Semelhança e sobrevivência nos acervos de fotografia do MAM-SP e da Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian

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Semelhança e sobrevivência nos acervos de fotografia do MAM-SP e da Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian Guilherme Tosetto1 Comunicação apresentada no X Congresso Internacional de Estética e História da Arte em 27/10/2016

Introdução Este artigo se origina a partir da leitura do texto 'Sobrevivência dos vaga-lumes', de George Didi-Huberman. Em certa altura do livro o autor comenta um relato do poeta-fotógrafo Denis Roche no campo com vagalumes, que aparecem e desaparecem em um certo intervalo de tempo. DidiHuberman então questiona: "como os vaga-lumes desapareceram ou redesapareceram? É somente aos nossos olhos que eles desaparecem pura e simplesmente... Eles desaparecem de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los" (2011:47). Esta reflexão serve primeiramente para pensarmos a sobrevivência de obras de arte localizadas em acervos, neste caso, recolhidas em 'habitats' museológicos. Se por um lado as obras incorporadas pelos museus, ficam escondidas por não estarem visíveis ou expostas em grande parte do tempo, elas continuam a existir e podem vir a tona a qualquer momento. Neste sentido encontram outros modos de reaparecer, como através de suas cópias disponíveis para consulta online nos sites institucionais, no caso da coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e do MAM-SP, que continuam bons lugares para acessá-las, não em sua completude mas com suficiente informação para conhecê-las. Assim como os vaga-lumes estão escondidos em seu habitat natural, estas obras estão abrigadas (mesmo que não se considere o museu como lugar natural das imagens), a espera de brilhar novamente e atestar suas existências físicas. ______________________ 1. Doutorando em Multimédia/Fotografia na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.



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A escolha pelo excerto de obras em suporte fotográfico neste trabalho vai ao encontro da urgência em pensar o lugar destas imagens no atual panorama de profundas mudanças nos valores que fundamentam a fotografia, e superar questões fotográficas já debatidas no contexto da arte, como nos clássicos textos de Walter Benjamin (1936) e André Malraux (1947). Após colocar estes questionamentos como pontos fundamentais do texto, buscaremos estabelecer bases para a aproximação destas obras 'fotográficas' em questão. Assim posicionamos este estudo entre os que propiciam diálogos entre diferentes coleções museológicas, e também entre aqueles que se dedicam a atualizar o debate sobre o lugar da mídia fotográfica na contemporaneidade. De antemão podemos afirmar que estas fotografias, por estarem inseridas no ambiente digital através de seus 'duplos' - cópias com livre acesso-, acabam por serem ofuscadas pela saturação de imagens que circulam em rede. E ao mesmo tempo, este caráter virtual das fotografias, facilita a aproximação entre os acervos, que antes estavam destinados a um certo tipo de isolamento físico. A partir deste quadro, pretende-se um duplo movimento: perceber o lugar destes arquivos fotográficos enquanto 'sobreviventes digitais', e revelar algumas aproximações iniciais entre estas coleções. Ao final do texto, há um exercício reflexivo baseado em informações históricas e estéticas próprias do arquivo fotográfico, a partir de um par de imagens extraído de uma das evidentes aproximações entre as coleções: o conjunto de fotografias produzido pelo artista Fernando Lemos presente em ambos os museus. Arquivos fotográficos Podemos desde já afirmar que as obras em suporte fotográficos que fazem parte da Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, e do Museu de Arte Moderna de São Paulo servem a um tempo histórico, e a um tempo próprio das imagens. Da mesma maneira que apresentam um panorama recente das principais obras em suporte fotográfico nos dois países, desde meados do século XX, elas escondem



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alguns nós, próprios da trama fotográfica, que pretendemos desatar neste texto. As fotografias que são a base deste trabalho são oriundas da pesquisa online nas coleções que estão disponíveis para o público em geral1. Na Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian o acervo está digitalizado e livre para a consulta em seu site desde 2010. Ao procurarmos pelas obras na categoria Fotografia encontramos 681 obras de 86 autores, todas elas tem sua imagem para a visualização online. No Museu de Arte Moderna de São Paulo o acervo digitalizado está disponível para consulta no site desde 1997, sendo que a última atualização aconteceu em 2013. A pesquisa pela categoria Fotografia indica 1167 obras de 174 artistas, sendo que destas, 1044 possuem imagem acessível para visualização. Há portanto um grande afastamento entre as coleções em relação ao número de obras em suporte fotográfico. Porém ao nos atermos em alguns aspectos históricos, nos deparamos com aproximações pontuais entre as duas instituições. A Coleção Moderna começou a ser 'pensada' desde o início da Fundação Calouste Gulbenkian em 1956, porém só tomou 'forma' quando da inauguração do Centro de Arte Moderna, em 1983, bem próximo do período em que o MAM-SP (criado em 1948) deu início a sua coleção de fotografias, em 1980. Portanto a distância histórica de quase quatro décadas entre o surgimento do MAM e a criação do CAM (atual Coleção Moderna) não se reflete na formação dos acervos fotográficos. O museu brasileiro, apesar de ter comissionado algumas exposições de fotografia nos seus primeiros anos uma delas foi a do artista português Fernando Lemos em 1953-, realizou a primeira aquisição de fotografias somente na década de 80, por ocasião da I Trienal da Fotografia, no mesmo período em que surgia o CAM. O museu português por sua vez, possui desde os primórdios obras em suporte fotográfico. Entre os artistas iniciais do acervo embrionário do CAM na categoria Fotografia, figuravam: Helena Almeida, Pepe Diniz, João Meneres, Leonel Moura, Eduardo Nery e Luís Pinto Coelho. ___________________ 1. http://mam.org.br/colecao/ e https://gulbenkian.pt/cam/collection/



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Outras

aproximações

evidentes

entre

as

coleções

estão

a

denominação de Arte Moderna, e a existência de importantes obras de arte contemporânea em seus acervos. Em um segundo momento, após navegar pelas cópias das obras nos sites dos museus na categoria fotografia, encontramos outras conexões entre as duas instituições: a presença de algumas fotografias iguais do artista português Fernando Lemos nos dois museus; e a existência de retratos das mesmas personalidades (Amália Rodrigues e Glauber Rocha) tanto no acervo brasileiro quanto na coleção em Portugal. Mesmo que cada conjunto tenha se formado de maneira distinta geograficamente e historicamente - como já colocado, ao se tocarem em outras esferas, como na composição dos acervos, é possível, a partir deste contato, estabelecer uma nova leitura destes arquivos. A investigação a partir de arquivos é uma prática comum em outras áreas do conhecimento, como a história e as ciências sociais. E ao trazer este conceito para o contexto das artes visuais é necessário recuperar algumas reflexões já desenvolvidas, como as colocadas por Jacques Derrida em Mal d'Archive, importantes para a compreensão destes arquivos fotográficos. Ao resgatar a origem etimológica e histórica do termo, o autor toca em dois pontos importantes, a noção de suporte e residência na origem dos arquivos, e o "princípio de consignação, isto é, de reunião" (2001:14). Dentro deste trabalho, as fotografias, impressas em diversos suportes, estão agrupadas em um espaço físico (o museu como residência) e foram reunidas ao longo do tempo sob algum tipo de lógica determinada pelas próprias instituições. Outro aspecto importante colocado por Derrida é acerca do futuro dos arquivos "...se queremos saber o que isto (arquivo) teria querido dizer, nos o saberemos num tempo por vir" (2001: 51). Para o autor os arquivos são criados para um futuro, e aqui se encontram as motivações deste trabalho, entender estas imagens como testemunhas de uma história recente da fotografia, perceber o lugar delas no presente (considerando todas as características do nosso espaço-tempo) e principalmente posicioná-las como protagonistas de futuras pesquisas.

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Semelhança e conhecimento Como anteriormente detalhado, a força que primeiramente atraiu estas duas coleções foi a existência de algumas semelhanças elementares, como a denominação 'arte moderna', e a disponibilidade de acesso a quase totalidade das obras através de cópias digitais online. A partir disto foi possível detectar aproximações entre suas histórias, e reconhecer a existência de algumas fotografias 'iguais', do mesmo autor, nos dois acervos. Estas zonas de contato, nada mais são do que resultados do movimento de colocar duas coisas concretas em relação. A noção de semelhança, segundo Foucault desempenhou, até fins do século XVI, "um papel construtivo no saber da cultura ocidental. Foi ela que orientou em grande parte a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de as representar". (Foucault, 1966:34) Para o autor, a semelhança se apresenta de quatro formas: conveniência, emulação, analogia e simpatia. Atuando em intensidades diferentes elas "dizem-nos como o mundo se deve dobrar sobre si mesmo, duplicar-se, refletir-se ou encadear-se para que as coisas possam assemelhar-se, e dizem-nos o caminho da similitude e por onde eles passa; não onde ela está, nem como se vê" (1966:45). Portanto, como aconteceu no primeiro momento desta investigação a semelhança apenas deu pistas de um caminho a ser seguido. Dentro desta perspectiva nos encontramos mais próximos da simpatia como forma de semelhança. Como em uma incursão sem roteiros definidos, a simpatia não assegura nenhum "caminho de antemão, nenhuma distância é pressuposta, nenhum nexo prescrito. A simpatia opera livremente nas profundidades do Mundo" (1966:42). O autor ainda menciona o 'movimento exterior e visível, que suscita secretamente um movimento interior - uma deslocação das qualidades que se substituem umas as outras" (1966:42). Assim, após o primeiro movimento de atração entre os conjuntos de fotografias, busca-se debruçar sobre algumas zonas de contatos que surgem deste movimento interior, e que nos retira da superfície das coleções.



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No trabalho dedicado ao historiador da arte Aby Warburg: 'A imagem sobrevivente' (2013), George Didi-Huberman também contribui com este raciocínio ao deixar claro a importância das aproximações e das conexões no campo de estudo das imagens. Para ele além do viés histórico inerente de cada figura, é necessário examinar, com atenção, as conexões secretas que existem entre elas, elementos que, em um primeiro olhar, podem ser deixados de lado. No encontro entre as coleções, nos aproximamos de outra ideia exposta pelo autor que vai de encontro ao pensamento de Foucault: conhecer as diferenças e semelhanças para então se aproximar de suas identidades. 'Trata-se de por o múltiplo em movimento, de não isolar nada, de fazer surgir os hiatos e as analogias, as indeterminações e as sobredeterminações em jogo nas imagens" (2012:155). Sobrevivências digitais Ao assumir que o acesso a estes arquivos fotográficos é feito através de suas cópias digitais disponíveis em redes, é necessário também pensar sobre alguns conceitos que elucidam a relação entre tecnologia e conhecimento na contemporaneidade. A possibilidade de transformar qualquer tipo de informação em bytes permite a ampla disponibilização de conteúdos que antes estavam restritos a suportes físicos, como livros, quadros, etc. Porém a grande quantidade de informação nas redes não garante a sua total acessibilidade, e parte da informação se perde na imensidão de conteúdos navegáveis, principalmente porque a experiência da leitura no meio digital carrega uma dose de distração e de aventura (Santaella, 2003:93). Para Joan Fontcuberta é justamente esta grande quantidade de informação visual a responsável por cegar o conhecimento nos dias de hoje, "se antigamente a censura era aplicada privando-nos de informação, hoje, ao contrário, consegue-se a desinformação imergindo em uma superabundância indiscriminada e indigerível de informação" (2014:54). Neste contexto duas observações são importantes para a reflexão proposta. A primeira delas é o posicionamento do usuário em rede, que se



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coloca tanto como co-autor e co-criador frente aos diferentes tipos de dados que se apropria para gerar novos conteúdos. Enquanto investigadores, buscamos informações visuais nos sites dos museus e ao nos apropriarmos destes arquivos para gerar outros tipos de conteúdo nos portamos como este usuário contemporâneo. A segunda observação é que ao navegar na rede as associações entre os conteúdos são radicalmente imprevisíveis, "como são imprevisíveis os caminhos que são seguidos a cada dia pelos usuários de uma grande biblioteca"

(Santaella,

2003:95).

Aqui

busca-se

entender

essa

imprevisibilidade como facilitadora da aproximação entre conteúdos visuais distintos imersos em um ambiente saturado de informação. Jacques Rancière (2012), também chama atenção para o status do usuário das redes que busca 'digerir' estas informações. Para o autor ele pode ser comparado a um espectador que vê as informações passarem a sua frente e procura encontrar um sentido em tudo aquilo que tem acesso. E é justamente nesse poder de associar e dissociar conteúdos que reside a emancipação do espectador. O espectador digital, conectado em rede,

dispõe de muitas

ferramentas cada vez mais facilitadoras de acesso a imagens, como os mecanismos de busca utilizados neste trabalho. Desta forma é possível repensar o papel da aura da obra de arte e principalmente superar a ideia de que a parede é o lugar por excelência da apreciação estética (Lissovsky, 2014:153). Ao mesmo tempo que estes conteúdos distantes a apenas um clique do usuário facilitam o acesso em um mundo saturado de informações, eles podem nos levar a um fechamento, já que qualquer um consegue limitar suas buscas dentro de um universo de interesse, e assim perde-se a disposição ao acaso, distanciando-se das descobertas inesperadas e do desconhecido. A reflexão a seguir vai justamente no sentido inverso a esta lógica, ao propor novos questionamentos e entendimentos com base nos dados contidos nestes arquivos fotográficos.



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Sobrevivência e semelhança nas fotografias de Fernando Lemos Ao nos aproximarmos de uma das conexões mais evidentes entre as coleções, as obras de Fernando Lemos presentes nos dois museus, identificamos sete fotografias em preto e branco que estão presentes tanto lá, quanto cá2. Entre elas, os retratos do casal de artistas Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva. A única fotografia do MAM-SP que não encontra seu 'idêntico' no acervo português é a imagem intitulada Andamento sem registro, justamente um dos retratos de Maria Helena Vieira da Silva. Se utilizarmos o raciocínio matemático para ilustrar esta situação, é somente pela presença desta fotografia que não podemos dizer que A está contido em B, sendo A o trabalho fotográfico de Lemos no acervo paulista e B as fotografias do artista na Coleção Moderna da Fundação Gulbenkian.

Andamento sem registro. Fernando Lemos, 1947/52. Coleção MAM-SP

Até os menos conhecedores da técnica fotográfica sabem que ao revelar o negativo obtemos uma imagem 'invertida', que pode dar origem a outras tantas cópias fotográficas em papel, ou mesmo digital. Este dado se torna importante na aproximação de um dos 'pares' originados de um mesmo original de Fernando Lemos, e que se apresentam de maneiras distintas nas coleções. São duas ampliações semelhantes, mas com nomes diferentes e invertidas em sua orientação. _________________ 2. No MAM-SP existem 8 fotografias de autoria de Fernando Lemos, e na Coleção Moderna da Fundação Gulbenkian 184 fotografias.



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Janela. Fernando Lemos. 1949/52 Coleção Moderna Calouste Gulbenkian

Aquecimento Global. Fernando Lemos. 1949/52. Coleção MAM-SP

Na coleção portuguesa uma das obras tem o título de Janela, e no MAM-SP ela é nomeada como Aquecimento Global. Os títulos por si próprios indicam que a cópia no museu brasileiro é a mais recente, por se referir a um conceito discutido somente a partir do século XXI. Ao verificarmos a procedência e data da incorporação da obra encontrada nos dados fornecidos pelo MAM-SP (Doação do artista em 24/06/2008), temos a certeza cronológica que esta é uma cópia mais recente do mesmo negativo que originou a obra que se encontra na Coleção Moderna da Fundação Gulbenkian. A confirmação desta situação se encontra em um texto descritivo da própria coleção portuguesa: ‘No entanto, em impressões mais recentes (2004/2005), a imagem encontra-se invertida horizontalmente, com a janela aberta para o lado direito, e com o título Aquecimento Solar, em vez do título original Janela’.

Considerações finais Apesar deste simples exercício de aproximar e conhecer estas fotografias, acreditamos que o conceito de semelhança e sobrevivência dos arquivos são importantes no caminho a ser percorrido nos estudos da imagem contemporânea. Ao entendermos estas imagens como sobreviventes de uma história recente dos museus e da própria fotografia, os retiramos, mesmo que seja através de suas cópias, de uma possível inércia adquirida ao se transformarem em 'obras' e participarem destes acervos.



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A noção de semelhança também nos indica um percurso metodológico a ser seguido na aproximação destas coleções e na continuação deste estudo. As zonas de contato identificadas a partir destes conceitos, funcionam como catalisadoras de novas leituras destes arquivos enquanto mídia e obras de arte.

Bibliografia CARLOS, Isabel (ed.).100 Obras da colecção do CAM. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian : Almedina, 2010 CHIARELLI, Tadeu (Ed.). O Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo: Banco Safra, 1998. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. DIDI-HUBERMAN, George. A Imagem Sobrevivente - História da Arte e Tempo dos Fantasmas segundo Aby Warburg. São Paulo: Editora Contraponto, 2013. __________________ Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011. FONTCUBERTA, Joan. A câmera de Pandora: a fotografia depois da fotografia. São Paulo: Editora G. Gilli, 2012. GRANDE, Nuno (coord). 30 Anos/years: Centro de Arte Moderna Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: CAM - Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. LISSOVSKY, Maurício. Pausas do destino: teoria, arte e história. Rio de Janeiro: Mauad, 2014. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. RANCIÉRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.



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