Sentidos construídos sobre arte e museu: a Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre

July 15, 2017 | Autor: Luciano Alfonso | Categoria: Museums, Jornalismo Cultural, Cultural Journalism, Personalização, Fundação Iberê Camargo
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SENTIDOS CONSTRUÍDOS SOBRE ARTE E MUSEU: A FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO EM PORTO ALEGRE Luciano Alfonso1 Resumo: Hoje é notório que nas questões relacionadas ao urbano, a arquitetura ocupa lugar de destaque. Na contemporaneidade os equipamentos culturais e muito especificamente os museus e instituições de arte adquiriram uma notoriedade ímpar. Assim, partindo do pressuposto de que o jornalismo é um importante lugar de produção de sentidos sobre valores contemporâneos, incluindo parte significativa do conhecimento construído sobre cultura e arte, este artigo sintetiza aspectos da dissertação “Personalização como estratégia discursiva do jornalismo: o caso da Fundação Iberê Camargo”. O trabalho evidencia como o projeto arquitetônico singular do português Álvaro Siza estabelece sensibilidades de diversas ordens. Palavras-chave: Jornalismo cultural; personalização; museu; Fundação Iberê Camargo. A FIC - Fundação Iberê Camargo2 era um projeto tanto do artista3 que deu nome à instituição cultural como de sua viúva, Maria Coussiart Camargo. A instituição data de outubro de 1995, pouco mais de um ano após a morte de Iberê, tendo o apoio do empresário do ramo do aço e colecionador de arte Jorge Gerdau Johannpeter. Hoje a Fundação, com a nova sede inaugurada em 30 de maio de 2008, projetada pelo arquiteto português Álvaro Siza é uma referência arquitetônica internacional em termos de museu, sendo capa e tema de reportagens em diversos países, além de premiada desde a concepção. Neste prédio estão mais de 4.000 obras de Iberê Camargo, das mais 7.000 que produziu. A instituição funciona também e, principalmente, como um espaço de exposição e reflexão de arte contemporânea, aberta a atividades com outros acervos e artistas. Nosso olhar sobre a Fundação se estabelece a partir do jornalismo e da leitura do material jornalístico, onde buscamos verificar a preponderância da utilização do 1

UFRGS. Mestre em Comunicação e Informação/PPGCOM. Doutorando pelo PPGCOM/UFRGS. [email protected] 2 3

http://www.iberecamargo.org.br

Pertencente à geração de pintores que despontou nos anos 40 no Brasil, Iberê Camargo foi pintor, gravador e desenhista. Nasceu em 1914 na cidade gaúcha de Restinga Seca e morreu, em 1994, em Porto Alegre. Viveu durante décadas no Rio de Janeiro para onde foi continuar os estudos de pintura em 1942. No final da década vai estudar na Europa por dois anos com nomes como André Lothe, De Chirico e Carlo Petrucci. Participou ao longo da carreira de exposições nacionais e internacionais, sem nunca estar diretamente filiado a movimentos estéticos.

fenômeno da personalização, evidenciando-se o funcionamento de um discurso que cria efeitos de sentido mais amplos a partir da notoriedade. Apostamos no uso do termo personalização por entendermos mais adequado ao sentido do que é investigado no trabalho, ou seja, a questão de personalizar o discurso jornalístico, representar por meio de uma pessoa, pessoalizar. Personificação poderia remeter a sentidos mais abstratos ou psicológicos. A verificação da utilização do fenômeno da personalização no discurso sobre a Fundação cria efeitos de sentido mais amplos a partir da notoriedade e se dá a partir de alguns pressupostos, quais sejam: o jornalismo é uma esfera do discurso com gêneros, onde o modelo é o da credibilidade; o jornalismo cultural é um lugar especializado de construção de sentidos sobre a arte; o museu é um ambiente físico e simbólico de importantes significados sobre a contemporaneidade; o discurso é o resultado de estratégias narrativas. Assim, considerando que o jornalismo é um discurso que constrói sentidos sobre a cultura e também que a personalização é uma estratégia discursiva recorrente no jornalismo cultural, buscamos responder que sentidos contemporâneos são construídos sobre arte e sobre museu por meio desta estratégia. Para nossa pesquisa definimos os primeiros sete meses de 2008 como recorte temporal para coleta do material empírico por tratar-se de um momento significativo que abrange o período anterior e posterior à inauguração da nova sede da Fundação Iberê Camargo.

Jornalismo, fato cultural e sociedade O cerne desta pesquisa reside na compreensão de que o jornalismo exerce uma importante mediação entre o fato cultural e a sociedade. O que se esboça aqui é uma análise do discurso que circula nos jornais sobre a Fundação Iberê Camargo, focada no entendimento das perspectivas projetadas pelo jornalismo sobre a realidade cultural contemporânea, a estética e o sistema artístico-cultural. O jornalismo emerge de dois princípios de legitimação: o reconhecimento pelos pares e o reconhecimento pela maioria. Além disso, assim como o campo literário ou o campo artístico, o campo jornalístico é o lugar de uma lógica específica (BOURDIEU, 2006). E é a partir da compreensão dos modos de produção jornalística, de suas lógicas temporais e de suas funções sociais (FRANCISCATO, 2005) que se pode caracterizar o jornalismo tanto como atividade profissional quanto como instituição.

A notícia ou a informação continua a ser o principal produto do jornalismo e resultado da mediação jornalística ativa, seja de um acontecimento ou de um personagem não ficcional. É preciso, então, entender “as notícias como uma ‘construção’ social, o resultado de inúmeras interações entre diversos agentes sociais” (TRAQUINA, 2005). Este raciocínio objetiva enfatizar que esta pesquisa está inscrita no paradigma construcionista, que entende as notícias como construções, narrativas, “estórias”. Nele, o jornalismo é visto como produtor de um conhecimento particular sobre os fatos do mundo, mas também como lugar de reprodução dos conhecimentos gerados por outras instituições sociais. O jornalismo conecta uma multiplicidade de vozes, sentidos e códigos diferenciados, os quais fazem, fizeram ou passarão a fazer parte do horizonte cultural em que o mesmo se constitui (GADINI, 2007). É neste espaço de construção social da realidade que o discurso jornalístico circula e desempenha suas funções. Conectado ao mundo, o produto jornalístico materializa uma variedade enorme de fenômenos, desenhando um mapa do universo social de onde são recortados os acontecimentos noticiados pela mídia. Já o jornalismo cultural, segundo Golin (2010), este recorte genérico de cultura que é apropriado pelo jornalismo em produtos e cadernos especializados ancora-se no uso cotidiano do vocábulo relacionado à educação, à ilustração e ao refinamento, assim como de aptidões estéticas e intelectuais, insere-se num quadro mais amplo, que compreende o campo jornalístico como complexo e pleno de significados no que diz respeito à produção, à circulação e ao consumo de bens simbólicos. A complexidade tanto do campo da cultura como do jornalístico – que trabalha predominantemente sob a dinâmica mercadológica – cada vez mais exige clareza sobre os elementos utilizados pelo jornalismo para atuar em cada situação em particular. Entre esses recursos, é de grande pertinência e importância no contexto deste trabalho o tratamento dos fatos culturais a partir do sujeito, a personalização, aspecto que ganhou força ainda maior na pós-modernidade por meio da abordagem de assuntos sob o viés da autoria. A personalização se soma a outros elementos, como a predominância nos últimos anos do uso de imagens, pois, como afirma Golin (2010, p. 199), “uma boa visualidade passa a ser critério de seleção estratégico na editoria de cultura”.

O fenômeno de personalização, segundo Tuchman (2005)4, é essencial ao processo de noticiabilidade. É através da personalização que a mídia busca atrair o público, pois de acordo com a socióloga norte-americana, os editores acreditam que os leitores se interessam por pessoas específicas em lugares específicos, com papéis específicos ou associados a tópicos específicos.

Isso significa que a mídia acaba

estabelecendo uma espécie de enquadramento onde existem limites de um consenso e de uma coerência no mundo social. Outros autores, Galtung e Ruge (1999), afirmam que fatores culturais influenciam a transição dos acontecimentos para notícias. Entre eles está a percepção do acontecimento em termos pessoais, a ação de indivíduos específicos. Esta personalização é resultado de um idealismo cultural; da necessidade de significado e consequentemente de identificação; do fator-frequência de fixação de pessoas na mídia em relação às estruturas; e de dar uma cara a apresentação das notícias ao invés de um corpo de entrevistados sobre uma determinada instituição. Este discurso jornalístico contribui para organizar a vida coletiva. No ato de discurso5 o jornalismo ocupa um lugar privilegiado de produção e circulação de valores e sentidos, por ancorar-se na noção de credibilidade – em princípio, e na moldura dos diversos discursos midiáticos possíveis. O relato jornalístico é aquele que busca mais se aproximar da verdade dos fatos, ou, pelo menos, o que tem esta aproximação como ideal normativo. O jornalismo transforma-se, assim, em um poderoso ambiente de análise sobre a cultura.

O museu na cultura contemporânea O momento histórico presente trouxe a necessidade de atenção especial às mediações entre economia e a cultura. Já não cabe à cultura apenas um papel de significação na vida social; ela agora está além do social, num mapa de interdependências e equilíbrios de poder no campo social, como especificamente entre os especialistas de bens simbólicos que atuam próximos a especialistas econômicos e políticos. E é nesta complexidade das relações estabelecidas no mundo atual que se deve compreender o momento histórico e cultural em que surge, em Porto Alegre, a Fundação Iberê Camargo. É um contexto com feições globalizantes, onde modos de

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TUCHMAN, Gaye. Making News. New York: The Free Press, 1978 (apud PONTE, 2005).

Resultado da combinação das circunstâncias em que se fala ou escreve com a maneira pela qual se fala, numa imbricação de condições extradiscursivas e de realizações intradiscursivas que produz sentido. In CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

produção e circulação da arte também passam por profundas transformações, entre as quais a construção de grandes equipamentos culturais. Harvey (2008), utilizando Roland Barthes6 numa reflexão sobre arquitetura e comunicação, aponta que a cidade deve ser encarada como uma forma discursiva e, consequentemente, como uma linguagem, que nos cobra uma atenção ao que nos está sendo dito. Isto porque “absorvemos essas mensagens em meio a todas as outras múltiplas distrações da vida urbana” (HARVEY, 2008, p. 70). Este raciocínio serve de ponto de partida para delimitar como se configura o campo da arquitetura e do projeto urbano, a partir do pós-modernismo, onde o museu é um dos espaços mais emblemáticos desta cultura contemporânea. O museu como templo da arte é um conceito burguês sacralizado com o modernismo. O museu sempre foi um acontecimento político, por mais neutra e apoliticamente que se comporte (BELTING, 2006). Vistos como paradigma das atividades culturais contemporâneas, os tipos de museus são hoje quase ilimitados, o que justificaria que o termo seja usado “indistintamente para elementos de um conjunto heterogêneo formado por milhares de instituições espalhadas pelo mundo todo, que possuem ou não acervos próprios” (LARA FILHO, 2006, p. 10). Outro aspecto levantado por Belting é a politização do museu que parte, hoje, de grupos de interesses que atuam internacionalmente sob o conceito de “intercâmbio cultural”, uma espécie de disputa pelo reconhecimento com base em conceitos curatoriais, na maioria das vezes estabelecidos pelos próprios grupos de interesses. Huyssen (1997) investiga esta mania pelos museus surgida nos anos 80, que acabou por recolocar este espaço institucional como de uma verdade canônica e de uma cultura de autoridade. Suas conclusões apontam para três modelos explicativos. O primeiro, centrado na cultura como compensação, num historicismo expansivo da cultura contemporânea, uma espécie de obsessão pelo passado, que tem no pensamento de Hermann Lübbe sua matriz explicativa. Segundo o autor, “a modernização é acompanhada pela atrofia de tradições válidas, pela perda da racionalidade e pela entropia das últimas experiências estáveis e reais” (HUYSSEN, 1997, p. 239). Neste sentido, o museu compensaria a perda de estabilidade. O segundo modelo, defendido pelos franceses Jean Baudrillard e Henri Pierre Jeudy, fundamenta que a explosão de museus é uma “tentativa da cultura contemporânea de preservar, controlar e dominar o 6

Escritor, crítico literário, sociólogo e filósofo francês (1915-1980), Barthes foi um crítico dos conceitos teóricos complexos que circularam dentro dos centros educativos franceses na década de 50.

real com o intuito de esconder o fato de que o real está em agonia devido à expansão da simulação” (HUYSSEN, 1997, p. 245). Já o terceiro modelo é mais sociológico e crítico, que defende o surgimento de um novo estágio do capitalismo consumista. Segundo esse modelo, a televisão teria despertado na sociedade um desejo irrealizável de experiência e de acontecimentos que a musealização parece suprir – uma materialidade do artefato exibido que se opõe à imagem sempre fugaz na tela.

Personalização como estratégia discursiva São diversas as possibilidades de estudo da personalização como recurso discursivo. No entanto, foi a figura de Álvaro Siza que possibilitou ir ao cerne do que queríamos debater: as relações entre jornalismo, cultura, arte e museu. A proeminência adquirida pela arquitetura – ela mesma tomada como arte – no mundo contemporâneo é incorporada ao jornalismo cultural de tal modo, que articula noções também contemporâneas sobre o que seja a arte e o que seja o museu. Trabalhando o jornalismo como linguagem fizemos a escolha metodológica da Análise de Discurso (AD). Não apenas porque é um método que permite trabalhar com os significados, mas especialmente porque ele se inscreve na mesma raiz paradigmática do interacionismo que norteia nossa compreensão sobre o jornalismo. Benetti (2008) enfatiza que os discursos e seus modos de produção podem ser uma maneira de perceber uma sociedade. Para se pensar o jornalismo como um gênero discursivo, a autora aposta no conceito de contrato de comunicação, sistematizado por Charaudeau (2006), a partir de cinco elementos essenciais que devem ser associados às regras do campo jornalístico. “O contrato de comunicação assenta-se sobre a compreensão dos elementos que constituem um quadro de referência, a moldura onde o discurso acontecerá”, explica Benetti (2008, p. 39). Sobre os elementos fundamentais são eles: [...] “quem diz e para quem”, “para quê se diz”, “o que se diz”, “em que condições se diz” e “como se diz”. Todos estes elementos se misturam em um conjunto que só é possível dividir sob o aspecto metódico, mas jamais processual. Para pensar o gênero jornalístico, é preciso considerar a totalidade desses elementos".

O fato de o discurso ser construído de forma intersubjetiva – ele só existe em um espaço entre sujeitos – exige compreendê-lo como histórico e subordinado aos enquadramentos sociais e culturais. Este dizer e este interpretar são movimentos de

construção de sentidos. Assim, na análise do discurso jornalístico é necessário perceber o texto como decorrente de um movimento de força exterior e anterior. Berger (1996) faz uso das noções bourdianas de campo, capital e capital simbólico para demonstrar o poder do jornalismo enquanto discurso. É preciso reconhecer o capital simbólico deste campo, que tem “poder de fazer coisas com palavras”, segundo o próprio Bourdieu. Com a credibilidade como seu mais importante capital, o jornalismo detém privilegiadamente o capital simbólico na medida em que é da natureza deste campo fazer crer. Esta credibilidade provém da compreensão social de que o jornalismo é uma prática autorizada a narrar a realidade. Compreendido isto, se pode afirmar que a realidade é constituída por aquilo que se torna visível através da mídia. Esta função simbólica, com efeitos normativos, é praticada pela mídia como um todo e pelo discurso jornalístico em particular. De outra maneira, o que interessa, à Análise de Discurso, é compreender o funcionamento de um discurso, ou como este discurso significa. E é exatamente o que buscamos fazer aqui: mais do que simplesmente localizar os sentidos, desvendar uma estratégia discursiva. A estratégia discursiva, porém, não é evidente. Ela está recoberta pelos sentidos, e é preciso vasculhar o discurso para trazê-la à luz. Podemos ver uma estratégia por sua recorrência, pelo procedimento analítico que, em AD, denominamos paráfrase. A paráfrase é a reiteração do mesmo. Um sentido pode ser expresso por diferentes palavras em diferentes textos, pode ser enunciado por diferentes sujeitos e inscrito em diferentes temporalidades. Ainda assim, ele pode ser repetido, reiterado, reafirmado de forma incessante. É essa dispersão, ao longo de textos, termos e temporalidades, que constitui a densidade e a força de permanência deste sentido. Para este trabalho, mobilizamos dois conceitos importantes da AD: formações discursivas e paráfrase. Como mostraremos a leitura dos textos apontou que o personagem Siza ancora sentidos mais amplos sobre arte e sobre museu. Acreditamos que estas Formações Discursivas (FDs) podem ser encontradas em outros objetos empíricos que tratem do mesmo tema, por meio da personalização mobilizada por outro personagem. Foi a terceira seleção de textos que constituiu nosso corpus consolidado, que numeramos – para fins de sistematização do método – como Texto 1 a Texto 11. Trazemos, a seguir, os resultados da análise. Optamos por apresentá-los organizados segundo as formações discursivas predominantes, citando exemplos dos sentidos que localizamos. Assim, os trechos que ilustram o relato estão sempre

indicados com o número do texto [T1, T2 etc.] que lhe corresponde e com o número da sequencia discursiva [SD1, SD2 etc.] que lhe conferimos no processo da análise. Por fim, salientamos com negrito as marcas discursivas que permitiam, em nossa leitura, a filiação daquela sequência discursiva à formação discursiva em análise. A personalização cria sentidos sobre a Arte “Fazer época é impor sua marca”, diz Pierre Bourdieu (2006, p. 88), em certa altura do ensaio A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Lá, também, ele enfatiza que [...] as palavras, nomes de escolas ou de grupos, nomes próprios, só têm tanta importância porque eles fazem as coisas: como sinais distintivos, eles produzem a existência em um universo em que existir é diferir, “fazer-se um nome”, um nome próprio ou nome comum (a um grupo).

Este discurso desmistificado do pensador francês com relação aos campos sociais se mostra mais claro se compreendermos o processo histórico de constituição desta crença, como veremos a seguir. O entendimento deste universo é essencial para que as categorias elencadas do artista, do estrangeiro, do profissional e do humano, através da personalização em Siza, possam ser mais bem visualizadas. Essas quatro categorias são as formações discursivas hegemônicas, as formações que ancoram os sentidos mais gerais sobre arte no discurso jornalístico que estamos analisando. Inicialmente podemos demonstrar como se estrutura a formação discursiva do artista. Nos textos jornalísticos que analisamos os sentidos que consolidam esta formação mostram Siza como criador, genial, canônico, autoral e detentor de um estilo próprio. É possível observar como esses sentidos nos remetem a aspectos relacionados a um ideal romântico. Por outro lado, cada projeto do arquiteto-artista que é o Siza traz uma coisa particular, individual e escultórica que não se repete e nem se reinventa. [T3, SD39] A primeira obra de Siza no Brasil é um salto na internacionalização. A obraprima, inesperada e jovem, é um museu em Porto Alegre. [T10, SD 96] Por entre os 1200 convidados para a inauguração da obra que arrancou em 2003, está Rômulo Afonso. O estudante de Arquitetura em São Paulo quis ver a obra “de um gênio”. “É único, é histórico. Siza Vieira está ao nível de Niemeyer, é um mito”, contou. [T10, SD102]

Observamos também a construção do sentido do cânone, do produtor de um modelo de beleza arquitetônica ou valor artístico, aquele que detém uma autoridade,

uma assinatura, como diz Bourdieu (2006, p. 28), que “não é outra coisa senão o poder, reconhecido a alguns, de mobilizar a energia simbólica produzida pelo funcionamento de todo o campo”. De fato, o edifício concebido por Álvaro Siza para a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, apresenta qualidades muito altas. Sutileza, sentido plástico dos interiores, silêncio que se associa à calma da formas, acabamento admirável, iluminação neutra, desenho cuidado de cada detalhe. [T4, SD41] La nueva sede de La Fundación Ibere Camargo pretende ser, según Siza, “casi una escultura del expresionismo, con luz, textura, mucho movimiento y con el espacio cuidadosamente explotado para enriquecer más el contacto con el trabajo del maestro”. 7 [T9 SD85]

A segunda formação discursiva que sobressai nos textos jornalísticos analisados é aquela que traz Siza a partir da identidade portuguesa ou como um arquiteto internacional. O estrangeiro. A imagem do estrangeiro ou do sujeito que transita entre várias nações, o internacional, já nos foi traçada principalmente pela literatura e, na contemporaneidade, em grande parte nos é formatada pelo jornalismo ou pelos meios de comunicação. A soma histórica desta identidade agregada a novas impressões oferecidas no dia-a-dia em cada cultura nos permite a reprodução de estereótipos sobre como é ser brasileiro, português, francês e assim por diante. No jornalismo, é comum que a origem de um personagem ajude a identificá-lo. No caso dos textos sobre a Fundação Iberê Camargo, porém, vemos a presença constante desta adjetivação, nem sempre necessária. É dentro desta perspectiva identitária que observamos os sentidos sobre o estrangeiro, como nos exemplos a seguir: Fundação dedicada a divulgar e preservar a obra do pintor brasileiro ganha sede em Porto Alegre, projetada pelo premiado arquiteto português Álvaro Siza. [T1, SD1] Percebemos, então, que era preciso buscar um arquiteto com experiência internacional na elaboração de um museu, com conhecimento da melhor tecnologia de preservação e exposição. [T2, SD15]

Também é possível pensar a identidade como uma relação social que, como diz Silva (2000), está sujeita a relações de poder e força:

A nova sede da Fundação Iberê Camargo pretende ser, segundo Siza, “quase uma escultura do expressionismo, com luz, textura, muito movimento e com o espaço cuidadosamente explorado para enriquecer mais o contato com o trabalho do mestre”. [tradução nossa] 7

Vencedor do Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002, é tido, já há algum tempo, como um grande projeto do português Álvaro Siza. [T2, SD19] A presença de um arquiteto internacional de prestígio como Álvaro Siza no meio brasileiro, muito fechado sobre si, é ruptura importante, estimulante e positiva. [T4, SD40]

Como parte da estratégia de personalização, uma formação discursiva hegemônica é a que constrói sentidos em torno da competência do profissional. Nessa formação, destaca-se a noção do arquiteto fartamente premiado. Vejamos, a seguir, como é perceptível, em sequências discursivas, o sentido dado ao papel de Siza como arquiteto singular, distinto, muito acima da média dos profissionais do campo e capaz de idealizar projetos singulares: Avesso a exibicionismos tecnológicos e preocupado em dialogar com os diversos contextos nos quais as suas obras se implantam (as peculiaridades do terreno, a tradição construtiva local, a história), Siza é considerado o expoente destacado de uma corrente que se chamou de “regionalismo crítico”. Corrente de arquitetos empenhados em recuperar tradições culturais locais e idiossincráticas – normalmente artesanais -, ameaçadas de desaparecimento pelo impacto de uma globalização niveladora. Suas intervenções, portanto, são discretas e respeitosas. [T2, SD20] El arquitecto portugués Álvaro Siza es todo un referente.8 [T11, SD116]

A seguir, trazemos exemplos de sequências discursivas que enaltecem as qualidades do profissional Álvaro Siza, algumas com sentidos específicos, como as que se referem à experiência como arquiteto de museus: Antes da primeira lista de arquitetos, uma pessoa do conselho da fundação sugeriu o nome do brasileiro Oscar Niemeyer, mas como diz Justo Werlang, mais de uma década atrás a idéia era chamar um profissional que tivesse experiência ampla com construções de museus, o que não ocorria na cena brasileira. [T1, SD5] O arquiteto português venceu a competição e recebeu total apoio da viúva do artista, a presidente de honra da Fundação Iberê Camargo, Maria Coussirat Camargo. Os projetos do Museu de Arte Contemporânea de Santiago de Compostela, na Espanha, e o Museu de Serralves no Porto, em Portugal, credenciaram-no para tal missão, mas ele releva jamais ter conhecido os trabalhos dos outros concorrentes da competição. [T3, SD31]

O desempenho profissional de Siza dá sentido ao reconhecimento de seus pares, assim como lhe confere um estilo peculiar, enaltecido e caracterizado nos textos jornalísticos, como no exemplo: 8

O arquiteto português Álvaro Siza é uma referência completa. [tradução nossa]

Pero el concepto y la estética de la obra no solo respetan las bases del movimiento, también refleja la marca de Siza. Por ejemplo, la textura y la imagen dinámica se parecen a las del Museo Serralves em Oporto, y al Centro Gallego de Arte Contemporánea en Santiago de Compostela.9 [T9, SD86]

Além dos sentidos produzidos a partir do profissional Álvaro Siza, há outras características e fases da rotina de trabalho do arquiteto que estão presentes em praticamente

todos

os

textos

examinados,

retratando-o

positivamente.

São

peculiaridades que vão além da figura do arquiteto, chegando a algo mais essencial como indivíduo obsessivo, detalhista, minucioso e centralizador: Álvaro Siza cuidou de todos os detalhes do projeto, até mesmo desenhou o mobiliário da sede da Fundação Iberê Camargo. [T1, SD6] Outro motivo de “pânico” era a presença constante de Siza na construção, materializada no desenho de cada detalhe. “Ele traçou até os encaixes das pedras”, diz o engenheiro. Mas, como salienta Canal, a harmonia entre projeto e obra, entre equipe e projetista, entre cliente e executor acabou acontecendo. [T7, SD70]

Os textos também conferem exclusivamente a Siza todas as atividades de criação do novo prédio da FIC, construindo um discurso que relata praticamente todos os processos do projeto da Fundação unicamente a partir do arquiteto, personalizado, como se pode observar nestas sequências discursivas: Como a obra de Iberê Camargo é extensa e variada, Siza Vieira pensou em um espaço que possibilitasse mostras de diferentes abordagens. O arquiteto optou por flexibilidade de uso, sem diferenciar os ambientes destinados a exposições temporárias e permanentes. [T3, SD33] Seguindo o modelo do Guggenheim de Wright, Siza Vieira lançou mão de um sistema de rampas contínuas que percorre o volume de cima a baixo. [T3, SD35]

A última formação discursiva hegemônica que localizamos neste quadro em que a personalização serve de veículo de construção de sentidos para a arte, é a centralização na figura humana. O arquiteto é retratado como um sujeito de sua época, preocupado com questões que dizem respeito ao multiculturalismo, ao meio ambiente e, também, avesso à notoriedade, simples no jeito de ser e agir. O aspecto humano pode ser observado nas sequencias discursivas que seguem:

9

Mas o conceito e estética da obra só respeitam as bases do movimento, também reflete a marca Siza. Por exemplo, textura e imagem dinâmica semelhante ao Museu de Serralves em Porto, e o Centro Galego de Arte Contemporânea em Santiago de Compostela. [tradução nossa]

A proposta de Siza respeitou a paisagem, conquistando gaúchos e agregados. [T3, SD34] Desde 1975 hasta hoy, sus proyectos se han mostrado en instituciones de arte del mundo entero y su trayectoria ha sido reconocida y premiada en numerosas ocasiones. En Porto Alegre, ciudad que acoge uno de sus últimos proyectos – la Fundação Iberê Camargo -, nos encontramos con el arquitecto portugués. Amable, conversador, con un discurso pausado y nada teorizante, mezcla crítica y amenidad, e inspira complicidad con sus palabras.10 [T8, SD 80]

A personalização cria sentidos sobre o Museu Agora refletimos sobre a estratégia discursiva de personalização – novamente a partir da ancoragem em Siza – para criar sentidos não sobre o personagem, e sim sobre o museu. Percebe-se que a maioria das sequências discursivas surge numa projeção do autor pela obra e vice-versa. O final do século XX marca o retorno do museu como instituição de uma verdade canônica e de uma cultura da autoridade. Esta aura que a arte traz consigo também tem sido levada em conta no planejamento de novos museus, principalmente daqueles edifícios assinados por grandes arquitetos. A chamada arquitetura de marca agrega autenticidade, singularidade e outras distinções. Assim, uma instituição cultural como a Fundação Iberê Camargo, idealizada por um arquiteto com a marca da distinção como Álvaro Siza, eleva o capital simbólico da sociedade porto-alegrense, do Estado e mesmo do país, além de aumentar marcos de distinção já existente. Nossa análise localizou 15 sequências discursivas sobre o museu. Duas formações podem ser percebidas mais claramente: a que cria sentidos sobre o museu-edifício como uma verdadeira obra de arte e a que vê ligações entre a edificação e o contexto social, numa dinâmica de organicidade. As seções a seguir apresentam estas formações. O espaço da arquitetura com frequência acaba tendo uma inter-relação com o da arte. A intenção de desfrutar da experiência estética, a partir da arquitetura do museu, tão presente nas últimas décadas, pode ser percebida em sequências discursivas a seguir: Na Avenida Padre Cacique, em Porto Alegre, às margens do Rio Guaíba, a sede é o primeiro projeto de Siza no Brasil. A geometria irregular 10

Desde 1975 até hoje, seus projetos têm sido mostrados em instituições de arte em todo o mundo e sua carreira tem sido reconhecida e premiada diversas vezes. Em Porto Alegre, uma cidade que hospeda um dos seus mais recentes projetos - a Fundação Iberê Camargo - encontramos com o arquiteto português. Amável, conversador, com um discurso pausado e nada teorizante, mistura crítica e amenidade, e inspira cumplicidade com suas palavras. [tradução nossa]

marcante é desafiadora e ao mesmo tempo fluida, sua organização de planos e linhas curvas e angulares, exalam pitadas de diferentes influências: Frank Lloyd Wright, Mies Van der Rohe e Le Corbusier [T5, SD44]. Marco, fortaleza, passadiço, recipiente, mirante, máquina de contemplação e transformação, dispositivo de meditação e mediação, o museu de Siza vivifica a interação de cidade e geografia – enquanto reafirma o valor da tradição arquitetônica culta, com nada de saudade e carradas de caráter. Penhorada, a cidade já sorri [T7, SD74].

Outra característica observada em boa parte dos projetos de novos museus, mundo afora, é pensá-los a partir de um todo social ou da natureza em especial. A relação dialética com a natureza parte da ideia de que os edifícios influenciam profundamente as pessoas que neles residem ou trabalham, sendo o arquiteto um agente social que modela os indivíduos. Esta linha de pensamento ou atuação de Siza é perceptível em diversas sequencias discursivas analisadas, como algumas que listamos a seguir: O prédio se insere numa encosta exuberante, que não devia ser tocada pela construção. Há um diálogo entre a natureza e a construção, que se relacionam mas não se tocam [T1, SD11]. En su primera obra en Brasil, Siza construyó sobre una colina pero, en lugar de sacar más volúmenes sobre la montaña, ubicó parte del edificio bajo tierra11 [T9, SD90].

Considerações Finais A universalidade almejada por Iberê Camargo vem se consolidando, principalmente através do jornalismo. Não apenas a partir de suas obras, mas muito através da emblemática edificação da nova sede da Fundação Iberê Camargo, projetada pelo arquiteto português Álvaro Siza, e do discurso jornalístico em torno dela. Por diversos aspectos que levantamos neste trabalho, como valor simbólico, ineditismo e viabilidade econômica do projeto – e outros aqui não estudados – a viabilização de um edifício-museu dentro dos moldes idealizados por nosso mundo globalizado é vista como um acontecimento cultural. A partir desses pressupostos, a nossa proposta de análise se inseriu dentro do processo complexo de que é feita a vida urbana na sociedade da pós-modernidade e que a cada dia necessita de mais estudos na busca de interpretá-la melhor como as questões relacionadas ao urbano, onde a arquitetura ocupa lugar de destaque.

11

Em sua primeira obra no Brasil, Siza construiu sobre uma colina, mas em lugar de tirar mais volumes sobre a montanha, pôs parte do edifício embaixo da terra. [tradução nossa]

No caso do projeto e edificação da nova sede da Fundação Iberê Camargo e no período que examinamos o fenômeno da personalização no jornalismo impresso, ela se dá, majoritariamente, sob a imagem de Siza. Um processo que nos fez refletir também sobre outros personagens envolvidos que foram deixados à margem ou esquecidos. Dar voz a outros representantes ligados a aspectos determinantes do novo equipamento cultural tanto da cidade de Porto Alegre, como do Brasil ou mesmo do sistema de arte como um todo. Personalizando o discurso jornalístico acabamos por ter uma opinião focada, uma espécie de porta-voz da fala sobre determinado tema. Trabalhando por meio da autoria, o jornalismo cultural une obra e artista como algo inseparável. Este discurso é seletivo nos fatos e organizador do pensamento social, por isto a tentativa foi de compreendê-lo no contexto histórico e a partir de enquadramentos sociais e culturais por que passa em nossos dias. Assim, entendemos que tornamos mais evidente que a realidade na maioria das situações é constituída por aquilo que se torna visível através da mídia ou destacado por ela. Ou seja, dando grande visibilidade a determinados fatos ou pessoas, o jornalismo se mostra como um elemento criador importante do campo cultural na contemporaneidade, embora se saiba que este perpassa outros campos da vida social. Constatadas formações discursivas hegemônicas é possível reafirmar que o jornalismo prefere cada vez mais, ao invés de abordar os acontecimentos como o resultado de determinadas forças sociais, utilizar-se da ideia da personalização. Se por um lado facilita o trabalho jornalístico no sentido prático de coleta e apresentação de uma notícia, por outro lado os argumentos referentes ao todo quase sempre se perdem. Na maioria dos casos uma interpretação mais estrutural da sociedade ou do tema acaba por não ocorrer.

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