados como “puristas” da fotografia. Era um grupo vanguardista, claramente influenciado por movimentos modernistas nos círculos artísticos, em particular pelos impressionistas. Privilegiavam a fotografia de rua, as cenas do quotidiano, às encenações artificiais pictóricas. Esse grupo recebeu também o epíteto de “naturalistas”15. Esta concepção naturalista foi fundamental para o que viria a acontecer com Alfred Stieglitz e com o grupo Photo-Secession nos EUA e com outros movimentos “naturalistas” na Europa, como por exemplo o Photo Club de Paris em França ou o Linked Ring no Reino Unido. A célebre revista Camera Work, fundada por Stieglitz e editada entre 1903 e 1917, onde a maioria desses fotógrafos, não só americanos mas também europeus, publicou, é talvez a que melhor ilustra a dimensão deste movimento. Seria o naturalismo quem abriria caminho para o que viria a irromper na segunda década do século XX, criando condições para um afastamento progressivo do pictorialismo, rumo a uma fotografia documental chamada por vezes “directa” (straight photography)16, e possibilitando também o aparecimento de muitos e diferentes movimentos fotográficos. Walker Evans é porventura o nome mais influente desta ruptura. É ele quem marca de uma forma mais clara o fim da atitude exaltante de "humanismo eufórico" e do pictorialismo, que eram ainda visíveis no grupo de Stieglitz, e que resistiam na fotografia americana e europeia. Evans faz essa fotografia directa (straight photography), procurando apenas documentar sem artifícios. Paradoxalmente, é como se tivesse sido necessária uma aprendizagem de décadas aos fotógrafos, para conseguir atingir esta fotografia poderosa, nua de enfeites, sem truques e 13

Podemos, apenas a título de exemplo, invocar aqui Mathew Brady com as suas famosas fotografias da guerra civil americana.

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Na verdade, os pictorialistas, por muito que se esforçassem, nunca foram aceites nos círculos artísticos.

Esta designação tem origem num livro muito importante chamado Naturalistic Photography, escrito por Peter Henry Emerson já no fim do século XIX (1889), e que influenciou fortemente todos esses fotógrafos. 16 A designação “straight photography” transformou-se numa designação muito abrangente, sendo associada por diferentes autores a distintos movimentos e a fotógrafos muito diferentes, desde Paul Strand a Edward Weston, ou a Walker Evans, e mesmo Diane Arbus, pretendendo significar uma fotografia directa e sem artifícios. 8

sem rebusques. Nela, Evans consegue mostrar uma beleza sóbria, austera, puramente documental. Podemos encontrar, durante os anos 20 e 30, vários paralelismos à ruptura feita por Walker Evans, ainda que de tipo diferente, em outros fotógrafos nos EUA, como Edward Weston, que fundou um grupo chamado f.64, e em alguns movimentos na Europa desse tempo, como a Nova Objectividade17, a Nova Visão18 e o Construtivismo19, ainda que cada um deles proclamasse uma atitude estética fotográfica diferente. Muitas vezes adopta-se relativamente a este conjunto de movimentos a designação abrangente de Nova Visão. De facto, todos estes movimentos participaram em determinados momentos em iniciativas comuns. A exposição FiFo20 (Film und Foto), organizada em Estugarda, na Alemanha, em 1929, pode ser considerada como a primeira grande mostra da fotografia europeia e americana que traduz as ideias artísticas dessa chamada Nova Visão. Ao mesmo tempo, temos também, e neste caso sobretudo na Europa, o desenvolvimento de um movimento com características radicalmente diferentes, o surrealismo, onde a fotografia também desempenhou um papel fundamental. E com esta miríade de movimentos de vanguarda, que irrompem nas primeiras décadas do século XX, tempo de rupturas e de grandes ilusões, que não poderemos deixar de interpretar como ligados às transformações sociais e políticas que aconteciam, estamos na década de 30, precisamente quando Annemarie Schwarzenbach fez a sua fotografia. Não sabemos que conhecimento ela teria destes fotógrafos ou do seu trabalho. Podemos no entanto afirmar com alguma segurança que a sua fotografia se parece distanciar dos movimentos vanguardistas europeus e se aproximar bastante mais da fotografia americana dessa época. A sua ligação ao jornalismo e à reportagem de viagem, a sua formação académica em História e não numa Escola de Arte, poderão constituir pelo menos parte da explicação para essa opção. Podemos observar essa proximidade, mesmo nas imagens anteriores à sua viagem aos EUA, que a fotógrafa visitou entre 1936 e 1938 e onde terá contactado com fotógrafos que integravam o FSA21. Ora, Walker Evans foi precisamente um dos nomes mais relevantes a colaborar com esse organismo. Mas não sabemos que tipo de relações se estabeleceram durante essa viagem, que fotógrafos americanos Annemarie de 17 A Nova Objectividade é um movimento centrado na República de Weimar. Tem como mais conhecidos representantes os fotógrafos alemães Albert Renger-Patzsch, August Sander e Karl Blossfeldt, e caracteriza-se pela procura de registos de tipo documental, de grande qualidade e de rigor inexcedível. 18 A designação Nova Visão deve-se a László Moholy-Nagy, artista ligado à Bauhaus, que defendia o papel da fotografia na descoberta de uma completamente nova forma de ver. 19 O Construtivismo foi um movimento estético-político iniciado na Rússia na década de 20. Pretendia ser um movimento de forte contestação à arte burguesa, inspirando-se em perspectivas novas, abertas pela máquina e pela industrialização. Prosseguia objetivos culturais e sociais no quadro da construção de um mundo socialista. Teve forte influência na fotografia, que foi considerada a partir de determinada altura, como um dos meios privilegiados para prosseguir os objectivos do movimento. Os fotógrafos mais conhecidos ligados a este movimento são Alexandr Rodchenko e El Lissitzky. 20 A seleção dos fotógrafos europeus para a exposição Film und Foto foi feita por Moholy-Nagy e a dos fotógrafos americanos por Edward Weston e Edward Steichen. Participaram fotógrafos muito diferentes, para além dos três autores mencionados, entre outros, Albert Renger-Patzsch, Alexander Rodchenko , Berenice Abbott, Charles Sheeler, El Lissitzky, Eugène Atget, Florence Henri, Imogen Cunningham, Man Ray, Marcel Duchamp e Paul Outerbridge. Walker Evans participou nesta exposição quando ela foi mostrada em 1930 em Munique. 21 A FSA (Farm Security Administration) foi criada nos EUA na década de 30. Um dos objectivos deste organismo, que integrou muitos dos melhores fotógrafos americanos desta década, era utilizar a fotografia para documentar os efeitos da Grande Depressão nas zonas rurais e dessa forma contribuir para encontrar soluções para resolver a enorme crise agrícola e assim ajudar muitos americanos que tinham perdido tudo.

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facto conheceu, que fotografias viu, se se cruzou ou não com Walker Evans22. Não sabemos se existe algum testemunho da fotógrafa que esclareça as nossas dúvidas. Mas, apesar deste desconhecimento, parece ser possível descortinar um salto qualitativo no trabalho da fotógrafa, depois dessas viagens. Olhemos para as suas imagens do sul dos EUA ou para as imagens que fez de outros lugares, depois de 1938. As fotografias do Oriente parecem agora muito mais distantes dos clichés ocidentais. As suas imagens tornam-se mais sóbrias, mais “directas”, para utilizar a terminologia própria da fotografia de Walker Evans. Mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, mais pessoais, mais ricas e mais subjectivas.

3.

A contemporaneidade da fotografia de Annemarie Schwarzenbach

A fotografia de Annemarie Schwarzenbach ficou praticamente desconhecida até à década de 90. O interesse despertou apenas em 1987, quando a sua obra literária foi redescoberta, mas, enquanto os seus livros foram editados e traduzidos em várias línguas, a sua obra fotográfica continua em grande medida por revelar, e tem sido apresentada sobretudo como subsidiária da escrita23. Será possível afirmar o interesse da obra fotográfica de Annemarie Schwarzenbach na contemporaneidade? Emília Tavares, que estudou com atenção o arquivo da fotógrafa, pois coordenou a grande exposição intitulada Auto-retratos do Mundo em 2010 no CCB, afirma no catálogo dessa exposição que “não estamos perante uma fotografia de autor” ou ainda que o trabalho “oscila entre um amadorismo esclarecido e uma prática empírica do foto-jornalismo”. Consideraríamos ousado fazer afirmações tão peremptórias, ainda que pareçam sustentáveis à luz de uma visão clássica da fotografia; mas são muito mais difíceis de aceitar no terreno da chamada fotografia contemporânea. De facto, se concordaríamos que não pode haver na obra fotografia de autor, porque não houve trabalho autoral, já que a fotógrafa o não realizou em vida, estamos convencidos, no entanto, de que existirão condições para outros o poderem realizar em seu nome. E encontramos facilmente exemplos de fotógrafos, que não fizeram fotografia de autor, que poderiam ter sido facilmente ligados a um “amadorismo esclarecido” ou a uma “prática empírica do foto-jornalismo”, de que fala Emília Tavares, e que se tornaram icónicos na contemporaneidade. Bastaria referir o caso de Eugène Atget24. Não podendo dar neste momento uma resposta definitiva à pergunta, que formulámos atrás, sobre se a fotografia de Annemarie Schwarzenbach se poderá transformar num objecto artístico autónomo na contemporaneidade, nomeadamente por não termos um conhecimento profundo do seu arquivo nem de algumas das condições subjectivas que poderão propiciar

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A legenda You can see their faces, que Annemarie Schwarzenbach escreveu no verso de uma fotografia de dois soldados nazis em Viena, pode sugerir que ela conheceu o livro de Margaret Bourke-White e Erskine Caldwell de 1937, precisamente com esse título. 23 Será significativo mencionar que a publicação recente The History of Europen Photography - o primeiro volume é relativo ao período entre 1900 e 1938 e é de 2010, o segundo e o terceiro volumes restantes não foram ainda publicados – que deveria apresentar todos os fotógrafos considerados importantes de cada um dos países da Europa, não refere sequer o nome de Annemarie Schwarzenbach. 24 Eugene Atget fotografou durante anos, de uma forma quase obsessiva todos os recantos de Paris. Man Ray têlo-á descoberto nos anos 20, pois era seu vizinho, e comprou-lhe um grande número de fotografias, porque afirmava que elas continham muitos das qualidades essenciais para o surrealismo e para o dadá. Man Ray contou que, quando perguntou a Atget se as poderia publicar, Atget teria respondido que sim, mas para não mencionar o seu nome “pois as imagens eram simples documentos que ele fazia”. 10

essa transformação, somos capazes no entanto de referir alguns aspectos significativos que, com certeza, condicionarão essa resposta. 1.

2.

3.

A curiosidade e o interesse perante as fotografias de uma autora icónica como Annemarie Schawarzenbach são naturais. Parecem, além disso, existir condições objectivas e subjectivas para que essa curiosidade e esse interesse cresçam. A fotografia de Annemarie Schawarzenbach nunca foi publicada, a não ser um número muito reduzido de imagens, que ilustraram as suas crónicas de viagem; e mesmo essa publicação aconteceu quase só em jornais e revistas suíços, de pequena divulgação e de impacto cultural limitado. E, depois de 1987, foi editado um único livro, mas que é, como dissemos, essencialmente uma fotobiografia da autora. A atracção pela chamada fotografia documental tem crescido exponencialmente a partir da década de 80, com o surgimento e com o desenvolvimento do que vulgarmente se chama fotografia contemporânea. Não é com certeza por acaso que a (re)descoberta da obra de Annemarie Schwarzenbach pôde de imediato despertar também curiosidade pela sua fotografia. Ela acontece quando a chamada fotografia contemporânea ganha protagonismo. E a chamada fotografia contemporânea tem lançado múltiplas ligações à chamada fotografia documental e em particular à fotografia de viagem. Verificamos mesmo que, por vezes, a designação de “contemporâneo” na fotografia se mistura, se confunde ou anda lado a lado, com o atributo de “documental”, mesmo quando esta designação é esvaziada do seu sentido natural, para conseguir agrupar todas as tendências actuais que se reclamam da contemporaneidade. Nesta contemporaneidade ganham um relevo especial fotógrafos como Walker Evans ou August Sander, curiosamente ambos contemporâneos de Annemarie Schwarzenbach. Se olharmos por exemplo para a primeira grande exposição dedicada à chamada fotografia contemporânea na Modern Tate em Londres, realizada em 2003 e chamada Cruel and Tender - The Real in the Twentieth-Century Photograph, constatamos que ela agrupa, a par de fotógrafos do presente chamados contemporâneos, dois grupos de fotógrafos americanos e alemães reunidos precisamente à volta de Evans e de Sanders. Annemarie Schwarzenbach reúne um outro atributo particularmente interessante, quando falamos de fotografia ou de arte contemporânea. Uma das características essenciais de toda a arte chamada contemporânea reside no facto dela ser caracterizada em grande medida pela chamada metadata25. Ou seja, o que define um objecto como objecto artístico, deixa de ser o objecto propriamente dito, para ser a chamada metadata que circula à volta dele: os sítios onde foi mostrado, as críticas que recebeu, as notícias que foram escritas, as polémicas suscitadas, a vida do autor. Será difícil com certeza encontrar autor que possa dotar a sua obra de uma metadata mais rica e mais polémica do que Annemarie Schawarzenbach.

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Metadata (Metadados, ou Metainformação), refere-se a dados sobre dados. Os metadados informam sobre o que tratam os dados. Os metadados facilitam o entendimento da informação recebida (em particular numa relação entre computadores, de onde deriva o termo). A metadata designa portanto informação sobre a verdadeira informação. A metadata descreve a informação, permitindo interpretá-la, mas não contém verdadeira nova informação. 11

4.

Existe um outro aspecto na obra da autora, que nos é revelado por quem conhece o seu arquivo e assim pôde observar a forma com a própria fotógrafa organizou os seus negativos e provas, que pode ser significativo. Referimo-nos à ideia de série, que a chamada fotografia conceptual desenvolveu e valorizou, e que é patente no arquivo pessoal de Annemarie Schwarzenbach. Por exemplo, muitos negativos e provas de um mesmo local, com diferentes aproximações ou com diferentes vistas são agrupados pela própria autora, constituindo objectos de leitura múltipla.

Os aspectos que identificámos acima parecem poder indiciar que a fotografia de Annemarie Schwarzenbach reúne bastantes atributos (suficientes?) para a tornar aliciante para a contemporaneidade. Mas o sucesso de mais essa viagem da fotógrafa vai depender doutros factores que não conhecemos e ninguém será capaz de garantir que desta vez ela chega a Ítaca.

4.

Algumas conclusões

Annemarie Schwarzenbach é com toda a certeza uma personagem muito especial, que nos atrai de imediato o olhar e que, depois de a começarmos a conhecer, nos atrai o corpo e a alma para mergulharmos na sua obra e na sua biografia ou, se preferirmos, na sua biografia-obra. O seu trabalho literário foi redescoberto em 1987 na Suíça e está a ser redescoberto noutros países, à medida que vai sendo traduzido. Mas Annemarie Schwarzenbach, para além de escrever crónicas, romances e poesia, sempre fotografou os lugares e as gentes, de cada uma das viagens que se sentiu “obrigada” a fazer. Mas essa fotografia, apesar de arquivada na Biblioteca Nacional Suíça em Berna, está em grande parte por descobrir. Estão publicadas apenas algumas das mais de 7000 imagens do arquivo da autora. É por isso difícil assumir uma posição definitiva sobre a importância que o seu trabalho fotográfico poderá vir a ter no futuro. Mas alguns dos seus atributos permitem-nos predizer, como fizemos neste curto ensaio, a possibilidade real de um impacto grande do seu trabalho na chamada fotografia contemporânea, numa sua vertente importante ligada ao documental e ao real.

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BIBLIOGRAFIA:

1.

BAUDELAIRE, Charles. Ecrits sur l’Art, Le Livre de Poche, 1992

2.

BONSTEIN, Carole, Une Suisse rebelle, Troubadour Films, 2000

3.

DEXTER, Emma & WESKY, Thomas, Cruel and Tender - The Real in the XXth Century Photography, London, Tate, 2003

4.

EINTRAMU, Albert, Teoria da Relatividade Restrita do Sonhos, MC, tradução de Renato Roque, 1999

5.

EMERSON, Peter Henry, Naturalistic Photography, Amphoto,U.S, 1974

6.

MACEK, Václav, The History of European Photography, FOTOFO, 2010

7.

MIERMONT, Dominique L., Annemarie Schwarzenbach ou le mal d’Europe, Payoy, 2004

8.

ROQUE, Renato, Fotografia e Curadoria – Queijo Curado É Outra Coisa, colecção REFLEX, The Portfolio Project, 2012

9.

SCHWARZENBACH, Annemarie, Auf der Schattenseite, Reportagen un Fotografien, Lenos,1995

10. SCHWARZENBACH, Annemarie, Auf der Schwelle des Fremden. Das Leben der Annemarie Schwarzenbach, Col. Rolf Heyne, 2008 11. SCHWARZENBACH, Annemarie, De monde em monde, Reportages 1934-1942, Zoé, 2012 12. SCHWARZENBACH, Annemarie, Morte na Pérsia, Tinta da China, tradução de Isabel Castro Silva, 2008 13. SCHWARZENBACH, Renée, Bilder mit Legenden, Scheiddegger & Spiess, 2005 14. TAVARES, Emília & SERRANO, Sónia, Auto-retratos do Mundo, Tinta da China, 2010 15. VILAS-BOAS, Gonçalo, Agora o coração tem de ser forte e a criatura, castigada, ILC 16. VILAS-BOAS, Gonçalo, Uma viajante pela palavra e pela imagem, Afrontamento, 2010 Site de arquivo: 17.

https://www.helveticarchives.ch/archivplansuche.aspx?ID=96519

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