Sentidos do caminho

May 21, 2017 | Autor: Janice Gonçalves | Categoria: História de Santa Catarina, História De São Paulo
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Sentidos do caminho1

[...] o tempo tudo desloca, o meio tudo muda e o homem não é jamais o mesmo. Lucien Febvre, Honra e Pátria

Quantos sentidos pode abarcar um único caminho? Desenho no território, o caminho é conexão entre pontos que, uma vez postos em relação, encontrarão novas trajetórias históricas. Possibilidade e promessa de deslocamento, é também abertura para fluxos vários – de pessoas, de animais, de mercadorias. Sob perspectiva governamental, faz-se rota que tenta domar a natureza e dominar as gentes, buscando deter, inclusive, os “descaminhos” das rendas que o contrabando ou a sonegação deixam escapar ao fisco. Lugar por onde se chega e por onde se parte, é elemento importante nas estratégias de conquista e domínio territorial: via pela qual movimentam-se ataques e mobilizam-se defesas. Essa conjunção de aspectos díspares – daquilo que se abre e daquilo que se fecha, que gera movimento e que procura ser imobilizado sob a ação controladora, que é ligação e ao mesmo tempo limite – multiplica-se, na medida em que o caminho se faz não só no espaço como no tempo e, ao durar, se transforma. Daí as tantas seduções e encantamentos de um percurso que, perdurando, apenas em aparência é o mesmo. Trata o presente livro da história inicial de um certo caminho – mais precisamente, da história da abertura do caminho entre Desterro e Lages, ligando as então capitanias de Santa Catarina e São Paulo, no último quartel do século XVIII. O que teria movido a empreitada? O que estaria envolvido no desafio, aceito pelo alferes Antônio José da Costa e, antes dele, pelo tenente José Luís Marinho, de eleger o percurso, traçar a rota e, nos termos do período, estabelecer a “derrota” da viagem aí implicada? Parte do desafio se vislumbra: a escolha da melhor rota implica o esforço da caminhada, necessariamente acompanhado do desbastar da vegetação, da identificação dos perigos e percalços, do inventário das descobertas feitas no enfrentamento humano

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Publicado em: BRUGGEMANN, Adelson André. Ao poente da Serra Geral: a abertura de um caminho entre as capitanias de Santa Catarina e São Paulo no final do século XVIII. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008. p.13-15.

do sertão desconhecido e quase que invariavelmente visto como hostil. Mas por que, afinal, buscar esse caminho, nas décadas finais do século XVIII? Como compreender os conflitos então desenhados no interior da própria administração da América Portuguesa, a opor autoridades de capitanias vizinhas? De que forma interpretar o revés da empreitada, dado que o caminho, não obstante todos os investimentos e esforços assinalados em fins do século XVIII, caiu em abandono nos inícios do século XIX? No tecer e destecer de tais perguntas se fez a pesquisa que deu origem ao livro. Fez-se também, em grande medida, o pesquisador, historiador-aprendiz que conheceu, no processo, seus próprios desafios, suas descobertas, seus revezes: em aventuras e desventuras por acervos depauperados, na busca por manuscritos irremediavelmente perdidos, por vezes conhecidos apenas em transcrições contidas em antigas publicações; na tentativa de decifração dos documentos que restaram, mesmo carcomidos e freqüentemente pouco legíveis, quer pelas dificuldades impostas pela caligrafia setecentista, quer pelos maus-tratos que o tempo legou aos papéis; no perscrutar dos testemunhos, visando encontrar os significados das ações e das palavras nos termos do próprio tempo, evitando anacronismos. Processo que, ele mesmo, abriu sendas de investigação, para finalmente fixar, na versão final da escritura, o roteiro a compartilhar com o leitor. É justamente esse percurso que a leitura do livro convida a refazer, propondo que nos movamos entre “a ilha de Santa Catarina” e o “sertão da terra firme”, que nos desloquemos dos dias que correm para os últimos decênios do século XVIII, encontrando, inevitavelmente, sob a capa do que hoje poderia ser, para muitos, familiar, os contornos de uma outra paisagem, de outras gentes, de outras formas de pensar, querer e agir. Na leitura, busca de sentidos, nos sentidos, feitura de caminhos.

Florianópolis, julho de 2007.

Janice Gonçalves Professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina

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