Semiótica existencial: uma proposta de reflexão em Villa-Lobos

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I SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: OBRA, TEMPO E REFLEXOS

RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL

Semiótica existencial: uma proposta de reflexão em Villa-Lobos Cleisson Melo1 UFBA [email protected]

Resumo: A obra de Villa-Lobos continua sendo um desafio para analistas e musicólogos. Neste intuito, este recorde de pesquisa pretende propor uma reflexão sobre o compositor e sua obra pelo viés da Semiótica Existencial (SE). Para isso, uma abordagem mais ampla com base nesta teoria pode abrir novos caminhos para os trabalhos a respeito de Villa-Lobos, na tentativa de permitir uma percepção diferenciada que pode ser utilizada em conjunto (ou não) com as diversas abordagens analíticas. Assim, almejamos demonstrar que a SE pode evidenciar novas declinações, reflexos e variações a respeito de Villa-Lobos e sua obra dentro do semio-filosófico. Palavras-chave: Villa-Lobos. Semiótica existencial. Significado musical.

Existential Semiotics: a reflection proposal in Villa-Lobos Abstract: Villa-Lobos’ artwork remains a challenge to analytics and musicologists. In this sense, this paper proposes a reflection on Villa-Lobos and his music through Existential Semiotics (ES). Therefore, a wide approach based on ES can open new paths for works about Villa-Lobos in an attempt to offer a differentiated insight that can be used together (or not) with different analytical approaches. Thus, this work aims to demonstrate that ES can show new inflections, reflections, and variations about Villa-Lobos and his work within the semio-philosophical. Keywords: Villa-Lobos. Existential Semiotics. Musical Signification.

Heitor Villa-Lobos é personagem de um extenso número de trabalhos de pesquisa no entrono da música brasileira. Porém, podemos considerar que entender seus processos, estilo, e ideologia composicional, ainda é um desafio para musicólogos e analistas. 1 Cleisson Melo é doutorando em Composição pela UFBA, onde também foi professor substituto no Departamento de Literatura e Estruturação Musical em 2011. Conduziu parte de sua pesquisa relacionada a Villa-Lobos e Semiótica na Universidade de Helsinki. Está sempre envolvido em congressos ligados à Análise musical, Musicologia, Composição e Semiótica da música, como os da ETAM, ISI e IASS/AIS. Foi o transcritor oficial no livro Olodum, historia e cultura afro-brasileira em 30 músicas, lançado em 2010. Recentemente foi solicitado a contribuir com um dos capítulos para a próxima publicação da Universidade Estadual de Feira de Santana sobre “Som e Imagem”. Cleisson Melo é também contrabaixista e arranjador, com participação em mais de 40 CD’s, inclusive produzindo alguns destes. Cleisson de Castro Melo is a composer, and PhD student in music at The Federal University of Bahia (UFBA), where he was adjunct professor at the Department of Musical Structure in 2011. He conducted part of his research about Villa-Lobos and Semiotics at the University of Helsinki. Melo is always engaged with congresses about musicology, musical analysis, composition, and music semiotics as ETAM, ISI, and IASS/AIS. He was the official transcriber of the book Olodum, historia e cultura afro-brasileira em 30 músicas, released in 2010. His next publication should be a chapter of the new book of the State University of Feira de Santana (UEFS) about “Sound and Image”. Cleisson Melo is also bassist, and has participated in over 40 Cds, including as a music producer in some of them.

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Este recorte de pesquisa, aqui retratado, pretende propor uma reflexão sobre Villa-Lobos pelo viés da semiótica existencial. Assim, dentro dessa visão, almejamos abrir uma tangente para os trabalhos a respeito de Villa-Lobos, na tentativa de permitir uma percepção diferenciada que pode ser utilizada em conjunto (ou não) com as diversas abordagens analíticas. A Semiótica Existencial, uma teoria elaborada pelo professor e pesquisador finlandês Eero Tarasti, baseada na filosofia franco-alemã de Kant, Kierkegaard, Hegel, Heidegger, Sartre, Jaspers, dentre outros, e na semiótica europeia, principalmente a Escola de Paris (representada por Algirdas Julien Greimas), sugere “novos aspectos da obra de Villa-Lobos”2 (TARASTI, 2012a, p. 50). Assim, entendemos que esta pode ser uma teoria que surge como um novo degrau para os estudos, neste caso, sobre Villa-Lobos e sua obra. A Semiótica Existencial (SE) vem sendo desenvolvida desde o ano de 2000, ano de lançamento do livro Existential Semiotics de Eero Tarasti. Todavia, a SE não desconsidera as ideias prévias da dita semiótica clássica. Ao contrário, ela amplia essa visão “clássica”, porém dentro dos limites de uma nova e mais abrangente teoria. Diferentemente do que possa parecer, esta teoria não pretende um retorno ao existencialismo, mas uma releitura dos fundamentos da semiótica à luz de determinados filósofos. Desta forma a SE nos leva às fronteiras da semiótica, chegando às margens de uma abordagem fenomenológica e hermenêutica. O próprio Tarasti denomina sua teoria de uma “neosemiótica” por ser “algo novo, na medida em que pretende representar o pensamento do século XXI e, como uma filosofia do nosso tempo, se envolve com desafios da presente era”3 (TARASTI, 2009, p. 1755). Sendo assim, esta pode ser uma teoria deveras inclusiva e abrangente no sentido analítico musical, especialmente no que tange a música pelo viés da significação, comunicação, narrativa, e discurso. A SE oferece uma nova perspectiva do sujeito e subjetividade, abrindo diversas possibilidades para sua aplicação. Para tanto, Tarasti oferece uma nova noção a respeito do Moi (M; eu, individuo) e Soi (S; sociedade, a coletividade). Podemos, então, dizer que “o ‘si mesmo’ (Soi) funciona como uma espécie de memória do corpo (Moi); ele dá forma aos traços de tensão e necessidades que tenham apresentado ou foram inseridas no corpóreo “Eu” (Moi)”4 (TARASTI, 2012b, p. 17). Desta maneira, na SE, à luz de Fontanille, o ser-em-e-para-si de Hegel se torna ser-em-e-para-mim. Diferente do espirito Hegeliano da coletividade, o Outro também está presente aqui. Desta maneira, temos o encontro como o “você” (outro), o que se traduz em “ser-em-e-para-você”. Esse cunho social permite a emergência de valores abstratos, virtuais dos signos que ainda não se tornaram concretos, por assim dizer. “Primeiramente de acordo com esta teoria, o motor principal da historia da arte 2 Nouveaux aspects de l’œuvre de Villa-Lobos 3 Something new, in that it purports to represent 21st-century thought and, as a philosophy of our time, engages with challenges of the present era. 4 The self (Soi) functions as a kind of memory of the body (Moi); it gives form to the traces of tensions and needs that have lodged or been inserted in the fleshly “Me” (Moi).

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é o movimento do Moi em direção ao Soi, ou melhor, a rebelião constante do Moi contra a comunidade do mundo convencional do Soi”5 (TARASTI, 2012a, p. 50). Ou seja, é também falar que é a esfera do Soi (valores) atua como resistência para o ser do Moi (corpóreo). Nos termos do principio de Ich-Ton6 de Uexküll, o que determina a identidade e individualidade de um organismo, nos podemos distingui-lo em aspectos: Moi e Soi. Em “eu” o sujeito aparece como tal, como um pacote de sensações; no “si mesmo” o sujeito aparece como observado pelos outros, como determinado socialmente. Estes constituem os aspectos existenciais e sociais do sujeito, ou melhor, seus lados individuais e comunais.

Com base nisso, temos então o seguinte esquema teórico Moi/Soi: Figura 1: Moi/Soi

Através desse esquema proposto por Tarasti com base na metodologia de Greimas, podemos demonstrar que a principal modalidade do Moi é “querer”. Porém, devemos entender que querer não quer dizer somente “querer fazer” ou “não querer fazer”, mas também “querer ser” ou “não querer ser”. Em seguida temos a categoria de energia, capacidade, “poder”. O “saber” tem uma relação com a memória do Moi, uma espécie de eu interior. Interessante notar que num sentido bergsoniano, há uma relação do conhecimento com o fazer e poder. É através deste que a composição pode emitir informações em si, e a partir dessa memória a obra pode retomar suas formas, conhecimento e poder. O Moi tem assim suas próprias necessidades internas e uma certa autonomia, não se permitindo dobrar sob as forças impostas pelo Soi (TARASTI, 2012a). No caso do Soi, a principal categoria é o “dever”, que assume as estruturas comunicativas; estilos, gênero, etc. Quando um compositor coloca um título em sua obra, ele tem o “dever” de ser, o compromisso em dever ser. O “saber”, que se dá o conhecimento da penetração de 5 Tout d’abord selon cette théorie le moteur primordial de l’histoire de l’art est le mouvement du Moi vers le Soi, ou plutôt la constante rébellion du Moi contre la communauté le monde conventionnel du Soi.

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Ich-Ton (Me-Tone) é um conceito do biólogo Jakob Uexküll que significa o filtro pelo qual um organismo aceita ou rejeita sinais de seu ambiente. Essa metáfora se refere à partitura dentro do organismo interpretada por estímulos externos. Assim, cada compositor ou músico tem seu próprio ‘Ich-Ton/Me-Tone’, determinando um estilo.

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elementos no Dasein, ou seja, a transcendência na obra. O “poder”, terceira categoria do Soi, se relaciona com a adoção de técnicas e/ou recursos, os quais o “dever” e o “saber” poderão alcançar. Por último, temos o “querer”, que se expressa quando “um compositor fala de sua comunidade e, em seguida, permite seu Soi exprimir-se”7 (TARASTI, 2012a, p. 51). Não é insólito notar que, dentre estas modalidade, a do dever, que representa uma certa rigidez, obediência, se apresente em Villa-Lobos principalmente através da negação, que de fato, é parte do seu Moi. Portanto, um ponto importante neste esquema reside na combinação entre as esferas do Moi e Soi, ou seja, das subjetividades individuais e coletivas. Isto, representado exatamente na inclusão do sujeito (diferentemente de Hegel), como supramencionado, transformando o serem-e-para-si em ser-em-e-para-mim, evidencia que há um processo dinâmico e comunicativo entre estas quatro dimensões. Então, definir não é o mais importante e sim este dinamismo que os movimenta, “que os anima: a evolução do ego corporal caótico, sua transformação até que se torne um signo para si mesmo; mais o impacto de um ego tão estável e totalmente responsável em termos de actualização dos valores transcendentais pelos quais o ego se torna um signo para os outros sujeitos”8 (TARASTI, 2012a, p. 59). Tarasti, portanto, desenvolve seu esquema através da indicação dos quatro casos do ser no quadrado semiótico (M1, M2, M3, M4, S1, S2, S3 e S4). Assim, ele propõe o seu modelo Z (Figura 2 – Modelo Z (Tarasti)) combinando as esferas dos Moi(s) e Soi(s) (individual e coletivo, corpo e forma). Resumidamente, seria não somente o movimento do espírito coletivo de Hegel, mas o movimento e comunicação entre eles (Moi e Soi). É exatamente na tensão dialética entre Moi e Soi, com base nas modalidades Greimasiana do sujeito, que podemos entender o modelos Z e o processo de comunicação/transformação entre os Moi(s) e Soi(s). Figura 2 – Modelo Z (Tarasti)

Estes aspectos relativos ao Moi (M) e Soi (S), representam os dois lados de nossa 7 Comme lorsqu’un compositeur parle au nom de sa communauté et laisse alors son ‘Soi’ s’exprimer. 8 Qui s’anime entre elles: l’évolution de l’ego corporel chaotique, sa transformation jusqu’à ce qu’il devienne un signe pour lui-même ; et plus encore, l’impact d’un ego aussi stable et totalement responsable sur le plan de l’actualisation de valeurs transcendantale par laquelle l’ego devient un signe pour les autres sujets.

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subjetividade. “O social tem impacto e poder sobre nós somente porque foi internalizado em nossas mentes. Desta maneira, o Soi pode se impor em nosso Moi”9 (TARASTI, 2012b, p. 136). Esse modelo taxinômico do ser, com base nas tensões entre Moi e Soi, a gradual socialização e materialização dos nossos egos, cada vez mais sublimado, segue até que possa representar os aspectos intelectuais e espirituais de nossa sociedade, ou seja, é o processo de crescimento do ser corpóreo ao ser intelectual/espiritual. Portanto, dentro desse processo, também devemos considerar que “nossos atos mais físicos do M1 também contém pequenos traços do Soi, bem como nas categorias mais abstratas de nossa existência social também existem pequenos vestígios do nosso ego físico”10 (TARASTI, 2012b, p. 137). Temos então que (1) M1=S4, (2) M2=S3, (3) S2=M3 e (4) S1=M4. Desta forma, em todo texto musical, discurso ou expressão, temos estes quatro aspectos: (1) material físico concreto surgindo como gestos musicais e desejos musicais, formações ondulantes mais ou menos caóticas da energia cinética da música. (2) Pessoas ou “atores” musicais, as quais são as mais estáveis entidades antropomórficas, como temas e motivos musicais; estes têm perfis bem definidos e constituem unidades da narração musical. (3) Na música temos normas sociais, manifestando-se em (a) figuras retóricas, (b) tópicas, ou seja, características de estilo internalizado a partir dos campos sociais musicais ou não, e (c) os gêneros, as estruturas sociais necessárias para a comunicação musical. (4) Cada unidade musical tem um aspecto estético de conteúdo, sendo os valores ou ideias que a música transmite ou significa”11 (TARASTI, 2012b, p. 137–138).

Podemos notar que na semiótica existencial, a teoria das modalidades de Greimas é um ponto importante, assumindo “novas regras”. Neste sentido as modalidades são conceitos processuais, assim, dinâmicos por natureza. Isso posto, aplicando a Villa-Lobos, termos a seguinte demonstração: M1) suas experiências cinéticas e rítmica corporal primária, fenômenos, elementos, suas entidades rítmicas básicas, o gestual primário; M2) todos os ritmos primários e gestos desenvolvidos em suas maneiras e hábitos pessoais, típicas figuras rítmicas villalobianas – o temperamento e gestos rítmicos (ou não) característicos de Villa-Lobos; S2) gêneros, tópicas, etc., gesto como tópicas; e S1) o gesto ou o impulso rítmico sublimado, elevado e transfigurado em um princípio estético, por exemplo, o ritmo como um dos elementos da estética villalobiana. De certa forma isso já abre uma gama de possibilidades, mesmo que hermenêuticas, ao mesmo tempo em que representa uma espécie de resumo geral. Por outro lado, como proposta para uma reflexão em Villa-Lobos, não podemos deixar de fora as várias épocas vividas pelo compositor aqui no Brasil e fora dele. As diferentes eras e movimentos, como o modernismo, por exemplo, representa um dos Sois, ao qual Villa-Lobos

9 The social has impact on and power over us only because it has been internalized in our minds. In this way, the Soi can impose itself on our Moi. 10 Our most physical acts of M1 also contain a tiny trace of the Soi, just as in the most abstract categories of our social existence there also exists a small hint of our physical ego. 11 In every musical text, discourse or expression, we have these four aspects: (1) Concrete physical material appearing as musical gestures and musical desires, more or less chaotic wave-like formations of the kinetic energy of music. (2) Musical “actors” or persons, which are the more stable anthropomorphic entities, like musical motifs and themes; these have clear-cut profiles and constitute units of musical narration. (3) In music we have social norms, manifesting in (a) rhetorical figures, (b) topics, i.e. style features internalized from musical or nonmusical social fields, and (c) genres, the social frameworks necessary for musical communication. (4) Every musical unit has an aesthetic aspect of content, being the values or ideas which the music conveys or signifies

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precisou se adaptar. Durante seu período em Paris nos anos de 1920, Villa-Lobos se depara com o Soi do modernismo europeu, diferente do Soi da Semana de Arte Moderna em São Paulo que lhe exigia uma linguagem musical adaptada à tais exigências. Talvez por isso ele tenha tido a gana de negar e exagerar, uma atitude vista como rebelde por alguns, caminhando até mesmo no sentido de ser taxado como grotesco. Isso só ressalta que Villa-Lobos já havia desenvolvido um Moi bastante autêntico. Por isso, o intuito de Villa-Lobos era, antes de qualquer coisa, divulgar seu Moi. Sua organicidade dentro do Soi musical europeu permite uma analogia, mesmo que metafórica, entre sua “conexão de ideias, de uma textura organicamente variada com uma vegetação tropical”12 (TARASTI, 2012a, p. 52). Essa adaptação nos permite evidenciar um Moi primário bem equilibrado com o Soi modernista europeu, o qual Villa-Lobos soube explorar muito bem. Já no Brasil, Villa-Lobos se depara com diferentes Sois de diferentes períodos. Vamos propor, à luz da SE, que estes períodos históricos, como pano de fundo, podem ser a base para um comparativo analítico sócio-cultural-musical. A Semana de Arte Moderna de 1922, a Era Vargas, e o Nacionalismo, por exemplo, representam algumas das diversas fases da história e na vida do compositor. Seus trabalhos e convivência com a Semana de Arte Moderna lhe possibilitou ampliar seu lado rebelde, um tanto irônico e até mesmo surreal, o que fundamenta, de alguma maneira, seu principal Moi. Porém isto é parte de sua personalidade, apesar de ser muitas vezes chamado de primitivo (sua energia cinética). Essa fusão de diferentes Sois (parisienses, brasileiros...) aliado ao seu Moi, irá refletir no seu processo composicional. Podemos dizer que seu “compor modernista”, adicionado ao Soi nacionalista brasileiro do governo Vargas irá desenhar parte do seu Moi, não somente no sentido de negação, rude, mas também na saudade dos trópicos, das florestas, na melancolia e em uma sensibilidade brasileira que é evidente em algumas de suas Bachianas, por exemplo. São diversos Sois. Não podemos deixar de fora seus primeiros anos, seus primeiros estudos musicais, sua vivência com músicos da noite boemia no Rio de Janeiro, os chorões, os lounges dos teatros e cinema. Neste sentido, a música popular representa um importante fator a ser considerado, assim como o folclore. Contudo, ao citar uma melodia ou um ritmo popular, o que se ouve é mais que uma citação; o Soi da música popular brasileira adquire um caminho próprio em Villa-Lobos, é um processo de apropriação no qual ele permite que seu Moi primário se expresse, tornando-se uma identidade musical do compositor. Isso ao mesmo tempo deixa evidente a sua libertação de uma estética mais dura, firme, ou seja, dos estilos mais conservadores. Se tomarmos como exemplo os Choros, apesar do nome, Villa-Lobos não compõe estritamente seguindo o que seria um choro popular em meio erudito, mas a sua própria maneira. Seria seu próprio compor ideológico com base num Brasil popular ou até mesmo antigo, no 12

Connexion des idées, dans la texture organiquement variée comme une végétation tropicale.

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sentido nostálgico da palavra. É um retorno ao Brasil de outrora, impregnado com sensualidade e melancolia, que irá refletir em suas escolhas composicionais e coloridos orquestrais. Portanto, o Soi popular/folclórico em Villa-Lobos toma parte do seu próprio Moi, sua identidade musical, seu processo de apropriação. Assim, essas possibilidades de romper com idealismos e ideologias incrementam ainda mais o seu imaginário que, sob influência do popular/folclore, irão fundamentar um Moi mais corpóreo, mais cinético em relação às técnicas formais até então usadas. Essa releitura de estilos e técnicas traspassa pela sensibilidade brasileira13, refletindo em seu processo de escolhas. Ainda dentro no universo das Bachianas, podemos citá-las como exemplo de sua boa adaptação a essas diversas mudanças de contextos socioculturais e estéticos, sem deixar de lado seu “eu” estilístico. Dentro de um contexto de influência do barroco de J. S. Bach, estas obras estão impregnadas pelo Moi de Villa-Lobos, porém se apresentando como um fenômeno de mistura de um Soi esteticamente pré-definido com um Soi popular brasileiro, mas regido pelo seu Moi. É exatamente o processo de disputa e mistura entre Sois e Mois, que ao mesmo tempo em conjunto com essa tristeza tropical, característica do povo brasileiro, se manifesta nas Bachianas e em outras obras. Em concordância com Tarasti, podemos ressaltar que o estilo e música de Bach, em Villa-Lobos, se manifestam como o “transcendentalismo” musical, ou seja, é como um processo de filtro pelo qual Villa-Lobos pôde expressar-se (Moi) num aparente Soi até então pré-definido. Provavelmente isso seria o que Adorno, se tive tido a chance, chamaria de “transcendência na música”, mesmo que no sentido estético. Para entendermos melhor isso, precisamos ter sempre em mente que no modelo Z o principal é o movimento, o desenvolvimento do corpóreo a uma consciência, uma personalidade mais estável. Assim que o Moi encontra o Soi (em seu mundo social), valores e ideias, mesmo que abstratos, emergem no intuito de se concretizarem no sentido prático, de igualdade. Para isso o movimento pode se dar no sentido Moi-Soi ou Soi-Moi. Considerando que as extremidades do quadrado semiótico são formadas pelo que o Tarasti chama de pré-signos, e que, circundado pela semiose, para que este se concretizem em signos atuantes, é necessário passar pela transcendência. Essa evolução do corpóreo em se tornar um signo para si e o impacto de um ego mais estável está diretamente ligado aos valores transcendentais que permitem, em termos de actualização, que este se torne um signo para os outros. Para resumir isso podemos imaginar um gesto musical baseado no Moi, o que poderia ser um efeito ou técnica estilista, em contraponto com o gênero, por exemplo, não obstando adaptações pelo Moi do compositor. Essa natureza dinâmica do modelo Z nos possibilita, ao mesmo tempo, em qualquer trecho ou obra musical, distinguir estas quatro dimensões; M1, M2, S2 e S1. Por isso, considerando que “a semiótica está em fluxo”14 (TARASTI, 2012b, p. 71), entender o signo em 13 O próprio Tarasti estabelece, com base nos estudos de Lévi-Strauss, que essa tristeza dos trópicos, essa nostalgia característica do povo ibero brasileiro, pode ser, neste contexto, vista como sensibilidade brasileira 14 Semiotics is in flux.

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movimento e fluxo promove fundamentos para entender a vida do signo a partir de dentro, de como os signos se tornam signos. Isso pode ser importante quando se pretende alcançar novos horizontes no intuito de demonstrar as atitudes e processos. Alguns estudos a respeito de performance, por exemplo, apontam como a comunicação entre estas quatro dimensões pode se dar sem necessariamente obedecer a ordem M1-S1 (por exemplo, ir de M1 a S2 sem passar por M2). Por outro lado, esse dinamismo nos faculta investigar a comunicação entre estas distintas dimensões. Ou seja, em suma, se considerarmos que podemos obter ao mesmo tempo elementos de cada um dos Mois e Sois, podemos propor a interseção destes elementos (dimensões) como maneira de contemplar esta como parte do processo e ideologia composicional de um compositor. A figura a seguir pode ilustrar isso. Figura 3 – Interseção Mois/Sois.

Esta é uma das formas de estabelecer e entender o pensamento, estratégias e processos composicionais como ideologia de um compositor, ou seja, demonstrar a ideologia composicional, estratégias, processos e pensamentos usados em uma ou mais obras através da SE. Podemos assim entender melhor um determinado compositor ou período no sentido de desvendar alguns aspectos do seu processo composicional, especialmente se o objetivo é explorar os mecanismos de expressão e composição. Desta maneira, a aplicação desta abordagem pode nos permitir identificar sinais culturais-musicais em determinadas obras, retratando a construção e representação de elementos representativos e significados através, por exemplo, da experiência cultural. O Moi e Soi estão conectados por uma espécie de ponte e, ao mesmo tempo, não estão separados do todo. Uma das maneiras de como esses conceitos se cristalizam é através do gesto (de modo geral) e do gênero. “O encontro do Eu e a Sociedade, Moi e Soi, acontece como conjunção, quer se misturando ou divergindo, entre gesto e gênero”15 (TARASTI, 2015, p. 34). Para finalizarmos, podemos demonstrar como este modelo pode ser aplicado às obras de Villa-Lobos. Como exemplo, elaboramos um resumo com base nas Danças Características Africanas (1916-1918). Temos o seguinte esquema: M1) ritmos sincopados, populares e bastante corpóreos; sons crus e diferentes coloridos, expectativas; evocação das danças e movimento. M2) material temático de influencia afro-indígena (fontes étnicas); melodias simples, um retrato musical. S2) a música não tem um estilo formal definido, porém pretende expressar a 15 The encounter of Me and Society, Moi and Soi, takes place as the conjunction, either blending together or conflicting, between gesture and genre

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representação de um povo afro-indígena e sua cultura através de elementos populares e étnicos. S1) é o idealismo afro-indígena pela estética modernista, primitivismo, e elementos europeus, ao mesmo tempo em que é o modernismo brasileiro misturado a um “estilo” europeu; ideologia e valores pós-colonialistas. Em conjunção com a ideia de Tarasti em estabelecer novos parâmetros e declinações com base em elementos existentes na filosofia, como já apontado, podemos considerar que essa teoria proporciona um novo olhar de base semiótica à luz de determinada filosofia. Isso dá uma imensa fluidez no uso desses conceitos existentes, que podemos usá-la como uma espécie de lente que pode filtrar ou ampliar o olhar sobre uma obra e/ou processos, neste caso, de VillaLobos. Quando mencionamos no começo deste trabalho que a SE pode ser considerada como um degrau para os estudos, estamos estabelecendo um link entre Tarasti e Wittgenstein. Como este último mesmo havia proposto através de sua metáfora da escada, que figura na ligação entre linguagem e mundo, os degraus interligam ou levam a outros sujeitos. O importante aqui é chegar ao alto e se livrar desta escada, como simbolismo de nos manter no alto, sem dependências. É neste sentido que entendemos que a proposta de uma SE, que consegue novas declinações, reflexos e variações dentro do semio-filosófico, seja um dos degraus promissores para estabelecer uma visão diferenciada a respeito de Villa-Lobos e sua obra. Assim, à luz de “novas variações”, em patamar de cada vez mais granjear novo rumos, a SE pode ser um degrau fundamental no processo de reforçar trabalhos já existentes e também possibilitar novos aspectos a respeito de Villa-Lobos.

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