“Semelhantes enganos”: a América e os Incas no discurso de Jose de Acosta

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OLIVEIRA, Susane Rodrigues. “Semelhantes enganos”: a América e os Incas no discurso de Jose de Acosta. In: MUNIZ, Diva do Couto Gontijo; SENA, Ernesto Cerveira de. (Org.). Nação, Civilização e História: Leituras Sertanejas. Goiânia: PUC Goiás, 2011, p. 173-189.

“Semelhantes enganos”: a América e os Incas no discurso de Jose de Acosta SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA Professora Adjunto no Departamento de História da UnB

Introdução

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A Historia Natural y Moral de las Índias do jesuíta espanhol Jose de Acosta, editada em Sevilha no ano de 1590, chamou a atenção de seus contemporâneos europeus por oferecer sentidos e significados para a existência do mundo americano. Traduzida rapidamente para várias línguas européias, revela o grande interesse que o assunto provocava, bem como a urgente necessidade de se encaixar o “Novo Mundo” nas consagradas concepções européias. Esta ampla difusão e aceitação respondeu, em grande parte, pelo olhar da cristandade ocidental sobre os povos indígenas, particularmente os andinos e mesoamericanos, cujas ressonâncias podem ser observadas em trabalhos da época e mesmo posteriores. Sobre a vida de Acosta, sabe-se que possivelmente teria nascido em Medina del Campo na Espanha, por volta dos anos de 1539 e 1540. Em 1551, ingressou na Companhia de Jesus em sua própria terra natal onde foi educado sob os princípios da doutrina católica. Como membro desta Companhia viajou por Salamanca, Plascencia, Coimbra, Valladolid, Segóvia e Roma; nesta última morou durante os anos de 1562 a 1565. Por volta do ano 1572 chegou a Lima no Peru, como missionário jesuíta envolvido no projeto de evangelização da América, trabalho pelo qual foi homenageado como “unas de la columnas de la nacente Província peruana” (VARGAS UGARTE, 1941: 07). Nesta mesma época, o vice-rei Francisco de Toledo nomeou-o para o cargo de visitador de Colégios, em razão da qual saiu em missão percorrendo as cidades de 1

Este capítulo é parte integrante da dissertação de mestrado Diferentes e desiguais: os incas e suas práticas religiosas sob o olhar dos cronistas espanhóis do século XVI, defendida no Programa de PósGraduação em História da UnB em 31/08/2001, sob a orientação da Dra. Diva do Couto Gontijo Muniz. Esta pesquisa contou com uma bolsa de mestrado da CAPES.

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Cuzco, Arequipa, La Paz, Potosí e Chuquiasca, com o objetivo de conhecer, in loco, os problemas missionários a serem enfrentados. Nas visitas às regiões do Alto e Baixo Peru interessou-se em aprender as línguas ayamara e quéchua (OCHOA, 1946: 99). Em 1582 ele deixa o Peru e regressa para a Espanha. Já em 1586 vai para o México, onde fica por um, em contato também com as culturas dos povos indígenas mesoamericanos. A Historia Natural y Moral de las Índias é resultado também destas viagens ao Peru e ao México, na segunda metade do século XVI. Além da famosa Historia Natural y Moral de las Índias, Acosta escreveu inúmeras obras, quase todas publicadas em vida, dentre elas se destaca a De Procuranda Indorum Salute, redigida em 1576. Suas obras trataram basicamente de dois temas: reformulação da visão de mundo cristã, a partir do advento da América, e o trabalho de catequização dos indígenas na América. Como assinala Franklin Pease, Acosta foi um dos escritores mais cultos de seu tempo, possuidor de uma ampla formação humanista, dedicando-se às tarefas de evangelização se destacou, particularmente, por sua participação no III Concílio de Lima em 1583 (PEASE, 1994: 40). Dentro de suas condições de possibilidades, ou seja, considerando-se as condições de seu tempo, de sua educação e circunstâncias pessoais, é que Acosta procede à apreensão do mundo americano. Como membro religioso da Companhia de Jesus, detém a autoridade desse local institucional de fala, já que esta, mediante uma série de procedimentos, determina o que pode e o que não pode ser dito, assujeitando seus membros, submetendo-os às suas regras e legitimando-os pela autoridade a eles concedida2. Como não poderia deixar de ser, o local de visibilidade social de Acosta encerra maneiras de ver e fazer ver, especialmente, a América e os povos indígenas do México e Peru: trata-se de um europeu, espanhol e jesuíta, vivendo no século XVI e sob o poder instituinte da Companhia de Jesus. Deste modo, o institucional influi nas condições de produção de seus discursos, na medida em que estabelece conceitos, objetos, escolhas temáticas, modalidades de enunciação, posições e funcionamentos que 2

Assim explicitam os termos da licença para publicação da Historia Natural y Moral de las Indias: “Eu Gonzalo Dávila, Provincial da Companhia de Jesus na província de Toledo, por particular comissão que para ele tenho do padre Claudio Aquaviva, nosso Propósito Geral, dou licença para que se possa imprimir o livro da História Natural e Moral das Índias, que o padre Joseph de Acosta, religioso da mesma Companhia, há composto, e há sido examinado e aprovado por pessoas doutas e sérias de nossa Companhia. Em testemunho do qual, está firmada por meu nome, e selada com o selo de meu oficio. Em Alcalã, onze de abril de 1589. Gonzalo Dávila, Provincial”. (ACOSTA, [1590] 1962: 05).

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compõe as narrativas que carrega a sua marca e portam a sua autoridade e legitimidade. É neste processo que liga discursos e instituições que podemos compreender os sentidos e significados atribuídos à América e aos indígenas na obra de Acosta. Neste capítulo utilizamos alguns princípios teórico-metodológicos da Análise de Discurso (ORLANDI, 1990) com o objetivo de compreender as condições de produção3, os sentidos, imaginários, valores, silêncios, representações, saberes, normas, poderes e práticas sociais que informam as descrições da América e dos costumes sagrados dos incas na Historia Natural y Moral de las Índias. A primeira parte deste texto trata da estrutura, organização e objetivos desta obra, observando especialmente as suas relações com o projeto hispânico de colonização e evangelização na América. Já a segunda parte trata das descrições das crenças e práticas sagradas dos incas, destacando o imaginário demonológico que imprime sentidos e significados para as diferenças observadas por Acosta no Peru. Além disso, trata das relações entre saber e poder que atravessam seus enunciados, idealizando e fabricando identidades adequadas ao funcionamento e manutenção de uma sociedade colonial na América.

A incorporação da natureza e história americanas A surpreendente diferença observada entre o “Velho” e “Novo Mundo” criava a necessidade de a América ser reconhecida, ou melhor, incorporada, para atenuar o seu conteúdo perturbador e desconhecido para a Europa, de forma a assegurar a esta seu poder de nomeação, sua posição de dominação (OLIVEIRA, 2001). A Historia Natural y Moral de las Índias, em suas dimensões informativa, prescritiva e organizacional a respeito da América, responde também pelas necessidades do projeto hispânico de colonização, inscrevendo-se, portanto, na formação discursiva das crônicas de sua época. Na função de inventário descritivo deste universo desconhecido, as crônicas, produzidas pelos espanhóis envolvidos nos empreendimentos de conquista e colonização da América, geralmente apresentavam-se estruturadas a partir de dois grandes eixos narrativos: o da natureza e o da cultura. 3

Segundo Orlandi, as condições de produção dos discursos “implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica” (2003: 40).

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Para dar conta de sua história, Acosta dividiu-a em dois grandes blocos, reproduzindo, significativamente, a mesma estrutura de boa parte das crônicas de sua época, pautadas na dicotomia natureza/cultura, configuradora de um imaginário a respeito do cosmos. A primeira parte, consagrada à história natural, – “al cielo y a la habitación de las Indias en general”, com abordagem dos três elementos (terra, água e ar) e dos compostos (metais, plantas e animais), – trata da natureza, onde, segundo Acosta, não existe o livre arbítrio, pois pertence à ordem natural das coisas; já a segunda parte, dedicada à historia moral faz referenciais ao mundo humano e suas criações, ao que Acosta denominou de obras do livre arbítrio, resultantes da capacidade humana de modificar a natureza pelo seu trabalho, uma capacidade concedida no ato de sua criação por Deus, seu criador. Para o jesuíta, ambos os blocos, conquanto separados, são constitutivos de uma mesma realidade, são partes de um todo, de uma unidade fundamental que apenas pode ser apreendida a partir de sua divisão em partes. As descrições da natureza encontravam fundamento na concepção cristã desta como princípio da vida e do movimento, sendo, entre todas as coisas existentes, a mais antiga e venerável, visto que na acepção cristã, Deus, o seu criador, a havia criado primeiro que o homem. Amolgando conceitos aristotélicos com princípios da escolástica, acreditava-se que a natureza, por sua causalidade, era o próprio Deus criador (ABBAGNANO, 2000: 699). Assim, o catolicismo, enquanto saber, estabelecia como um de seus fundamento em relação ao conhecimento, que, ao reconhecer a natureza, se professava um ato de fé e de admiração pelo Criador, pois contemplá-la significava contemplar sua obra, porquanto se acreditava que a presença divina fazia-se sentir também naquela (MIGNOLO, 1998: 87-8). Entretanto, os conhecimentos acerca da natureza constituem também informações indispensáveis, mais úteis e urgentes, na expansão marítima e comercial européia e, sobretudo, na colonização e exploração das terras americanas (CASTILLO, 1998: XXII-XXV). As informações do tipo geográficas deveriam ser cuidadas, detalhadas e contínuas, de forma a alimentar a Corte espanhola com o máximo possível de dados e diagnósticos, expectativas e projetos quanto à viabilidade de exploração econômica da terra e a complexidade que envolvia o processo de colonização ultramarina. A segunda parte da obra de Acosta, dedicada à historia moral, contempla o mundo histórico, modos de ser e das criações humanas na América, trata especialmente

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da “vida espiritual” das culturas indígenas do México e do Peru. Significativamente, o principal aspecto abordado por esta história é a religião, a vida espiritual dos povos que se pretende conquistar. O desejo de se escrever uma história dos costumes, leis e governos dos antigos mexicanos e dos incas do Peru, encontrava sua justificativa precisamente na concepção providencialista do mundo, de que a providencia divina poderia ajudar a lograr a salvação eterna dos índios. A atenção que os missionários deram ao mundo indígena e suas formas de pensamento se explica em grande parte por pura necessidade e pragmatismo. Deste modo, eram estimulados e justificados os estudos sobre a história, religião e sociedades pré-colombianas empreendidos pelos membros de ordens religiosas nos últimos anos do século XVI (IGLESIAS, 1998: 40). A incorporação da natureza e da história americanas ao universo cristão hispânico constituiu processo inscrito nos quadros do mercantilismo do século XVI e também do viés místico e missionário que os perpassava, já que a fé não se apresentava desvinculada do projeto colonial hispânico: ampliavam-se os domínios e propagava-se a fé. Essa imbricação de propósitos conquistador e evangelizador é ressaltado por Acosta, quando afirma que

no es sólo dar noticia de lo que en lndias pasa, sino enderezar esa noticia al fruto que se pueda sacar del conocimiento de tales cosas, que es ayudar aquellas gentes para su salvación, y glorificar al Creador y Redentor, que los sacó de las tinieblas oscurísimas de su infidelidad, y les comunicó la admirable lumbre de su Evangelio (ACOSTA, [1590] 1962: 215).

Com efeito, a concepção de história como magistrae vitae é a que vem ao encontro dos interesses do jesuíta, sobretudo, pela suas dimensões sagrada e pedagógica, ou seja, pelos ensinamentos por ela veiculados, que devem ser aproveitados como modelo, de forma a modelar a vontade e o caráter humano (OCHO, 1946: 100), segundo o ethos cristão e católico. Não sem propósito, insiste Acosta em explicitar que somente lhe interessa “poner esta historia o relación a las puertas del Evangelio, pues toda ella va encaminada a servir de noticia en lo natural y moral de Indias para que lo espiritual y cristiano se plante y acreciente” ([1590] 1962: 215). Ressaltar a importância e a utilidade do saber é de extrema valia neste projeto colonizador, pois o conhecimento acerca dos índios na América possibilitaria aos colonizadores bases mais sólidas para poder predicar-lhes, com maior eficácia, o

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evangelho. Percebe-se aí o caráter pedagógico, catequético e domesticador do discurso de Acosta, já que com a função de introduzir aqueles no mundo da “verdadeira” religião, de abrir-lhes as “portas do evangelho”, de retirá-los do “canto escuro”, ao torná-los dóceis, disciplinados e submissos ao seu regime de verdade. Um projeto e uma ação colonizadora e catequizadora que respondem pela disciplinarização dos corpos e dosmesticação de mentes, na tentativa de transformá-los em súditos fiéis à Coroa e em cristãos submissos a Deus, disciplinados seguidores dos princípios da Igreja Católica e da Coroa espanhola, mantendo, porém, a marca de colonizados, o sinal que distingue, diferencia e desclassifica e que responde pela produção/reprodução das relações de dominação e subordinação.

A busca das semelhanças no ordenamento das diferenças

Na Europa do século XVI a demonologia figurava entre os discursos eclesiásticos, estando presente, não apenas, numa ampla gama de tratados referentes à perseguição de bruxas e feiticeiras, mas também em sermões católicos, textos de pregação protestante, e, particularmente, em toda a produção epistolar e tratadística voltada para descrição da natureza do continente americano e dos hábitos e costumes de seus habitantes (SOUZA, 1993: 25). A

linguagem

demonológica,

como

uma

linguagem

dos

contrários/diferenças, funda-se em um raciocínio explicativo hegemônico, pautado nos princípios de inversão e de desordem, porque “o recurso à inversão permitia dar conta de múltiplos fatos culturais concretos análogos às realidades européias, mas opostos a elas devido à ação do Diabo no sentido de parodiar as honras prestadas a Deus” (SOUZA, 1993: 34). Já o princípio da desordem mostrou-se particularmente fecundo para o “etnodemonólogo” do século XVI, ao possibilitar-lhe inventários exaustivos de hábitos e costumes americanos sobre os quais não era necessário compreender os significados nem explicar, havendo, assim maior liberdade para as descrições. Acosta ilustra exemplarmente essa operação da linguagem ao demonizar as práticas sagradas dos incas, lançando mão dos recursos da inversão e da desordem ao dar conta das analogias entre as realidades dos dois mundos e

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assinalar as oposições devidas à ação do Demônio, sem buscar compreender os significados próprios dos incas às suas práticas sagradas. Segundo Souza, para os europeus da época da expansão marítima, essa prática de devassamento dos espaços Trazia consigo sua cristianização e ordenamento segundo padrões culturais únicos e hegemônicos europeus, em última instância. A evangelização da Europa expulsara o demônio para terras distantes, da mesma forma como a intensificação do contato com o Oriente e ocidente havia provocado a migração das humanidades monstruosas e fantásticas para a Índia, a Etiópia, a Escandinávia e, por fim, para a América (Idem: 24).

Não por acaso, a expulsão do Demônio e da idolatria da Europa para a América, graças à ação evangelizadora, constituí objeto das considerações de Acosta, ao ressaltar que después que el fuerte del Evangelio le venció y desarmo, y entro por la fuerza de la cruz las más importantes y poderosas plazas de su reino, acometió las gentes más remotas y bárbaras, procurando conservar entre ellas la falsa y mentida divindad, que el hijo de Dios le había quitado em su Iglesia, encerrándole como a fiera en jaula, para que fuese para escárnio suyo y regocijo de sus siervos, como lo significa por Job. Mas en fin, ya que la idolatria fué extirpada de la mejor y más noble parte del mundo, retiróse a lo más apartado, y reino en esta outra parte del mundo, que aunque en nobleza muy inferior, en grandeza y anchura no lo es

([1590] 1962: 217-218). No imaginário cristão, a América, continente distante e desconhecido, parece desordenado, já que apresentava em seu universo os conteúdos diferentes e perturbadores que só podiam ser reconhecidos como obra e “ordem” do Demônio. A América, como lugar em que se desconhecia a “fé” e a “verdadeira” religião, constituía-se, aos olhos cristãos, em abrigo do Demônio na terra, reduto privilegiado para o exercício de suas artimanhas. Percebe-se, assim, que as diferenças entre europeus e indígenas da América, construídas nessa época, fundam-se na relação que se estabelece com o sagrado. A doutrina e a fé sugerem fronteiras morais e escatólogicas entre as religiosidades indígena e hispânica, exercendo assim, a função de excluir, segregar, separar os indivíduos entre si e diferenciá-los, de valorizar uns e desclassificar outros. Numa visão marcadamente cristã e eurocêntrica, Acosta exalta, por meio de representações engrandecedoras, a posição “superior” da Europa pelo seu estatuto de sociedade cristã e civilizada, enquanto a América é representada por 7

imagens que a inferiorizam diante daquela. A distância que separa Deus e o Diabo, Europa e América, é marcada pela dualidade das características que lhe são imputadas, intrínsecas à constituição de uma e outra, segundo os saberes europeus: sagrado/profano, bárbaro/civilizado, cultura/natureza, verdade/mentira. A religião incaica, concebida por Acosta como uma “invenção do demônio”, vem representar, no imaginário cristão, a arrogância e astúcia do Demônio no sentido de ser adorado pelos homens como Deus “hurtando e se apropriando do que somente ao altísimo deus e devido” ([1590] 1962: 217). Não por acaso, observamos esta compreensão no Livro V de sua narrativa, nos seguintes títulos: XI- De como el demonio há procurado asemejarse a Dios en el modo de sacrifícios, religion y sacramentos; XV - De los monasterios de doncelas que inveno el demônio para su servicio; XVI: De los monasterios de religiosos que tiene el demônio para su superstición; XII: De las penitencias y asperezas que han usado los indios por persuación del demonio; XXIII: De como el demonio há procurado remedar los sacramentos de la santa Iglesia; XXVIII: De algunas fiestas que usaron los de Cuzco, como el demônio quiso también imitar el mistério de la Santísima Trindad (Idem: 217-279). O Demônio foi personagem central deste imaginário religioso que presidiu o processo de cristianização, tanto na Europa como na América. A Igreja Católica, na Europa do século XIII, em seus esforças permanentes no sentido de exercício hegemônico do poder, criou mecanismos de controle sobre as práticas estranhas ao cristianismo, representando-as, sobretudo, como demoníacas, maléficas e, portanto, sacrílegas, já que vistas como mantenedoras e difusoras de costumes pagãos. Nas disputas com o paganismo e todas as práticas a este vinculadas, os teólogos católicos procuraram delimitar-lhes o campo de ação e efeito, representando-as em oposição ao catolicismo, como manifestações do Mal, já que sob a intervenção do Diabo. Reiterava-se o argumento da conspiração, já bastante difundido, um complô do Diabo e seus seguidores (bruxas e feiticeiras) contra a sociedade cristã. Este medo do Demônio acabou dominando a consciência cristã. Satã representava uma ameaça que obstruía o caminho da salvação, devendo, portanto, ser combatido e expurgado.

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Todas as descrições de templos, cultos, celebrações e sacrifícios incaicos convergem, portanto, em direção ao propósito de associá-las à obra do Mal, ao fruto da soberbia do Demônio, – já que a inversão é própria deste. Como declara Acosta: así también el demonio tiene sus sacrifícios y sacerdotes, y su santimonia fingida, y mil gêneros de profetas falsos. Todo lo cual, declarado en particular como pasa, es de grande gusto y de no menor consideración para el que acordare como el demonio es padre de la mentira, según la suma verdad lo dice en su Evangelio, y así procura usurpar para si la gloria de Dios, y fingir con sus tinieblas la luz (Idem: 235). As comparações dos cultos e cerimônias dos incas com as dos católicos opera assim como dispositivos de reafirmação e exclusão de saberes, ao imprimir naqueles o sentido de imitação perversa. Acosta procura identificar, nas práticas sagradas incaicas, traços que indiquem semelhanças com as práticas católicas, consoante ao princípio da semelhança como uma das balizas na produção do conhecimento, da compreensão da realidade, corrente no esquema de pensamento do século XVI. Uma semelhança que devia ser seguida e perseguida para que as coisas, pessoas e lugares possam ser reconhecidos e inseridos numa lógica cultural. Reconhecer aquele que é diferente e estranho fazia-se necessário também para torná-lo conhecido e domesticado. Como a dessemelhança é, nessa visão, a desordem e inversão instaurada pelo grande inimigo, Lúcifer, os jesuítas precisam derrotá-lo para estabelecer a ordem. Nesta época admitia-se um sistema global de correspondências, em que cada similitude singular vinha alojar-se no interior dessa relação de conjunto. Em razão disso, toda semelhança era submetida à prova de comparação, isto é, só era admitida se fosse encontrada pela medida, pela ordem, identidade e a série das diferenças (FOUCAULT, 1990: 70). Na apreensão do mundo incaico Acosta deixa entrever tal perspectiva, uma vez que parte da observação acerca das semelhanças entre o mundo incaico e espanhol, para depois estabelecer a série de diferenças nas relações, medidas e identidades entre ambos. Neste ordenamento do mundo, segundo os saberes europeus e católicos, que opera submetendo a semelhança à prova da comparação, processa-se o que Foucault

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chamou de “a repartição em quadro de suas similitudes desordenadas” (Idem: 85). A apreensão do mundo incaico, a partir de um sistema global de correspondências, é também visível nas descrições das festas e celebrações do Int Raymi, uma celebração à glória do astro do dia e do Inca, realizadas em Cuzco,

capital

do

Tawantinsuyo,

durante

o

Solstício

de

junho.

Significativamente, Acosta refere-se a elas, estabelecendo paralelos com as festas cristãs, submetendo as semelhanças à prova da comparação (ACOSTA, [1590] 1962: 269). Acosta assinala as semelhanças entre danças e cantos do Inti raymi e o

Corpus Christi, para ao mesmo tempo, estabelecer diferenças fundamentais, distinguir o que pertencem ao religioso e sagrado do que pertence ao pagão e profano. Em seu imaginário a celebração dos incas ganha o sentido de superstição, de prática idolátrica, que constitui ato pecaminoso, um defeito da irreligiosidade, contrário à virtude da religião (NOGUEIRA, 1991: 20). Este imaginário, difundido por Tomás de Aquino, é o que perpassa o discurso de Acosta. O sentido de prática supersticiosa, estabelece, portanto, uma diferença fundamental com as festas cristãs, pois estas são tidas e investidas de sacralidade e religiosidade “verdadeiras”, já que despossuídas de superstição, traço associado ao demoníaco e às idolatrias que deviam ser perseguidas e combatidas. Acosta identifica também nas províncias do Collao no Peru, os cultos religiosos como uma pretensão do Demônio em “usurpar el culto divino para si, haciendo la confesión de los pecados que el Salvador instituyó para remedio de los hombres, superstición diabólica para mayor dano de ellos” ([1590] 1962: 262). O termo superstição é assim usado pelo jesuíta para designar uma crença estranha e oposta à dos religiosos cristãos, tida como um desvio/transgressão do sentimento e do culto que se deve somente ao Deus cristão. Entretanto, a descrição das superstições é na visão de Acosta, de extrema importância, pois

Puede ser útil para muchas cosas tener noticia de los ritos y ceremonias que usaron los indios. Primeramente en las tierras donde ello se uso, no solo es útil, sino del todo necesario, que los cristianos y maestros de la ley de Cristo, sepan los errores y supersticiones de los antiguos, para ver si clara o disimuladamente las usan también agora los índios, y para este efecto, hombres graves y diligentes escribieron relaciones largas de lo que averiguado, y aún los Concilios

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Provinciales han mandado que escriban y estampen, como se hizo en Lima, y esto muy más cumplidamente de lo que aqui va tratado (Idem: 278-279).

Daí o caráter utilitário de sua narrativa, na medida em que busca alertar os religiosos cristãos, empenhados na tarefa de evangelização do Peru, para os possíveis desvios e transgressões indígenas aos cultos e crenças católicas, já que o exercício do controle e vigilância sobre os índios se fazia de extrema importância na tentativa de instalação de uma sociedade colonial no Peru. Ao mesmo tempo em que Acosta alerta para os perigos das semelhanças entre os cultos religiosos incaicos e católicos, busca também demonstrar uma predisposição dos incas ao cristianismo. Assim narra o jesuíta:

Primeiramente, aunque las tinieblas de la infidelidad tienen escurecido el entendimiento de aquellas naciones, pero en muchas cosas no deja la luz de la verdad y razón algún tanto de obrar en ellos; y así comunmente sienten y confiesan un Supremo Senor y Hacedor de todo, al cual los de Pirú llamaban Viracocha, y le ponían nombre de gran excelencia, como Pachacamac o Pachayachachic, que es creador del cielo y tíerra, y Usapu, que es admirable, y otros semejantes (ACOSTA, [1590] 1962: 220).

Acosta, formado dentro de um modelo religioso monoteísta, cuida, portanto, de identificar e nomear Viracocha como a divindade suprema e criadora, numa subliminar associação com o Deus dos cristãos. Ao ressaltar a crença dos incas em Viracocha como uma tendência monoteísta original, ele simplesmente desconsidera o politeísmo, silenciando sobre a existência de cultos e cerimônias dedicados a uma variedade de Huacas (seres/lugares/objetos sagrados). As imagens de uma divindade Suprema e Criadora presente nas descrições de Viracocha, além de interagirem com as imagens cristãs de posições masculinas de poder na sociedade, revelam sua vontade de ressaltar a facilidade que os espanhóis encontrariam na implantação de uma sociedade nos moldes cristão e patriarcal no Peru, pois como declara o jesuíta

Pues como sea verdad tan conforme a toda buena razón, haber un soberano Señor y Rey del Cielo, lo cual los gentiles con todas sus idolatrías e infidelidades no negaron, como parece así en la filosofia del Timeo de Platón, y de la Metafísica de Aristóteles, y Asclepio de Trimegisto, como también en las Poesías de Homero y de Vergilio. De aquí es que en asentar y persuadir esta verdad de un Supremo Dias, no padecen mucha dificuldad los predicadores

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evangélicos, por bárbaras y bestiales que sean las naciones a quienes predican (Idem: 220).

Mais uma vez Acosta deixa entrever o caráter utilitário de sua narrativa ao assinalar indícios que sugerem a facilidade no processo de evangelização dos incas. Na sua visão, os incas apesar de bárbaros e idólatras representam sujeitos passíveis de conversão ao cristianismo. Esse discurso devia estimular e encorajar os espanhóis empenhados na missão de evangelizar os índios. Além disso, servia como um alerta para o controle e vigilância dos possíveis desvios e transgressões indígenas ao catolicismo, advindos da “confusão” e “engano” que as semelhanças entre as duas religiões deviam causar. Acosta, imbuído de um imaginário demonológico, inventa parta a América a imagem de uma sociedade diabólica que inverte o modelo da sociedade cristã européia. Essa América inventada torna-se o território em que o Demônio precede a Deus e a diabolização das religiões indígenas precede à cristianização dos antigos seguidores. Nessa perspectiva, as práticas dos incas se apresentam como simulacros, imagens rebeldes e avessas ao cristianismo. Como assinala Orlandi, na construção das identidades, a semelhança para mais é tão corrosiva quanto a semelhança para menos, considerando-se que o “excesso de semelhança também é ruptura", esse “jogo complicado mostra, além disso, um direito e um avesso” (1990: 22). O procedimento por analogia praticado no século XVI, como base de conhecimento, presidiu a elaboração de um saber sobre os incas, implicando no silenciamento de sentidos que fugissem da comparação sistemática entre dois acontecimentos em termos do idêntico e da diferença. Como escreve Dubois,

As analogias das palavras refletem assim um novo espelho o ato da criação, que foi uma imagem do criador projetada sobre suas criaturas. (...) Pelos laços que estabelece, de cume a cume, entre homem, o céu e a divindade, ela autoriza uma visão unitária do saber na qual uma unidade luminosa e exaltada em lugar de “unidade tenebrosa e profunda”. Essa atração unitária (...) É uma arquitetura construída segundo as regras ou, se se prefere, um caminho a ser seguido para que o viajante não se perca no labirinto de Babel, para que alcance o topo da torre (1995: 57-61).

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“Alcançar o topo da torre” poderia significar para o jesuíta res-estabelecer a unidade cristã, ajustar e inscrever o mundo americano na ordem cristã, organizando e estabelecendo as diferenças a partir de uma perspectiva maniqueísta do mundo e do conhecimento. Restabelecê-la a partir do esquadrinhamento do mundo incaico, para proceder à nomeação e classificação de tudo aquilo que constituí uma ameaça à manutenção da unidade cristã. Esquadrinhá-la para conhecê-la e melhor assujeitá-la, dominá-la, incluía principalmente apagar sua diferença perturbadora, domesticá-la. A religião incaica foi esquadrinhada no discurso de Acosta, mediante uma descrição densa de suas práticas mais similares às cristãs. Construção, essa, que permitiu perceber a projeção do imaginário da Reconquista ibérica no ultramar, particularmente na visão dos incas como mouros infiéis. Assim, procedeu Acosta quando descreve as construções dos templos, casas, fortalezas que os incas fizeram em Cuzco e em diversas partes de seu “reino”, comparando-as pelo tamanho, divisão interna e utilidade às mesquitas ou “edifícios de bárbaros” ([1590] 1962: 298). Esse recurso não tem outro fim em vista que o de buscar semelhanças entre os incas e os mouros, o de comparar aqueles aos velhos inimigos não-cristãos dos espanhóis, para desclassificar os primeiros. Sob as convenções e representações do imaginário da Reconquista é que igualmente se moldaram as atitudes e percepções dos cronistas espanhóis no reconhecimento do Outro, fazendo do Inca ora um infiel, – um Outro conhecido e há muito excluído, – ora um gentio – um Outro desconhecido, mas nem por isso menos perseguido. Não resta dúvida de que as experiências vividas pelos espanhóis na Europa seiscentista ajudaram a enfrentar o desafio da conquista e cristianização do mundo americano. Tendo expulsado os mouros e convertido à força os judeus residentes na Península, na mesma época em que despacharam Colombo para sua primeira viagem, os espanhóis tinham uma tradição viva de intrepidez, intolerância e “racismo” para a qual apelaram ao projetar suas atividades em relação aos índios (TODOROV, 1988:47). Num procedimento de destaque às semelhanças para vincar as diferenças religiosas, Acosta identificou algumas práticas sagradas dos incas como similares às dos católicos, procedendo a um raciocínio explicativo hegemônico, pautado

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nos princípios de inversão e desordem. O recurso ao primeiro princípio permitiu dar conta de múltiplos fatos culturais análogos às realidades européias, mas opostos a elas devido à ação do Diabo, vistos como paródia às honras prestadas a Deus. O da desordem revelou-se útil e fecundo ao saber demonológico da época, ao possibilitar a descrição densa dos “estranhos” costumes incaicos, dispensando a compreensão de seus significados e a formulação de explicações que fugissem à lógica cristã. Numa interpretação providencialista, as analogias efetuadas por Acosta revelam um Outro oposto e desigual, um Eu retorcido, um “semelhante engano”, mas, concomitantemente, carente e exigente de mudanças, de subordinação e aceitação ao regime de verdade cristão. A leitura do universo sagrado incaico deve ser vista como dispositivo para modificar sua marca diferenciadora e eliminá-lo. Não deve ser, portanto, considerada como uma falha ou incapacidade ontológica de pensar do jesuíta, mas como uma maneira que ele encontrou de esboçar identidades. Isto porque, seu discurso sobre o Outro, sobre as fronteiras escatológicas e morais que separam espanhóis/cristão e incas/não-cristãos, é constitutivo também do processo de autodefinição e identidade dos colonizadores/cristãos na América. As representações das práticas sagradas dos incas na Historia Natural y Moral de las Índias constituem saberes que puderam mobilizar forças no processo de assujeitamento dos colonizados e que responderam pela instauração de hierarquias, desigualdades e diferenças entre incas e espanhóis, entre indivíduos de dois mundos que se encontraram e se confrontaram. Na perspectiva de que saber e poder se implicam mutuamente, entendemos os saberes construídos por Acosta como dispositivos que tentavam assegurar um exercício de poder, gerindo a vida dos incas, idealizando e fabricando identidades adequadas ao funcionamento e manutenção de uma sociedade colonial. Estes saberes ganham sentidos postulados na ordem do discurso colonialista e evangelizador do século XVI, haja vista o sistemático combate às práticas constitutivas do ethos incaico que contradiziam os princípios colonizadores.

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