Seminário de Exegese Bíblica - Os 144 mil assinalados de Ap 7,1-8

Share Embed


Descrição do Produto

Marcelo da Silva Carneiro

Seminário de Exegese Bíblica Exegese de Ap 7,1-8: “Os 144.000 selados”

Roteiro de Seminário Seminário

apresentado

como

cumprimento

parcial das exigências do curso de Mestrado em Teologia, na disciplina Exegese de Textos do Corpo Joaneu.

Prof. Isidoro Mazzarolo

Rio de Janeiro, maio de 2006

2

Sumário

1. Introdução

3

2. Exegese do texto

4

2.1. Perícope

4

2.2. Crítica Textual

5

2.3. Tradução

8

2.4. Análise Literária

9

3. Interpretação do Texto

12

3.1. Os anjos que seguram os quatro ventos

12

3.2. O selo na fronte dos servos do Deus vivo

13

3.3. Os cento e quarenta e quatro mil de todas as tribos de Israel

16

4. Conclusão

22

5. Bibliografia

24

3

Exegese de Apocalipse 7,1-8: “Os 144.000 selados” 1. Introdução O texto de Apocalipse 7,1-8 faz parte do grupo de perícopes do Apocalipse que têm alimentado intenso debate no campo da hermenêutica. Sem a pretensão de interpretar de forma definitiva, queremos realizar uma exegese e hermenêutica que levem em conta diferentes abordagens interpretativas. A pesquisa no Apocalipse lida com aspectos complexos, como a simbologia, o tipo de literatura que, conquanto fosse comum desde dois séculos antes da era cristã, existe no cânon apenas em dois exemplares: Daniel, no Antigo Testamento, e o próprio Apocalipse de João. Com um texto imagético, que se tornou sinônimo de “livro a respeito do fim do mundo” no imaginário popular, o estudo do livro do Apocalipse deve fugir dos clichês e ter como chave de leitura sua relação com os demais escritos do Novo Testamento. Dessa forma se pode evitar excessos e interpretações equivocadas. Tendo em mente esse aspecto, a metodologia de nossa pesquisa seguirá elementos de análise textual, numa abordagem histórico-crítica, mas também com análise semântica dos termos, com o fim de extrair dele sua teologia. Iniciaremos com a crítica textual do texto de Nestle-Aland e uma tradução a partir dessa análise, passando pela análise literária, contexto histórico e a crítica literária. Na segunda parte da pesquisa, faremos a análise semântica da perícope, tendo como fonte de pesquisa diferentes comentaristas, dicionários bíblicos e dicionários lingüísticos, para uma abordagem diversificada e pontual dos diferentes aspectos. Dentre as questões que desejamos responder, vamos analisar o que significa o selo dos servos de Deus, o número 144.000, e o que a lista das tribos tem a ver com Israel e com a Igreja. Por fim faremos uma conclusão crítica, procurando definir os principais aspectos da pesquisa.

4

2. Exegese do texto 2.1. Perícope Adotamos aqui o texto de Nestle-Aland, «Novum Testamentum Graece», 27ª edição: 1 Meta, tou/to ei;don te,ssaraj avgge,louj e`stw/taj evpi. ta.j te,ssaraj gwni,aj th/j gh/j, kratou/ntaj tou.j te,ssaraj avne,mouj th/j gh/j i[na mh. pne,h a;nemoj evpi th/j gh/j mh,te evpi th/j qala,sshj mh,te evpi pa/n de,ndron. 2 Kai. eidon a;llon a;ggelon avnabai,nonta avpo avnatolh/j h`liou e;conta sfragi/da qeou/ zw/ntoj kai. e;kraxen fwnh/ mega,lh toi/j te,ssarsin avggeloij oi/j evdo,qh auvtoi/j avdikh/sai th.n gh/n kai. th.n qa,lassan 3 le.gwn mh. avdikh,sete th.n gh/n mh,te th.n qa,llassan mh,te ta. de,ndra, a>cri sfragi,swmen tou.j dou,louj tou/ qeou/ h`mw/n evpi tw/n metw,pwn auvtw/n. 4 Kai. h;kousa to.n avriqmo.n tw/n evsfragisme,nwn, e`kato.n tssera,konta te,ssarej cili,adej, evsfragisme,noi evk pa,sehj fulh/j ui`w/n vIsrah,l 5 evk fulh/j VIou,da dw,deka cili,adej evsfragisme,noi, evk fulh/j ~Roubh.n dw,deka cili,adej, evk fulh/j Ga.d dw,deka cili,adej, 6 evk fulh/j VAse.r dw,deka cili,adej, evk fulh/j Nefqali.m dw,deka cili,adej, evk fulh/j Mavnassh/ dw,deka cili,adej, 7 evk fulh/j Sumew.n dw,deka cili,adej, evk fulh/j Leui. dw,deka cili,adej, evk fulh/j Ivssaca.r dw,deka cili,adej, 8 evk fulh/j Zaboulw.n dw,deka cili,adej, evk fulh/j Ivwsh.f dw,deka cili,adej, evk fulh/j Beniami.n dw,deka cili,adej evsfragisme,noi.

2.2. Crítica textual

5

O aparato de Nestle-Aland apresenta as seguintes variantes: V.1 A primeira variante indica que alguns manuscritos substituem meta touto por kai m. t., ficando o texto “e depois disso” (com tauta no Texto Majoritário segundo o Grupo André e na versão siríaca heracleana). Essa mudança é atestada pelo Uncial a., pelo Majoritário, pela versão siríaca, e pelo Pai da Igreja, Beato de Liébana. O texto de Nestle-Aland é apoiado pelas Unciais A e C, nos Minúsculos 1006, 1841, 1854, 2053, 2351, alguns poucos latinos e pela leitura à margem da versão siríaca heracleana. Análise: Segundo o critério externo, o texto apontado por Nestle-Aland tem maior peso de testemunhas, e pelo critério de evidência interna, a partícula kai não representa mudança substancial na compreensão do texto. A segunda variante é composta por diversas modificações: substituição da palavra pneh [soprem] por pneush [soprassem], atestada pelo Uncial a e pelos minúsculos 1841, 1854, 2344, e alguns poucos manuscritos (o minúsculo 2329 substitui por genhtai [sucedessem]); inclusão da partícula o`, atestada pelo Uncial C, pelos minúsculos 1611, 2329, 2344, 2351, e alguns outros manuscritos que divergem do Majoritário; omissão do termo epi thj ghj, atestada apenas pelo maiúsculo A; substituição de pan dendron por ti dendron, atestada pelo uncial C e pelos minúsculos 046, 1006, 1841, 2053, 2351, pelo Majoritário do Grupo Koiné e pela versão copta saídica (o Uncial A, alguns manuscritos do minúsculo 2329 e alguns outros poucos manuscritos apresentam dendrou, enquanto o minúsculo 1611, alguns textos da versão siríaca heracleana e a versão boaírica apontam dendrwn). Nesse caso essa parte do versículo seria pneush o` mhte epi thj qalasshj mhte epi ti dendron / dendrou / dendrwn [soprassem nem sobre o mar nem sobre toda(s) árvore – no acusativo / árvore – no genitivo / árvores – genitivo plural].

6

O texto de Nestle-Aland se baseia na Uncial a, os minúsculos 1854, 2344, o Majoritário do Grupo André e a versão siríaca filoxeniana. Análise: Seguindo o critério externo, as variantes estão atestadas por melhores documentos1 do que o texto de Nestle-Aland. O critério interno, em que deve-se escolher a variante mais curta, aponta igualmente para essa mudança. Assim, optaremos pelo texto alternativo. V.2 Substituição de avnatolhj por anatolwn, atestada pelo Uncial A, e alguns poucos manuscritos da versão siríaca; substituição de ekraxen [gritou] por ekrazen [gritou – com outra grafia] atestada pelo Uncial A, P, e pelo minúsculo 2053 (Orígines atesta ekekraxe); omissão da palavra autoij, segundo os minúsculos 1854 e 2329 e alguns outros poucos. Análise: Seguindo o critério de Wegner2, o texto de Nestle-Aland se baseia no conjunto de testemunhas do texto do Apocalipse, o que garante a ele maior autoridade. Também nesse caso optamos pelo texto de Nestle-Aland. V.3 Substituição de mhte por kai, atestado pelo Uncial A, pelo minúsculo 2351, e alguns poucos outros manuscritos (o Uncial a e o minúsculo 1854 apresentam mhde); substituição de mhte por mhde, atestado pelo Uncial a , pelos minúsculos 1854, 2329, e alguns outros poucos manuscritos. Ainda aponta para a substituição de acri por acrij ou, segundo os minúsculos 1611, 1854, 2329, 2351, além do Majoritário Koiné (o minúsculo 2344 atesta acrij an). Análise: De acordo com o mesmo critério anterior, julgamos que as variantes do versículo três não tem peso suficiente para justificar qualquer mudança. O A é “o melhor ms. no que diz respeito ao Apocalipse”. PAROSCHI, W. Crítica textual do Novo Testamento, p.49. 2 “sempre que o aparato não apresentar explicitamente as testemunhas que defendem o texto, pressupõe-se que este esteja sendo apoiado pelo conjunto de todos os demais manuscritos não arrolados na(s) variante(s). Quanto não explicitamente citado, “txt”, é, pois, igual ao conjunto de todas as testemunhas do texto, menos as que apóiam a variante”. WEGNER. U. Exegese do Novo Testamento, p.59. 1

7

V.4 O Uncial A atesta a omissão da frase kai. h;kousa to.n avriqmo.n tw/n evsfragisme,nwn. Inclusão de kai antes de tesserakonta, atestada pelo Uncial C e pelos minúsculos 1006 e 1841, e pelo Majoritário do Grupo Koiné. Alteração de esfragismenoi por esfragismenwn, segundo o minúsculo 2351 e o Majoritário do Grupo Koiné. Se levarmos em conta as variantes atestadas pelo Majoritário K, o texto fica [cento e quarenta e quatro mil, que foram selados:]. Análise: Aqui também ocorre o mesmo processo do versículo anterior, o que motiva, em termos de evidência externa, a adotarmos o texto de Nestle-Aland. O critério interno de uma variante mais difícil estaria adequado, porém como o Uncial A atesta o texto escolhido por Nestle-Aland. Outro critério que deve ser considerado é o do texto paralelo, pelo qual os manuscrito adotado por NestleAland acolhe a frase, segundo a par 9,16. Assim, preferimos acolher essa posição. V.5 Substituição de Gad por Dan, de acordo com o minúsculo 1854, e alguns poucos manuscritos além desse. Análise: Não há motivo para optar pela mudança pela pouca força testemunhal da variante. V.6 Substituição de Manassh por Dan, segundo a versão boaírica. Análise: Aplica-se aqui o mesmo critério do anterior. V.7 Omissão da frase ek fulh/j Sumew.n dw,deka cilia,dej, atestado pelo Uncial a.

8

Análise: Seguindo o principal critério de evidência externa que estamos utilizando, não há motivos para discordar do texto de Nestle-Aland, visto que essa omissão pode ter sido causada por um fenômeno de parablepse3. V.8 Substituição da palavra esfragismenoi por esfragismenwn de acordo com o minúsculo 1854 e alguns poucos manuscritos. O texto Majoritário K atesta esfragimenai, enquanto o minúsculo 2329, alguns outros manuscritos, um manuscrito da versão Vulgata e o Pai da Igreja, Primásio. Análise: Pelo mesmo critério dos versículos anteriores, em relação ao número e qualidade das testemunhas, as evidências externas apontam para optarmos pelo texto de Nestle-Aland. Conclusão da avaliação das variantes: Com exceção da segunda variante do v.1, entendemos que o texto proposto por Nestle-Aland está adequado aos melhores manuscritos que atestam o Apocalipse, em especial a nossa perícope. Por isso nossa tradução seguirá o texto corrente, alterando apenas a variante já referida. 2.3. Tradução 1 Depois destas coisas vi quatro anjos que estavam em pé sobre os quatro extremidades da terra, que seguravam os quatro ventos/ângulos da terra, para que não soprassem nem sobre o mar, nem contra nenhuma árvore. 2 E vi outro anjo subindo do oriente, tendo um selo do Deus vivo, e bradou em alta voz aos quatro anjos a quem foi dado danificar à terra e ao mar, 3 dizendo: Não danifiquem a terra, nem o mar, nem as árvores, até que marquemos os servos do nosso Deus na fronte deles. 4 E ouvi o número dos que foram marcados: cento e quarenta e quatro mil de todas as tribos dos filhos de Israel: 5 Da tribo de Judá doze mil que foram marcados, “(parableyij = olhar para o lado), ocorria geralmente quando duas linhas consecutivas apresentavam palavras iguais ou semelhantes no final (=homoioteleuton) ou no início (=homoioarchon), levando os copistas a saltar a linha”. WEGNER, U. Op.cit., p.40. 3

9

Da tribo de Rúben doze mil, Da tribo de Gad doze mil, 6 Da tribo de Asser doze mil, Da tribo de Neftalim doze mil, Da tribo de Manassé doze mil, 7 Da tribo de Simeon doze mil, Da tribo de Levi doze mil, Da tribo de Issacar doze mil, 8 Da tribo de Zabulon doze mil, Da tribo de Ioséf doze mil, Da tribo de Beniamim doze mil que foram marcados.

2.4 Análise literária 2.4.1 Delimitação e estrutura do texto O início da perícope está delimitado pela expressão Meta. tou/to [Depois disto]. O autor passa a descrever uma cena diferente daquela que fazia antes. Há uma interrupção na cena anterior, que termina com uma pergunta em 6,17: o[ti h/lqen h` h`mera h` mega,lh th/j ovrgh/j auvtw/n, kai. ti,j du,vatai staqh/vai; [porque chegou o grande Dia da ira deles; e quem é que pode suster-se?]. Aparentemente a visão seguinte é como uma resposta para a pergunta levantada pelos que sofrem no grande dia do Senhor. O vidente passa a descrever anjos que recebem ordens de não destruir nada ainda, em função dos servos de Deus. Esses foram selados pelo anjos com o selo de Deus. A descrição termina no verso 8. Com isso, delimitamos o fim da perícope, pois a partir do verso 9, outra visão é introduzida, de novo com Meta. tau/to ei/don

10

[depois destas coisas]. Também esta nova visão parece ser uma resposta à pergunta de 6,17, e faz parte de um grande interlúdio4 na abertura dos selos, iniciada em 6,1. Podemos estruturar como segue: v. 1 – Visão de quatro anjos em pé nos quatro cantos da terra v.2,3 – Visão de outro anjo, maior, com o selo do Deus vivo v.2 – Descrição do anjo e do seu clamor v.3 – A ordem de não danificar nada até que todos fossem selados vv.4-8 – Descrição dos cento e quarenta e quatro mil selados. O uso do selo de Deus no interlúdio da visão dos sete selos transparece uma continuidade de tema, o que torna essa parte uma interpolação posterior quase inviável.5 É possível pensar nessa nova cena de 7,1-8, bem como sua continuação de 7,9-17 como uma continuidade do sexto selo, num contexto maior, da seguinte forma, de acordo com Richard: 6 Na terra: 6,12-7,8 Juízo dos opressores: 6,12-17 Proteção do povo de Deus: 7,1-8 No céu: 7,9-17 Liturgia dos mártires: 7,9-15a Realidade da vida junto a Deus: 7,15b-17. Se pensarmos na estrutura do livro como uma arquitetura, a nossa perícope se encontra no grupo de 6-9, que perfaz um quiasmo com 14.17-18, com o tema das lutas, estratégias e conselhos. 7

4

Cf. KÜMMEL, W.G. Introdução ao Novo Testamento, p. 600 Cf. PRIGENT, P. O Apocalipse, p.139 6 RICHARD, P. Apocalipse. Reconstrução da esperança, p.116. 7 Cf. MAZZAROLO, I. O Apocalipse, p.24. 5

11

2.4.2. Contexto histórico Conforme abordado anteriormente, o principal contexto do Apocalipse se encontra no fim do século primeiro, quando as perseguições deflagradas por Domiciano (91-96) e Trajano (98-117) colocaram os cristãos em situações limite. “O Apocalipse está na continuidade e na complementação da profecia”8. A força da linguagem do Apocalipse é o que motiva o autor a fazer uso desse gênero, que era muito difundido naquele momento.9

2.4.3. Crítica literária A perícope apresenta um anúncio de salvação em contraponto ao anúncio de juízo de 6,1-17. Com isso a visão dos capítulos 6-7 identifica-se com os tipos de anúncio profético do Antigo Testamento (cf. Is 30-35; Os 13-14;etc.), com os quais o Apocalipse guarda certa herança. João é vidente, mas assume postura de profeta, e na sua visão fala de destruição e salvação. E os selos estão presentes em ambos os aspectos como uma ligação simbólica de que é o mesmo Deus que realiza ambos. Os principais símbolos na visão da perícope são os anjos, o selo na fronte dos servos de Deus, as tribos, e o número simbólico 144.000, cercado de controvérsia e fonte de debate entre diferentes abordagens. Com isso a perícope se caracteriza claramente no gênero apocalíptico – visão simbólica de cunho forte e marcante -, com muitos elementos provenientes da tradição profética – do qual a apocalíptica é herdeira - e um fundo escatológico - pois trata de um fim adiado até que todos os que devem ser selados o sejam. Além disso, pode-se pensar numa dimensão apologética do texto, numa tentativa de dialogar com os judeus, buscando superar a distância entre o povo da primeira e o da nova aliança.

8

MAZZAROLO, I. O Apocalipse, p.17. Como atesta Koester em sua obra. Cf. KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento. 2. História e literatura do cristianismo primitivo. Pp. 261-280. 9

12

3. Interpretação do texto 3.1. Os anjos que seguram os quatro ventos Os anjos são os responsáveis pela distribuição das ordens divinas. Desde o judaísmo tardio essa idéia já está atestada10, conforme vemos no Livro de Enoque LX,16, em que o dilúvio foi de fato perpetrado por anjos: Quando o espírito da chuva quer sair da sua câmara aparecem os Anjos, abrem a câmara e deixam-na sair; e quando ela se derrama sobre toda a terra une-se com as águas terrestres.11

No próprio Apocalipse encontramos o anjo do fogo (14,18) e o anjo das águas (16,5), o que indica que a natureza e seus elementos são controlados por Deus através de anjos, segundo a tradição apocalíptica. Os anjos de 7,1, em especial, controlam “touj tessaraj anemouj”, que são os quatro ventos, mas que podem indicar os pontos cardeais12, como se os ventos do mundo se originassem nos quatro ângulos (gwniaj). Essa expressão se deve ao fato da concepção hebraica pensar no mundo como se fosse quadrado (cf. Is 11,12; Ez 7,2; especialmente está próximo de 37,9: “vem dos quatro ventos, ó espírito”).13 Há toda uma dimensão dos ventos no AT como “mensageiros de Deus”14 (Sl 104,3-4), tanto para criar (Gn 1,1) e dar vida (Ez 37,9), quanto para destruir (Jr 49,36; Dn 7,2ss). Geograficamente, a idéia do vento como destruidor tem a ver com o fato de que o vento do leste (portanto, do oriente), x;Wr ~ydiq;, “seca as fontes, queima as plantações (Os 13,15; Is 40,7), arrebata a palha (Is 27,8) e muitas vezes levanta nuvens escuras de poeira no deserto. Por isso o vento leste freqüentemente serve de imagem dos castigos divinos”.15 Do conceito concreto de um vento enviado por Deus para destruir as plantações logo surgiu um conceito poético-

10

Cf. PRIGENT, P. O Apocalipse, p.140. RODRIGUES, C.J.A. (Trad.) Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia, p.287. 12 Cf. RUSCONI, C. anemoj. In: Dicionário do grego do Novo Testamento, p.49. 13 Pode haver certa correlação também com a cultura grega, que tinha contato com a cultura Persa, que considerava a estrutura universal do cosmos a partir do quatro, por ex, em Parmênides. Aliás, o quatro também é uma grandeza simbólica muito trabalhada no Apocalipse. 14 Cf. PRIGENT. P. O Apocalipse, p.140; BALLARINI, T (org.) Introdução à Bíblia, p.506. 15 IMSCHOOT, vento. In: Van den Born, A. (Org.). Dicionário Enciclopédico da Bíblia, col.1547. 11

13

simbólico, a partir do qual o vento determina inclusive a possibilidade de vida do povo (cf. Ez 37,9). Os quatro anjos estão de pé, segurando os quatro ventos, numa posição de espera atenta, que indica domínio: “quando alguém está de pé está em posição de comando”.16 Na verdade, transparece no texto a idéia de que estão aguardando uma ordem específica, motivo pelo qual estão segurando os ventos. Há um paralelo com a tradição profético-apocalíptica presente nos sinóticos, em que os anjos percorrem os quatro cantos (a totalidade) da terra para reunir [episuna,gw] os escolhidos (cf. Mt 24,31; Mc 13,27). Essa espera adia o juízo e a destruição total de todas as coisas. O interlúdio do sexto selo é, então, um adiamento da ordem final em função de algo ainda mais importante, que precisa ser feito antes do juízo. Poderíamos mesmo pensar numa pausa da graça sobre o juízo. Surge então do oriente – o nascente do sol, o leste – um outro anjo. Se ele nasce no leste e ele mesmo grita com grande voz para os outros para não fizessem dano, então ele é superior aos outros. Dentro do contexto vétero-testamentário, associado à concepção apocalíptica, esse anjo teria poder sobre o vento do leste, o mesmo x;Wr ~ydiq;, e seria ele quem determinaria a destruição final. Por outro lado, o nascente do sol indica também uma manifestação divina gloriosa17, de onde vem a vitória para os escolhidos (Is 41,2; Ez 43,2; Lc 1,78). Assim, já aqui temos um símbolo que representa juízo para os ímpios, ao mesmo tempo em que indica salvação para os justos, que no texto são os servos de Deus, os quais serão selados.

3.2. O selo na fronte dos servos do Deus Vivo O anjo que sobe do oriente tem nas mãos um selo, identificado como sendo do Deus Vivo. O selo – sfragij - representava para o mundo antigo o mesmo que uma assinatura representa hoje em nossa sociedade, onde cada um tinha o seu, intransferível e que indicava que alguma coisa pertencia a ele, ou mesmo era de sua

16 17

MAZZAROLO, I. O Apocalipse, p.128. Cf, BALLARINI, T (org.) Introdução à Bíblia, p.506.

14

responsabilidade. Quando se tratava de um documento importante, uma carta oficial, ou um decreto que tivesse que ser levado para lugares diferentes, o selo seria na verdade um “selo de rolar” ou “selo cilíndrico”, que “era rolado em cima de tabuinhas de barro e, neste caso, o emblema gravado no cilindro se imprimia na argila mole”.18 Havia ainda o “selo de sinete”, que era impresso no papel mediante pressão.19 O uso figurado do ato de selar já aparece no Antigo Testamento, mas com pouca freqüência. É no Novo Testamento que o termo selar, ou selo, ganha sua dimensão maior, onde indica sinal de confirmação, bem como sinal de pertença. Vários textos do Novo Testamento trazem essa idéia de confirmação. Em Jo 3,33 afirma que aquele que aceita o testemunho, certifica [evsfra,gisen] que Deus é verdadeiro. Da mesma forma, Jo 6,27 diz que Deus confirmou Jesus (“Deus, o Pai, o confirmou com o seu selo”20 [evsfra,gisen]). O mesmo sentido de confirmação aparece em Rm 4,11, com relação a Abraão, ou ainda o próprio Paulo que, em 1 Co 9,2, considera a comunidade de Corinto o selo [sfragi,j mou] (confirmação) do apostolado dele. O outro sentido figurado importante no NT é o de pertença, pois “o selo que figuradamente é impresso no homem é sinal de que ele pertence ao dono do selo, seja este Deus ou Cristo e que se pode alegrar de ter a proteção de seu possessor”.21 Paulo afirma que os crentes em Cristo foram selados [sfragusa,menoj] por Deus (1 Co 9,22). Esse selo divino é entendido na dimensão de pertença, como indicam Ef 1,13 e 4,30, que muitos associam ao ato do Batismo, quando o cristão declara sua entrada na comunidade do povo de Deus (no sentido de propriedade).22 Essa pertença traz proteção, seja por intervenção direta, seja pela função de ocultar que o selo traz consigo. Ao ocultar o conteúdo dos rolos (Ap 6,1ss), Deus oculta a 18

Sêlo, in: BAUER. J.B. Dicionário de Teologia Bíblica, p.1060. Cf. BAUER. J.B. Dicionário de Teologia Bíblica, p.1060. 20 Ao contrário das traduções correntes no português, o grego não tem necessidade de explicitar o termo selo, pois a ação divina já é de selar com seu selo. 21 BAUER, J.B. Dicionário de Teologia Bíblica, p.1061. 22 Essa interpretação é atestada no texto de Clemente (2 Clem 7,6; 8,6, Cf. BAUER, J. B. Dicionário de Teologia Bíblica, p.1061.) e no Pastor de Hermas (Sim.,9,16,4, Cf. PRIGENT, P. O Apocalipse, p. 142.) 19

15

revelação sobre as coisas que devem acontecer, protegendo-o da manipulação daqueles que não têm fé, condição sine qua non para a compreensão do texto.23 Aqueles que são selados são também ocultos, ou guardados, de forma que só Deus tem ciência a respeito deles, e por isso mesmo domínio sobre eles. Na trama dos selos, o ato de selar os servos de Deus se coaduna com certa prática nesse sentido, realizado na Antigüidade, quando “soldados, escravos, servos de templos traziam no corpo sinais atestando a sua dependência ou consagração”.24 O sinal na fronte do qual o anjo brada tem ligação com o sinal que Deus faria no povo de Jerusalém, segundo a profecia de Ezequiel (9,4),25 um wt', que é a última letra do alfabeto hebraico, mas também serve como marca, assinatura.26 Esse sinal, que no alfabeto arcaico lembra uma cruz, pode ter sido o sinal que, junto com o batismo, indicam essa pertença.27 A marca é feita na fronte [metw,pwn], associado à testa das pessoas, “poderia se referir à marca que os profetas trariam em sua fronte, pintada ou tatuada; ou poderia se referir aos filactérios carregados na fronte e na mão”. 28 Se for assim, a idéia do selo na fronte pode significar a mente transformada [metamorfou/sqe] que não se conforma [suschmati,zesqe] com este mundo, no caso, o sistema que age contra Deus (cf. Rm 12,1). Significa assim uma postura contrária, de ir contra todo um sistema de valores aos quais se colocam contra a vontade divina. Mais do que mera marca protetora, o selo tem a ver com uma postura de resistência, que está presente em todo o Apocalipse (cf. as cartas às igrejas, nos cap. 2-3). Assim, “a teologia do Livro propõe uma resistência pacífica, ativa e consciente colocando total confiança em Deus e no seu julgamento do mundo”.29 De um modo sintético temos então um selo da parte de Deus que preserva a vida daqueles que forem selados (ao contrário daqueles que choram por que sabem

23

Cf. MAZZAROLO. I. O Apocalipse, p. 113. BALLARINI, T (org.) Introdução à Bíblia, p.506. 25 De acordo com MAZZAROLO, I. O Apocalipse, p.51; BALLARINI, T (org.) Introdução à Bíblia, p.506. 26 wt'. In: VVAA. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português, p. 264. 27 Cf. PRIGENT, P. O Apocalipse, p. 142. 28 RIENECKER, F. ROGERS, C. Chave lingüística do Novo Testamento grego, p. 617. 24

16

que irão perecer) por estarem comprometidos com o projeto de Deus para o mundo, resistindo ao avanço do Anticristo. Dessa forma, o selo do livro também é o selo da vida das pessoas que servem a Deus, que o buscam e adoram, e que não adoraram a Besta (Ap 20,4).

3.3. Os cento e quarenta e quatro mil de todas as tribos de Israel Mas, qual é a identidade dos servos de Deus, os quais serão selados? O vidente ouve seu número, mas não os vê. No processo da apocaluyij, tanto o ouvir quanto o ver são fundamentais,30 mas dependem de certa reflexão e iluminação do Espírito para compreender o sentido daquilo que ouve ou vê, como sugere a advertência ao final de cada carta enviada à sete igrejas.31 Aqui o vidente ouve uma grandeza aritmética, associada a uma lista daqueles que seriam selados. O número dos que foram selados é designado como 144.000 [e`kato.n tessera,konta te,ssarej], que não pretende de forma alguma ser uma grandeza real, histórica ou documentalmente verificável.32 Como entender esse número, que causa tanta comoção nas igrejas e mesmo no meio acadêmico? Existem algumas maneiras de entender, então vamos colocá-las a partir do desvelamento do significado simbólico do número. De acordo com o Dicionário de Símbolos, “esse número é de grande riqueza na simbologia cristã. A combinação do quatro do mundo espacial e do três do tempo sagrado medindo a criação-recriação dá o número doze, que é o mundo acabado. É o da Jerusalém celeste”. 33 De um modo mais específico, Ballarini explica que “corresponde a 12 (3 número sagrado X 4

29

MAZZAROLO, I. O Apocalipse, p. 21. Cf. MAZZAROLO, I. O Apocalipse, p. 17; RICHARD, P. Apocalipse. Reconstrução da esperança, p.75-76. 31 Cf. PRIGENT, P. O Apocalipse, p. 52. 32 No âmbito do cristianismo em geral, mesmo as tendências fundamentalistas trabalham com esse número como sendo uma grandeza simbólica. A divergência está no entendimento sobre a identidade dos 144.000. Já o grupo dos Testemunhas de Jeová tem toda uma interpretação própria, baseada num método de interpretação literalista, que nega a interpretação simbólica do texto. 33 CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos, p. 348. 30

17

número cósmico) elevado ainda ao quadrado e multiplicado por mil, sinal da extensão indefinida”.34 Na Bíblia esse número está vinculado a um tipo de eleição. No AT Israel (Jacó) deixa para os filhos uma herança; os seus doze filhos são ancestrais epônimos das doze tribos do povo judeu (cf Gn 35,23s).35 Na escolha dos doze Jesus “proclamou abertamente sua pretensão de eleger, em nome de Deus, um povo novo (Mt 10,1s e par)”.36 No Apocalipse há várias menções ao doze: a Jerusalém celeste (cap. 21, 12ss) é descrita com doze portas, doze anjos, com o nome das doze tribos de Israel. Tem doze fundamentos, com o nome dos doze apóstolos. A Cidade parece ser um cubo, doze mil estádios cujos “comprimento, largura e altura são iguais” (v.16c).37 Ainda outros elementos nos fazem perceber a força do doze no livro do Apocalipse. A grandeza aritmética é associada a todas às tribos dos filhos de Israel, o que um olhar atento demonstra não ser exato. Alguns motivos indicam para que não se pense no número global dos israelitas, do ponto de vista político-social: 

A tribo de José é duplicada, considerando o acréscimo de Manassés. Com isso, a tribo de Efraim fica de fora.



A tribo de Dan foi eliminada. Houve vários esforços na história do texto escrito em acrescentar essa tribo, conforme a pesquisa que a crítica textual realiza pode demonstrar (é o caso do minúsculo 1854 e da versão boaírica).



A presença desse número também em 14,1, o que indica um número simbólico, relativo a um grupo simbólico.

34

BALLARINI, T (org.) Introdução à Bíblia, p.507. Cf. Tribo. In: Van den Born, A. (Org.). Dicionário Enciclopédico da Bíblia, col. 1529 36 CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos, p. 348. 37 Como diz RICHARD, P.: “Temos aqui uma reconstrução simbólica do Povo de Deus. Seis vezes repete-se o número 12, que expressa totalidade ou perfeição social. Os nomes das 12 tribos simbolizam o povo de Deus em suas origens: os nomes dos 12 Apóstolos simbolizam o Povo de Deus, reconstruído pela morte e ressurreição de Jesus (cf. 7,1-8 e 14,1-5). Sobre essa tradição se constrói agora a nova Jerusalém, o novo projeto transcendente de Deus”. Apocalipse. Reconstrução da esperança, p. 278. 35

18



A ordem das tribos não tem paralelo na Bíblia. Trataremos esse aspecto com mais vagar, para uma melhor análise e compreensão.

O Harper’s Bible Dictionary aponta diferenças substanciais na ordem das tribos em diferentes listas constantes no AT (Jz 5; Dt 33; Gn 49; Gn 35,22; Nm 1,20-43), sendo que a lista de Jacó de Gn 49 é repetida em Gn 35,22-26; Dt 27,1213; 1 Cr 2,1-2.38 Se compararmos as diferentes ocorrências de listas das tribos de Israel no Antigo Testamento, sem considerar a ordem – já que nenhuma lista coincide inteiramente – iremos verificar ao menos três tipos de listas, cada uma com sua intencionalidade própria. Um primeiro tipo é pré-sacerdotal, que está relacionado aos epônimos das tribos nas origens. Nestas listas encontramos os nomes de José e Levi, bem como da tribo de Dan, e não encontramos nem Manassés nem Efraim. Estas listas estão em Gn 29,31-30,26;35,18; Gn 49, 1-27; Dt 27,12-13; 1 Cr 2.139. O segundo tipo de listas é sacerdotal, com caráter político, que se relaciona com a estrutura de Israel tendo a elite sacerdotal destacada das demais tribos. A principal característica dessas listas é a ausência de José e Levi, e a presença de Manassés e Efraim. José teria passado para os filhos a posse da herança (Gn 48), enquanto a tradição declara que Levi deixou de ter posse como tribo (Nm 1,47-54; Dt 18,1-8). Encontramos esse tipo em Nm 1.5-15; Nm 1,20-43; Nm 2; Ez 48,18.23-28. Um terceiro tipo parece ser sacerdotal, mas com aspectos pré-sacerdotais. O que caracteriza essas listas é exatamente um critério específico que precisa ser avaliado separadamente, dependendo do contexto – e que não é o objetivo dessa pesquisa. Nelas é possível encontrar José no lugar de Manassés, mas junto com Efraim, e sem Levi (cf. Nm 13,4-15); e encontrar José, Efraim, Manassés e Levi juntos, sem, contudo, a presença de Judá e Simeão (cf. a bênção de Moisés, Dt 33).

Cf. Tribes, The, In: ACHTEMEIER, P.J. Harper’s Bible Dictionary, p. 1096-97. O texto de Crônicas deve ter recebido influência da tradição pré-sacerdotal, pois tem uma preocupação de formar uma lista de epônimos. 38 39

19

A lista do Apocalipse está mais próxima desse último grupo, primeiro porque nele José, Levi e Manassés estão juntos. Além disso, a única mudança em relação às tribos epônimas - do tipo pré-sacerdotal – está na ausência de Dan, que se explica pelo fato da tribo de Dan ter incorrido em idolatria, segundo Js 18. O apócrifo Testamento dos Doze Patriarcas, parte VII. Testamento de Dan, V,3, informa que Eu li no livro de Enoque, o Justo, que o vosso príncipe será Satanás, e que os espíritos da luxúria e da arrogância conspiram para atentar constantemente contra os filhos de Levi, a fim de levá-los ao pecado diante do Senhor. Os meus filhos igualmente aproximar-se-ão dos filhos de Levi, para juntamente pecar com eles. E os filhos de Judá serão cobiçosos e avançarão sobre a propriedade alheia como leões.40

Assim, podemos compreender melhor a escolha do autor do Apocalipse. Influenciado pelo movimento apocalíptico (cf. 1.6), ele fez uso da lista genealógica, tirando Dan como exemplo negativo daqueles que negaram a Deus, e adotaram a idolatria em suas vidas, sendo por isso cortados da lista daqueles que seriam selados. Quanto à escolha de Manassés, e não de Efraim, é possível que tenha relação com a posição da tribo de Efraim na guerra dos recabitas. A questão mais complexa a responder é quanto a que grupo é esse. Os comentaristas diferem em sua posição. Apresentaremos sucintamente as posições mais relevantes, e depois faremos uma análise crítica: J. Wesley (sec. XVIII) interpreta como sendo uma parte fiel dos israelitas, e não de todo o povo indistintamente, mas para o qual se juntarão uma multidão das nações de todo o mundo (cf.v.9). Ele indica a proeminência de Judá como resultado do Messias ser procedente dessa nação, enquanto o fato de Levi ter voltado a constar na lista das tribos indica o fato das cerimônias levíticas terem sido abolidas.41 I. Mazzarolo aponta para este grupo como sendo “uma primeira parte dos redimidos, os do AT, pois são os redimidos e fiéis de cada uma das tribos de Israel. 40

RODRIGUES, C.J.A. (Trad.) Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia, p.371. Ballarini aponta a mesma questão em sua nota no. 26. Cf. Introdução à Bíblia, p.507. Além disso, Prigent informa que W. Bousset “apresentou uma quantidade considerável de textos patrísticos que provam que essa interpretação era tradicional na Igreja Primitiva”. PRIGENT, P. O Apocalipse, p. 144. 41 Cf. WESLEY, J. Explanatory notes upon the New Testament, p.970.

20

Este número de salvos não são os salvos pelo Cordeiro, pois estão numa complexidade numérica fechada, com significado mais para a Cabala judaica”.42 Nessa posição, o grupo refere-se a Israel, não num sentido político-social, mas histórico-espiritual, isto é, tem a ver com o povo de Deus histórico, mas não historicamente identificável, pois eles estão ocultos pelo selo de Deus. P. Prigent analisa, ao contrário, que se trata do povo cristão, por alguns motivos. Primeiro, ele destaca o simbolismo do número da lista, e lembra que a idéia da Igreja ser o novo Israel é atestada em outras partes do NT, como por ex. Rm 2,29; Gl 3,29; 6,16; Fl 3,3; 1Pd 1.1. Segundo ele, “no batismo os cristãos tornaram-se membros do povo de Deus, foram marcados com seu nome, pertencem a ele”.43 Ainda destaca que a ordem das tribos na lista tem um propósito específico. Além da questão de Dan (cf. supra), Prigent destaca a posição de Judá na lista de Nm 2, em que aparece encabeçando as tribos. No entanto, Levi não faz parte dela – é uma lista de tipo sacerdotal – o que na verdade torna-se um fator de status maior em relação às outras. Já na lista de Ap 7,5-8 Levi aparece apenas em oitavo lugar, ou seja, a primazia da tribo sacerdotal é colocada numa posição relativa. Enquanto isso, a posição de Judá, em primeiro lugar, “é evidentemente em razão das profecias messiânicas ligadas a essa tribo”.44 Assim, a lista seria dos cristãos. T. Ballarini concorda em parte com Mazzarolo, pois segundo ele, se considerarmos a questão da tribo de Dan, “deveria tratar-se aqui do verdadeiro Israel do qual o anticristo está excluído”.45 Ele concorda com o simbolismo do número e da organização, mas não assume uma posição clara. R. Jamierson, numa linha mais fundamentalista, declara claramente: “El segundo advenimiento será el tiempo de la restauración del reino a Israel, cuando los tiempos de los gentiles estén cumplidos, y los judíos por fin digan, ‘Bendito el que viene en el nombre del Señor.”46 Ele concorda que o número 144.000 é 42

MAZZAROLO, I. O Apocalipse, p. 51. PRIGENT, P. O Apocalipse, p.143. 44 PRIGENT, P. O Apocalipse, p.143. 45 BALLARINI, T (org.) Introdução à Bíblia, p.506-507. 46 JAMIERSON, R. FAUSSET, A.R. BROW, D. Comentario Exegetico com Explicativo de La Biblia, p. 787. 43

21

simbólico, bem como explica a ausência da tribo de Dan da mesma maneira. Para ele se trata do Israel político, remanescente fiel, que será restaurado e enfrentará as hostes do Anticristo numa grande batalha, após a grande tribulação. O selo seria para eles como o foi para os antigos israelitas quando estavam no Egito, e cujas casas foram marcadas para evitar a morte (Ex 12). P. Richard trabalha a questão em conexão com as perícopes anteriores e posteriores (cf. supra, 1.2), apontando os 144.000 como o “Povo de Deus completo, perfeito, organizado. Este é o Povo dos Santos que aqui na terra configura o povo ou comunidade alternativa do Império”.47 Para Richard, inclusive, o selo não representa o batismo, mas “uma maneira de viver na história”.48 J. Roloff aborda o Apocalipse no substrato eclesiológico do texto. Segundo ele, “a idéia da igreja como sociedade estruturada (politéia), que adquire forma e estrutura a partir de Deus como seu centro, toca-se com o Apocalipse de João”.49 Ap. 7,1-8 apresenta o “número pleno de Israel”50, e inclui num único ato salvador de Deus em Cristo todos os que recebem essa salvação. O texto “exprime que se trata do povo de Deus em sua plenitude escatológica”,51 por isso ele defende que não pode se tratar apenas de cristãos judaicos. Análise geral: A pesquisa em torno da perícope é extensa, com muitas vertentes trabalhadas, todas com sua argumentação bem delineada. Para chegarmos a uma conclusão, consideramos as etapas até aqui alcançadas. Se levarmos em conta o que já depreendemos do texto, veremos que alguns aspectos nos ajudam: 

o texto tem caráter simbólico, e como tal é polissêmico52;



de um modo geral, o autor retrata a vida daqueles que atendem a Deus e ao Cordeiro, e nesse caso seriam os cristãos;

RICHARD, P. Apocalipse – Reconstrução da esperança, p. 130. RICHARD, P. Apocalipse – Reconstrução da esperança, p. 130. 49 ROLLOF, J. A Igreja no Novo Testamento, p. 267. 50 ROLLOF, J. A Igreja no Novo Testamento, p. 200. 51 ROLLOF, J. A Igreja no Novo Testamento, p. 200. 52 Cf. RICHARD, P. Apocalipse – Reconstrução da esperança, p. 60. 47 48

22



por outro lado, o ambiente apocalíptico tem os judeus como público familiar: nesse caso poderiam ser judeus convertidos, judeus helênicos (considerando as cidades para onde João escreve as cartas) que, junto com os cristãos se vêem em dificuldade, e precisam de uma palavra de estímulo.

Com essas pistas, desejamos elaborar uma breve tentativa para a hermenêutica do texto, que iremos expor na conclusão.

Conclusão A perícope deve ter sido escrito tendo em vista cristãos vindos do judaísmo, mas que conviviam com dificuldades no ambiente helênico. Com certeza judeus helênicos também faziam parte da comunidade, mas essencialmente tinham a tradição judaica como fundamento da sua fé. Desse modo o texto realmente trata de um grupo específico, que enfrenta perseguições e que precisa ser estimulado a permanecer firmes. Para eles Deus promete um selo, uma marca, que os confirmará e identificará, desde que eles permaneçam fiéis. Para tanto, devem tomar cuidado para não seguir os “balaamitas” (2,14), “nicolaítas” (2,15), os “seguidores de Jezabel” (2,20) e os da “sinagoga de Satanás” (2,12; 3,9), e não tenham o mesmo fim de Dan, que ficou de fora da lista. A lista contém uma condição: não basta ser judeu, é preciso estar aberto a Jesus como Messias. Por isso a lista é encabeçada por Judá, para que aqueles que servem ao “Leão da tribo de Judá”, mas que na verdade é o “Cordeiro” (cf. 5,5-6). Com isso, ela também se abre àqueles e àquelas que não nasceram dentro do povo de Israel, mas que pela fé aderiram a esse povo, como uma grandeza espacial e temporal, um povo de Deus escatológico, em que judeus e gentios se unem em um só povo (Ef 2,11-22). Há uma intenção de diálogo entre as duas parte: os judeus que se converteram ao cristianismo e também os cristãos helênicos, em relação aos judeus da sinagoga que viviam na diáspora, em meio ao ambiente helênico vinculado ao culto ao imperador e à idolatria.

23

O fato de terem um número e uma ordem serve como um estímulo para que não pensem que estão abandonados à própria sorte, sem orientação. Pelo contrário, as testemunhas de Jesus são motivadas a continuar, pois Deus está controlando a sua igreja, e ela vencerá todas as tribulações e a Besta. A própria história confirma como a igreja passou de um movimento informal dentro do judaísmo, cresceu no império romano de forma clandestina e superou todas as perseguições, até mesmo adquirindo estado de organização influente na política do Ocidente (às vezes com resultados desastrosos). Mesmo com toda a crítica que se possa fazer, a Igreja se coloca no quadro daqueles que estão organizados por Deus. Por outro lado, esse texto representa para nós hoje um alerta, em meio à ruína dos projetos políticos que se fazem de cordeiro, mas que são lobos vorazes, oprimem e exploram o povo sofrido de nossa realidade latino-americana e especialmente brasileira. Aqui, como lá, é preciso manter-se fiel ao projeto de Deus, e não entregar-se às facilidades que o sistema da Besta proporciona para aqueles que o seguem. O preço é alto: trata-se de desfazerse de valores como solidariedade, justiça, igualdade, compaixão, afetividade, e deixar-se levar pela fome de conquista, de lucro a qualquer preço, das coisas que a nada acrescentam, e que transgridem o projeto de Deus para a humanidade. O selo dos 144.000 serve para nós, então, como estímulo a continuar um evangelho aparentemente fraco, em meio a poderosas estruturas dominadoras; e advertência sobre o resultado de nos deixarmos envolver pelos esquemas que favorecem a morte, quando somos chamados a defender a todo custo, o valor da vida e do bem comum a todas as pessoas.

24

Bibliografia ACHTEMEIER, P.J. (Ed.). Harper’s Bible Dictionary. San Francisco: Harper & Row, Publishers, 1985. [s/n.] BALLARINI, P. Teodoro (org.). Introdução à Bíblia com antologia exegética: V. 2. Epístolas do cativeiro - Pastorais – Hebreus – Católicas – Apocalipse. Petrópolis: Vozes, 1969. BAUER, Johannes B. Dicionário de Teologia Bíblica. Vol II. São Paulo: Ed. Loyola, 1973. [s/n.] Biblia Sacra Utriusque Testamenti Editio Hebraica et Graeca. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft. Novum Testamentum Graece. 27. revidierte Auflage. Biblia Hebraica Stuttgartensia. Editio quarta emendata opera, H.P.Rüger. Bíblia Sagrada. Antigo e o Novo Testamento. Trad. em port. por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada. 2ª ed. 1988. CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos – Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, número. 14ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora S.A. 1982. [s/n.] GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3ª ed. São Paulo: Teológica, Paulus, 2003. JAMIERSON, Roberto. FAUSSET, A.R. BROW, David. Comentario Exegetico com Explicativo de La Biblia. Tomo II: El Nuevo Testamento. El Paso: Casa Bautista de Publicaciones. [19-] [s/n.] KOESTER, Helmut. Introdução ao novo testamento 2. História e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005. KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1985. MAZZAROLO, Isidoro. O Apocalipse. Esoterismo, profecia, ou resistência? 2ª ed. Rio de Janeiro: Mazzarolo, 2000.

25

PAROSCHI, Wilson. Crítica textual do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2002. PRIGENT, Pierre. O Apocalipse. São Paulo: Edições Loyola, 1993. RICHARD, Pablo. Apocalipse – Reconstrução da esperança. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997. RIENECKER, F. ROGERS, C. Chave lingüística do Novo Testamento grego. 4ª reimp. São Paulo: Edições Vida Nova, 2000. RODRIGUES, C.J.A. (Trad.) Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Editora Cristã Novo Século Ltda, 2004. ROLOFF, Jürgen. Trad. de Nélio Schneider. A Igreja no Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, Centro de Estudos Bíblicos, 2005. RUSCONI, Carlo. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003. VAN DE BORN, A. (red.). Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1992. VVAA. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1994. WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento. Manual de Metodologia. São Leopoldo: Sinodal: São Paulo: Paulus, 1998. WESLEY, John. Explanatory Notes Upon The New Testament. London: Epworth Press, 2000.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.