Semântica de \"golpe\"

June 3, 2017 | Autor: J. Portela | Categoria: Semiótica, Discurso Político, Semântica / Sintaxe
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1 Aula conjunta “O discurso político: questões de língua e sociedade” 23/05/2016 – Unesp – FCL/CAr

Semântica de “golpe”

Jean Cristtus Portela (Unesp – FCL/CAr – Departamento de Linguística) [email protected]

Nos últimos meses, a palavra “golpe” ressoa Brasil e mundo afora em diferentes bocas e de diferentes maneiras. “Golpe” – eu falo aqui da palavra – tornou-se incontrolável. Sua semântica, para não dizer sua semiótica, é explicitada, celebrada ou posta em dúvida por políticos, juristas, militantes e cidadãos de todos os meios e atividades. Empregado já há alguns meses pelos movimentos sociais pró-governo Dilma e contestado pelos movimentos de oposição, o uso do lexema “golpe” incendiou a vida política brasileira quando a Presidente Dilma Roussef o empregou explicitamente em um discurso de 22 de março último: “Nesse caso não cabem meias palavras, o que está em curso é um golpe contra a democracia”. Reagindo a essa afirmação, a Ministra Cármen Lúcia, ao contrário de seus colegas Celso de Mello, Gilmar Mendes e José Antônio Dias Toffoli, que se indignaram com o uso do termo “golpe”, relativizou seu uso pela Presidenta Dilma Roussef: "Não ouvi [o discurso da Presidente], mas tenho certeza que a presidente deve ter dito que, se não se cumprir a Constituição, poderia haver algum problema. Não acredito que ela tenha dito que impeachment é golpe porque ele é previsto na Constituição". Já a Ministra Rosa Weber tomou recentemente medida extrema para clarear a semântica de “golpe” segundo a Presidente Dilma, como se lê em uma de suas peças recentes: “Evidencia-se, portanto, que a presença de dubiedades nas afirmações da interpelada, segundo a qual está ocorrendo um golpe no país – sem nominar autores ou tomar providências para sustar algo de tamanha gravidade –, é o suficiente para que se possam pedir esclarecimentos". Outro exemplo curioso que atesta disputas intensas na definição de golpe ocorreu quando, numa sessão da Comissão do Impeachment no Senado, o senador Ronaldo Caiado (DEM) afirmou que o então advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, estaria “impedido de utilizar a palavra” “golpe” para o processo de impeachment. Cardozo, por sua vez, respondeu: "A censura acabou com a ditadura militar (...) Eu chamo isso de golpe, e tenho liberdade de fazer".

2 Vemos que em Brasília, na Universidade, nos corredores, nos botecos, o “golpe” desperta paixões e revela inauditas vocações, como o autoritarismo e o arrivismo, à esquerda e à direita. Embora as ocorrências de “golpe” mencionadas nos exemplos que citei há pouco sejam todas políticas, vou partir de uma reflexão mais geral sobre o termo, para reencontrar no final a dimensão política do uso de “golpe”. Na semântica ligeira que aqui proponho, vou explorar o “golpe” dicionarizado para refletir sobre os discursos em torno de “golpe”. Um verbete de dicionário, já dizia o velho Greimas, semioticista e lexicógrafo, é uma obra de arte como o “boné” de Charles Bovary imaginado por Flaubert ou como um quadro de Paul Klee. A palavra “golpe” é produtiva lexicalmente: “golpear”, “golpeado”, “golpismo”, “golpista”, “autogolpe”. Em seu sentido político, desprendida do galicismo “golpe de Estado” (“coup d’État”), “golpe” ganhou uma autonomia relativa em larga medida sintomática do a-historicismo e da frivolidade do nosso tempo. Não é à toa que Eduardo Cunha, em entrevista recente a Mariana Godoy, da Rede TV, afirmou: “Pode ser que tenha tido um golpe no Brasil, mas foi um golpe de sorte”. Vê-se que mesmo o chamado “arquiteto do golpe”, destituído de sua função de presidente da Câmara dos Deputados, deixa-se levar pela “poética do golpe”, na infâmia do trocadilho, por uma livre associação que não pode ser considerada exatamente livre. De um ponto de vista etimológico, o “golpe”, do latim, “colpus”, “colŏpus”, “colăphus”, via grego, “kólaphos”, é a “bofetada”, o “soco”, a “pancada”. Não por acaso, Aurélio, Houaiss e Michaelis trazem como primeiras acepções de “golpe”: “choque ou pancada produzidos por um corpo que, em movimento rápido, atinge outro com maior ou menor intensidade” (Aurélio), “movimento pelo qual um corpo vem a chocar-se com outro; pancada, batida” (Houaiss) e “movimento brusco e violento, de ataque ou defesa, que atinge uma pessoa” (Michaelis). As ocorrências para essas definições são abundantes: “golpe na mesa”, “golpe no peito”, “golpe de marreta”, “golpe de chicote”, “golpe de ar”, “golpe de mar”, “golpe de aríete”, entre outras. De acordo com essas definições, podemos estabelecer uma primeira dimensão de “golpe”, que vou chamar de dimensão “material”, pois incide sobre as coisas, sobre os entes e seus corpos. O “golpe” assim definido é um acontecimento físico, concreto, que sobrevém, não raramente de surpresa, e que atinge de modo “rápido”, “brusco” ou “violento”, com “maior ou menor intensidade”, uma parte ou a totalidade de um objeto. Esse “golpe” pode ser visto como ação, “movimento”, ou seja, uma causa, ou como um produto da ação, pelo seu resultado como “choque ou pancada”, ou seja, uma consequência. Salvo pela aceleração ou pela intensidade do movimento, não se descrevem nas definições do Aurélio e do Houaiss o princípio da intencionalidade que produz o

3 “golpe”, que parece, desse modo, uma força da natureza, algo imprevisto ou exterior à ordem das coisas: o “golpe” vem de fora, do entorno, em suma, do exterior. Curiosamente, o Michaelis introduzirá o princípio da intencionalidade em sua definição, escolhendo o ponto de vista da ação e da reação: “golpe” é um “movimento brusco e violento, de ataque ou defesa, que atinge uma pessoa”. Notem: de “ataque ou defesa”. Se o princípio de intencionalidade é introduzido na definição pelo Michaelis é porque, nele, “golpe” é o “movimento (...) que atinge uma pessoa”. Sendo esse golpe por “ataque ou por defesa”, presume-se uma relação “pessoa a pessoa” ou, ao menos, de ser animado com ser animado. Ainda que vindo do exterior, o “golpe”, nesse sentido, parece ser a expressão de um movimento elaborado na interação. Nem só das agitações internas e externas da matéria, vive o “golpe”, que comporta também uma dimensão “conceitual” – e, portanto, metafórica, conotada, figurada –, em que a gestualidade ou o impulso do “golpe” é mais importante do que o choque dos corpos, em que a estratégia do agente é mais importante do que o seu movimento. O “golpe”, assim, intervém globalmente, é o motor da narrativa que produz a “intriga”, no sentido de Paul Ricœur, produz reviravoltas, desfechos, muda o curso da ação e, portanto, o sentido partilhado por aqueles que agem. O Aurélio registra acepções bem ilustrativas dessa dimensão predominantemente conceitual de “golpe”: “ação súbita e inesperada” (“golpe de audácia”), “acontecimento súbito e inesperado” (“golpe da sorte”), “abalo, choque, comoção moral” (“rude golpe sofreu ele com a morte do amigo”), “rasgo, lance” (“golpe de coragem”, “golpe decisivo”, “golpe de mestre”) ou “manobra desonesta, com o fim de enganar, prejudicar, roubar” (“golpe na praça”, “fulano vive de golpes”). No Houaiss, na sequência de “recurso ardiloso de ataque e defesa” (“golpe de caratê”) e “ato pelo qual a pessoa, utilizando-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos; estratagema, ardil, trama” (“golpe da loteria”, “golpe do anel”), acepções que o Aurélio não traz em detalhes, encontramos “ação ou manobra desleal; rombo, desfalque”, que remete ao já mencionado “golpe na praça” ou, ainda, ao conhecido “golpe do baú”. O Michaelis acrescentará ao sentido figurado de “golpe”, “atitude decisiva que se toma em qualquer situação” e “ofensa por meio de palavras”, o que corrobora o caráter doloso do “golpe” assim definido. A dimensão conceitual, figurada, de “golpe” pode ser analisada como uma narrativa de privação: um sujeito age sobre o outro para lhe tomar algo que pensa ser (ou poder ser) seu ou de um terceiro. O sujeito do “golpe” pode ser motivado pelo querer-fazer ou pelo dever-fazer, sua motivação se configura segundo a finalidade da sua ação: querer ou dever ganhar, não querer ou não dever perder, querer ou dever apropriar-se, etc.

4 A competência pressuposta para o “golpe” é algo que se forja entre o segredo (“ardil”, “estratagema”, “trama”, no Houaiss) e a mentira (“manobra desonesta, com o fim de enganar”, no Aurélio, “ação ou manobra desleal”, no Houaiss). A solidez da competência cognitiva do “golpeador” ou “golpista” pressupõe a fragilidade do “golpeado”, que supostamente ignora a existência do golpe ou, ainda, ignora a forma de impedi-lo. Em outras palavras, a potência do “golpista” exige como correlato narrativo a impotência do “golpeado”. A ignorância do “golpeado” é um predicado pressuposto à dimensão “material” da palavra “golpe”, que se torna fundamental em seu sentido figurado: não nos esqueçamos de que o movimento que atinge objetos e pessoas é “brusco”, “rápido”, “violento”. O golpeado se vê surpreendido em sua ignorância desprotegida. Sem ignorância não há “golpe”. O “golpista” realiza suas manobras na sombra, nas brechas da insuficiência cognitiva e pragmática do “golpeado”. Em grande medida, isso explica a pecha de traidor, de desleal, que paira sobre todo “golpista”. Se fosse leal, não agiria nas sombras e não se valeria da relativa ignorância do “golpeado”. O uso político que se faz da palavra “golpe”, como em “golpe de Estado”, especialmente quando pensamos nas acepções do Houaiss “tomada inesperada do poder governamental pela força e sem a participação do povo” e “ato pelo qual um governo tenta manter-se no poder, pela força, além do tempo previsto”, traz a baila, quanto à primeira acepção, o problema da legitimidade e, quanto à segunda, o problema do reacionarismo. Na acepção “tomada inesperada do poder governamental pela força e sem a participação do povo”, o “golpe de Estado” pressupõe um problema de legitimidade pois o destinador do poder na democracia, o povo, escolhe seus representantes e a eles delega, em todas as esferas, competências de ação em um quadro institucional pré-estabelecido. Essas ações, resguardadas as cláusulas constitucionais, serão consideradas mais ou menos legítimas segundo as ações dos sujeitos delegados (a classe política) se reportem aos valores do povo como destinador ou aos seus próprios interesses. O que chamamos “clamor popular” ou “voz das ruas”, frequentemente evocados na articulação de um “golpe de Estado”, são formas de legitimação. Isso nos mostra que o golpista é consciente de seu estatuto ambíguo e instável, justamente porque sente necessidade de afirmar e amplificar o apoio popular que legitimaria seus atos. Na falta de consenso político e de apoio popular, o golpista faz valer a força, física no caso de um “golpe militar”, sabendo que a força, “ação brusca e violenta”, pode produzir a ruptura institucional que lhe convém. Na acepção “ato pelo qual um governo tenta manter-se no poder, pela força, além do tempo previsto”, o que nos interessa é a tentativa de “manter-se no poder”. Ao contrário

5 do que acontece em uma “revolução”, em que a sociedade convulsiona e o poder é atingido, subvertido, por essa convulsão, no “golpe de Estado”, trata-se de manter o poder, manter o status quo de uma classe política hegemônica. Nesse sentido, o “golpe de Estado” é uma reação do poder hegemônico contra aquilo que o coloca em risco, daí a necessidade de se construir inimigos públicos que justifiquem a empresa reacionária, no seu sentido primeiro, de reação a uma ordem estabelecida que oferece riscos potenciais. Entre o “Não vai ter golpe” e o “Impeachment não é golpe”, com ou sem hashtag, o “golpe” é apregoado como figura complexa de uma situação em que vemos reunidos muitos dos elementos que o falante, gênio da língua, e o lexicógrafo, seu padroeiro, cristalizaram, na forma de tensões entre o esperado e o inesperado, entre a parte e o todo e entre a ignorância e o ardil. A discussão sobre o que é ou não “golpe” no atual momento da política brasileira carrega certamente nas tintas e dramatiza relações e fenômenos sociais e políticos tão intrincados quanto sutis à observação. O “golpe” narrativiza passionalmente os fatos e cria condutas e papéis extremos, que, muitas vezes, não convêm ao debate maduro das nossas mazelas políticas. De um lado, o “golpe” que os governistas dizem existir não nos chegou como uma surpresa e nem se deveu ao puro ardil dos ditos “golpistas”. O “golpe” que a oposição visa desconstruir e neutralizar não é menos “golpe” pelo simples fato de se pautar, grosso modo, em requisitos legais. A semântica do “golpe” se faz na corda bamba das boas intenções e das práticas mais reprováveis, à esquerda, ao centro e à direita. O vocabulário do “golpe” nos remete, em grande medida, à arena da intolerância. Um “golpe” se cura com outro “golpe” – ou com uma revolução? Estamos no terreno dos extremos, da dissolução dos argumentos, em detrimento do debate de ideias. Cedendo à tentação etimológica, poderia concluir, como disse no início, que “golpe” não é mais que uma “bofetada” (“colăphus”, do latim). Amarga “bofetada” que tem suas consequências no nosso modo de viver em sociedade. Como recomenda o Evangelho, nestes nossos dias, quem há de oferecer a outra face?

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