SENSIBILIDADE E DEMOCRACIA COM JACQUES RANCIÈRE

June 3, 2017 | Autor: A. Barata Nascimento | Categoria: Jacques Rancière, Filosofía Política, Democracia
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SENSIBILIDADE E DEMOCRACIA COM JACQUES RANCIÈRE *

Foi o próprio homem que teve que se tornar a si mesmo, enquanto representação de si mesmo, previsível, regular, necessário, para finalmente poder, como faz aquele que promete, responder por si e pelos seus actos enquanto futuro! Nietzsche, Para a Genealogia da Moral

Quando, em vista de uma genealogia da moral, Nietzsche retratou o homem, ou a representação que o homem dele mesmo se faz, como «previsível, regular, necessário», um fenómeno reconhecível na sequência natural dos «antes» e «depois» que tornam o futuro todo um facto já presente, na verdade, esta era uma concepção que viria a estender os seus efeitos muito além do homem individual, mesmo além dos grupos sociais, correspondendo, hoje, ao sentido dominante das democracias ocidentais contemporâneas. Com efeito, a ideia de processos de construção de consensos, mais ou menos formalizáveis, impôs- -se quase hegemonicamente como teoria da democracia, assumindo por modelo a administração da coisa pública. Naturalmente o acordo entre as partes, igualmente racionais, envolvidas no debate democrático é essencial à coexistência social; simplesmente, esse não é o momento genuinamente político da democracia. Que momento seria, então, genuíno de uma democracia política? De certa maneira, Hannah Arendt respondeu à pergunta, deslocando a ordem da necessidade — e portanto da previsibilidade e regularidade — para o plano apolítico dos                                                                                                                 *  in  BARATA,  André,  2012.  Primeiras  Vontades.  Lisboa:  Documenta,  pp.  91-­‐104.  

assuntos domésticos, ou económicos, e guardando para a acção política, entendida como liberdade, a contingência e a imponderabilidade definitiva por que também se avaliam os homens. Este é, em boa medida, o tema da emancipação do homem face à ordem da necessidade, emancipação dele como criador face à produtividade que o põe na dependência dos seus resultados produtivos. Mas é Jacques Rancière quem instala no cerne da discussão sobre a democracia política contemporânea a ideia de emancipação. Apostado na revitalização de uma democracia de democratas, fundada na convicção deste tipo de homens, em contraste com uma democracia sem democratas, formalizada na suficiência dos seus protocolos, Rancière elege precisamente os opostos do consenso e da previsibilidade como os traços emancipatórios essenciais à democracia — a dissensão e a irrupção imprevista de novos actores políticos, para lá da clausura no «previsível, regular, necessário» que suscitava a reacção nietzschiana. Na medida em que pensada como condição de possibilidade do político, a emancipação económica dos sujeitos é, como vimos, um pressuposto para o pensamento político de Hannah Arendt. Não se tratará simplesmente de garantir uma provisão suficientemente abastada de recursos materiais, para poder transcender a força dos interesses particulares e assim garantir uma genuína dedicação ao bem público, embora também isso estivesse em causa na democracia de Péricles, a que Arendt gosta de se reportar. Trata-se, mais fundamental- mente, de apresentar uma concepção de política centrada não no interesse, seja de sujeitos individuais seja de um sujeito colectivo, que poderia levar o nome de povo, mas no espaço público, esse espaço performativo onde comparecem cidadãos com capacidade discursiva. É, pois, outra coisa que não o interesse, pouco importando se dito «particular» ou «comum», o que, para o pensa- mento de Hannah Arendt, bem como para a tradição republicana, circunscreve e define o Bem público. Donde, a força expressiva da chamada de atenção para o mundo e não para

a vida, que Arendt leva a cabo. Esta posição de onde Hannah Arendt perspectiva o seu pensamento político contrasta, de forma evidente, com toda a tradição contratualista que esteve na base seja do liberalismo seja do democratismo, como maior ou menor prioridade ou para o interesse comum ou para os interesses particulares, mas sempre construída a partir da noção de um interesse. A deslocação da atenção para esse espaço onde não são mais os interesses da vida o tema da atenção, interesses postos na forma de vontades, e de que a liberdade de cada pessoa seria causalidade, vontades de poder na justa medida em que se exprimem como poder da vontade, ou, numa palavra, como soberania, todo este enredo de forças que faz e desfaz trincheiras de lutas políticas e sociais é secundarizado, na verdade mesmo removido do plano da esfera política tal como Arendt a pensa. Contudo, a pressuposição da emancipação económica para que haja política, justificada numa presumível contradição entre a ordem da necessidade e a da liberdade, se não dissocia prontamente o processo político do processo emancipatório, ao menos cinde, de forma irrecuperável, pelo menos nos ter- mos de Arendt, a emancipação das suas bases materiais. Esta é a razão mais importante para a impossibilidade de conciliação entre o republicanismo arendtiano, por assim dizer, e o marxismo. Faltalhe o materialismo de base. Este ponto que reputaríamos como o ponto cego do pensamento político de Hannah Arendt — a emancipação —, é no entanto o ponto quente de vários pensadores políticos contemporâneos num tempo em que uma política pós- -emancipação se apresenta cada vez mais como um horizonte difuso, distante e utópico face à deterioração social e económica de parte significativa das populações dos regimes ocidentais. Na verdade, as condições materiais que se têm instalado nas sociedades ocidentais

amadurecidas, especialmente na Europa, têm conduzido a um deslizamento muito pré-pós-moderno, ou seja, simples- mente moderno, em direcção à problemática da emancipação. A contingência do processo histórico confronta-nos com um recentramento da tarefa política como emancipação — nisto envolvendo toda a conceptografia do poder, da soberania, da violência, da economia política e, na base de tudo, da vontade. Em «Communistes sans communisme?», Jacques Rancière aponta de forma clara para as condições do capitalismo para o tempo de hoje: As formas contemporâneas do capitalismo, a explosão do mercado de trabalho, a nova precariedade e a destruição dos sistemas de solidariedade social criam hoje formas de vida e experiências de trabalho frequentes vezes mais próximas do proletariado do século XIX do que o universo de técnicos high- tech ou do reino mundial de uma pequena burguesia dada ao culto frenético do consumo, como é descrito por tantos sociólogos. (Rancière, 2009: 230)

Por outras palavras, há um esgotamento ou, pelo menos, uma percepção crescente de incompletude da representação pósmoderna da pós-modernidade, demasiado deslumbrada com a velocidade da mudança, a efemerização e irrealização dos processos sociais, a hegemonização do prêt-à-porter, do consumo como fenómeno de culto. Sob esta representação tão bem dada a ver por um Lipovetsky ou um Baudrillard, resiste e recupera expressão real uma representação pré-pós-moderna, de fim vaticinado inúmeras vezes, mas subitamente plena de novidade no pensamento de um Jacques Rancière. A emancipação intelectual que Rancière conceptualiza faz-se sobre as condições materiais, pressupostas na sua dureza. Se para Arendt haveria que se emancipar politicamente dessa dureza da

materialidade da vida, com Rancière haverá que produzir a mesma emancipação, mas contra essa mesma dureza, e não simplesmente dela. O emancipar de e emancipar contra distinguem-se como a diferença entre o que se larga ou pode ser largado e o que se confronta ou pode ser confrontado. A pedra de toque da emancipação está menos na superação do que na contrariedade superada. A política para Hannah Arendt é pós-emancipatória por pressupor a emancipação como sua condição; para Rancière, a política não é outra coisa senão emancipação. As duas perspectivas não se opõem, porém, diametralmente. É tão claro para Rancière, como o fora para Arendt, que a acção política, de uma forma ou de outra, se debate com o problema de uma condição a superar, ruptura com a ordem do necessário. Por exemplo, um trabalhador lutar socialmente por melhores condições de trabalho e de remuneração corresponde ainda ao desempenho que dele se esperaria, à sua identidade mais propriamente assumida, de trabalhador precisamente. Mas, e o exemplo é de Rancière, tornar-se o proletário escritor, poeta, filósofo, intelectual como os intelectuais burgueses, isso corresponde a um colapso do esquema identitário, ruptura num alegado necessitarismo da sua condição, na medida em que é excedida (cf. La nuit des prolétaires: Archives du rêve ouvrier [1981]). Sob este ângulo desnecessitante, o acento arendtiano persiste. O que aparece sobre o signo da natalidade, até do miraculoso, em Arendt, aparecerá sobre o signo do excesso em Rancière. E em ambos é clara a ressonância nietzschiana de um entendimento do humano liberto da ordem do «previsível, regular, necessário». Numa entrevista, de 1999, ao jornal L’Humanité, intitulada «Jacques Ran- cière: la politique n’est-elle que de la police?», Rancière resume, por ocasião da recepção ao seu Aux bords du politique (1990), a importância desta excedência no processo político: Foi esta lógica que eu tentei pensar mais globalmente

como lógica própria da política. A saber, que aquilo que designámos por movimento obreiro não era um movimento de tomada de consciência dos interesses históricos pró- prios de uma classe, mas primeiro o movimento intelectual daqueles que queriam, de alguma maneira, ultrapassar as barreiras do mundo obscuro em que se encontravam para se ocuparem não simplesmente dos seus assuntos particulares, mas de assuntos comuns. Isso leva-nos à noção de excesso... *

Um tal excesso é posto em contraste com uma logique policière mais vasta, que administra um desenho diferenciador de papéis e funções num quadro de previsibilidade identitária, lógica puramente administradora de desigualdades e que se modaliza em formas de gestão, seja da ordem social, seja do statu quo governativo, seja do consenso democrático, e os respectivos instrumentos de poder e de coerção... Contradizendo esta lógica da ordem política estabelecida, a que Rancière chama la police, os proletários da primeira metade do séc. XIX dispunham-se a existir, nas suas noites, para lá das condições de exploração que os dominavam durante os dias, trazendo assim à luz uma outra lógica, de sentido contrário à primeira, de emancipação. E é neste ponto que o impulso arendtiano, no sentido de não permitir a fixação do humano, na sua existência política, à necessidade mate- rial, tem ressonância no pensamento político de Jacques Rancière, para o qual a emancipação é fundamentalmente um movimento intelectual em direcção a um mundo comum, mundo de partilha sob um pressuposto igualitário. Em O Espectador Emancipado (2008), a excedência que instaura o político é exemplificada com uma descrição por um jornal operário revolucionário de uma jornada de trabalho de um marceneiro ou,                                                                                                                 *  Entrevista de Jacques Rancière ao jornal L’Humanité, na edição de 1 de Junho de 1999.  

talvez mais exactamente, um ladrilhador: Crendo-se em sua casa, enquanto não acabou ainda a sala que está a assoalhar, dá-lhe gosto a disposição das divisões; se a janela dá para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um instante pára o trabalho e esvoaça mentalmente até à espaçosa perspectiva para dela desfrutar melhor do que os donos das casas vizinhas. (Rancière, 2008: 92)

Para Rancière, este salto aparentemente apolítico para um regime de sensorialidade que não se esperaria de um operário é profundamente político. Com ele, irrompe a possibilidade de afirmação de modos de ser operários para lá da dominação, modos de ser que contradizem as diferenças que especifica- riam a identidade do operariado ou, ao menos, a recortariam dos outros mo- dos de ser. A confusão que Rancière procura expor é clarificada assim: Para os dominados, a questão nunca foi tomar consciência dos mecanismos da dominação, mas sim constituir um corpo votado a outra coisa distinta da dominação. Aquele mesmo marceneiro indica-nos que não se trata de adquirir um conhecimento da situação, mas sim das «paixões» que sejam inapropriadas a essa situação. (Rancière, 2008: 93)

O olhar de um marceneiro subitamente distraído numa contemplação estética estilhaça a partilha (partage) do sensível — seja a parte verdadeira- mente partilhada porque respeitante à vida comum, seja a parte simplesmente distribuída porque recortada segundo uma lógica de identidades desiguais. A força política desse olhar tem pelo menos três traços: 1. a liberdade inextirpável do olhar e da percepção que este obtém, e que releva da mesma insuprimibilidade da liberdade no Sartre de O Ser e o Nada e, de um ponto de vista político, da sua inalienabilidade no Rousseau do Contrato Social; 2. a transcendência face à materialidade objectiva

dos sujeitos, e face às suas posições expectáveis no arranjo que os situa no regime de partilha do sensível; 3. a verificação, na própria experiência perceptiva, da igualdade pressuposta. Este é o nervo que fundamenta o entendimento da política segundo Rancière: desidentificação da ordem social, contestação da ordem natural das coisas, experiência da igualdade. Ainda a propósito das possibilidades de convergência entre Arendt e Rancière, é possível prolongá-la na ideia de uma estetização da política, obviamente não no sentido que lhe emprestou o fascismo, e que Walter Benjamin tão bem denunciou, no «Posfácio» ao seu A Obra de Arte na Época da sua Possibilidade de Reprodução Técnica, como estética de uma mobilização da potência técnica que culmina no elogio da guerra, mas, em bases inteiramente diferentes, onde está em causa, segundo Rancière, a percepção de regimes de existência e de visibilidade comuns entre o estético e o político. Por seu lado, o pensamento político de Hannah Arendt já tendia a resolver-se numa enfatização da performatividade pública, estetização da acção, iconizada na figura do herói da tragédia grega Aquiles. Nisto, há um relevo particular a conferir à ideia de liberdade. Para Arendt, esta valia como liberdade política, de acção e de discurso na assembleia, pela causa pública. Em Rancière, a liberdade tem um fundo perceptivo que faz ressaltar o paralelismo, até mesmo vínculo, entre estética e política. O exemplo do olhar livre do marceneiro é a este respeito claro: nele está em causa um «choque de regimes de sensorialidade», uma «rotura estética», que rompe com a «identidade» que a ordem estabelecida prescreve, tornando-o inadaptado a essa ordem, desidentificando-o com o que seria o seu lugar, o seu papel, o seu horizonte de expectativas. Estas possibilidades de aproximação do pensamento de Rancière ao de Arendt permitem, num certo registo, uma conciliação, forçando a ideia de que Rancière, acolhendo a essência do entendimento arendtiano do que é o político, mas reformulando-o,

responderia às críticas que mais frequentemente lhe são apontadas de um ponto de vista de «esquerda», em particular, a crítica de que se trataria de um entendimento elitista, meramente performativo, desligado da materialidade económica e do fenómeno da dominação que aquela instala. A emancipação, como a pensa Rancière, resgataria a existência pública que Arendt descrevera como acção, discurso e liberdade nos termos de uma verificação polémica do pressuposto da igualdade que, para Rancière, é condição de possibilidade do político e da sua própria pensabilidade, e ainda condição de legitimidade da democracia. Mas estas possibilidades de aproximação delimitam-se por contraste com linhas de divergência. A oposição que Arendt faz entre política e soberania, entre liberdade e vontade, entre acção e poder, oposições radicalizadas por uma lógica de exclusões — «onde há uma coisa, não pode haver a outra» —, não se deixa equivaler pela dualidade proposta por Rancière entre a política e l’ordre policier (no sentido de uma ordem de políticas). As questões que as dualidades de Arendt procuravam excluir por uma lógica de impertinências são exactamente as questões a enfrentar. Há uma questão de mediação, ou de confronto (e que é ainda uma forma de mediação), que não permite dispensar um pensamento político, ou meta- político, sobre poder e sobre vontade. Até a noção de emancipação, por si mesma, desenha-se sobre uma disputa entre ser-se capaz ou incapaz, apropriação e potencial. Contudo, mesmo em Jacotot, cujo pensamento pedagógico de uma igualdade das inteligências (como condição de possibilidade para qual- quer compreensão) cunha a ideia de emancipação que Rancière politiza, é reencontrada a lógica de impertinências que Arendt explorara — «Podemos imaginar uma humanidade inteira feita de indivíduos emancipados. Mas uma sociedade não pode ser emancipada» (Rancière, 2009: 220). A emancipação entrincheirase no singular, tal como a acção política em Arendt. Pensar como isso não tem de ser assim, fazer da alternativa uma questão, é o

desafio central que Rancière formula: A questão é saber como é que a colectivização de não importa o quê pode coincidir com a organização global de uma sociedade, como é que o princípio anárquico da emancipação pode transformar-se no de uma distribuição social de lugares, tarefas e poderes. (Rancière, 2009: 220)

De forma mais evidente, a confrontação entre emancipação e ordem social mostra-se plenamente na ideia de democracia, onde se concentra paradoxal- mente uma tensão entre democracia e democratas. Com efeito, a forma universalmente consensualizada, porque produtora de consensos, que se impõe como democracia institucionalizada na ordem política vigente, é uma democracia sem democratas, que os designa mesmo como seus inimigos, cuja actividade sem controlo constitui uma ameaça (Rancière, 2009b: 96). Rancière refere-se a esta democracia do consenso como uma pós-democracia. A força do consenso consiste no seu poder de «dissolução» de toda a desigualdade numa conformação. Em contrapartida, a irredutibilidade do democrata, ou repetindo a analogia, a sua «insolubilidade», é o problema da pós-democracia. O democrata revela-se problemático por não se conformar a uma ordem previsível — problemático porque nietzschiano, demasiado nietzschiano. A sua posição não parte da preocupação em encontrar, entre interlocutores, a boa forma de debater e obter acordos, mediante uma racionalidade comunicacional. Essa que era a preocupação habermasiana já é uma preocupação pós-política que releva da possibilidade de configurações racionais e não violentas da ordem. A democracia do democrata não descola nunca da questão da legitimidade, que mantém a irredutibilidade do político face à ordem política sempre nos termos dos que não têm parte virem a tomar parte. A política não se deixa pensar como um jogo precisamente por serem as suas regras e quem o joga o que nela está em jogo. O jogo político tem o seu anátema na democracia dos democratas, democracia genuinamente política.

Pelas mesmas razões, o dissenso, como conceito oponível ao consenso, não releva tanto da ordem do debate e da discussão argumentada entre pares, mas de um plano de luta, desprovido da mediação procedimental da regra jurídica ou outra, que, assim, fende a continuidade da ordem estabelecida, opondo ao modo de percepção desta, e à sua distribuição do sensível, uma irrupção de sujeitos políticos, cuja aparição — subjectivação — resulta por um movimento de desidentificação face aos lugares e às posições que a ordem política estabelecida lhes conferia. O que move esta desidentificação e subjectivação daqueles que não tendo parte vêm tomar parte do processo político é a experiência da igualdade, percepção que se revela na existência humana a partir de múltiplas formas que cobrem o âmbito estético, social, mesmo lúdico. Há um «pressuposto de igualdade» cuja percepção explica o dissenso e responde à questão última da legitimidade da democracia como regime de coexistência humana, em oposição às formas de mediação consensualizadas que proporcionam uma existência apolítica. Como recusa da imanência processual de um autofundamento, a igualdade de partida impede o rapto da questão da legitimidade por um ordenamento jurídico, qualquer que seja, até ao ponto último da própria impossibilidade de configuração jurídica da comunidade e do Estado. Por outras palavras, em última análise, a questão pela legitimidade tem resposta apenas na democracia e não em nenhuma instância plasmada no e pelo Estado de direito. Em «10 teses sobre a política», texto que sintetiza o programa de pensa- mento de Rancière, as demarcações são feitas directamente em face do pensa- mento de Arendt, o que só se justifica, a nosso ver, sob uma considerável proximidade. E se a primeira das teses, que Arendt subscreveria certamente, de que a política não é um exercício de poder, mas um modo de agir, posto em prática por um tipo específico de sujeito e derivando de uma particular forma de razão, a verdade é que a segunda tese vem especificar a acção política que Rancière tem em mente como uma acção paradoxal de

um sujeito político definido pela sua participação em contrariedades e não a acção principial de um sujeito político caracterizado pelo seu poder de começar. Face ao tomar iniciativa de Arendt, que corresponde bem ao modelo do herói capaz de liderar e as- sim se singularizar, Rancière contrapõe o tomar parte que corresponde à subjectivação do sujeito político. O archein arendtiano, mau grado todo o esforço isonómico, não disfarça para Rancière uma lógica de desigualdade entre superior e inferior, contra a qual se torna necessária uma rotura que preserve a possibilidade do político. A afirmação explícita desta rotura com a lógica do archein é o conteúdo da terceira tese de Rancière, rotura que, na tese seguinte, é tida por definição da própria democracia. A antinomia entre Arendt e Rancière ganha agora uma expressão aberta — a política como Rancière a pensa faz-se contra o princípio que legitima a política tal como Arendt a pensa, uma e outra opondo-se como se opõem inclusão e exclusão. De certo modo, é a mesma crítica habitual de elitismo grecofílico o que Rancière aponta a Arendt, mas, desta feita, uma crítica profundamente matizada pela contradição em que o pensamento de Arendt teria ele próprio incorrido. A lógica de archein não é mais do que uma afirmação, ao mesmo tempo negada por outras vias, por outras fórmulas. Esse outro termo da contradição é aquele que aproxima Rancière de Arendt, sendo a oposição, no essencial, uma oposição de Arendt a si mesma. Em Aux bords du politique (1990), Rancière dá-nos uma caracterização da democracia através da distinção entre Demos e Ochlos — «A democracia só existe na medida em que Demos existe como poder de dividir Ochlos.» (Rancière, 1990: 32) Demos, que equivale à palavra latina Populus, e corresponde à assembleia popular, povo unido em assembleia; Ochlos, que significa o contrário, no sentido em que consiste numa multidão desorganizada, desprovida de qualquer referência a um princípio comum, digamos de bem comum. Numa aproximação a categorias

actuais, Ochlos opõe-se a Demos, como os excluídos aos incluídos. A democracia procede a um resgate para a inclusão cidadã de partes excluídas da multidão sob um pressuposto igualitário. Este pressuposto de igualdade, dado como ponto de partida e não visado como ponto de chegada, impondo pois uma rotação do articulado conceptual, releva de um movimento que a História da Filosofia frequentes vezes produz — por exemplo, a deslocação que Aristóteles propõe dos eidoi platónicos ante re para dentro das coisas in re, ou todas as revoluções copernicanas que, de uma maneira ou de outra, implicaram uma reorganização da percepção dos conceitos. No caso de Rancière, é a relação com a ideia de igualdade, percebida já não como telos mas como pressuposto, o que, revolucionando a posição relativa dos conceitos, vem montar um novo ponto de vista sobre o que é o fenómeno político. A experiência de igualdade do ladrilhador que contempla esteticamente as vistas em seu redor, fendendo a partilha do sensível, e negando nesta a ausência de vazio, tem por contrapartida um regime estético da arte, que desierarquiza os temas e os géneros. Por exemplo, a literatura de Flaubert que trata igualitariamente todos os temas, dos mais nobres ao de uma simples criada adúltera. Os temas democratizam-se na literariedade, bem como a circulação das palavras, reapropriáveis por todos de todas as maneiras, em contraste com a oralidade e a sua pretensão a maior genuinidade. A igual dignidade dos temas literários e artísticos, e dos modos de reapropriação, é ainda acompanhada pelo aparecimento de novas for- mas de artes, com meios mais adequados à condição indiferente e anónima dos temas. A emancipação sob o pressuposto igualitário realiza-se como emancipação do anónimo, através da constituição de um novo regime de partilha do sensível: «Que o anónimo seja não apenas susceptível de receber um tratamento artístico, mas também portador de uma beleza específica, é algo que

caracte- riza o regime estético das artes.» (Rancière, 2000: 36)

A palavra, designadamente a palavra escrita, e, em particular, a escrita literária, é veículo da hipótese igualitária no movimento emancipador que caracteriza a política. Por isso, concluirá Rancière, de forma particularmente bem conseguida, que «o homem é um animal político porque é um animal literário que foge ao seu destino “natural»” por se deixar desencaminhar pelo poder das palavras» (Rancière, 2000: p. 46). Neste sentido, o destino da democracia também depende do destino da palavra que a nomeia, dos seus usos e da luta pelas suas apropriações. Penso que o próprio das noções políticas não é que elas sejam mais, ou me- nos, polissémicas; é que elas sejam o objecto de uma luta. A luta política é também a luta pela apropriação das palavras. (Rancière, 2009b: 97)

E, com efeito, o que mais se espera na ordem do consenso democrático que vigora no mundo ocidental é propor à reflexão o mote da democracia como uma consensualização, ou uma colecção de múltiplos modos de consensualização, que se integrem no mesmo trabalho de superação não violenta dos diferendos, como se o segredo da palavra «democracia» fosse um algoritmo de desintensificação de conflitos, o que, no entanto, de modo nenhum vale como sua resolução. Mesmo ideias de cidadania e participação cidadã tendem a ser teorizadas sob o pressuposto de uma dissensão que haveria de se dissolver com a receita que a democracia proporciona. Mas esta não é mais do que uma via de supressão da política, deixada absorver pela logique policier. Para Rancière, há uma luta pela palavra «democracia» e que a perfila não como instrumento da ordre policier, mas, pelo contrário, como

resistência que impede a transformação da política em police (Rancière, 2009b: 98). Pela consensualização, entendida como forma processual da democracia, e pela sua própria consensual instituição, a democracia vive-se hoje como abandonada: é uma democracia sem democratas nem democratismo, tão consensual na forma que, em substância, limita o seu alcance ao de um procedimento protocolar. E é uma democracia que se receia e se vigia e que, por isso, mantém com o seu democratismo uma relação desfasada, quase onírica. Os democratas erram como apátridas pelos meios ainda desorganizados do online, ou pelas referências anacrónicas a passados de emancipação. Este abandono e esta vigilância que as nossas democracias se impõem atesta-se linguisticamente: o nome «democracia» não deve conviver com adjectivações «democráticas», nem com os substantivos «democrata» e «democratismo». Redemocratizar a democracia é repopulá-la com palavras de divergência inesperadamente na boca daqueles que não têm parte. Trazer a palavra de novo à luta política e a luta política à palavra «democracia». A irredutibilidade da politique à police como palavra de ordem da democracia joga-se na figura do democrata, precisamente aquele de que os discursos dominantes desconfiam, figura que aposta na hipótese da confiança entre homens. Esta hipótese, da confiança, liga-se, em Rancière, à da emancipação, como um duplo reenvio que confere significado à própria hipótese do comunismo. O pressuposto de igualdade que move a emancipação actualiza-se na confiança entre os sujeitos. A confiança começa realmente onde deixa de ser possível garantila ou deduzi-la e, por essa mesma razão, também controlá-la. É, por isso, a instância relacional que, em última análise, escapa sempre ao poder da ordre policier. A confiança é abertura ao outro, em quem se confia e a quem se confia algo ou alguém, abertura não tanto no sentido do encontro, mas do outro nos tomar o lugar por nossa vontade. E este é o ponto, o de um voluntarismo

derradeiro, que os consensos tendem a reduzir a ruído, entropia e desequilíbrio, mas sem o qual dificilmente a ideia de emancipação permaneceria pensável. Num importante ensaio onde contrapõe «comunismo do intelecto» e «comunismo da vontade», Peter Hallward explicita de modo cabal esta radicação da emancipação no voluntário: Entendido neste sentido, podemos dizer que o comunismo procura possibilitar a conversão do trabalho em vontade. O comunismo pretende completar a transição, através da luta pela autoemancipação colectiva, de uma necessidade sofrida para uma autodeterminação autónoma. É o esforço de- liberado, a uma escala histórica mundial, para universalizar as condições materiais sob as quais a acção voluntária livre pode prevalecer sobre o trabalho ou a passividade involuntários. (Hallward, 2009: 117)

O movimento emancipatório em face da ordem da «necessidade sofrida» e em vista a uma autodeterminação não pode deixar de ser lido como movi- mento que arranca da contrariedade, ou seja, da oposição ao voluntário, isto em vista de uma liberdade que, emancipando, liberta da contrariedade. É difícil compreender a emancipação de outro modo que não um movimento voluntário em vista de uma vontade autodeterminada, ou ainda, seguindo a expressão de Peter Hallward, em vista da conversão do trabalho em vontade. É por a emancipação não se sustentar sem vontade que uma democracia abandonada, sem a vontade de democratas, se torna o referente de uma palavra já vencida pela dominação. ⎯ Referências: ⎯ Hallward, Peter (2009). Communism of the intellect, Communism of the will. In On the Idea of Communism (13-15 Mar. 2009) London, U.K. ⎯ Rancière, Jacques (1990) [1998]. Aux bords du politique. Paris: La Fabrique.

⎯ (2000) [2010]. Estética e Política — A Partilha do Sensível. Trad.: Vanessa Brito. Porto: Dafne. ⎯ (2008) [2010]. O Espectador Emancipado. Trad.: José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negro. ⎯ (2009). Moments politiques — Interventions 1977-2009. Paris: La Fabrique. ⎯ (2009b). Les démocraties contre la démocratie. In AA.VV. (2009). Démocratie — Dans quel état? Paris: La Fabrique.  

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