SENSIBILIDADE GAY E PSICANÁLISE

June 20, 2017 | Autor: Hugo F Nogueira | Categoria: Teoría Queer, Psicanálise e Feminilidade, Literatura E Psicanálise
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

Hugo Francisco Ramos Nogueira

SENSIBILIDADE GAY E PSICANÁLISE

Rio de Janeiro 2008

HUGO FRANCISCO RAMOS NOGUEIRA

SENSIBILIDADE GAY E PSICANÁLISE

Dissertação apresentada ao curso de PósGraduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Área

de

concentração:

Subjetividade

Práticas da Ciência da Saúde.

Orientador: Antonio Quinet

Rio de Janeiro 2008

nas

Nogueira, Hugo Francisco Ramos Nnnna Sensibilidade Gay e Psicanálise / por Hugo Francisco Ramos Nogueira. — 2009. XIII, 62 f.; 30 cm Digitado (original) Dissertação (mestrado em Psicanálise) — Universidade Veiga de Almeida, Departamento de Psicologia, Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2009. “Orientação: Prof. Dr. Antonio Quinet, Curso Psicanálise, Saúde e Sociedade”. 1. Sensibilidade Gay. 2. Sublimação. 3. Homossexualidade. 4. Arte. Dissertações acadêmicas. I. Quinet, Antonio (orientador). II. Universidade Veiga de Almeida, Departamento de Psicologia, Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro. I. Título. CDD —

.

3

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Hugo de Castro Nogueira e Rita de Cássia Ramos Nogueira, por sempre me apoiarem. Agradeço ao meu orientador Antonio Quinet por ter possibilitado escrever a dissertação com um tema para o qual o vetor do meu desejo apontava. Agradeço a Maria Anita e Marco Antônio pelo carinho e atenção dispensados na qualificação. A Glória Sadala pela compreensão durante o percurso do mestrado.

―Eu estou com aqueles que acreditam nos prazeres livres, eu participo das orgias noturnas dos rapazes, Danço com os dançarinos e bebo com quem bebe, Nossos chamados indecentes ecoam, eu escolho um marginal para ser meu melhor amigo, Ele deve ser criminoso, rude, iletrado, ele deve ter sido condenado, Não vou mais fingir, por que devo me exilar dos meus companheiros? Ó pessoas rejeitadas, pelo menos eu não as rejeito, Eu me atiro à sua companhia, eu serei o seu poeta, Serei mais para vocês do que para o resto.‖ Walt Whitman

RESUMO

O principal propósito desse trabalho é propor uma interrogação sobre o conceito de sensibilidade gay a partir do que Freud desenvolve a respeito da homossexualidade e da criação artística. Para atingir esse objetivo, este estudo analisou os conceitos freudianos de bissexualidade, pulsão e sublimação, e os conceitos de sensibilidade gay e sensibilidade camp.

Palavras-chave: bissexualidade, sensibilidade gay.

pulsão,

sublimação,

sensibilidade

camp,

ABSTRACT

The main purpose of this dissertation was to establish a dialogue between Psychoanalysis and Gay Sensibility. To accomplish its goals, this study analyzed the ideas of gay sensibility and camp sensibility, the Freudian concepts of bisexuality, sublimation, drive, and also the link between Psychoanalysis and Art.

Keywords: gay sensibility, bisexuality, drive, sublimation, camp sensibility, art.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1, p. 33: São João Batista de Leonardo Da Vinci, 1513-1516. Óleo sobre Madeira, 69 × 57 cm. Museu do Louvre, Paris.

Figura 2, p. 37: Apollo Belvedere de Leocarés, 330 a.C. Estátua em mármore. Museu Pio Clementino, Vaticano.

Figura 3, p. 37: Júpiter beija Ganimedes de Anton Raphael Mengs, 1758-1760. Afresco reportado sobre tela, 178,7 X 137,5. Palazzo Barberini, Roma.

Figura 4, p. 38: O rapto de Ganimedes de Michelangelo, 1532. Carvãozinho, 19 X 26 cm. Royal Library, Windsor.

Figura 5, p. 39: Narciso de Mestre Valentim, 1785. Estátua em bronze. Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Figura 6, p. 39: Recompensa de São Sebastião de Eliseu D’Angelo Visconti, 1897. Óleo sobre tela, 218 X 133 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO

12

1 HOMOSSEXUALIDADE E ARTE EM FREUD

16

1.1 A HOMOSSEXUALIDADE NA VIRADA DO SÉCULO XX

16

1.2 PSICANÁLISE, BISSEXUALIDADE E HOMOSSEXUALIDADE

19

1.3 A SUBLIMAÇÃO: UM DOS DESTINOS DA PULSÃO

23

1.4 PSICANÁLISE, ARTE E HOMOSSEXUALIDADE

30

1.4.1 Leonardo da Vinci e a Sublimação

32

2 SENSIBILIDADE GAY

36

2.1 STONEWALL: A REVOLUÇÃO GAY

40

2.2 O DISCURSO SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE E A IDENTIDADE GAY

40

2.2.1 Anos 1990: gays e queers

43

2.2.1.1 Modelos de identidade gay: essencialistas e construcionistas

44

2.3 SENSIBILIDADE CAMP

46

2.4 SENSIBILIDADE GAY PROPRIAMENTE DITA?

50

2.4.1 Ditadura, mídia e homossexualidade

51

2.4.1.1 ... a abertura

52

2.4.2 A homossexualidade e sua repercussão na arte

53

3 SENSIBILIDADE GAY E PSICANÁLISE

58

CONCLUSÃO

61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

63

13

INTRODUÇÃO Propomos neste trabalho investigar, utilizando como interlocutor privilegiado Sigmund Freud, se a produção artística dos homossexuais tem algo de específico. Mesmo sabendo que essa não é uma questão propriamente psicanalítica, acreditamos poder pensá-la com a psicanálise, pois esta partiu justamente das teorias da sexualidade para desenvolver seus conceitos fundamentais e, tendo em vista que a homossexualidade e as discussões políticas e culturais fazem parte da contemporaneidade, a psicanálise precisa estar sempre aberta às questões de seu tempo. Segundo Freud (1908a, p. 195), no texto ―Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna‖, os homossexuais possuem maior capacidade para a sublimação cultural: ―(...) A constituição das pessoas que sofrem de inversão — os homossexuais — distingue-se amiúde pela especial aptidão do seu instinto sexual para a sublimação cultural.‖ Essa frase, que nos pareceu misteriosa e instigante ao surgir citada durante o curso de mestrado, quando estudávamos o conceito de sublimação na obra freudiana, definiu o tema desta dissertação. Ao propormos o diálogo entre formulações sobre sensibilidade gay oriundas de diversos campos de conhecimento e a psicanálise, nosso objetivo é estabelecer um possível diálogo entre homossexualidade e arte e investigar de que forma o desejo e o olhar estão implicados nessa relação, para além da biografia dos artistas e do que está representado em seus quadros. Partimos, para elaborar esta dissertação, do esclarecimento da visão freudiana sobre a homossexualidade. O que é a homossexualidade para Freud? Para

responder

a

essa

pergunta,

estudaremos,

no

primeiro

capítulo,

a

bissexualidade em Freud e um dos principais destinos da pulsão: a sublimação. Freud, ao trabalhar o caso Schreber (FREUD, 1911), fala em uma pulsão homossexual. Contudo, nos perguntamos se mesmo nesse caso trata-se realmente de uma pulsão homossexual, pois, para Freud, a questão da homossexualidade e da heterossexualidade está circunscrita pela temática da bissexualidade. A escolha de objeto é atravessada pela ideia da bissexualidade. A concepção universal da sexualidade oposta ao racismo das aberrações sexuais é inerente a toda teorização de Freud, e não podemos esquecer que ele escreveu ―Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade‖ (1905) no auge do racismo

14 capitaneado pela ciência, com a medicina e seus ditames sobre normalidade e seus desvios, e pela polícia — culminando no massacre aos homossexuais infligido pelo nazismo nos anos 1930. Nesse livro, Freud (1905) afirma que a homossexualidade está presente em pessoas que se destacam por um desenvolvimento intelectual e uma cultura ética particularmente elevada. Como exemplo, nos povos antigos, entre os quais, no auge de sua cultura, a homossexualidade1 era um fenômeno frequente, quase que uma instituição dotada de importantes funções, como a de instrução dos homens mais novos pelos mais velhos. Em uma nota de rodapé nesse texto, Freud acrescenta que convém admitir com os porta-vozes da homossexualidade que alguns dos homens mais destacados de que temos notícia eram homossexuais. (FREUD, 1905, p. 139). Em nenhum momento Freud propõe uma conversão da homossexualidade em heterossexualidade. Apesar de a homossexualidade ser crime punido até mesmo com a morte, Freud, ao contrário de Reich e de Jung, nunca rejeitou pacientes homossexuais (BOCOCK, 1983, p. 65). Ele se opôs à ideia de que a homossexualidade pudesse ser isolada, como era proposto por Karl Heinrich Ulrichs e Magnus Hirschfeld, contudo apoiava politicamente o fim da perseguição contra os homossexuais baseado nas teorias desses teóricos (ROBINSON, 2002, p. 275). Aliás, esse é o dilema de toda política baseada em uma identidade, o de conceituar o sujeito por um significante que marca uma única característica sua para defini-lo inteiramente. Os movimentos feministas e de luta pelos direitos civis dos negros também enfrentam esse problema. A concepção universal da sexualidade de Freud é oposta à constituição de minorias. Freud rompeu com a medicina psiquiátrica e avançou teoricamente no trato do sexual, desvinculando-se do preconceito imaginário da época e introduzindo as ideias de bissexualidade, pulsão, sexualidade infantil e disposição perversopolimorfa. O sujeito é sexual e a homossexualidade passa a ser questão a ser esclarecida, tanto quanto a heterossexualidade, pois a relação sexual, enquanto prédeterminada entre pulsão e objeto, não existe. (MARQUES, 2008). Do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo do homem por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado. (QUINET, 2004).

1

Nesse texto Freud utiliza os termos ―inversão‖ e ―uranismo‖ para designar a homossexualidade.

15 Em ―Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância‖, Freud (1910a) sublinha que a investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular (um terceiro sexo). Ele explica que a psicanálise constatou a capacidade de todos os seres humanos realizarem a escolha de um objeto homossexual, e que de fato a consumam no inconsciente. No mesmo ano, nas ―Cinco lições de psicanálise‖, Freud (1910b) diz que a equivalência primitiva dos sexos como objeto sexual pode conservar-se, e disso se originará no adulto uma tendência homossexual capaz de chegar a certas circunstâncias, até a da homossexualidade exclusiva. A homossexualidade, para Freud, é uma escolha inconsciente de objeto do mesmo sexo. Em ―Um estudo autobiográfico‖, Freud (1925) sustenta o não-julgamento de valores pela psicanálise quanto à sexualidade. A homossexualidade pode ser remetida à bissexualidade constitucional de todos os seres humanos e aos efeitos secundários da primazia fálica. A psicanálise permite-nos apontar para um vestígio ou outro de uma escolha homossexual em todos os indivíduos. Se eu descrevi as crianças como ‗polimorficamente perversas‘ estava apenas empregando uma terminologia que era geralmente corrente; não estava implícito qualquer julgamento moral. A psicanálise não se preocupa em absoluto com tais julgamentos de valor. (FREUD, 1925, p. 52).

Em 1935, em ―Carta para uma mãe americana‖, Freud afirma que a homossexualidade não é uma vantagem nem uma desvantagem, ―ela não é motivo de vergonha, não é uma degradação, não é um vício e não pode ser considerada uma doença.‖ (FREUD, 1935 apud GAY, 1989, p. 551) De onde podemos deduzir que, para Freud, a homossexualidade, em sua essência, não difere da heterossexualidade. Nessa carta, Freud explicita bem que não propõe uma cura para homossexuais. A cura da psicanálise é uma só para todos: ―harmonia, paz de espírito e eficiência‖ (Idem). Em ―Análise terminável e interminável‖, Freud (1937) sublinha: É bem sabido que em todos os períodos houve como ainda há pessoas que podem tomar como objetos sexuais membros de seu próprio sexo, bem como do sexo oposto, sem que uma das inclinações interfira na outra. Chamamos tais pessoas de bissexuais e aceitamos sua existência sem sentir muita surpresa sobre elas. Viemos, a saber, contudo, que todo ser humano é bissexual nesse sentido e que sua libido se distribui, quer de maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos os sexos. (FREUD, 1937, p. 277).

16 No segundo capítulo, estudaremos a sensibilidade camp cuja relação com a psicanálise será sugerida. O homoerotismo sempre foi expresso na arte, embora a história da arte ignorasse esse elemento como relevante para o estudo das obras. Só com o aparecimento de artistas gays assumidos e com obras de temática explicitamente gay, como Andy Warhol, David Hockney e Francis Bacon, os críticos e historiadores se viram na obrigação de discutir a questão. Ainda mais relevante foi o desenvolvimento do movimento gay que levou à constituição do que se entende por sensibilidade gay ou uma cultura gay, surgiu uma compreensão do conjunto da produção de artistas gays e também dos códigos de comunicação entre os gays. Esses pontos serão desenvolvidos ao longo da dissertação, e, finalmente, no terceiro capítulo será proposta uma relação entre a psicanálise e a sensibilidade gay. Ressalte-se que o estudo da homossexualidade proposto nesta dissertação possui motivação política, devido à perseguição que os homossexuais sofreram e continuam sofrendo. Estudar a homossexualidade sem mencionar o preconceito sofrido pelos homossexuais é ignorar o potencial da produção de conhecimento na luta contra a discriminação. Portanto, este trabalho espera contribuir para a diminuição da homofobia.2

2

Durante o regime nazista, por exemplo, 55.000 homossexuais foram condenados à morte.

16

1 HOMOSSEXUALIDADE E ARTE EM FREUD As

teorias

são

produções

historicamente

determinadas e,

portanto,

contextuais e sujeitas a transformações. A investigação teórica implica sempre na consideração das determinações históricas atuantes no momento de emergência da teoria e no seu desenvolvimento contínuo de construção. Nesse sentido, a produção de conhecimento sobre a constituição do sujeito em psicanálise requer, necessariamente, a consideração do social do qual participa como instituído e instituinte, e exige o reconhecimento da relação de retroalimentação existente entre o sujeito humano e as condições sociais e históricas em que se constitui.

1.1

A HOMOSSEXUALIDADE NA VIRADA DO SÉCULO XX

Vigorava na Alemanha da época de Sigmund Freud o Parágrafo 175, medida do Código Criminal Germânico que, de 15 de maio de 1871 a 10 de março de 1994, determinava como punição até quatro anos de prisão e perda da cidadania os homens que fossem acusados de ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. Entre 1933 e 1945, com o advento do nazismo, 100 mil homens foram detidos por homossexualidade. Alguns foram para prisões e outros encaminhados aos campos de concentração. (GIERSDORF, 2000, p. 600). Destes, cerca de quatro mil sobreviveram e, hoje, menos de 10 desses homens estão vivos. No filme Paragraph 175,3 cinco deles contaram suas histórias pela primeira vez, relatando torturas e execuções. Também foi escrita uma peça, Bent, de Martin Sherman,4 inspirada no envio dos homossexuais para os campos de concentração, e adaptada para o cinema por Sean Mathias.5

3

Dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman. Channel Four Films, 2001. Dirigida por Luiz Furlanetto. Elenco: Allan Souza Lima e Augusto Zacchi. Teatro João Caetano, Rio de Janeiro. 2008. Dados da montagem que assistimos. 5 Arts Council of England, 1998 4

17 Na Inglaterra, a homossexualidade, do mesmo modo, sofria proibição. Ficaram famosos o julgamento e a condenação do escritor Oscar Wilde, em 1895, a dois anos de prisão com trabalhos forçados, sob a acusação de praticar sodomia com Lorde Alfred Douglas (que criou a expressão ―o amor que não ousa dizer o seu nome‖ em um poema como referência à homossexualidade). Wilde era um dramaturgo de sucesso e a sua humilhação pública provocou um escândalo, que retardou em muitos anos o desenvolvimento da emancipação homossexual na Inglaterra. (FRY, 1983, p. 82). O termo homossexualidade, criado por Richard Burton, passou a ser conhecido em língua inglesa com Henry Havelock Ellis (1859-1939). (STOCKTON, 2000, p. 274-5). Ele foi o responsável pelo estabelecimento de um meio-termo entre as concepções da homossexualidade como inata, de Richard von Kraft-Ebing (18401902), e adquirida e tratável, de Albert von Schrenk-Notzing (1862-1929). Ellis e Freud admiravam-se e trocavam cartas. Do ponto de vista dos direitos humanos, Havelock Ellis é comumente reconhecido como o autor que forneceu os argumentos mais positivos em relação à descriminalização da homossexualidade. Supomos que o aparecimento do termo tenha permitido a reivindicação de direitos por parte dos homossexuais. Seu livro Sexual Inversion foi publicado primeiro na Alemanha, em 1897; ao ser lançado na Inglaterra, a família de John Addington Symonds, colaborador na publicação, destruiu todos os exemplares. Na segunda vez em que o livro foi editado, um livreiro foi processado por vendê-lo (STOCKTON, 2000, p. 274). Ellis para exemplificar a ―inversão sexual‖, citou sua presença em homens com uma capacidade intelectual excepcional, como Michelangelo, Whitman, Muret e Verlaine, criando uma tradição entre os homossexuais de reivindicar o pertencimento a essa linhagem de homossexuais célebres. Kraft-Ebing, um dos sexólogos com quem Freud dialoga nos ―Três ensaios sobre a teoria da sexualidade‖ (1905), disse que os uranistas (homossexuais) apresentam, na maioria dos casos, disposição brilhante para a arte, especialmente música, poesia, entre outros. Psiquiatra que condenava todos os atos sexuais, especialmente a masturbação, com exceção do coito heterossexual, Kraft-Ebing acreditava paradoxalmente que a homossexualidade era uma anomalia congênita, mas que a maioria dos homossexuais era feliz desde que tivessem liberdade para satisfazer seus instintos, denominados por ele de ―sensações sexuais contrárias‖

18 (termo criado pelo psiquiatra Carl Westphal (1833-1890), em 1870) (STOCKTON, 2000, p. 522; HUTTER, 2000, p.,946). É interessante destacar que Foucault (1997) marcou a criação desse termo, ‗sensações sexuais contrárias‘, como o nascimento do conceito de homossexual. Em suas palavras: É necessário não esquecer que as categorias psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade constituíram-se no dia em que foi caracterizada — o famoso artigo de Westphal em 1870, sobre as ‗sensações sexuais contrárias‘ pode servir da data natalícia — menos como um tipo de relações sexuais do que como uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de inverter, em si mesmo, o masculino e o feminino. A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferido da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie. (FOUCAULT, 1997, p. 50-1).

Karl Heinrich Ulrichs (1825-1895), advogado e teólogo, cunhou o termo ―uranismo‖, utilizando-o para designar a homossexualidade. O vocábulo provém de Platão, que proclamou a deusa Afrodite Urânia a padroeira do amor entre pessoas do mesmo sexo. Ulrichs considerava a homossexualidade inata — o termo ―uranistas‖ foi adotado posteriormente por poetas do final do século XIX na Inglaterra para designar o amor homossexual e, em particular, a pederastia. O jurista foi o primeiro a reivindicar o fim da perseguição aos homossexuais na Alemanha, em 1864, e foi declarado (MOSSE, 1985, p. 136). Iwan Bloch (1872-1922), com quem nasce o conceito de sexologia em 1907 em uma referência em seu livro A vida sexual de nosso tempo, acreditava que as vibrações da modernidade levavam à homossexualidade. Segundo Mosse (1985), Bloch defendia que a homossexualidade era adquirida, e não resultado de causas biológicas, como sugeriam Magnus Hirschfeld e Kraft-Ebing. Ao início de seu trabalho, preconizava a possibilidade de prevenção da homossexualidade, assim como seu tratamento, a exemplo de Schrenk-Notzing. De acordo com seus pressupostos, crianças não deviam ter acesso à literatura homossexual, pois o Parágrafo 175 era preciso, e cada homossexual constituía um potencial criador de novos homossexuais. Bloch somente mudou de atitude em relação à homossexualidade em 1908, quando passou a classificá-la em real (inata) e falsa (comportamento adaptado) (SCHÜKLENK, 2000, p. 126). A partir de então, irrompeu a defender que a maioria

19 dos homossexuais é saudável, não sofre de doenças genéticas e é fisiologicamente e psicologicamente normal. Segundo seus estudos, o estresse diagnosticado por ele em muitos homossexuais era consequência do isolamento social e da discriminação, não da homossexualidade. Tornou-se também um dos psiquiatras defensores do fim do Parágrafo 175, e propôs que homossexuais famosos se assumissem como forma de combater os preconceitos da sociedade. Por fim, combinou o caminho do meio entre inato e adquirido, proposto por Ellis, com a idéia de Kraft-Ebing de que os homossexuais são felizes desde que possuam liberdade para exercer sua sexualidade, indo além dessa idéia ao deixar de considerar a homossexualidade uma anomalia (Idem). Em nota acrescentada aos ―Três ensaios...‖, Freud (1905, p. 139) diz que foi graças a Bloch que a homossexualidade saiu do campo da patologia para o da antropologia. O segundo momento de Bloch foi o que influenciou Freud; pois a nomeação que fez de homossexuais famosos, como Platão, Leonardo da Vinci e Michelangelo, na ―Carta a uma mãe americana‖ (FREUD, 1935 apud GAY, 1989), foi uma maneira de tirar do armário, isto é, expor figuras importantes com vistas a combater os preconceitos da sociedade, como sugeriu Bloch. Podemos deduzir que as questões sexuais eram de grande interesse aos estudos científicos no final do século XIX. Antenado com seu tempo, Freud, no início do século XX, fez uma grande revolução ao retirar o homem do centro de sua morada através da noção de inconsciente. Com o estudo da sexualidade a partir de seu trabalho junto às pacientes histéricas, Freud inventa a psicanálise e abre uma perspectiva

no

pensamento

sobre

o

comportamento

sexual

humano,

e

consequentemente sobre a homossexualidade, jamais feita até então.

1.2 PSICANÁLISE, BISSEXUALIDADE E HOMOSSEXUALIDADE Freud

se

homossexualidades.

utiliza

da

Em

―As

idéia

da

fantasias

bissexualidade histéricas

e

sua

para

tratar

relação

com

das a

bissexualidade‖, propõe uma complexificação das relações entre a natureza dos sintomas histéricos e o fator sexual. Ele afirma que diversos sintomas possuem "duas fantasias sexuais, uma de caráter feminino e outra de caráter masculino. Assim uma dessas fantasias origina-se de um impulso homossexual" (FREUD, 1908b, p. 168). Portanto, os sintomas histéricos revelariam, por um lado, uma

20 fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, uma feminina. O caráter bissexual dos sintomas histéricos confirmaria a existência de uma disposição bissexual inata no ser humano. O recurso à bissexualidade aparece de forma contundente quando o autor esboça suas primeiras elaborações teóricas acerca da homossexualidade. Assim, nos ―Três ensaios...‖, Freud (1905) afirma que algum nível de hermafroditismo anatômico estabelece a norma: em todos os indivíduos não faltam vestígios do aparelho sexual do sexo oposto, que persistem em forma de órgãos rudimentares sem nenhuma função ou que se transformaram para desempenhar diferentes funções. Tais fatores auxiliaram Freud a elaborar sua concepção de uma predisposição originária bissexual no indivíduo que se transformaria, ao longo do desenvolvimento, em monossexualidade. Para Freud (1905 apud VIEIRA, 2006), parece sugestivo transpor essa concepção anatômica do hermafroditismo para o campo psíquico e explicar as multifaces da homossexualidade como expressão de um hermafroditismo psíquico. Em nota de rodapé acrescentada em 1915 aos ―Três ensaios...‖, Freud (1905) reafirma suas observações ao ressaltar que a psicanálise considera que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base original da qual, mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o homossexual. Em outra nota, também acrescida em 1915 aos ―Três ensaios...‖, Freud afirma que a noção de bissexualidade é fator fundamental para a compreensão das manifestações sexuais, tanto no homem, quanto na mulher, e esclarece os conceitos ―masculino‖ e ―feminino‖ (FREUD, 1905, p. 146-7). O que é importante destacar é a insistência em marcar a diferença entre a opinião comum e os estudos científicos da psicanálise. Masculino e feminino, para o fundador da psicanálise, devem ser entendidos por pelo menos três aspectos: o primeiro relaciona-se a concepção de atividade e passividade; os dois últimos referem-se aos aspectos biológico e sociológico. Esclarece que o primeiro aspecto seria essencial para a psicanálise, pois dele deriva a afirmação de que a libido é masculina, isto é, 'ativa', ainda que estabeleça para si fins 'passivos'. Finalmente, utilizando o linguajar da sua época em que tinha que tomar o vocabulário da ciência e se referir à anatomia para ser escutado, Freud (1905 apud VIEIRA, 2006) conclui

21 que o ser humano possui "uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto e uma conjugação de atividade e passividade". Freud (1905) equivale masculino com atividade, e feminino com passividade, porém ele mesmo demonstra que a pulsão pode ser ativa e passiva. Por exemplo, na pulsão oral existe o chupar e o ser chupado como uma atividade pulsional constante seja no pólo passivo ou no pólo ativo. Lacan (1964) afirma, com relação à pulsão em seu aspecto atividade-passividade, que Freud [o] emprega para nos fazer sacar o vaivém do movimento pulsional, (...) mas não poderíamos reduzi-la pura e simplesmente a uma reciprocidade. (...) Cada um dos três tempos, a, b, c, com que Freud articula cada pulsão, importa substituir a fórmula do se fazer ver, ouvir, (...). Isso implica fundamentalmente atividade (...). Mesmo em sua pretensa fase passiva, o exercício de uma pulsão masoquista, por exemplo, exige que um masoquista trabalhe feito um burro. (LACAN, 1964, p. 188).

Lacan (1964) postula uma ―montagem‖ da pulsão. Enfatiza que a pulsão não é organizada pela polaridade sexual, não ocorrendo relação entre a pulsão, a satisfação pulsional e a oposição macho e fêmea. Não há a oposição passivo-ativo designada por Freud. Ele observou que o terceiro tempo da pulsão é eminentemente ativo e o denominou de tempo do ―fazer-se‖, ou seja, é o bebê que procura fazer-se comer, fazer-se olhar, fazer-se ouvir. O bebê não é passivo na situação, ele a provoca; ele busca ser olhado, ser ouvido. Assim, Lacan com a expressão ―fazer-se‖ define a fórmula emblemática da pulsão. Portanto, podemos pensar que é completamente inapropriado transportar as denominações ―ativo/passivo‖ para designar o comportamento sexual dos homossexuais. A partir da problemática da feminilidade, nos anos 1930, Freud (1931; 1933 [1932]a) relê suas observações e afirma que "a distinção masculino/feminino associado a homem e mulher, nós a fazemos por mera docilidade a anatomia e a convenção. Não é possível dar nenhum conteúdo novo ao conceito de masculino e feminino. Esta distinção não é psicológica – quando vocês dizem masculino, em geral pensam em ativo, e passivo quando dizem feminino" (FREUD, 1933 [1932]a), p. 142). A concepção do feminino em Freud é muito complexa, a ponto de ele ter designado o feminino como um ―continente negro‖ (FREUD, 1926, p. 242), apontando para uma dissimetria entre o masculino e o feminino em sua obra. Freud (1905 apud VIEIRA, 2006) critica as influências dos costumes sociais nas formulações sobre a sexualidade. Os corpos bissexualmente construídos são

22 nada mais nada menos do que a resposta a uma demanda cultural. A cultura, e não a anatomia seria a base das afirmações referentes às noções de homem/mulher, masculino/feminino, ativo/passivo, heterossexualidade/homossexualidade. Portanto, o conceito de pulsão é uma das vias privilegiadas para subverter o binarismo sexual e identitário, contraponto de uma verdadeira identidade do sujeito forjada pela divisão sexual e binária, com suas implicações hierarquizantes e assimétricas. Ao privilegiar a pulsão no seu aspecto variável e quantitativo, podemos pensar que o processo de subjetivação se dá a partir da ação. Pois as pulsões são forças devendo ser concebidas como quantidades de energia dinâmica que não remetem a nenhuma essência ou suporte estável identitário. Dito de outra forma, não haveria um sujeito que antecederia a ação, este se constituiria na própria ação. Portanto, de acordo com Vieira (2006), abre-se um caminho para romper com os binarismos e pensar as sexualidades, os gêneros e os corpos de uma forma plural, múltipla e plástica. Evitando operar com os dualismos, que acabam por manter a lógica da subordinação. Quando Freud trata do complexo de Édipo completo, na segunda tópica6, ele insere a bissexualidade, portanto, a homossexualidade, em seu próprio âmbito. Tanto o menino quanto a menina ocupam as duas posições em relação aos pais: a posição de sujeito de desejo, tendo a mãe como objeto, e de objeto de desejo para o pai. Ou seja, a menina tem a mãe como objeto de desejo e o menino se coloca como objeto de desejo do pai. Nas palavras de Freud (1923): Um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade originalmente presente na criança. Isto equivale a dizer que um menino não tem simplesmente uma atitude ambivalente para com o pai e uma escolha objetal afetuosa pela mãe, mas que, ao mesmo tempo, também se comporta como uma menina e apresenta uma atitude afetuosa feminina para com o pai e um ciúme e uma hostilidade correspondentes em relação à mãe. (FREUD, 1923, p. 47)

Lancemos, pois a pergunta: quais os destinos possíveis para a pulsão (bi)sexual?

6

A partir dos anos 1920 as formulações freudianas passam a considerar o aparelho psíquico em uma estrutura dinâmica com os conceitos de Id, eu e supereu. Antes, na primeira tópica, era dividido em consciente, pré-consciente e Inconsciente.

23

1.3 A SUBLIMAÇÃO: UM DOS DESTINOS DA PULSÃO A psicanálise contribuiu muito para uma desnaturalização dos discursos sobre o corpo, a sexualidade e o desejo, na medida em que criou o conceito de pulsão, permitindo pensar os destinos da sexuação para além do determinismo anatômico e fálico-édipico. Seu arcabouço teórico efetuou uma crítica contundente à concepção da sexualidade no século XIX. Para esta concepção, a sexualidade estaria submetida ao registro instintual e biológico, dependente da maturidade das gônadas e da produção dos hormônios sexuais. Enquanto instintiva, a sexualidade estaria amarrada a um único objeto sexual pré-fixado pela natureza: a eroticidade limitar-seia aos órgãos genitais, seguramente, do sexo oposto, na medida em que possibilitaria a finalidade suprema da reprodução da espécie. Com o advento da psicanálise, a genitalidade foi destronada do espaço que detinha no imaginário científico do século XIX. Freud colocou por terra qualquer ordenação preestabelecida da sexualidade, bem como a opinião corrente da existência de uma suposta relação natural de atração e complementaridade entre os sexos. Nada na sexualidade está garantida, a pulsão sexual pode investir os mais diferentes objetos que lhe causam prazer, ela é assim variável, múltipla e dissociada da genitalidade (NERI, 2005). Tomemos como ponto de partida para o estudo da pulsão, no que interessa ao estudo da relação entre pulsão e homossexualidade, o que Freud (1905) afirmou, nos ―Três Ensaios...‖: a investigação sobre a origem da homossexualidade não é o que de mais importante a psicanálise vai ter como tarefa, e sim que (...) imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação entre a pulsão sexual e o objeto sexual. A experiência obtida nos casos considerados anormais nos ensina que, neles, há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em consequência da uniformidade do quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto. É provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco 7 deve ela sua origem aos encantos deste. (FREUD, 1905, p. 148-9).

Ao propor ―afrouxar o vínculo entre a pulsão e o objeto‖, o foco recai sobre a pulsão. O sujeito é definido pela pulsão. O objeto não é fixo, ele muda. Ele é apenas um dos elementos da pulsão.

7

Grifo nosso.

24 O objeto, elemento através do qual uma pulsão se satisfaz, é extremamente variável. Ele se modifica ao longo da vida erótica de acordo com as conveniências da satisfação (CRUXÊN, 2004). A característica pulsional de remeter a um impossível revela-se na visada sublimante de se dirigir para além do objeto sexual (COUTINHO JORGE, 2005). O desejo do sujeito e o seu corpo biológico não estão intimamente relacionados, isso se dá pela plasticidade pulsional, a qual tem como único objetivo a satisfação. Desta forma, podemos considerar que a pulsão não reconhece a anatomia do corpo e que seu desejo se dá independente deste. Assim, a escolha de objeto não tem nenhuma relação com a anatomia do sujeito e muito menos com a sua identidade sexual psíquica (MARQUES, 2008). Nos ―Três ensaios...‖, Freud (1905, p. 171) define a pulsão como ―o representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de excitação em contraste com um ‗estímulo‘, que é estabelecido por excitações simples vindas de fora‖. O conceito freudiano de pulsão está no centro da sua teoria da sexualidade. Para Freud, o que distingue a sexualidade humana da vida sexual dos animais é que ela não é regulada pelo instinto que implicaria uma relação fixa e inata a um objeto. A sexualidade humana é regulada pelas pulsões, que, ao contrário dos instintos, são extremamente variáveis e se desenvolvem de acordo com a história dos indivíduos (EVANS, 1997, p. 46). O conceito de pulsão foi o grande dispositivo de sustentação para Freud a respeito da bissexualidade como disposição psicológica responsável pelas diferentes escolhas de objeto (MARQUES, 2008). A proibição cria a cisão da sexualidade, mas a bissexualidade intrínseca postulada por Freud mina todo e qualquer esforço de separação (BUTLER, 2003, p. 88). Existe apenas uma libido, que serve tanto às funções sexuais masculinas, quanto às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo. Segundo o estudioso do alemão de Freud, Luiz Alberto Hanns, pulsão é a tradução — aproximada da francesa pulsion — mais adequada para a palavra alemã Trieb — apesar das já consagradas traduções terem estabelecido instinto. Ao empregar na psicanálise a palavra Trieb, Freud optou por utilizar um termo de ampla abrangência que incluía a história da espécie (pulsão como depósito da evolução filogenética e sua fixação na fisiologia), as leis da natureza (a pulsão como expressão de princípios e leis) e a noção de

25 ―vontade‖ (segundo Freud, a ―herdeira da pulsão‖ no âmbito psíquico) (HANNS, 2004, p. 139).

Integrar todos esses aspectos fazia parte da busca de Freud por uma teoria mais abrangente e ―livre de contradições‖ (Idem). No livro ―Pulsão e seus destinos‖ (1915), a pulsão passa a ocupar a posição de conceito fundamental da teoria psicanalítica, isto é, de conceito fundador dos demais conceitos. Freud não aponta para nenhum outro que lhe seja mais fundamental, apenas para os limites da própria teoria (BARTUCCI, 2001). Freud (1915) fala em quatro destinos: reversão ao seu oposto, retorno ao eu, recalque e sublimação. A reversão em seu oposto é dividida em duas formas: a reversão

do

conteúdo

(amor-ódio)

e

a

reversão

ativo-passivo

(sadismo-

masoquismo). O retorno ao eu é encontrado também no exemplo do sadismomasoquismo, sendo o masoquismo um retorno do sadismo ao próprio eu. Afirma que nenhum desses destinos pode dar conta da pulsão, ou seja, satisfazê-la plenamente. Diz ainda que tanto o retorno ao eu quanto a reversão em seu oposto podem caminhar lado a lado, o que fica claro se pensarmos que são mecanismos para a satisfação da pulsão. A seguir, Freud (1915) desenvolve os momentos da pulsão e suas características de atividade, passividade e reflexidade, sempre citando como exemplo o sadismo-masoquismo e o voyerismo-exibicionismo. Ele desenvolve a idéia de que primeiro há sempre a atividade (sadismo), depois a passividade (masoquismo - sentir dor) e então a face reflexiva da pulsão (fazer-se objeto para outro). Associando as pulsões masoquistas e o exibicionismo com a organização narcisista do eu, ou seja, com a constituição do eu, Freud (1915 apud PRONIN, 2009) enfatiza novamente a inespecifidade do objeto da pulsão, ainda que esse coincida com a fonte pulsional, no caso de ser uma parte do corpo. São retomados os conceitos de narcisismo e auto-erotismo para explicitar os mecanismos de satisfação das pulsões. Freud desenvolve o tema do amor citando seus três opostos: 1) Indiferença, 2) Ódio e 3) Ser amado. Sobre amor e ódio, Freud (1915 apud PRONIN, 2009) desenvolve a idéia de que o ódio é anterior ao amor para o indivíduo e nesse momento, e por isso mesmo, não poderia ser oposto ao amor. A princípio, o ódio seria uma reação do organismo primitivo, auto-erótico e narcísico ao mundo externo ou partes desse mundo que provocam desprazer. Termina afirmando que as pulsões estão sujeitas à influência

26 ―das três grandes polaridades que dominam a vida mental‖, a saber: 1) a atividadepassividade (a polaridade biológica), 2) a do ego-mundo externo (a polaridade real) e 3) a do prazer-desprazer (a polaridade econômica) (PRONIN, 2009). Destacam-se entre os destinos da pulsão o recalque e a sublimação. O recalque dá origem aos sintomas neuróticos que são tratados pela psicanálise e a sublimação, que lembrando, não depende do objeto e não é tratada pela psicanálise. Através do conceito de sublimação, é possível aproximarmos da questão da produção artística, ampliar a compreensão sobre a homossexualidade e iniciar o estudo da possível relação entre produção artística e homossexualidade a partir da psicanálise, formando um corpo teórico que possibilite o diálogo com as teorias sobre esta relação que podem ser extraídas de outros campos. Segundo Rivera (2002, p. 16), o conceito de sublimação, ao contrário de outros, como o de narcisismo, não é contemplado em texto específico, advindo então a necessidade de seu estudo em diferentes materiais. O artigo escrito por Freud sobre a sublimação, por volta de 1915, foi provavelmente destruído ―condenando essa noção a um alargamento conceitual‖. A sublimação oferece uma via de compreensão a partir da pulsão; portanto, a partir do próprio psiquismo. O conceito não ignora o fundamental da proposta psicanalítica, que é a realidade psíquica, não se prende a fatores externos, a uma noção de realidade mais empírica (realidade social). Em um primeiro momento, no ―Rascunho L‖, Freud (1897) usa o termo sublimação

como

elevação,

aprimoramento,

embelezamento dos fatos ou

lembranças, e o associa às fantasias. A aceitação de questões sexuais seria possível na fantasia, que tem como objetivo proteger o sujeito da angústia. Esta operação se dá na direção de um enobrecimento. Os primeiros indícios do conceito de sublimação ―atual‖ aparecem quando Freud (1905 [1901]), no ―Fragmento da análise de um caso de histeria‖, equivale a sublimação a um desvio para objetivos assexuais. A sublimação aparece como influência moderadora para o psiquismo, como uma tentativa de equilíbrio psíquico. A raiz do conceito de sublimação foi descrita neste texto, embora tenham ocorrido complementos posteriores. O ponto-chave é a associação entre sublimação e perversão, e entre sublimação e um desvio do objetivo sexual, o qual conduz o sujeito à possibilidade de realizações culturais.

27 Freud (1905) então constrói o conceito nas duas primeiras partes e na conclusão geral dos ―Três ensaios...‖. A sublimação é inicialmente apresentada no quadro das fixações a um fim sexual primitivo e da insistência em um prazer que deveria normalmente apenas preparar para o ato sexual. Ela se inscreve num registro sensorial, o do tato, porém mais especificamente desse tato a distância que pode ser considerada a visão. Ora a pulsão escópica se põe a serviço da espécie, cuja reprodução assegura; ela constitui o germe dos diferentes tipos de sublimação estética. Encontra-se, portanto, nos ―Três ensaios...‖, a primeira definição formal de sublimação: processo no qual as excitações que vêm das diversas fontes da sexualidade procuram ser empregadas em outros campos. O resultado é um aumento da capacidade de rendimento psíquico, o que permite à sublimação ser uma das fontes da atividade artística (FREUD, 1905). Ressaltemos que a arte ocupa o lugar de uma espécie de modelo de sublimação, ainda que a sublimação seja uma noção que designa um campo muito diversificado de atividades, sem especificar a produção artística. Ainda nos ―Três ensaios...‖, parece indubitável que para Freud (1905) a origem do conceito de belo encontra-se na excitação sexual, significando originariamente o que excita sexualmente. Daí a impossibilidade constante de acharmos realmente belos os órgãos sexuais, cuja visão desperta, no entanto, a mais forte excitação sexual. Essa é a base do que podemos chamar de uma estética freudiana. A arte é sublimante ao oferecer um caminho ascendente à pulsão, pois ela pede ao olhar um desvio que transita dos órgãos genitais ao corpo como um todo. A pulsão parcial de espiar acaba trocando seu objetivo inicial, sexual, por outro considerado mais digno e valorizado socialmente (CRUXÊN, 2004, p. 17). Depois, no texto ―A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna‖, Freud (1908a) situa a sublimação dentro do seu esquema de desenvolvimento da pulsão. Para Freud podemos distinguir três estágios culturais ou da civilização: um primeiro estágio, em que a pulsão não está a serviço da reprodução; um segundo, em que a pulsão é reprimida, exceto quando serve à reprodução; e um terceiro estágio, em que só se admite a reprodução dentro do casamento. O terceiro estágio corresponde à moral sexual da época de Freud, criticada por ele porque, em sua análise, certo número de pessoas, devido à sua organização, não satisfazem os

28 requerimentos dessa moral. O desenvolvimento da pulsão sexual do auto-erotismo ao amor de objeto, com a meta da união dos genitais, não se esgota e essas perturbações do desenvolvimento geram classes de desvios em relação à sexualidade exigida pela cultura ou civilização. Entre os indivíduos que apresentam desvios encontram-se os perversos em primeiro lugar, nos quais uma meta sexual preliminar impediu o primado da função reprodutora, e os homossexuais, nos quais, segundo Freud (1908a), nesse texto – de uma maneira ainda não esclarecida completamente –, a meta sexual foi defletida do sexo oposto. Aqui, Freud (Idem) afirma que o homossexual possui uma capacidade maior para a sublimação cultural. Estabelecendo com essa hipótese uma possibilidade de relacionar a produção artística e a homossexualidade, objetivo deste trabalho. Essa hipótese freudiana será discutida detalhadamente ao longo deste trabalho. A asserção de Freud, interpretada à luz de seus outros textos sobre pulsão e sublimação, pode ser entendida como uma defesa dos homossexuais contra a moral sexual da época. Vale lembrar que nesse texto, Freud (1908a) acrescenta que nem tudo pode ser sublimado; existe necessidade de satisfação sexual direta. O fato de os artistas sublimarem mais não deve ser entendido, contudo, como sinal de abstinência. Mesmo porque, Freud sublinha: É difícil conceber um artista abstinente, mas certamente não é nenhuma raridade um jovem sábio abstinente. Este último consegue por sua autodisciplina liberar energias para seus estudos, enquanto naquele provavelmente as experiências sexuais estimulam as realizações artísticas. Em geral não me ficou a impressão de que a abstinência sexual contribuía para produzir homens de ação enérgicos e autoconfiantes, nem pensadores originais ou libertadores ou reformistas audazes. Com freqüência bem maior produz homens fracos, mas bem comportados, que mais tarde se perdem na multidão que tende a seguir, de má-vontade, os caminhos apontados por indivíduos fortes. (FREUD, 1908a, p. 201).

Nas ―Notas sobre um caso de neurose obsessiva‖, Freud (1909) diz que a sublimação pertence ao campo da saúde, e, em ―Pulsão e seus destinos‖ (1915), assinala que o predominante na sublimação é a deflexão da sexualidade. A sublimação é tomada como uma das possibilidades de satisfação pulsional e pode ser uma saída em direção ao equilíbrio psíquico. A sublimação é apontada como um destino pulsional, não sendo, no entanto possível escolhê-la, devido à impossibilidade de controlá-la. Freud (1915) relata que,

29 com a sublimação, a energia das pulsões volta a ser utilizável, sendo o alvo substituído por algo mais. Até este momento na obra de Freud, podemos pensar a sublimação ―ligada a um empuxo à simbolização e não a uma dessexualização. A sublimação seria, nesta perspectiva, não secundária em relação ao sexual, mas primária, estrutural‖ (DIDIER-WEILL, 1997, p. 11). Em ―Dois verbetes de enciclopédia‖, Freud (1923 [1922]) distingue como pontos mais característicos da sublimação: a modificação do objeto, a modificação do objetivo e a valorização social. Posteriormente, no texto ―O Eu e o Isso‖ Freud (1923) assinala a dessexualização. A princípio, ele coloca a sublimação ao lado da pulsão de vida, porém, um ano depois, situa a sublimação atrelada tanto à pulsão de vida quanto à pulsão de morte. No processo sublimatório, ressalta Freud (1923), o eu possui um papel importante por se constituir como instância capaz de reter uma reserva de libido, adiando a satisfação e deslocando energia para fins considerados mais nobres. O eu se forma historicamente a partir dos primeiros investimentos libidinais que proporcionaram prazer e foram internalizados. Sua estrutura indica o acúmulo daquilo que se transformou nas primeiras identificações. A dependência em relação a objetos capazes de proverem satisfação deixa o eu em posição de constante perigo de esvaziamento, dada a possibilidade de perda desses objetos e das consequentes gratificações. Torna-se econômico, portanto, reter um capital de libido, adiando a satisfação para um momento mais adequado (Idem). Tal processo precisa atender às exigências de ideais que são referências a partir das quais o eu se avalia. Esse ideal compõe o ideal do eu. A pulsão é, assim, dessexualizada, defletida a partir das exigências do ideal do eu e do ganho obtido por manter algum amor no eu (narcisismo secundário). Entretanto, nota-se que um ideal do eu elevado não implica uma boa saída sublimatória. Na sublimação, o ideal do eu incita, inspira sem deixar traços de agentes coercitivos, como a censura moral ou outros inibidores. Ironicamente, se a dessexualização visava inicialmente a uma função protetora ao expulsar a libido ou investimentos objetais, ela termina por se entrelaçar à pulsão de morte. Tal fator se apresenta como uma instabilidade singular do processo sublimatório e em sua afinidade com a angústia (CRUXÊN, 2004, p. 1023). Tal angústia, ao acompanhar a sublimação, configura-se a única prova da

30 resistência do eu, sempre dividido entre o prazer de uma morte antecipada e o terror que lhe inspira seu próprio desaparecimento (SAINT-GIRONS, 1996, p. 499). O que aponta para o fato de que, embora a sublimação esteja do lado da saúde, isso não previne contra o sofrimento, porque nem toda quota de libido pode ser sublimada e a satisfação pulsional é sempre parcial, segundo análise de Freud (1930 [1929]) em ―O mal-estar na civilização‖. A fórmula condensada da sublimação, realizada pelo próprio Freud (1933 [1932]b) nas ―Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, Conferência 35‖, reflete o mecanismo como uma maneira socialmente valorizada de excluir determinadas tendências sexuais, ou ainda certas modificações de fim e certas mudanças de objeto, em que a avaliação social entra em consideração. A sublimação em sua versão posterior a 1932 tem como atributo fundamental a mudança do objeto da pulsão. Em face da premência e necessidade de produzir novos objetos para os circuitos pulsionais, o sujeito realiza rupturas no campo de objetos e símbolos, na visão de mundo constituída. O procedimento permite ao sujeito construir sua própria realidade de acordo com as leis que eventualmente conheça. Compreender ou dar significado ao mundo equivale, nesta análise, a estruturar a realidade de um modo pessoal e estilizado (BARTUCCI, 2001). Marquemos

que

a

civilização

exige

a

renúncia

pulsional.

Sem

a

institucionalização e o simbólico, só restariam o assassinato e o sexo. Torna-se então fundamental destacar sobre a sublimação que Freud frisa o potencial da arte em reconciliar o homem — que sacrifica seus desejos em prol da civilização — com a cultura, reforçando assim os laços de pertencimento.

1.4 PSICANÁLISE, ARTE E HOMOSSEXUALIDADE Depois desse breve estudo sobre os conceitos freudianos de pulsão e sublimação, a proposta é sugerir um possível diálogo entre a psicanálise e produção artística a partir da obra freudiana que analisa o artista Leonardo da Vince, para ajudar no problema proposto por este trabalho: investigar a relação entre homossexualidade e produção artística lançando mão das idéias freudianas para tornar a discussão mais complexa. A aproximação da arte com a psicanálise é menos uma questão de interpretação — em que a psicanálise teria algo a dizer sobre determinada obra ou

31 certo artista — do que um desafio de interpenetração. O relevante para a psicanálise é o processo de criação, na medida em que ele convoca e põe em questão a concepção psicanalítica do funcionamento psíquico (RIVERA, 2002). Tal proposta encontra-se nas próprias assertivas de Freud (1908 [1907]) em ―Escritores criativos e devaneios‖ quando ele afirma que não se trata de explicar a escrita ficcional a partir da psicanálise, mas, ao inverso, de tomar a criação artística como modelo da atividade psíquica. Nesse texto, Freud (1908 [1907]) compara os escritores criativos a neuróticos devaneadores. Ambos fariam, tal como a criança, uma recriação da realidade a fim de atender aos seus desejos. Por conseguinte, o herói criado pelos escritores é indestrutível e todas as mulheres são atraídas por ele. A diferença entre os dois é que os escritores voltam à realidade através da obra de arte, tendo a peça artística inclusive o efeito de fazer com que os autores possam deleitar-se com os próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha. Freud afirma: O indivíduo que devaneia oculta cuidadosamente suas fantasias dos demais e mesmo que ele as comunicasse para nós, o relato não nos causaria prazer. Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar conhecimento de tais fantasias. Mas quando o escritor criativo nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos serem seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer. A verdadeira ars poetica está na técnica de superar nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligada às barreiras que separam cada ego dos demais. (FREUD, 1908 [1907], p. 1578).

Continua Freud (Idem) descrevendo os métodos empregados pela ars poetica: ―O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético.‖ Na arte, aquilo que desperta desejo, que excita sexualmente, é apresentado por uma máscara de beleza. Freud também conclui que ―a verdadeira satisfação de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes.‖ Primeiro, a fantasia deve perder seu caráter puramente egocêntrico e aproximar-se de algo universal. Segundo, o desejo está parcialmente disfarçado. Ele pode ser abrandado, isto é, dissimulado de modos similares aos disfarces do sonho. E, terceiro, o artista nos dá o prazer estético que nos distrai do pensamento oculto — um prazer que nos suborna a aceitar o pensamento ocultado (SEGAL, 1993, p. 88). O escritor Paul Bowles, em seu romance The Sheltering Sky, ilustra bem o paradoxo apresentado por Freud. No começo do livro, um casal encontra-se com um

32 amigo no restaurante de um hotel e o marido anuncia que contará um sonho tido na noite anterior. Sua esposa imediatamente o reprime, afirmando que ninguém gosta de ouvir sonhos, mas ele insiste e conta mesmo assim. A mulher se levanta em direção ao banheiro, sentindo a repulsa descrita por Freud. Dentro da obra de ficção, porém, podemos dizer que a narrativa do sonho se transforma em arte. Quando Bernardo Bertolucci (1990) filmou essa cena em sua adaptação do romance,8 utilizou o próprio Paul Bowles como figurante no restaurante, sua intenção foi pontuar novamente a distância existente entre a vida ―real‖ representada pela pessoa do escritor e sua obra. Não é o artista que nos fascina, é a obra de arte. ―É a própria obra que atesta a passagem do gênio humano‖ (SAINT-GIRONS, 1996, p. 500).

1.4.1 Leonardo da Vinci e a Sublimação No livro ―Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância‖, Freud (1910a) dá um exemplo da sua hipótese de que os homossexuais teriam uma capacidade maior para a sublimação cultural devido à moral sexual repressora. Em sua análise, emprega dados biográficos, uma lembrança da infância e algumas pinturas de Leonardo. Leonardo era filho de Piero e de Catarina e viveu os cinco primeiros anos com a mãe, que o marcou muito, constituindo-se em seu principal modelo identificatório. Catarina não foi capaz de fazer referência a Piero como objeto de seu desejo; assim, de acordo com Freud (1910a), Leonardo desenvolveu uma carência paterna e uma impossibilidade de identificação sexual masculina. O ideal do eu em Leonardo foi materno. O artista se identificou com a mãe e escolheu seu objeto de desejo baseado no que ele mesmo fora para a mãe. Tais elementos contribuíram para o estabelecimento de um homossexualismo ideal ou platônico. A sublimação de Leonardo foi marcada por um repúdio da castração e pela carência paterna. A criação do belo por Leonardo surge como um ―não‖ à sua separação de Catarina e à pobreza de sua vida sexual. Este ―não‖ se formula como um anteparo, uma proteção em relação à dor.

8

Filme ―O Céu que nos Protege‖, na tradução brasileira.

33 Leonardo conta como sendo a primeira lembrança de sua vida um acontecimento passado no berço, quando uma ave foi até sua boca e a fustigou diversas vezes com a cauda. Freud (1910a) vê na cena uma lembrança encobridora: não uma recordação real, mas uma fantasia a reunir o essencial do quadro em que o psiquismo de Leonardo ter-se-ia constituído. A cauda da ave seria uma representação do pênis e a fantasia corresponderia a uma felação, que em si equivaleria a um remanejamento da lembrança feliz de ser amamentado ou de receber beijos carinhosos da mãe solitária, extremamente ligada a ele. Tal seria a constelação responsável pela posição homossexual de Leonardo, que, assim como a mãe, se interessaria apenas por meninos. Sublimando o artista libera-se da intensa erotização provocada pelo amor materno. A totalidade capaz de atender à demanda materna se transpõe para a obra como uma forma de representação da perfeição. A sublimação teria nesta transposição a sua fonte. Ela trata, porém, de inverter o seu vetor, deserotizando um campo incestuoso de origem (CRUXÊN, 2004, p. 35). O valor maior da psicobiografia de Leonardo feita por Freud não é a reconstrução da infância do artista, mas justamente a descoberta das fantasias expressas pelas obras de arte, a maneira como Freud mapeia a transformação do mamilo da mãe em um pênis (SEGAL, 1993, p. 86). Como exemplo, Freud (1910a) ressalta que os personagens andróginos registrados na obra de da Vinci, como o seu São João Batista, não baixam os olhos; de modo inverso exibem

um olhar misteriosamente triunfante, como se

conhecessem uma felicidade que devessem calar.

FIGURA 1

34 A conclusão de sua análise demonstra, nessas figuras, a recusa de Leonardo à infelicidade de sua vida amorosa, ultrapassando-a pela arte — na representação em tal reunião feliz do masculino com o feminino estaria o cumprimento do desejo do menino que foi (FREUD, 1910a). Além de procurar reconstruir o desenvolvimento psicossexual de Leonardo, Freud (1910a) relaciona experiências de sua infância com seus conflitos posteriores entre a criatividade artística e científica. Nesse texto afirma que a criação artística é um dos destinos da curiosidade sexual infantil; os outros dois são uma grande inibição e uma atividade intelectual adulta, quando a maior parte da energia da investigação sexual infantil foi convertida em uma preocupação constante e não produtiva. A arte de Leonardo é apresentada por Freud como o resultado da transformação dos afetos e sentimentos em objetos de interesse intelectual. Transformação que, ao atingir o auge da aquisição de conhecimento, permitia que o afeto reprimido viesse à tona e transbordasse livremente em um estado de clímax de fundo sexual e emocional. Para Freud (1910a) decorria daí a fome insaciável por conhecimento de Leonardo. Era como se ele transformasse a pulsão de investigação em prazer de viver. O artista teria então se dedicado à pesquisa com a mesma intensidade e ardor que outra pessoa devotar-se-ia ao seu amor. Freud considerava Leonardo um artista brilhante, mas um cientista medíocre, e lamentava sua pouca quantidade de obras de arte em prol da atividade científica. A investigação das causas da predominância da ciência em detrimento da arte na vida do artista — objetivo da pesquisa de Freud — como resposta ao enigma da transferência do interesse inicial de Leonardo da Vinci pelas artes e sua dedicação posterior à ciência, Freud (1910a) aponta a substituição da sublimação original por outra sublimação. O mecanismo, além de ser por si só um processo de substituição, também comporta a sua substituição por outra substituição. Leonardo da Vinci teria realizado uma primeira sublimação capaz de distanciar suas pesquisas do domínio estritamente sexual e torná-lo um cientista. Uma segunda sublimação teria feito dele um artista. No início de sua vida adulta, as pesquisas científicas estavam a serviço da perfeição de sua técnica; porém alguns anos mais tarde sua atividade investigativa teria tomado a dianteira, com o recuo da sublimação mais tardia.

35 Para Freud (1910a), Leonardo não amava nem odiava, apenas se questionava a respeito da origem e do significado daquilo que devia amar ou odiar. Para além do amor e do ódio, Leonardo escolheu a indiferença. O amor deveria ser controlado, subordinado à reflexão e somente aceito após passar pela prova do pensamento. Leonardo sublimou grande parte de sua atividade pulsional, fato responsável pelo empobrecimento da sua vida sexual. Eis os motivos, segundo Freud (1910a, p. 74), de se considerar Leonardo o exemplo do tipo ―mais raro e mais perfeito‖ de sublimação, que podemos denominar sublimação de excelência. O artista/cientista colocou sua atividade pulsional a serviço da criação, da produção de arte e da elaboração de instrumentos de guerra. Ao que tudo indica, o exercício da sexualidade coube ser aspecto secundário em sua vida. Ao optar pela indiferença, da Vinci posicionou-se como um observador do espetáculo da vida. Ele seguiu os ditames de uma economia: ―Se tu permaneces só, tu serás todo teu.‖ Sua visada consistiu em obter vantagem sobre aqueles que se esvaziam por seus objetos de desejo. O olho é o amante. A pulsão de espiar, no caso, permanece desligada do caráter genital (CRUXÊN, 2004, p. 35-6).

O primeiro capítulo foi dedicado aos conceitos psicanalíticos que interessam a elaboração deste trabalho. Fizemos um levantamento dos conceitos de pulsão para chegarmos ao de sublimação. Antes, estudamos o conceito de sexualidade e homossexualidade

antes

e

depois

do

advento

da

psicanálise.

36

2 SENSIBILIDADE GAY Depois de estudada a relação entre a teoria psicanalítica sobre a sexualidade e o conceito de homossexualidade, e de esboçada uma sugestão de relação entre arte, através do conceito de sublimação, e a homossexualidade, o objetivo deste capítulo é definir sensibilidade camp e sensibilidade gay, — conceitos exteriores ao campo da psicanálise cujos campos de pesquisa provém da história, mais especificamente, da história da arte. A história da arte, desde sua origem, apresenta o diálogo entre a homossexualidade e a arte sob um viés biográfico. Por exemplo, em 1550, no livro As vidas dos artistas, Giorgio Vasari fala sobre o artista Giovanni Antonio Bazzi, que teria recebido o apelido Il Sodoma por se sentir atraído por garotos (WEINBERG, 2000, p. 72). Johan Joachim Winckelman (1717-1768), considerado o autor do primeiro estudo sistemático que estabeleceu distinções entre arte Grega, Greco-Romana e Romana, e por isso aclamado como o pai da história da arte, defendia que a moral dos gregos (enaltecedora da pederastia) era superior. Em sua descrição do Apollo de Belvedere, de Leocarés,9 salienta o amor do deus por um jovem e descreve a escultura como quem descreve um amante

9

(WEINBERG, 2000, p. 72).

Estátua feita na Antiguidade Clássica (300 a.C.), representa o deus grego Apolo no momento em que derrota a serpente Píton, monstro que aterrorizava a costa do Delfos. Exposta no Museu PioClementino, no Vaticano. (Cf. NOBLAT, 2009).

37

FIGURA 2 Fato interessante foi que, insatisfeito com a falta de representações do mito de Ganimedes, Winckelman promoveu um falso achado arqueológico como sendo autêntico: o afresco Júpiter e Ganimedes, de Anton Raphael Mengs.

FIGURA 3 Winckelman exerceu grande influência sobre Walter Pater (1839-1894), que foi professor de Oscar Wilde (1848-1907), que por sua vez serviu de inspiração para Susan Sontag (1933-2004).

38 A evidente atração de grandes artistas por garotos foi utilizada pelos primeiros defensores da homossexualidade, como, por exemplo, John Addington Symonds (1840-1893), que ressaltou em sua biografia do artista a importância do amor que Michelangelo sentia por Tommaso Cavalieri. Symonds projetou sua própria concepção de identidade sexual sobre Michelangelo, sendo do mesmo modo responsável pela correção da poesia e da correspondência de Michelangelo que havia sido adulterada para atender à moral sexual dos estudiosos anteriores. Ele corrigiu os pronomes masculinos antes alterados para o feminino (adulteração ocorrida também com sonetos de Shakespeare) (WEINBERG, 2000, p. 73). Um trabalho como o de Symonds é que nos permite hoje olharmos de outra maneira para o desenho O rapto de Ganimedes,10 dado por Michelangelo de presente a Tommaso. Sabendo da atração de Michelangelo por Tommaso, podemos conjecturar que essa é a razão de Ganimedes ser ilustrado não como um garoto, representação mais comum, mas como um jovem adulto, provavelmente o próprio Tommaso, que aparece sendo dominado por Júpiter em forma de águia, talvez uma representação do desejo homoerótico de Michelangelo.

FIGURA 4

O estudo dos mitos, como o de Ganimedes, possibilita desvencilhar a análise do conteúdo homoerótico da questão da identidade gay, porque permite examinar o uso do mito tanto por artistas homossexuais, quanto por artistas heterossexuais. Como, por exemplo, o mito de Narciso, que no Brasil foi representado na primeira escultura pública sem um cunho religioso por Mestre Valentim.

10

Ganimedes, príncipe troiano a cargo de Zeus, que transformado em águia leva o jovem ao Olimpo. Cena mitológica retratada por Michelangelo em 1532, utilizando a técnica carvãozinho, com dimensão de 19 X 26 cm. Está no Royal Library (Windsor).

39

FIGURA 5 Ou ainda São Sebastião, que foi representado em um quadro premiado por Eliseu Visconti: A recompensa de São Sebastião

FIGURA 6 Apesar da tradição, destaca-se o conservadorismo da história da arte devido provavelmente ao medo dos estudiosos de sofrerem preconceito ao abordar abertamente o tema. E também por questões de mercado, pois a homossexualidade de um artista desvalorizaria a obra, e permanece escondida pela família de artistas falecidos — como é o caso da família do artista plástico gay cearense, Leonilson, cuja publicação de seus diários foi proibida pela família. Porém, artistas importantes como Andy Warhol, Francis Bacon e David Hockney, gays assumidos e que utilizaram elementos homoeróticos explícitos em suas obras, não podiam ser ignorados pelos críticos de arte. A discussão sobre a

40 homossexualidade desses artistas era considerada irrelevante para a compreensão de suas obras, o que já apontava para uma mudança na atitude da crítica de arte

2.1 STONEWALL: A REVOLUÇÃO GAY A desconsideração a respeito da homossexualidade na arte ocorreu até a madrugada de 27 de junho de 1969, quando uma costumeira batida policial no bar gay Stonewall, no número 53 da Rua Christopher, em Nova Iorque, se transformou em tumulto e os fregueses exibiram uma inesperada resistência. Conforme a história contada por Duberman (1994), um grupo de policiais fardados chegou ao bar, pouco depois da primeira hora da madrugada, e ordenou a todos que saíssem. Começaram a prender os empregados, bem como um bom número de frequentadores. Embora já houvesse acontecido outras batidas policiais no bar, desta vez, inesperadamente, houve reação em que as pessoas xingavam os policiais de ―porcos‖ e atiravam garrafas, moedas, latas e tijolos. A polícia, em número de oito policiais, se refugiou no próprio bar até que chegassem reforços e a multidão se dispersasse, mas novos distúrbios aconteceram nas noites seguintes, durante 6 dias. A rebelião de Stonewall é utilizada simbolicamente como marco do início do moderno movimento gay/lésbico que estabeleceu uma mudança de atitude dos homossexuais perante a sociedade e da sociedade em relação aos homossexuais.

2.2 O DISCURSO SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE E A IDENTIDADE GAY A evolução de uma identidade homossexual foi necessária para o desenvolvimento da cultura homossexual — termo utilizado neste trabalho com o sentido de produção artística realizada por artistas homossexuais ou ainda obras de arte com temática homossexual. Foi Michel Foucault, filósofo e historiador francês, quem iniciou um rico estudo da história da sexualidade. Nele, Foucault (1997) verificou a problemática sobre a diferença sexual ao longo de um complexo processo histórico. Nem sempre a sexualidade foi vista como é hoje. Na cultura ocidental, houve um momento em que a substância ética que envolvia a sexualidade era os prazeres, e estes não estavam, necessariamente, ligados ao gênero dos amantes, isto é, o par homem-mulher não era o lugar privilegiado do ambiente sexual. Foucault (1997 apud VIEIRA, 2009)

41 enfatiza este aspecto nas suas incursões históricas na Antiguidade Clássica grecolatina, onde as relações não se davam, do ponto de vista moral, dentro de um padrão que chamaríamos hoje de heterossexual. O que era objeto da preocupação moral era antes a formação do amado e não o seu sexo biológico. Segundo Foucault (1997, p.104 apud VIEIRA, 2009), o projeto da ―colocação do sexo em discurso‖ formou-se numa tradição ascética e monástica, porém o século XVII o transformou num preceito universal. Tal qual um visionário do seu tempo, o autor nos convida a considerar nossa época marcada pela existência de um sexo que se faz discurso e que parece trazer consigo a revelação de nós mesmos e o almejado jardim das delícias. O sexo se transformou na forma fundamental da definição da identidade do sujeito. Nas palavras de Foucault (1997, p. 205): O sexo nada mais é do que um ponto ideal tornado necessário pelo dispositivo da sexualidade e por seu funcionamento. É pelo sexo, esse ponto imaginário, fixado pelo dispositivo da sexualidade, que cada um deve passar para ter acesso à sua própria inteligibilidade, à totalidade de seu corpo, à sua identidade.

Dentro da análise de Foucault (1997), podemos inferir que assim como o sexo, o discurso sobre a sexualidade também é construída historicamente. Ela emergiu como um componente fundamental, extremamente eficaz, numa estratégia de poder e saber que estabeleceu uma conexão entre indivíduo e população, através da expansão do biopoder. Poder que pode se infligir tanto a um corpo que se pretende disciplinar quanto a uma população que se pretende regulamentar. É importante salientar que, principalmente, durante o século XIX, a sexualidade será investida por uma meticulosa investigação científica, pelo controle administrativo e pela preocupação social, como vimos brevemente no primeiro capítulo. Para os médicos, psiquiatras e pedagogos, ela transformou-se em condição sine qua non para a compreensão da saúde do indivíduo, de sua patologia e identidade. Neste sentido, esses discursos, não apenas, produziram e multiplicaram as classificações sobre as 'espécies' ou 'tipos' de sexualidade, como também ampliaram os modos de controlá-la. Deste modo, tal processo transformou a sexualidade num capital de poder, bem como num instrumento de subjetivação. O dispositivo da sexualidade como discurso vai penetrar no que há de mais íntimo, a saber: a relação do ″sujeito″ consigo mesmo. Sendo esse, talvez, o aspecto mais importante porque essa nova estratégia se apropriou do antigo dispositivo da

42 "carne". O "exame de consciência" que deve adentrar no mais íntimo e profundo das nossas entranhas não foi apenas um meio de proibir o sexo, mas, sobretudo, uma forma de colocá-lo no centro de nossa existência e das relações do ″sujeito″ consigo mesmo. E através dele deve-se buscar a sexualidade entranhada nos desejos, fantasias, sonhos, para ter acesso à identidade sexual. O que Foucault (1997) denomina de dispositivo da sexualidade podemos articular com o conceito de supereu em Freud, que dita ao sujeito: ―tu és isso ou aquilo‖. O supereu como a instância moral introjetada no sujeito pelos ditames das autoridades parentais, educativas e sociais é um representante da cultura no interior do sujeito. O supereu e o ideal do eu são instâncias da psicanálise que mostram que o sujeito individual não se distingue do sujeito coletivo.11 Nas palavras de Freud (1923): Esse aspecto duplo do ideal do ego deriva do fato de que o ideal do ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo; em verdade, é a esse evento revolucionário que ele deve a sua existência. É claro que a repressão do complexo de Édipo não era tarefa fácil. Os pais da criança, e especialmente o pai, eram percebidos como obstáculo a uma realização dos desejos edipianos, de maneira que o ego infantil fortificou-se para a execução da repressão erguendo esse mesmo obstáculo dentro de si próprio. Para realizar isso, tomou emprestado, por assim dizer, força ao pai, e este empréstimo constituiu um ato extraordinariamente momentoso. O superego retém o caráter do pai, enquanto que quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (sob a influência da autoridade do ensino religioso, da educação escolar e da leitura), mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa. (FREUD, 1923, p. 49).

Entretanto, a estratégia proposta por Foucault seria a de recusar a imposição de identificar a sexualidade às diferentes formas de sexualidade. É preciso recusar satisfazer a obrigação de identificação pelo intermédio e com o auxílio de certa forma de sexualidade. Deve-se, portanto, recusar o fato de que o indivíduo possa ser identificado com e através da sua sexualidade. Nesse sentido, podemos dizer que se trata de rejeitar a identificação do sujeito com apenas uma característica ditada pela sociedade seja ela sexual, racial ou corporal. Esse reducionismo é próprio ao racismo. Em termos freudianos nenhuma identificação promove a identidade do sujeito e o desejo do sujeito não pode ser definido pelo objeto de sua pulsão.12

11 12

Desenvolveremos mais esse ponto em pesquisa após o mestrado. Conforme Antonio Quinet, durante sessão de orientação da dissertação em 2009.

43 Portanto, foi ao final do século XIX, como salientou Michel Foucault (1997) que surgiram os conceitos de homossexual e heterossexual dando origem ao sentimento de identificação a esses grupos, o que repercutiu, por sua vez, na busca pelos homossexuais dos grandes homossexuais do passado e na criação de uma tradição da homossexualidade. Essa lógica binária, enquanto categoria ordenadora das práticas, dos saberes e das relações dos sujeitos, reproduz uma série de pressupostos onde o pólo inicial aparece como normal, superior, compulsório; em oposição ao pólo subordinado que aparece como doentio, antinatural, inferior e 'outro'. No primeiro volume de A história da sexualidade, Foucault (1997) traça a metamorfose do discurso sobre a sexualidade no século XIX, que resultou na criação de identidades sexuais específicas. Antes de Havelock Ellis, e outros pesquisadores do período, designar o homossexual como um tipo, não havia um discurso em que apenas através da atividade sexual seria possível definir um indivíduo como homossexual.

2.2.1 Anos 1990: gays e queers Lembramos com Peter Fry (1982, p. 88) que sistemas de conhecimento só existem socialmente se reproduzidos pelos atores sociais, e a vitória de um ou outro sistema dependerá, em última instância, do relativo poder dos seus proponentes. Com a instituição dos movimentos de libertação homossexual nos Estados Unidos e na Europa, no final da década de 1960, podemos perceber que a ratificação da categoria do ―homossexual moderno‖ cabe a eles. O termo gay vem substituir o termo ―homossexual‖, mas a diferença entre um e outro diz respeito, basicamente, ao seu valor social. Se o termo ―homossexual‖ é associado ao modelo médico legal e tem conotações de patologia e de crime, o termo gay expressa literalmente ―felicidade‖ e ―alegria‖. Ironicamente, entretanto, a taxonomia em si adquire uma legitimidade avassaladora. De vez, o modelo médico é consagrado pela sua própria criação, a subcultura homossexual (Ibid.). Alguns indivíduos adotaram a identidade queer, surgida nos anos 1990, quando alguns indivíduos insatisfeitos com o binarismo que a identidade gay persistia em afirmar, resolveram positivar um termo utilizado para ofender gays e lésbicas: queer, menos restritivo e, ainda assim, permanece em oposição. O queer

44 permite laços políticos e sociais entre gays, lésbicas, bissexuais e heterossexuais transgressores, todos aqueles que rejeitam as noções estreitas e convencionais da sexualidade (PIGG, 2000, p. 723-5; SEIDMAN, 1995. p. 116-41). O primeiro grupo a adotar o termo queer foi o Queer Nation, um grupo de ativistas insatisfeitos com a falta de iniciativa dos grupos gays na luta pelos direitos civis de homossexuais e na luta por melhor tratamento aos doentes de AIDS. O termo então foi adotado por acadêmicos como Eve Sedgwick e Judith Butler, cujos livros mais importantes são Epistemology of the Closet (1990), de Sedgwick, e Gender Trouble (1990), de Butler. Apesar de não ser uma teoria unificada, os teóricos queer têm algumas características em comum: a teoria pósestruturalista francesa, a desconstrução como método de crítica literária e social, a utilização de categorias e perspectivas psicanalíticas, a preferência por uma estratégia de descentramento e desconstrução a propostas políticas e sociais. Seidman (1995) sublinha que os teóricos queer pensam o social como um texto a ser interpretado e criticado com o objetivo de contestar o saber dominante e a hierarquia social. Mas essa tentativa de superar o modelo binário de gênero e orientação não atende a todos. Na realidade, gays e lésbicas podem sentir a necessidade de se definir, seja através do modelo construcionista, seja através do modelo essencialista, de modo a se sentirem positivos e saudáveis em relação aos seus desejos por continuarem sendo perseguidos e estigmatizados pela maioria da sociedade.

2.2.1.1 Modelos de identidade gay: essencialistas e construcionistas Essencialistas, como John Boswell e Luiz Mott, enfatizam as semelhanças ao longo da história entre as experiências de homens e mulheres atraídos por pessoas do mesmo sexo. Para esses teóricos, a identidade gay se prolonga ao longo do tempo e, apesar de refletir circunstâncias históricas, expressa um sentimento de diferença que separa a identidade dos indivíduos que amam pessoas do mesmo sexo daqueles que amam pessoas do sexo oposto. A construcionista, Eve Kosofsky Sedgwick foca especificamente na literatura escrita por homens e nas diferentes representações dos laços emocionais e sociais que ligam os homens, defende que a identidade heterossexual ou homossexual é uma construção historicamente contingente e que a categoria homossexualidade só

45 apareceu no final do século XIX. Foi apenas depois da formulação do modelo médico no final do século XIX que surgiu a identidade homossexual. Antes do século XIX havia atos homossexuais, mas não pessoas homossexuais. Apesar de os indivíduos praticarem atos sexuais entre o mesmo sexo antes do final do século XIX, os mesmos não assumiam uma posição de oposição em relação à sociedade que produzisse uma identidade sexual (FOUCAULT, 1997, p. 50-1). Foi a percepção médica da sexualidade em relação ao indivíduo, e não em relação à ordem moral ou social, que possibilitou o surgimento da identidade homossexual. A sexualidade passou a ser vista como uma parte intrínseca da estrutura da personalidade. No seu livro Between Men, Sedgwick (1985) diferencia homossocialidade de homossexualidade e explora a maneira como a mulher é utilizada para mediar diferentes formas de desejo entre personagens masculinos. Ela faz isso evitando nomear todas essas formas de desejo homossexuais ou até mesmo sexuais. Esse estudo começa com os sonetos eróticos de Shakespeare e atravessa os séculos XVII, XVIII e XIX delineando os contextos históricos que permitiram e limitaram expressões do desejo entre dois homens. Expandindo essa análise em Epistemology of the Closet, Sedgwick (1990) explora a criação e os efeitos de uma vida homossexual não assumida, tal como é refletida na literatura de Melville até Proust. Nesse trabalho, Sedgwick argumenta que a construção de uma identidade homossexual, nas décadas de 1880 e 1890, resultou de uma interseção entre discursos de classe, de gênero, médicos e sociais, os quais determinavam um controle sobre a reprodução e os usos do corpo masculino. Mas também operavam para expor e identificar o desejo homossexual em maneiras que continuassem a subverter os movimentos em direção a sua supressão. Tanto construcionistas quanto essencialistas utilizaram as suas perspectivas sobre identidade homossexual como ponto de partida para demandas políticas específicas relacionadas à descriminalização de expressões de amor entre o mesmo sexo, igualdade de tratamento em relação ao trabalho e moradia e o direito a uma representação mais realista na mídia, na ficção e nos trabalhos de não-ficção também. O termo ―política de identidade‖ tornou-se popular entre gays e lésbicas que passaram a utilizar um conceito fixo de identidade primária como base para o ativismo social.

46

2.3 ESTÉTICA CAMP Os primeiros trabalhos de história da arte a abordarem abertamente o tema da homossexualidade coincidem com o advento do movimento gay. Alguns dos primeiros trabalhos publicados sobre a relação entre homossexualidade e arte foram Sexualidade & criação literária: as entrevistas do Gay Sunshine sobre literatura, de Winston Leyland (1980), lançado no Brasil pela editora Civilização Brasileira; Screening the Sexes: Homosexuality in the Movies, sobre cinema, de Parker Tyler (1972); L’Amour Bleu, de Cecile Beurdeley (1977); e The Sexual Perspective: Homosexuality and Art in the Last 100 Years in the West, de Emmanuel Cooper (1986), sobre artes plásticas. Esses livros abriram caminho para muitos outros trabalhos. Ressaltamos também o livro de Kenneth Dover (1994), A homossexualidade na Grécia Antiga, que, apesar de não ser um estudo de história da arte, utiliza fontes visuais para discutir as diferentes maneiras em que as relações entre o mesmo sexo eram essenciais para a vida e a arte dos gregos. A primeira ferramenta teórica utilizada pelos estudos pós-Stonewall para relacionar arte e homossexualidade foi o conceito de sensibilidade camp. O primeiro a usar o termo camp por escrito foi o escritor Christopher Isherwood em duas páginas do seu romance The World in the Evening, de 1954. Segundo Isherwood (1992, p. 101), na sensibilidade camp ―Expressamos aquilo que nos é essencialmente sério através do divertimento, do artifício e da elegância.‖ A sua teorização na verdade constitui-se apenas de um diálogo de duas páginas.13 Ele escreveu que o camp ―é dificílimo de definir. Você tem que meditar sobre ele e senti-lo de forma intuitiva‖ e disse ainda que era mais fácil dar exemplos do que definir o camp. Existiria, para Isherwood (1992), um baixo camp: ―(...) rapazolas delicados, com cabelos oxigenados, chapéus de plumas e boás, imitando Marlene Dietrich‖, e um alto camp: (...) A base emocional do balé, por exemplo, e, logicamente, da arte barroca. O alto camp autêntico sempre contém um fundo de seriedade. Não é possível tornar camp algo que não levamos a sério. Expressamos aquilo que nos é essencialmente sério através do divertimento, do artifício e da elegância. A arte barroca é o camp da religião. O balé é o camp do amor. (ISHERWOOD, 1992, p. 100-1). 13

Na tradução brasileira, camp foi traduzido como desvario.

47 A descrição de Isherwood foi o ponto de partida para o artigo ―Notes on Camp‖ (1964), de Susan Sontag, sobre a sensibilidade camp. Este traço distintivo não seria, segundo a escritora, exclusivo dos homossexuais, mas teria nos homossexuais sua vanguarda e seus maiores propagadores; por isso, a sensibilidade camp e a sensibilidade gay se sobrepõem. Vale lembrar a recomendação de Sontag (1964, p. 105-19) de que ao tentar aprisionar uma sensibilidade em palavras, principalmente uma que está viva e é poderosa, é preciso ter muito cuidado e não considerar o trabalho definitivo. Sontag (1964, p. 105) argumentou que ―falar sobre o camp é traí-lo.‖ Todo aquele que resolve estudar o camp deve se conformar com a sua impossibilidade de definição e descrição e suas constantes mudanças. O que torna esse ensaio complexo é a consciência que Sontag teve de tratar seriamente o discurso marginal e humorístico do camp. Ela interpreta o camp como uma vitória do estilo sobre o conteúdo, da ironia sobre a tragédia, como uma variação do dandismo14 de Wilde na era da cultura de massa. O ensaio de Sontag (1964) é particularmente importante devido ao pioneirismo em tratar da cultura gay quando foi publicado em meado dos anos 1960. Ela argumenta que os homossexuais abriram caminho para sua integração na sociedade promovendo o senso estético, pois, como ela defende, o camp dissolve a moral. Ele neutraliza a indignação moral e patrocina o lúdico. Sontag (1964) também estabelece paralelos entre judeus e homossexuais. Ela afirma que ambos os grupos constituem as minorias que mais contribuíram para criar a cultura urbana contemporânea, no sentido de criar sensibilidades. As duas forças pioneiras da sensibilidade moderna seriam, para ela, a seriedade moral judaica e a ironia e a estética homossexual. Identifica-se aqui um paralelo com a hipótese freudiana de que os homossexuais teriam uma capacidade maior para sublimar. Essa capacidade maior seria resultado da necessidade de lutar contra a moral sexual que condena a homossexualidade transformando a seriedade da rejeição social em diversão com elegância. A relação entre a sensibilidade camp e os homossexuais seria fruto, de acordo com Sontag (1964), da maneira como a metáfora camp da vida como um 14

Dandismo pode ser traduzido como elegância. (Cf. verbete ―Dandy‖. The American Heritage Dictionary Desk Dictionary. 4th ed. 2003).

48 teatro serve como uma projeção de um aspecto da situação dos homossexuais (de ter que representar a heterossexualidade). E, também, segundo ela, a insistência do camp em não se levar a sério estaria em conexão com o desejo frequente em homossexuais de permanecer jovem.15 Desde o seu início o camp não é um conceito muito desenvolvido, todos os teóricos que o utilizaram levaram em consideração as ressalvas feitas por Isherwood (1992), de que o camp devia ser intuído através de exemplos, e de Sontag (1964), de que era preciso tomar cuidado ao tentar aprisionar o camp. Por isso os teóricos só avançam até determinado ponto e depois abandonam a tentativa de definição do conceito. Apesar da dificuldade de definir o camp, esse é um estudo que não deve ser abandonado, porque representa um esforço para entender formas particulares de sentir, um campo pelo qual a semiótica não evidencia muito entusiasmo (DYER, 1987). O camp tem três elementos: a incongruência, a teatralidade e o humor. Essas qualidades não definem o camp, mas, estão sempre presentes no mesmo (BERGMAN, 2009). A incongruência camp frequentemente assume a forma de uma inversão, em virar os conceitos de cabeça para baixo. O sério é encarado de forma humorística e o humorístico é encarado de forma séria. Uma das inversões centrais ao camp é colocar as preocupações estéticas acima das éticas, um exemplo dessa forma de camp são os aforismos de Oscar Wilde. Inclusive, é interessante observar que na construção do artigo de Sontag (1964) ela lança mão de vários deles. Teatralidade. Os grandes atores camp nunca escondem que estão representando, eles brincam com a artificialidade. O camp alterna entre o uso sério do ridículo e o ridículo do sério. Humor. O camp é engraçado, mas nos leva a perguntar se deveríamos realmente estar rindo dele (BERGMAN, 2009). É uma forma de humor que ajuda os homossexuais a lidarem com um ambiente hostil. Ele combina elementos de exagero, teatralidade e incongruência. O camp é um elemento da sensibilidade gay. Camp é ridicularizar a si mesmo, acenar para a audiência e um humor muito inteligente. Não são apenas 15

Isso que hoje pode ser encontrado em qualquer grupo pode ser que na época em que o artigo foi escrito (1964) fizesse sentido como uma característica dos homossexuais. (Nota do autor).

49 comentários depreciativos sobre os outros. As raízes do camp são a opressão e a ironia, o que é expresso através do exagero. Utilizando esse tipo de humor é mais fácil fazer comédia com o que acontece na cultura cotidiana normal, assim como comentários políticos. O seu impacto maior foi sobre a cultura popular, a qual realmente transformou (MARONEY, 2009). O camp é o ponto de transformação das categorias da teatralidade, da ironia e do senso de absurdo, da sensibilidade extrema, nas categorias de autenticidade, intensidade e afirmação da sensibilidade extrema, de modo que se elas permanecem, elas o fazem de maneira modificada (DOLLIMORE, 1991). O camp situa-se no ponto de emergência do artificial a partir do real, da emergência da cultura a partir da natureza – ou ainda do ponto onde o real se transforma em artifício, a natureza em cultura, o camp restaura a vitalidade do artifício e vice-versa, derivando a forma artificial e a oferecendo novamente para o real ou como o real. A realidade é o prazer do que não é real. O primado da fantasia. O camp sabe e extrai prazer do fato de que o desejo é culturalmente relativo. Oscar Wilde é um exemplo da sensibilidade camp porque reúne paradoxos: o anárquico e o político, a raiva e o tédio, todos estão presentes na estética transgressora de Wilde, principalmente quando as estratégias de sobrevivência da subordinação (o subterfúgio, a mentira e a evasão) são esteticamente transformadas em armas de ataque, mas sempre de forma oblíqua através da ironia, da ambigüidade, da mímica e da imitação. O camp pode ser tanto um estilo de apresentação ou um modo de percepção. Balés como O Lago dos Cisnes foram vistos como camp, apesar de não ter sido a intenção do coreógrafo.16 Nesse caso, o camp está nos olhos do espectador. No entanto, outros artistas, como o dramaturgo Tony Kushner, tinham a intenção explícita de que os seus trabalhos fossem percebidos como camp. Mas nem todos os objetos podem ser percebidos como camp e nem todo mundo na platéia vai ser capaz de perceber o camp, mesmo na mais camp das performances (BERGMAN, 2009). O efeito camp requer uma adequação entre a apresentação e a percepção, entre o objeto e a audiência. Para entender esse ajuste é preciso entender as forças históricas que tornaram o camp possível e necessário. Lembrando: o camp surge 16

Com a exceção das coreografias de Nureyev e especialmente de Mathew Bourne, intencionalmente camp.

50 com a primeira evidência de uma cultura gay e o camp é uma forma de lidar com uma cultura dominante e hostil. Bergman (2009) sublinha que o camp ajuda a cimentar a solidariedade entre os sujeitos gays, assim como qualquer linguagem ―secreta‖ ajuda a unir aqueles que partilham daquele ―segredo‖. Além disso, a cultura camp ajuda na comunicação de uns com os outros na presença daqueles que não fazem parte dessa comunidade. O camp protege membros de comunidades gays e lésbicas em situações em que correm o risco de serem identificados, estigmatizados e possivelmente abusados. É claro que é possível argumentar que o camp contribui para isolar a comunidade gay em um gueto, assim, o camp reforçaria a idéia de uma identidade gay e o binarismo gay — heterossexual que faz parte da linguagem sexista. Judith Butler (apud BERGMAN, 2009) defende o camp. Para ela, o camp demonstra que o gênero é uma performance, em outras palavras, as pessoas não nascem masculinas ou femininas, mas elas representam a masculinidade e a feminilidade. Ao desconstruir a naturalidade das noções de gênero, o camp nos liberta para nos comportarmos da maneira que escolhermos. No entanto, é preciso ser dito que o camp apesar de ter ajudado homens e mulheres gays a sobreviver em uma sociedade homofóbica e a reforçar o seu sentimento de comunidade, também os reconciliou com a sua opressão e os fez sentir que essa opressão é inevitável.

2.4 SENSIBILIDADE GAY PROPRIAMENTE DITA? Os conceitos de sensibilidade camp e a sensibilidade gay não se confundem apesar de existir uma sobreposição entre eles. No artigo de Sontag (1964), ―Notes on Camp‖, é estabelecida uma distinção nítida, a sensibilidade camp não é exclusiva dos gays, embora eles constituam a sua vanguarda e sejam seus maiores propagadores. Uma vez abordada a sensibilidade camp (que é um elemento da sensibilidade gay) proponho estudar a sensibilidade gay propriamente dita. Por que estudar a sensibilidade gay? Será que as obras artísticas produzidas por homossexuais têm algo de característico e próprio? Para pensarmos essa articulação entre produção artística e repressão social, propomos a hipótese já

51 apontada por Freud de que há uma relação entre a produção artística e o silêncio — a invisibilidade imposta aos homossexuais por uma sociedade repressora. Façamos um pequeno histórico do silêncio imposto à homossexualidade na mídia brasileira durante os anos de chumbo.

2.4.1 Ditadura, mídia e homossexualidade Em 1972, o Deputado Mantelli Neto, da Assembléia Legislativa de São Paulo, encaminhou um projeto de lei ―proibindo a apresentação de homossexuais em programas de TV em todo o território nacional‖.17 Em 1983, o Deputado Edvaldo Holanda (PDS/Maranhão) oficiou ao Ministério da Justiça recomendando que fosse afastado do ar o costureiro Clodovil e os personagens Capitão Gay e Zacarias, do programa de televisão Os Trapalhões, ―por deformarem milhões de crianças e adolescentes com suas exaltações ao homossexualismo‖. Logo após, em 1985, o Diretor da Censura Federal determinou a retirada de três personagens travestis da telenovela Um sonho a mais e vetou alusão ―ao homossexualismo‖ na novela Vale tudo. No mesmo ano, no seriado televisivo Malu mulher, o episódio intitulado ―Uma coisa que deu certo‖ foi vetado pela Censura Federal sob alegação de que ―compactuava com experiências homossexuais sem oferecer orientação ou reprovação‖; e cinco jornalistas do mensário Lampião e nove repórteres da revista Isto é foram indiciados em processos pela Polícia Federal sob acusação de ofensa à moral, por terem divulgado reportagens onde a homossexualidade era tratada com naturalidade. Em 1986, mesmo homossexuais caricatos só podiam aparecer nas telas após as 23 horas. Em 1989, o jornal A tarde proibiu ―a publicação de notícias, notas, artigos, crônicas e comentários sobre homossexuais‖. A partir de uma vasta investigação, o pesquisador e cineasta Antônio Moreno registrou 127 filmes brasileiros em que aparece ou é referido algum personagem homossexual. Desse universo, estão excluídos os documentários. O autor viu 67 obras e analisou detidamente dez, segundo um modelo único de ―análise‖. Em tal modelo, vagamente semiótico, a ênfase recai sobre o gestual do personagem 17

Todas as informações de datação histórica contidas nesse subcapítulo são referências do sítio International Gay & Lesbian Human Rights Commission. (Cf. ―Ideologia anti-homossexual no Brasil. Censura e discrimação na mídia‖. 2003. Disponível em: ).

52 homossexual e a maneira como ele se integra à narrativa do filme. Com base nessa análise, o autor chega aos paradigmas e estereótipos do homossexual encontrados com mais frequência em nosso cinema. Sua conclusão é a de que, na maioria das vezes, os filmes brasileiros oferecem um retrato deformante do homossexual: um ser alienado politicamente, subempregado, promíscuo e ligado à marginalidade (COUTO, 2001). Até 1995, o espaço para os gays nos veículos de comunicação era ocupado por dois papéis simbólicos e inócuos em seu efeito transformador. O primeiro era o de bobo da corte: o público ria deles e nada mais. O segundo papel era o de marginal: fora do universo do bem, o homossexual não sofria a retaliação pública. O vilão funcionava como um correspondente na ficção do cinema e da tevê ao submundo da vida real. Gay só aparecia nos jornais, quase sem exceção, nos cadernos policiais, como vítima de crime ou personagem de reportagens sobre prostituição, por exemplo. Para aparecer na mídia, a homossexualidade precisava cumprir esses dois destinos. Como habitantes de um circo ou de um mundo cão distantes, nem o bobo nem o marginal faziam parte do público médio. Serviam apenas para aliviar a audiência, que desligava a televisão (ou fechava o jornal) confortada na sua ―normalidade‖. A representação do marginal e do bobo da corte hoje são apenas duas das várias formas em que a homossexualidade tem aparecido na mídia (MONTEIRO, 2002).

2.4.1.1 ... a abertura Hoje, há colunas semanais com programações de eventos destinados a homossexuais, nos jornais O Globo e Folha de São Paulo; e ocorreu a publicação, inclusive, pelo jornal Folha de São Paulo, de um Guia GLS – São Paulo (2007). Há pelo menos três revistas não eróticas dedicadas exclusivamente a homossexuais: Aimé, Junior e DOM. Revistas que tem como a extinta Sui Generis por ―missão editorial‖ uma elevação da auto-estima de seus leitores. A Internet também possibilita o acesso a um volume infinito de dados sobre a homossexualidade. O Brasil ainda não apresenta canais de TV a cabo dedicados aos gays, como os americanos Logo e Here TV, mas a programação dos canais disponíveis frequentemente exibe programas que abordam o assunto, como a minissérie

53 Brothers and sisters. Esses são apenas alguns exemplos de como a repressão da homossexualidade se atenuou, embora continue existindo.

2.4.2 A homossexualidade e sua repercussão na arte A condenação da homossexualidade que levava ao silêncio da mídia não impediu, no entanto, sua expressão no campo artístico, embora de uma forma velada e, mais raramente, de forma mais explícita. Os próprios artistas possuíam ou pareciam dispor de liberdade maior do que os outros homossexuais para manifestação da sua própria homossexualidade. Por outro lado, toda uma rede de relações sociais era estabelecida a partir da conexão entre arte e homossexualidade. Apreciar a cantora Maria Bethânia, por exemplo, era uma espécie de código de identificação de homossexuais, fenômeno semelhante ao culto às cantoras Judy Garland, Billie Holiday, Edith Piaf, Shirley Bassey, Barbra Streisand, Diana Ross e às cantoras de ópera Maria Callas, Anna Moffo e Rosa Ponselle (DYER, 2002). No campo da literatura brasileira, encontramos essa liberdade de expressão da homossexualidade na poesia de Glauco Mattoso e Roberto Piva, e em romances como os de João Silvério Trevisan e Caio Fernando de Abreu, os quais estão em uma tradição literária que incluem os franceses André Gide (1869-1951) e Jean Genet (1910-1986), os ingleses Oscar Wilde (1854-1900) e E. M. Forster (18791970) e os americanos Christopher Isherwood (1904-1986), William Burroughs (1914-1997), Truman Capote (1924-1987) e James Baldwin (1924-1987), entre muitos outros, reunidos aqui apesar de suas diferenças, porque apresentam em suas obras um homoerotismo explícito em maior ou menor grau. Também nas artes plásticas, como vimos anteriormente, artistas como Andy Warhol, David Hockney e Francis Bacon apresentavam em suas obras e mesmo em suas vidas pessoais uma liberdade em relação à homossexualidade que destoava do ambiente repressor ao redor. Na arte, os homossexuais puderam encontrar uma abordagem da homossexualidade divergente dos estereótipos dos programas humorísticos que ainda hoje faturam com representações caricatas. Tal produção artística originou um questionamento sobre a relação entre a homossexualidade e a arte, à medida que

54 novos produtos artísticos surgiam, suscitando o interesse pela investigação sobre uma possível sensibilidade gay. Retomando a sensibilidade gay propriamente dita, como já foi dito, Susan Sontag (1964) foi a primeira a afirmar a existência de uma sensibilidade especial utilizando o termo camp — retirado do romance de Christopher Isherwood (1992) onde os homossexuais são, além de criadores especiais de obras de arte, criadores de uma sensibilidade específica: a sensibilidade gay. A sensibilidade gay seria uma forma de expressar a homossexualidade e o desejo gay sem que isso fosse declarado de forma explicitamente sexual. Essa era uma importante modalidade de comunicação para gays e lésbicas nos Estados Unidos nos sombrios e opressivos anos 1950, e também na bastante enrustida década de 1960, antes que a rebelião de Stonewall tornasse a homossexualidade mais pública e mais política (GRUNDMAN, 2009). A sensibilidade gay pode ser compreendida como ―o resultado de um senso estético aguçado pela experiência da opressão ou ainda como a celebração de uma perspectiva especial conferida àqueles que se diferenciam da norma sexual‖ (KANTROWITZ, 2009). O que é uma outra forma de afirmar a hipótese freudiana, conforme estudada no capítulo 1. A sensibilidade gay de forma explícita ou implícita está baseada na ameaça à estrutura de poder que a atividade e a paixão homossexual representam por ser um desafio direto à demanda de que toda sexualidade seja reprodutiva. Sontag, ao focar no camp, segundo Bronski (2009), ignora duas características díspares da sensibilidade gay. A primeira é a apreciação e o envolvimento com a alta cultura simplesmente como uma forma de obter certo grau de aceitação, na medida em que a alta cultura (ópera e música clássica) carrega consigo uma respeitabilidade por definição, muitos gays seriam atraídos por ela. A segunda se baseia na cultura gay que se desenvolveu depois de Stonewall, na qual gays e lésbicas produziram conscientemente trabalhos artísticos a partir de suas próprias análises, experiências e percepções. Ao contrário da cultura gay anterior à Stonewall, esses novos trabalhos não dependiam significativamente de uma reação à cultura ou pressões da sociedade como um todo. Reconhecendo que eles têm uma história, apesar de escondida, os homossexuais recorreram ao passado e o utilizaram para reinterpretar as suas vidas e criar um contexto para a imaginação e o sentimento. Esse contexto — a liberação

55 gay — tornou-se um movimento político e gerou uma produção artística diferenciada. A liberação gay, a sua cultura artística e a sua sensibilidade passaram a ser um fato da vida que não pôde mais ser ignorado pelo público em geral (BRONSKI, 2009). Aqui o produto artístico parece marcado pela elaboração da história pessoal e sua transformação em arte. Por outro lado, a existência de uma sensibilidade gay é discutível, porque ela é praticamente impossível de ser definida. Mesmo dentro dos limites de uma era e uma cultura, existe uma diversidade muito complexa de gays e lésbicas baseada em diferentes categorias como etnia, idade, nível de educação, espaço geográfico e costumes (KANTROWITZ , 2009). Quem determina a sensibilidade estética gay: o artista ou o espectador? Ela está no produtor ou no espectador de obras de arte, como a ópera? Segundo Paul Robinson (2002), a sensibilidade gay encontra-se do lado do espectador, e ela é historicamente datada. Surge no momento em que uma identidade gay autoconsciente nasce, mas sob circunstâncias que exigem diferentes graus de ocultação. A sensibilidade estética gay é um código partilhado por um grupo que se define pela identidade gay. Ele exemplifica com determinadas cantoras de ópera muito admiradas por gays, cujo canto funcionaria como uma espécie de ―protesto homossexual‖ porque desafiam a divisão dos gêneros: apesar de femininas, elas têm papéis de grande destaque, e suas vozes tanto podem ser femininas quanto masculinas — assim, elas dariam voz à identidade homossexual. Robinson (2002) diz que à medida que a repressão sobre a expressão da homossexualidade por vias mais diretas diminui, também desaparece paulatinamente essa identificação. Para Robinson (2002), a sensibilidade gay, como uma das estratégias para burlar a censura contra a livre expressão da homossexualidade, perde aos poucos sua função, na medida em que os homossexuais podem cada vez mais se expor diretamente e agir sem subterfúgios, quando antes precisavam expressar-se indiretamente ou metaforicamente. Ainda de acordo com o autor, o ―armário‖ (a necessidade de esconder a homossexualidade) deu origem a um grande número de produtos culturais formidáveis, como os romances de Henry James (ROBINSON, 2002, p. 168-9). Segundo Marreiro (2007), Camille Paglia expressou idéia semelhante em relação ao dramaturgo Tennessee Williams: ―Antes de 1969 o mundo gay era muito

56 fechado, reprimido. Tennessee Williams era gay, mas vivia no mundo heterossexual. Por isso ele foi capaz de peças com enorme alcance artístico‖. Também é possível afirmar que a sensibilidade gay, assim como a sensibilidade camp não está necessariamente ligada a um conteúdo gay. Os diretores gays Vincent Minnelli e Luchino Visconti geralmente não utilizavam histórias gays, mas é fácil perceber uma sensibilidade ―gay‖ nos extravagantes musicais de Minnelli e nos dramas operísticos de Visconti. Nebulosa ou não, a sensibilidade gay parece paradoxalmente existir apesar de indefinida, e se ela é raramente discutida é devido provavelmente ao temor de cair em estereótipos repressores. O que parece ser temido é que o reconhecimento das diferenças leve à discriminação. Mas é justamente, segundo Brent Ledger (2009), a diferença e a emoção de identificá-la em alguns trabalhos de arte e literatura que dão um brilho à chamada vida gay. Retornando a Freud, podemos supor que os homossexuais, por sentirem necessidade de investigar a estranheza sentida em relação à maioria das pessoas ao seu redor, acabam por desenvolver uma curiosidade intelectual maior em relação aos fenômenos do mundo em geral.18 Sem dúvida uma sensibilidade gay não seria inata; ela poderia ser adquirida através do confronto com a estranheza de pertencer a uma minoria. Mas, adversamente, coloca-se a questão: seriam todas as minorias mais criativas? A criatividade e um humor mordaz e venenoso também são associados a outros grupos marginalizados e estigmatizados socialmente, como os negros e os judeus. Existiria uma sensibilidade negra ou judaica? O fato é que o estigma social coloca os homossexuais fora dos centros formais de poder social, ocupando-os com ―uma posição estrutural às margens da sociedade da qual é pelo menos possível uma visão crítica das coisas‖ (FRY, 1983, p. 25). A ―marginalização‖ é justamente o processo através do qual certas pessoas e idéias são privilegiadas em relação a outras em uma determinada época (FERGUSON, 1990). Mas marginal em relação a quê? Não é fácil responder, porque o lugar a partir de onde o poder é exercido não é claro. Sempre que procuramos identificar o seu centro, ele parece estar em outro lugar. No entanto, nós sabemos que esse centro

18

Conforme Antonio Quinet em sessão de orientação de dissertação, 2009.

57 fantasma não deixa de exercer um poder sobre a sociedade, nossa cultura e a maneira como pensamos. De acordo com FERGUSON (1990, p. 48), Audre Lorde19 define essa norma mítica como ―branca, magra, masculina, jovem, heterossexual, cristã e financeiramente segura‖; e Toni Morrison afirmou que a resistência só pode começar com um questionamento da identidade heterossexual, masculina e branca que está por trás do conceito de universal. Questionar essa norma é uma maneira de explorar e em última instância desconstruir o problemático binarismo das noções de centro e periferia, inclusão e exclusão, maioria e minoria tal como elas operam na prática social e artística. A arte é um objeto de estudo especial porque é inseparável da cultura e desafia a idéia estranhamente persistente de que os artistas e o trabalho que realizam partem de pessoas da mesma cor, gênero e preferência sexual. O interesse da busca pela natureza de uma sensibilidade gay é explorar os limites da estética convencional, na medida em que esta é apresentada como transcendendo o âmbito social e o político (DOLLIMORE, 1991, p. 312). Ora toda estética está vinculada à política, ao grupo e à época em que ela é conceituada e produzida.

19

Audre Lorde foi uma importante ativista negra e lésbica americana, nos anos 1960-1970.

58

3 SENSIBILIDADE GAY E PSICANÁLISE Depois de ter definido os conceitos freudianos de pulsão e sublimação e de esboçada uma possível relação entre arte e homossexualidade a partir da psicanálise, no primeiro capítulo, e, no segundo, ter definido sensibilidade camp e sensibilidade gay, o objetivo agora é estabelecer um diálogo entre os conceitos estudados. Por um lado, há uma contradição na teoria freudiana: se Freud era contrário à caracterização dos homossexuais como um grupo especial de indivíduos, como ele poderia atribuir aos homossexuais uma capacidade maior para a sublimação? (FREUD, 1908a). Por outro lado, os conceitos de sensibilidade camp e sensibilidade gay também apresentam um problema na sua origem: estarem fundamentados em uma suposta identidade gay (SONTAG, 1964). É inerente à política de identidade o processo de limitação e redução do ser humano a uma única característica. Todos os seres humanos têm muitas identidades, refletindo não apenas a escolha de objeto sexual, mas também o gênero, a classe econômica, a etnia, a geografia, a profissão, a religião e assim por diante. Afirmar uma identidade gay ou lésbica necessariamente obscurece a importância de outros fatores que fraturam qualquer idéia de uma unidade entre as pessoas do grupo ao qual se afirma pertencer. E o que é pior: tal processo possibilita a replicação de persistentes preconceitos e hierarquias sociais. A idéia de uma sensibilidade gay acaba, portanto sendo preconceituosa. Entendemos que uma definição de preconceito corresponde à atribuição de uma característica especial a um grupo, mesmo que seja uma característica boa. Discriminar um tipo de gozo diferente do seu é a base do racismo, como afirmou

59 Lacan (1975) em Televisão. O preconceito está em não suportar o gozo do outro e a diferença. Freud (1930 [1929]) fala sobre o preconceito no artigo ―O mal-estar na civilização‖, quando trata do ―narcisismo das pequenas diferenças‖: (...) fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras (...) Se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. (FREUD, 1930 [1929], p. 136).

A psicanálise problematiza ainda mais as noções de identidade gay ou lésbica com a idéia da bissexualidade, como vimos no primeiro capítulo. A política de identidade exige uma continuidade do binarismo, onde os indivíduos que se sentem atraídos por pessoas do mesmo sexo são pressionados a se identificar em clara oposição à heterossexualidade. Além de Freud, Alfred Kinsey também identificou na sua famosa pesquisa realizada nas décadas de 1940 e 1950, nos Estados Unidos, que a maioria dos indivíduos se encontra entre a heterossexualidade absoluta e a homossexualidade absoluta (HALL, 2009). A partir do campo da sexologia, Kinsey quebra com o binarismo entre a heterossexualidade e a homossexualidade entendidas como categorias estanques, com o resultado de sua pesquisa. Categorias restritas servem como base para o ativismo político, mas também tem o potencial de confinar os indivíduos de maneira a limitar a sua livre expressão. As preferências sexuais dos indivíduos são irredutíveis a tipologias. Em outros termos, o tipo ou a personalidade homossexual é uma invenção indigente da cultura do preconceito. Sua função teórica não é a de fazer entender algo de importante sobre o ser humano, e sim a de criar um gueto simbólico que permite distinguir quem tem direito ou não ao respeito moral. Mas se não existe um tipo homossexual natural, existem traços psicossociais comuns aos indivíduos eroticamente atraídos por outros do mesmo sexo. Esses traços, entretanto, são uma pura reação à discriminação (COSTA, 1996). O que poderia então, do ponto de vista da psicanálise, ser entendido como sensibilidade gay? Talvez o convívio com o real colocado pelo enigma da própria homossexualidade exija um esforço simbólico e imaginário extremamente acentuado

60 do sujeito. Mas isso não é próprio a todo tipo de sexualidade? A questão da sexualidade é em si enigmática e traumática. Talvez no caso da homossexualidade isso se acresça de uma maneira mais intensa exigindo do sujeito um esforço simbólico maior, o que acaba produzindo uma maior consideração por suas próprias questões, pelo meio e também pela criação. Não só no campo da arte, mas em todos os níveis, como demonstra o próprio exemplo dado por Freud (1910a) de Leonardo da Vinci. Todavia, o estudo dos conceitos freudianos de pulsão e sublimação aponta para a impossibilidade de aceitar a idéia de uma sensibilidade gay específica. Devido à inexistência de uma ―pulsão homossexual‖. A idéia de uma sensibilidade gay, no entanto, permanece uma importante estratégia política de discussão de temas antes considerados tabus. É assim que ela deve ser entendida e não como uma crença em uma habilidade específica de um determinado grupo.

61

CONCLUSÃO O objetivo deste trabalho foi propor um diálogo entre a idéia de sensibilidade gay e a psicanálise. Primeiro, foi realizado um esclarecimento em relação à visão freudiana da homossexualidade. Freud é criticado como sendo um responsável pelo binarismo homossexualidade/heterossexualidade, mas, na realidade, o que o estudo da sua obra aponta é que ele desafiou esse binarismo principalmente com a sua teoria sobre a bissexualidade. Para que o diálogo entre a psicanálise e a sensibilidade gay fosse realizado, foram estudadas a bissexualidade, a pulsão e o seu destino, a sublimação, que permite esboçar uma relação entre a psicanálise e a arte. Posteriormente, foram definidos os conceitos de camp, sem o qual não é possível definir sensibilidade gay, o de sensibilidade gay propriamente dita e, finalmente, foram relacionadas sensibilidade gay e psicanálise. Há dois elementos chaves no desenvolvimento da sensibilidade gay. O primeiro é a crítica social em reação à opressão e ao ostracismo imposto ao homossexual pela sociedade. Edward Carpenter, Havelock Ellis e John Addington Symonds criticaram as normas sociais em vigor do ponto de vista do excluído. Em seus trabalhos desafiaram as idéias correntes sobre sexualidade, gênero e a proibição da atração entre pessoas do mesmo sexo. A segunda característica chave é que devido a restrições sociais e legais contra a homossexualidade, muitos artistas e escritores não podiam assumir sua sexualidade e o seus trabalhos foram entremeado por sinais e códigos que permitiam aqueles com a mesma orientação se identificarem uns aos outros. O estudo sobre uma sensibilidade homossexual levanta várias questões de difícil solução: esta sensibilidade é transcultural ou é historicamente enraizada nas

62 várias histórias da representação da homossexualidade? Ela é uma expressão direta da homossexualidade ou uma expressão indireta da repressão e/ou sublimação? Ela é definida a partir da sexualidade do indivíduo que a expressa ou a possui? Um heterossexual não é capaz de expressá-la? De certa maneira a própria noção de uma sensibilidade homossexual já é uma contradição (DOLLIMORE, 1991, p. 308). A conclusão que o trabalho propõe é que a idéia de uma sensibilidade gay acaba sendo preconceituosa se avaliada à luz da psicanálise, porque aponta para um gozo a mais nos homossexuais, o que é uma forma de preconceito, ainda que por uma qualidade positiva. No entanto, do ponto de vista de uma estratégia política, talvez seja importante o estudo do que é chamado de sensibilidade gay como um conceito que reuniria a produção artística dos homossexuais, assim como constituiria um código estético de comunicação entre eles. Estratégia tanto mais necessária quanto maior for a repressão social aos homossexuais e a imposição da sociedade de mantê-los no silêncio e na invisibilidade.

63

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTUCCI, Giovanna. Sublimação e processos de subjetivação: entre a psicanálise e a arte. Dispnível em: . Acesso em: 20 jan. 2009. BARTUCCI, Giovanna (Org.). Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago, 2001. BERGMAN, David. Camp. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2009. BOCOCK, Robert. Sigmund Freud. London/New York: Tavistock Publications, 1983. BRONSKI, Michael. Culture Clash: The Making of Gay Sensibility. Disponível . Acesso em: 14 mai. 2009.

em:

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. COSTA, Jurandir Freire. ―O argumento central de Sullivan é discutível‖. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 1 jun. 1996. COUTINHO JORGE, Marco Antonio. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: as bases conceituais. Vol 1. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. COUTO, José Geraldo. ―Cinema de exclusão‖. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 dez. 2001. CRUXÊN, Orlando. A sublimação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. DIDIER-WEILL, Alain. Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contracapa, 1997. DOLLIMORE, Jonathan. Sexual Dissidence: Augustine to Wilde, Freud to Foucault. Oxford: Oxford, 1991. DUBERMAN, Martin. Stonewall. New York: Plume, 1994. DYER, Richard. Heavenly Bodies: Film Stars and Society. London: Macmillan, 1987. EVANS, Dylan. An Introductory Dictionary of Lacanian Psychoanalysis. London: Routledge, 1997. FERGUSON, Russell (Org.). Out there: marginalization and contemporary cultures. London: The MIT Press, 1990. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: Vontade de Saber. Vol.1. Rio de Janeiro: Graal, 1997.

64 FREUD, Sigmund. (1987). ―Rascunho L‖. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (ESB). Vol. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______. (1905 [1901]). ―Fragmentos da análise de um caso de histeria‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 7. ______. (1905). ―Três ensaios sobre a teoria da sexualidade‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 7. ______. (1908 [1907]). ―Escritores criativos e devaneios‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 9. ______. (1908a). ―Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 9. ______. (1908b). ―As fantasias histéricas e sua relação com a homossexualidade‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 9. ______. (1909). ―Notas sobre um caso de neurose obsessiva‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 10. ______. (1910a). ―Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 11. ______. (1910b). ―Cinco lições de paicanálise‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 11. ______. (1911). ―Notas psicanalíticas de um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides)‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 12. ______. (1915). ―Pulsão e seus destinos‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 14. ______. (1923 [1922]). ―Dois verbetes de enciclopédia‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 18. ______. (1923). ―O eu e o isso‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 19. ______. (1925). ―Um estudo autobiográfico‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 20. ______. (1926). ―A questão da análise leiga‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 20. ______. (1930 [1929]). ―O Mal-estar na civilização‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 21. ______. (1931). ―Sexualidade Feminina‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 21. ______. (1933 [1932]a). ―Conferência XXXIII: Feminilidade‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 22. ______. (1933 [1932]b). ―Conferência XXXV: A questão de uma Weltanschauung‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 22. ______. (1935). Carta para uma mãe americana. In: GAY, Peter. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ______. (1937). ―Análise terminável e interminável‖. In: ESB. Op. cit. Vol. 23. FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982.

65 FRY, Peter & MACRAE, Edward. O que é homossexualidade?. São Paulo: Brasiliense, 1983. GIERSDORF, Jens Richard. ―Paragraph 175‖. In: HAGGERTY, George E. (Ed.). Gay Histories and Cultures. New York/London: Garland, 2000. GRUNDMAN, Roy. O cinema gay de Andy Warhol. Disponível em: . Acesso em: 25 mai. 2009. HALL, Donald. Identity. Disponível em: . Acesso em: 26 mai. 2009. HANNS, Luiz Alberto. ―Comentários do editor brasileiro‖. In: FREUD, Sigmund. Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Obras psicológicas de Sigmund Freud). Vol. 3. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2004. HUTTER, Jörg. ―Westphal, Carl Friedrich Otto (1833-1890)‖. In: HAGGERTY, George E. (Ed.). Gay Histories and Cultures. New York/London: Garland, 2000. Ideologia anti-homossexual no Brasil. Censura e discrimação na mídia. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2009. ISHERWOOD, Christopher. O mundo ao anoitecer. O'SHEA, José Roberto (Trad.). São Paulo: Siciliano, 1992. KANTROWITZ, Arnie. Humor. Disponível em: . Acesso em: 28 mai 2009; LACAN, Jacques. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. ______. (1975). Televisão. QUINET, Antonio (Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. LEDGER, Brent. If there’s a gay sensibility, it’s about more than sex. Disponível em: . Acesso em: 27 mai 2009. MARONEY, Padraic. Defining the Gay Sensibility. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2009. MARQUES, Luciana. Homossexualidade: uma análise do tema sob a luz da psicanálise. 2008. Dissertação. (Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade). Departamento de Psicologia, Universidade Veiga de Almeida, 2008. MARREIRO, Flávia. ―Paglia ataca pressão gay sobre jovens‖. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9 nov. 2007. MONTEIRO, Marko. ―O homoerotismo nas revistas Sui Generis e Homens‖. In: SANTOS, Rick & GARCIA, Wilton. A escrita de Adé: perspectivas teóricas dos estudos gays e lésbicos no Brasil. São Paulo: Xamã, 2002.

66 MOSSE, George L. Nationalism and Sexuality: Middle-Class Morality and Sexual Norms in Modern Europe. Madison: Wisconsin, 1985. NERI, Regina. A psicanálise e o feminino: um horizonte da modernidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. NOBLAT. Ricardo. Escultura - Apollo Belvedere, de Leocarés. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2009. NORTHCOTT, Richard (Ed.). The American Heritage Dictionary Desk Dictionary. 4th ed. Nova Iorque: Harcourt Publishing Company, 2003. PIGG, Daniel F. ―Queer‖. In: HAGGERTY, George E. (Ed.). Gay Histories and Cultures. New York/London: Garland, 2000. PRONIN, Lizandra. As pulsões e suas vicissitudes (1915). Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2009. QUINET, Antonio. ―Retorno às trevas, com subsídios‖. Jornal O Globo, Opinião, Rio de Janeiro, 15 nov. 2004. RIVERA, Tania. Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. ROBARGE, Alan. Gay Sensibility: The Gift of Homosexuality. . Acesso em: 2 mar. 2009.

Disponível

em:

ROBINSON, Paul. Opera, Sex, and other Vital Matters. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. SAINT-GIRONS, Baldine. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. SCHÜKLENK, Udo. ―Bloch, Iwan (1872-1922)‖. In: HAGGERTY, George E. (Ed.). Gay Histories and Cultures. New York/London: Garland, 2000. SEGAL, Hanna. Sonho, fantasia e arte. Rio de Janeiro: Imago, 1993. SEIDMAN, Steven. ―Deconstructing queer theory or the under-theorization of the social and the ethical‖. In: NICHOLSON, Linda & SEIDMAN, Steven (Eds.). Social Postmodernism: Beyond identity politics. New York: Cambridge, 1995. SONTAG, Susan (1964). ―Notes on ‗Camp‖. In: ______ A Susan Sontag Reader. London: Penguin Books, 1983. STOCKTON, Kathryn Bond. ―Ellis, Havelock (1859-1939)‖. In: HAGGERTY, George E. (Ed.). Gay Histories and Cultures. New York/London: Garland, 2000. ______. ―Kraft-Ebing, Richard von (1840-1902)‖. In: HAGGERTY, George E. (Ed.). Gay Histories and Cultures. New York/London: Garland, 2000.

67 VIEIRA, Luciana. A pulsão como princípio da diferença. Disponível em: . Acesso em: 5 fev. 2009. WEINBERG, Jonathan. ―Art History‖. In: HAGGERTY, George E. (Ed.). Gay Histories and Cultures. New York/London: Garland, 2000.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.