Sempre uma coisa a seguir à outra. João Nora
Descrição do Produto
João Nora Ana Pires Quintais
Com “Nas antemanhãs longínquas, o sangue dos dragões da perda”, João
Nora justapõe, através de um vídeo com a duração de pouco mais de 27 minutos, a imagem de um vórtice num lago e o som extraído de uma entrevista de 1968 dada por Marcel Duchamp à BBC. Tenta-‐se criar, segundo o artista, “uma reflexão acerca do pensamento de Duchamp”1 e da sua esmagadora influência na arte contemporânea. Nesta apelativa metáfora visual, Nora oferece-‐nos Duchamp através de imagens mentais que implicam turbilhão, remoinho, voragem. Num lago de águas pouco cristalinas, o vórtice surge para criar confusão, para baralhar a corrente natural, para sugar os diversos materiais que bóiam no fluxo das águas, desviando-‐os do nosso olhar, enviando-‐os para um lugar invisível, profundo, expondo-‐os ao risco da destruição e da transformação, neste fazer engenhoso de um poderoso maelstrom. Imagem e movimento conjugam-‐se num escoamento giratório, numa rápida e quase alucinante elipse ao som da voz tranquila de Duchamp que nem a aguda rispidez da voz da sua entrevistadora consegue quebrar.
Em pleno Colégio de Jesus, edifício que alberga grande parte das
colecções científicas da Universidade de Coimbra, um espólio constituído por objectos raros e preciosos, a peça artística de João Nora remete, não só, para a introdução do aspecto preciso e calculado da ciência nos trabalhos de Duchamp, como para a própria interrogação aparentemente irresolúvel do que é arte. Arte que, se originada no sânscrito, pode corresponder a um fazer, conforme diz o autor de Le Grand Verre, em entrevista a Pierre Cabanne,2 onde também se auto-‐ designa de “engenheiro do tempo perdido”. Engenheiro e inventor de “máquinas femininas”3 que mostram a inserção da ciência – através de robots e máquinas -‐ na pintura moderna. Figuras sem corporalidade, sem réstia de humanismo que, de acordo com Octavio Paz, sugerem um Duchamp que está apenas interessado 1 Ver sinopse da peça artística. 2 Duchamp, Marcel (1966/2002). Engenheiro do Tempo Perdido. Entrevistas com Pierre Cabanne.
Lisboa: Assírio & Alvim, pp.9. 3 Octavio Paz (1978/2011). Marcel Duchamp. Appearance Stripped Bare. New York: Arcade Publishing, pp. 16.
na “beleza da indiferença”, uma beleza desligada da sua própria noção, localizada entre o romantismo dos poetas simbolistas e o campo da cibernética contemporânea. Uma indiferença que pode ser abstracta, uma obra e um artista que Nora lança para “(...) lá longe, na luz circular do dia shintoísta inquirindo da minha constante indiferença abstracta”, numa imagem que termina o fragmento iniciado pelo título do seu vídeo4. Uma indiferença que parece ser confirmada através de Le Grand Verre, por exemplo, e dos vários ready-made que Duchamp cria, uma beleza que, sem o ser, vai para além da impressão “retiniana” e se formula como ideia, provocando a participação do espectador na feitura da obra, tal como o artista francês terá um dia afirmado5, numa co-‐participação que João Nora anuncia através do título do seu trabalho. Este é um título que inquieta pela ausência de verbo e que parece remeter para o observador/espectador essa vontade de fazer. Um título que parece ser uma sugestão dadaísta, mas que se trata, na verdade, da primeira frase de um fragmento do Livro do Desassossego, abrindo espaço a novas e incessantes interpretações numa intertextualidade que cria múltiplas camadas de sentido e que redimensionam o próprio objecto de arte.
Outubro, 2015 In VVAA (2015). Anozero’15. Um lance de dados. Textos e ensaios. Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra. Coimbra: Anozero e Edições Almedina, SA. (pp. 117-‐ 119).
“Nas antemanhãs longínquas o sangue dos dragões da perda, na tarde oblíqua a incerteza dos seus voos chineses — com mandarins supérfluos discutindo estéreis impossibilidades, lá longe, na luz circular do dia shintoísta inquirindo da minha constante indiferença abstracta.” 5 Em Duchamp, Marcel (1966/2002). Engenheiro do Tempo Perdido.... pp. 212. 4
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