Sequências brasileiras, ruptura mundial

May 30, 2017 | Autor: Edu Teruki Otsuka | Categoria: Roberto Schwarz
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Sequências brasileiras, ruptura mundial Edu Teruki Otsuka1 (USP)

Resumo: Focalizando os ensaios reunidos no livro Sequências brasileiras, publicado em 1999, este artigo apresenta alguns aspectos da crítica de Roberto Schwarz, em particular a discussão de traços contemporâneos do capitalismo e seus efeitos no Brasil, em consequência dos quais Schwarz delineou uma reconsideração crítica de categorias e quadros teóricos que prevaleceram nas interpretações anteriores da experiência histórica brasileira. Palavras-chave: Roberto Schwarz, Brasil contemporâneo, capitalismo mundial. Abstract: By focusing on the essays collected in the book Sequências brasileiras, published in 1999, this paper presents some aspects of Roberto Schwarz’s criticism, particularly his discussion of contemporary traits of capitalism and their effects in Brazil, in consequence of which Schwarz has outlined a critical reconsideration of categories and theoretical frameworks that have prevailed in previous interpretations of Brazilian historical experience. Keywords: Roberto Schwarz, contemporary Brazil, world capitalism.

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O ângulo da atualidade sempre pautou os escritos de Roberto Schwarz, que, em 1987, indagado sobre a pergunta que dá título ao volume Que horas são? (SCHWARZ, 1987a), formulou o problema da seguinte maneira: Todo autor que se preza, quando pega a caneta, quer indicar entre outras coisas a hora histórica. Isso vale tanto para o ficcionista, como para o poeta, como para o crítico. A luta pela identificação e pela definição do que seja o atual está no centro da arte moderna. Acontece que a hora histórica não é convencional como a hora do relógio. Nem por isso ela é arbitrária. Mas é fato que a resposta a essa pergunta, por mais estudada e fundamentada que seja, sempre contém algo de engajamento, algo de aposta no futuro, sem o quê a crítica de arte é anódina. (SCHWARZ, 1987b, p. A-57).

O prisma da atualidade é um traço que Schwarz compartilha com Adorno, que descreveu, numa imagem famosa, a obra de arte como um relógio de sol histórico-filosófico que marca a hora histórica. Ao comentar o tema da atualidade em Adorno, Schwarz retoma um esquema básico do marxismo, transposto para a crítica de arte por Walter Benjamin (1985, p. 165-196)1 nos anos 1930, quando o sentido da confluência de avanço técnico e revolução social na crise do mundo burguês ainda parecia uma questão em aberto (voltarei ao assunto). Segundo Schwarz, em Adorno, “como em Marx, o índice da atualidade está nas forças produtivas, cujo desenvolvimento baliza o futuro e torna obsoletas partes inteiras da organização social e das categorias que a acompanham” (SCHWARZ, 2012, p. 44). Como é sabido, a tradição marxista discerne no âmbito da arte moderna um movimento análogo, pois o desenvolvimento imanente das formas artísticas é compreendido segundo um dinamismo em que os novos conteúdos histórico-sociais entram em contradição com as formas estabelecidas e as inviabiliza, interditando alguns caminhos e desobstruindo outros. E nessa dialética de forma e conteúdo pode-se reconhecer, em outra escala, algo semelhante à lógica do movimento que, segundo o esquema de Marx, empurra em direção à contradição entre as forças produtivas e as relações de propriedade, abrindo-se uma época de revolução social.

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Ver também Schwarz (2001-2002, p. 34). O argumento de Benjamin já havia sido incorporado por Schwarz em “Nota sobre vanguarda e conformismo”, artigo de 1967 (SCHWARZ, 1978, pp. 43-48).

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Nos anos 1970, Schwarz explicou a dinâmica própria do desenvolvimento do romance brasileiro no século XIX – uma dinâmica que não era idêntica à que se verificava em países como Inglaterra e França, a partir dos quais a forma romance correu o mundo. Embora não correspondesse aos padrões da evolução do romance burguês dos países avançados, nem alcançasse qualidade estética comparável, o romance brasileiro em seus inícios apresentava uma lógica consistente e nada linear, cuja descoberta e especificação é uma das proezas de Ao vencedor as batatas (SCHWARZ, 1977). Aprofundando os achados de Antonio Candido, Schwarz demonstrou minuciosamente de que modo a incipiente tradição nacional do romance, no rarefeito período formativo da literatura brasileira, criou as condições para a obra madura de Machado de Assis. Com isso, Schwarz lançou as bases para uma explicação histórica e materialista para o salto qualitativo alcançado em Memórias póstumas de Brás Cubas, que ele mesmo estudaria em Um mestre na periferia do capitalismo (SCHWARZ, 1990). Nas palavras de Schwarz, é possível observar, nos inícios do romance urbano local, “uma variante complexa da dialética de forma e conteúdo” (SCHWARZ, 1977, p. 51). Para que o romance brasileiro pudesse decolar, havia sido preciso, antes, produzir sua matéria, ou, mais precisamente, havia sido preciso discernir e pré-elaborar os componentes fundamentais da experiência brasileira, a qual não poderia ser ingenuamente concebida como um conteúdo intocado pelas formas europeias, dada a dinâmica histórica própria ao país de passado colonial, assim como não caberia idealizá-la como sendo idêntica à dos países centrais que, devido à preeminência político-econômica, definiam o parâmetro da modernidade a que todos aspiravam. A colisão inicial da forma europeia com as relações sociais locais produzia inconsistências e fraturas na forma resultante, decorrendo daí a literatura mal resolvida do ciclo formativo, em que (como em Senhora, de Alencar) o ponto de vista alterna entre dois princípios divergentes, que coexistiam sem influírem um sobre o outro. Frente à impossibilidade de encaixar na forma da “moderna epopeia burguesa” o conteúdo nãoburguês das relações de favor vigentes no país, sem que tal junção apenas reproduzisse involuntariamente a alternância entre incompatíveis, o problema não se resolveria somente com a elaboração de formas fundamentadas nas relações locais, cortando-se o contato mais amplo com o mundo moderno (como nos primeiros romances de Machado). Era 201

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preciso descobrir a lógica diferente segundo a qual as formas do mundo moderno passavam a funcionar ao se incorporarem ao sistema escravista-clientelista. O adensamento da matéria do romance, no Brasil, se completaria com a incorporação, no plano dos conteúdos, das formas modernas enquanto formas desajustadas. Como resultado, abre-se a possibilidade, ou a exigência, de invenção de soluções formais (de que as Memórias póstumas de Brás Cubas são o exemplo mais acabado) para elaborar a matéria brasileira enfim amadurecida e revelada em toda sua complexidade, que inclui as formas europeias funcionando de maneira peculiar quando integradas às relações efetivas. Nessa versão periférica do desenvolvimento do romance, não eram os conteúdos sociais historicamente avançados que abalavam as formas antigas e incitavam à inovação artística; antes, eram conteúdos aparentemente atrasados que colocavam em questão a forma então mais avançada do romance: o realista, sério e problematizante. Daí a feição peculiar da viravolta machadiana que trazia, como elemento mais visível, a invenção de um narrador humorístico à maneira de certos romances ingleses setecentistas (mas em que pesou também a tradição cômica local, de Martins Pena a Manuel Antônio de Almeida). O recurso técnico adotado era antiquado (em comparação, por exemplo, com as inovações de um Flaubert), e no entanto se mostrou eficaz, acrescido da mudança de ponto de vista social, para converter em forma aquilo que, como assunto, havia sido esquadrinhado até o limite nos romances decorosos da primeira fase – uma nova forma capaz de reabsorver o contato com o mundo moderno, mas agora com humor e malícia suficientes para figurar o lugar verdadeiro dos elementos liberais-burgueses no país escravista e clientelista. Tendo em vista as particularidades das linhas de desenvolvimento do romance no centro e na periferia, Schwarz observa ainda que Flaubert apura um desígnio formal já latente em seus predecessores (como Stendhal e Balzac), podendo-se discernir nessa tradição do romance francês um movimento “imanente e sob o signo do progresso e da racionalização”; ao passo que a invenção formal de Machado, embora solucionasse problemas armados pela tradição brasileira em formação, “nem de longe tem a necessidade inelutável da forma flaubertiana, que em certo sentido [...] realiza na sua pureza o ideal da prosa narrativa moderna”. Fazendo tal comparação, que implica a compreensão abrangente dos dinamismos assimétricos que regem a literatura e o sistema econômico mundiais, Schwarz é categórico na conclusão do argumento: “Nesse sentido, sem ser menor,

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Machado é um artista menos ‘necessário’ [do que Flaubert], e sua obra não constitui um ponto cardeal, como a do outro” (SCHWARZ, 1999, p. 21)2.

3. Do ponto de vista da tradição marxista, que Schwarz reinventou para o caso brasileiro, o desenvolvimento das formas estéticas, embora pareça ser um automovimento do material que se desdobra no interior de seu próprio domínio, só se explica propriamente com a devida consideração do processo histórico, em que o conflito social e a luta de classes impulsionam as inovações formais. Como se sabe, essa dimensão da arte moderna alcançou seu ápice no momento das vanguardas históricas que, nos termos de Schwarz, se definiam por oposição a uma sociedade imobilista, de tal modo que, para os vanguardistas, a inovação artística simbolizava o desejo de transformação social, além de ser realmente uma transformação no repertório formal de seu campo. Depois da Revolução Russa, porém, a mobilidade social e, com ela, as propostas políticas de mudança foram cada vez mais incorporadas até mesmo por governos conservadores, esvaziando a equação de mudança e liberação que havia incendiado a imaginação de artistas e intelectuais do início do século XX. Por isso, hoje, “já não basta, para uma definição substantiva do que seja vanguarda, acentuar o lado da transformação, porque esta existe de forma conservadora em toda parte” (SCHWARZ, 1987b, p. A-57). Assim, mais do que a inovação das formas artísticas umas em relação às outras, a situação da arte moderna exige que as obras definam seu lugar social; para além da liberdade com as formas legadas pela tradição, a arte moderna pode, no limite, assumir a liberdade de alterar as próprias relações entre as formas e a realidade (SCHWARZ, 1999, p. 222). Foi precisamente esse tipo de alteração que as vanguardas históricas ambicionaram realizar, atacando não apenas a obra orgânica, concebida nos termos burgueses da arte autônoma, mas também a instituição artística enquanto tal – um projeto que tinha apoio na 2

Daí também o fato de as alusões histórico-políticas no romance machadiano, em que a estabilidade das relações injustas do país torna as datas políticas insuficientes para apreender nosso ritmo histórico, funcionarem de modo diverso das periodizações francesas, as quais “refletem embates em que está em jogo o ser-ou-não-ser da ordem social contemporânea” (SCHWARZ, 1999, p. 112).

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tendência então em curso de transformação da sociedade. (Não é outra, aliás, a intenção subjacente à ideia de alterar as relações de produção artísticas, em vez de apenas abastecer o aparelho existente, ainda que com obras de esquerda, proposta por Walter Benjamin no mais brechtiano de seus ensaios, “O autor como produtor” (BENJAMIN, 1985, p. 120-136).) A ambição vanguardista/modernista se associava a uma aposta nas promessas de um presente técnico ainda indeterminado, o qual parecia confluir com as aspirações transformadoras da revolução social que pairavam sobre aquele momento da modernização (ANDERSON, 2002). Como se sabe, o caminho brevemente aberto por esse cruzamento de forças acabaria por se bifurcar mais uma vez, restando à esquerda a reflexão sobre os limites da experiência revolucionária que não se generalizou e sobre o sentido da arte vanguardista/modernista, cujo impulso transformador acabou sendo ele mesmo institucionalizado. O que se viu ali foi simplesmente o desfecho do percurso da arte moderna, que sempre esteve entrelaçada à racionalidade capitalista e às contradições da modernidade.3

4. Quando, em 1999, Schwarz publicou Sequências brasileiras, o que o título ressaltava naquele notável conjunto de ensaios era a permanência da estrutura brasileira de iniquidades e suas inumeráveis consequências destrutivas, mas em contexto a tal ponto modificado – abalando as expectativas e perspectivas definidas no período anterior – que exigia a verificação interna e a reavaliação do quadro em que a crítica de esquerda havia se movido. Em grande medida, o diagnóstico do presente que Schwarz estava compondo no início dos anos 1990 define o ponto de vista a partir do qual, nos variados ensaios do livro, se conduzem as discussões sobre a perda da atualidade de categorias críticas, referências e enquadramentos

que,

em

outras

circunstâncias

históricas,

haviam

funcionado

produtivamente, mas que, no novo ciclo que se abria, sofreram deslocamento de sentido. 3

No caso da arquitetura, que evidencia um traço da arte moderna como um todo, o florescimento do modernismo esteve centrado nos conteúdos utópicos de uma sociedade do trabalho, estando impregnado desde a raiz por uma índole produtivista (ARANTES e ARANTES, 1992, p. 20-22; ARANTES, 1998).

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Junto à permanência dos tradicionais problemas irresolvidos da sociedade brasileira que, como não podia deixar de ser, se manifestavam na vida cultural, os ensaios do livro apontavam a percepção de uma ruptura histórica, em plano mundial, cujos efeitos desacreditavam perspectivas animadoras sobre o futuro. Contra a euforia a que a chamada globalização incitava naqueles que queriam se iludir, Schwarz buscava descrever as condições do presente, refletir sobre o sentido do país inconcluso e atentar para os perigos que o novo quadro estava anunciando. Schwarz não precisou aguardar a análise do curso do mundo efetuada por Robert Kurz – que lhe cairia nas mãos logo depois – para identificar em Estorvo, em 1991, alguns traços fundamentais da experiência contemporânea, tais como começavam a aparecer no Brasil. O romance de Chico Buarque, pela força mesma com que apreendeu artisticamente a tendência histórica, trouxe sopro novo para a reflexão ao figurar um país que, no desenlace do ciclo modernizador, continuava inconfundível, mas trazia sinais inequívocos de uma desagregação em andamento acelerado. A quase anomia social que Estorvo apresentava foi então vista pelo crítico como a apreensão mais contundente dos resultados imprevistos do que efetivamente veio a ser a modernização brasileira. De quebra, na cena final do romance, em que o personagem, estripado, ignora o próprio estado de precariedade enquanto imagina que logo tudo se resolverá, Schwarz notava uma “disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis”, descobrindo aí uma metáfora do Brasil contemporâneo (SCHWARZ, 1999, p. 181). O diagnóstico de época efetuado por Kurz (1993) forneceu um quadro conceitual que permitiu a Schwarz articular a experiência brasileira contemporânea ao cenário mundial pós-catástrofe que o sociólogo alemão descreveu ao fazer o balanço da modernização, apresentando o naufrágio das periferias, para as quais o progresso tecnológico se tornou inalcançável, e indicando o desmanche crescente dos países centrais, que passavam a viver o desmantelamento. No desfecho convergente das modernizações rumo à sociedade variadamente desintegrada, era ainda a periferia que devolvia ao centro a imagem de seu próprio futuro. Diante da tendência histórica que então se discernia, apontando para a reprodução ou o aumento de desemprego, trabalho informal, tráfico de drogas, criminalidade, violência e fanatismos, tudo sobre o fundo inexpugnável da mercantilização e do consumo, Schwarz se voltava para a crítica dos projetos modernizadores malogrados no país, em particular o 205

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nacional-desenvolvimentismo, cujo ciclo se encerrara deixando um rastro de construções em ruínas. Não que o esforço recuperador não tivesse alcançado ao menos alguns de seus objetivos; mas as façanhas do progresso possível, restrito como sempre, não trouxe consigo a integração social que, imaginava-se, adviria do processo modernizador, e o que se verificava era o agravamento da estrutura de desigualdades interna ao país. Alguns dos efeitos disso no campo dos pobres foram narrados por Paulo Lins em Cidade de Deus, romance de 1997 cuja qualidade literária Schwarz foi o primeiro a reconhecer (SCHWARZ, 1999, p. 163-171). Como resultado para a reflexão, impunha-se a constatação de que a modernização não era algo que, projetando-se no horizonte temporal, se alcançaria no futuro, pois já havia se realizado, embora por caminhos tortos cujas consequências não correspondiam ao que ela prometia. Seu resultado não foi a nação organicamente integrada, e provou ser precisamente aquele cenário devastado, em que a construção nacional, tal como havia sido concebida na tradição, agora jazia como um destroço entre destroços. Para além da teoria econômica nacional-desenvolvimentista estrita, Schwarz descrevia, nos ensaios do livro, toda uma ambiência mental do período anterior, que havia impregnado, de um modo ou de outro, sensibilidades, expectativas, obras artísticas, análises conjunturais, interpretações históricas, projetos políticos, planos econômicos e teorias críticas. A esse quadro não escapou o arcabouço conceitual elaborado no âmbito do marxismo uspiano, de que o próprio Schwarz se beneficiara ao estudar o romance machadiano e elevar até outro patamar a interpretação da experiência histórica brasileira, sempre guiado pela lição da forma artística. A tradição crítica em que Schwarz havia se inspirado esteve majoritariamente confinada ao quadro da formação nacional, sendo teleguiada pelo empenho construtivo que objetivava, literalmente, salvar a pátria, nos termos vigentes da modernidade capitalista. Schwarz levou, de um ângulo socialista, os achados dessa tradição até as últimas consequências, o que fez explodir a moldura que limitava o alcance da reflexão sobre o país e sua posição relativa no mundo. Com sua leitura da obra machadiana, que apreendeu a lógica da articulação da vida local ao sistema mundial que a rebaixava e que era, por sua vez, qualificado por ela, Schwarz elaborou um ponto de vista crítico que, passando pela experiência brasileira, visava antes à sociedade capitalista no seu conjunto.

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Era justamente uma tal articulação que dava aos ensaios de Sequências brasileiras um vigor teórico eletrizante, pois a desintegração nacional que se constatava não era uma questão apenas nacional, mas “um aspecto da inviabilização global das industrializações retardatárias” e, mais que isso, indicava “o destino da maior parte da humanidade contemporânea”, incluindo “os próprios países ricos, onde o desemprego ligado à nova rentabilidade vai criando manchas terceiro-mundistas, agora a céu aberto” (SCHWARZ, 1999, p. 160, p. 58; 1993, p. 134). Assim, os desenvolvimentos da produtividade e da rentabilidade ligados à fase mais recente da mundialização do mercado capitalista trazem como consequência a desqualificação histórica das populações que não têm como os acompanhar, e a nova situação dos espoliados, massas de “ex-proletários virtuais”, se converte em “caso de assistência social em escala planetária” (SCHWARZ, 1999, p. 185). No Brasil, observava-se, desde a abertura econômica iniciada na era Collor – e levada a cabo nos governos posteriores – diferenças significativas em relação ao período desenvolvimentista que se encerrara. No ciclo anterior, era sobretudo a industrialização, com suas inúmeras consequências diretas ou indiretas, que sustentava a imaginação nacional e a hipótese de superação da inorganicidade do país, na medida em que ao desenvolvimento industrial se associava a expectativa de integrar a população por meio da generalização do trabalho assalariado e do acesso a alguns direitos. Assim, a atividade econômica fundada no desenvolvimento industrial dava lastro aos projetos de nação, os quais mobilizaram a vida mental e a atuação política – incluindo-se aí o momento maior de radicalização (entre o fim dos anos 1950 e início dos de 1960) e seu amálgama populista de setores progressistas da elite, trabalhadores organizados, intelectuais e estudantes de esquerda, cujos limites foram postos a nu, na iminência da explosão da luta de classes, pelo golpe de 1964. No período de atualização capitalista iniciado nos anos 1990, tendo ao fundo a mundialização do mercado, passaram a predominar novos tipos de atividade econômica que não mais se articulam a projetos coletivos de sociedade integrada – pois implicam precisamente a desconstrução da relação salarial (com terceirização, precarização, flexibilização) e a informalização do trabalho4 –, firmando-se, assim, o divórcio entre economia e nação. O desaparecimento de hipóteses superadoras na vida ideológica,

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Como Francisco de Oliveira mostrou depois, em parte sob o impacto dos próprios ensaios de Schwarz (OLIVEIRA, 2003).

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nacional e mundial, ligava-se, pois, a mudanças no regime de acumulação, que também passaram a se manifestar no Brasil.

5. Observando esse cenário novo, Schwarz deu início a uma reflexão ampla sobre o sentido de algumas categorias e quadros teóricos que haviam norteado o pensamento brasileiro anterior, formulando questões decisivas para rever criticamente a experiência feita no ciclo que se fechara. Daí, por exemplo, a discussão sobre a ideia de formação nacional, que havia pautado as interpretações clássicas da sociedade brasileira, cujo fundamento construtivo foi interrompido, e agora, barrada a perspectiva de sua realização, desprende-se de seu lastro material e se converte em trunfo comercial no mercado de diferenças culturais (SCHWARZ, 1999, p. 17-23, 46-58). Assim também a necessidade de se efetivar uma crítica especificada das ilusões nacionais, em lugar de seu puro e simples abandono induzido pelo mito da aldeia global, que ofusca o discernimento da referência nacional e a apreensão da experiência social local em que se manifestam as velhas e novas cisões produzidas pela dinâmica do capitalismo (SCHWARZ, 1999, p. 155-162). Também é no panorama histórico do presente que se ancora a problematização do papel da cultura popular que se reproduz à margem da cultura erudita. A valorização da cultura popular iletrada havia sido uma questão nacional nos anos 1920 e 1930, no contexto de transformação das relações de trabalho nos inícios da industrialização brasileira, assim como, nos anos 1960, se combinou ao antiimperialismo e à atmosfera ideológica mais ampla das lutas de libertação nacional, possibilitando uma revisão histórica da colonização. No cenário presente, contudo, não encontra um lugar nítido de resistência diante da tendência histórica da sociedade contemporânea, em que “a contravenção e o gangsterismo fazem parte tão estrutural quanto o encanto da cultura iletrada” (SCHWARZ, 1999, p. 70). Schwarz pôs em andamento uma reavaliação da experiência da esquerda brasileira, examinando seus pontos problemáticos, em que a crítica convivia, sem atrito, com uma visão estreita da modernização ou simplesmente deixava de ser anticapitalista. Assim, Schwarz repassou, no momento em que Fernando Henrique Cardoso chegava à 208

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Presidência, a produção intelectual do grupo que, em 1958, havia se reunido para estudar O Capital, buscando desenvolver um marxismo crítico, à distância da versão oficial do Partido Comunista e áreas adjacentes, bem como de certa sociologia dominante na universidade. Schwarz mostrou como o conjunto das obras produzidas pelos membros do grupo (e também fora dele) gerou uma compreensão inovadora dos vínculos entre as contingências locais e o andamento global do sistema capitalista, e assinalou também suas limitações: o trabalho coletivo do grupo permaneceu voltado aos impasses da industrialização brasileira, tendo no horizonte a superação do atraso. O mesmo quadro que possibilitou o aproveitamento criativo do marxismo para elucidar a experiência brasileira também restringiu o alcance oposicionista da teoria, que não avançou na crítica aprofundada do curso do mundo capitalista (SCHWARZ, 1999, p. 86-105). Por fim, Schwarz descreveu a reversão do engajamento, que deixara de sê-lo, sem que a mudança tivesse cobrado dos intelectuais uma renúncia ao compromisso social, que, no entanto, havia perdido o nexo prático. Na situação atual, todos estamos engajados em alguma atividade, desde o ensino universitário e a pesquisa, passando pela administração pública e o governo, até a gestão do capital, “com o objetivo nem sempre muito crível de usar os nossos conhecimentos em favor de alguma espécie de aperfeiçoamento e modernização”; mas esse engajamento não produz os resultados democráticos esperados e acaba se assemelhando a “um lobby de si próprio”. Tal panorama decorre em parte de uma reviravolta histórica que remonta à derrota da esquerda em 19645 e, em escala mundial, à expansão da mercantilização em todos os níveis e à absorção dos impulsos revolucionários depois de 1968 (SCHWARZ, 1999, p. 172-177).6 No processo da abertura política, o ascenso dos trabalhadores organizados deixou o engajamento sem função e, após a abertura, parte dos intelectuais em disponibilidade viu-se qualificada para ocupar novas posições, inclusive no governo, e se inserir no curso tomado pela sociedade, sem que a experiência da “quebra meio prática e meio imaginária das barreiras de classe”, esboçada no pré-1964, fosse reinventada em função do presente, enfraquecendo-se, assim, a perspectiva crítica. Esse déficit de negatividade na inteligência brasileira, para Schwarz, talvez se devesse à “adoção

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Este é possivelmente o fio oculto que une os ensaios recolhidos em Martinha versus Lucrécia (SCHWARZ, 2012). Para um desenvolvimento da questão, ver Gonçalves, Otsuka e Rabello (2013). 6 No artigo, Schwarz remete a ensaio de Fredric Jameson sobre os anos 1960 (JAMESON, 1991, p. 81-126).

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do horizonte teórico ‘pacificado’” das social-democracias europeias, que propiciava a acomodação ideológica e que estava então longe de parecer uma realidade no Brasil.7 Entretanto, uma reversão análoga já era conhecida daqueles que costumam pensar sobre o processo histórico sem deixar de lado o conhecimento fornecido pelas formas artísticas. Pois não havia sido algo semelhante que se vira na mutação do sentido do vanguardismo após o fracasso dos movimentos históricos de vanguarda?8 Em ensaio que trata da atualidade de Brecht, Schwarz conjuga a reflexão sobre as duas questões: o destino da cultura e da política de esquerda no Brasil pós-1964 e o alcance variável do reaproveitamento dos procedimentos de vanguarda. No período de radicalização política apoiada no populismo desenvolvimentista, que culminou na mobilização revolucionária do pré-1964, houve convergência entre inovação estética e emancipação social, um pouco à maneira do que havia ocorrido no momento heroico das vanguardas europeias do início do século XX. No campo da dramaturgia, a nova situação histórica do país em ebulição abriu rachaduras no quadro estreito do drama burguês e levou o teatro brasileiro jovem a desenvolver procedimentos épicos, de modo que o trabalho de Brecht, que começava a ser assimilado, ganhava atualidade efetiva no Brasil, enquanto em outras partes do mundo ia se iniciando a consagração do dramaturgo, morto em 1956. Instalada a ditadura militar, que inicialmente concentrou a repressão no movimento operário e camponês, a intelectualidade de esquerda chegou a predominar no cenário cultural vivo, mas atuando em âmbito confinado, longe do público a que em princípio se destinava: “por força da vitória da direita, a nova geração teatral alcançava a plenitude artística, de que a questão revolucionária fazia parte, no momento em que as condições históricas favoráveis a seu projeto haviam desaparecido” (SCHWARZ, 1999, p. 124). Schwarz observa ainda que nos anos da abertura política constatou-se que a “ditadura foi antipopular, mas não tradicionalista”, pois havia promovido alguma industrialização e 7

De lá para cá, houve algumas mudanças, mas só se reforçou o emaranhado ideológico. Cabe citar aqui trecho de uma entrevista recente de Schwarz: “Sem desconhecer as diferenças, e correndo o risco de me enganar muito, acho que no futuro Collor, FHC e Lula serão vistos como formando um mesmo bloco, determinado pela globalização, na qual a posição relativa do Brasil melhorou consideravelmente, o que sempre alivia e abre novas perspectivas. O que me parece errado é adotar uma visão rósea do curso geral do capitalismo porque o Brasil está com o vento a favor ou porque temos amigos no governo. A irracionalidade e a destrutividade do capitalismo estão aí, visibilíssimas na crise e no despropósito da mercantilização total, e é nestas dimensões que o marxismo finca a sua crítica, mesmo que no momento não faça muitos adeptos.” (SCHWARZ, 2009, p. 242-3). 8 A relação está sugerida em Arantes (1996, pp. 237-8).

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expansão do consumo de massa, bem como avanço na mercantilização da cultura, além de não ter barrado certa liberação de costumes sexuais e rotinização do uso de drogas. É desse momento que o crítico data o início, no Brasil, da “recuperação capitalista de aspirações libertárias, próprias até então à tradição antiburguesa [...], desativando em vários pontos o sistema de alternativas em que se inspira o engajamento socialista” (SCHWARZ, 1999, p. 128). Além disso, como nota Schwarz, hoje o senso comum se tornou materialista, a ponto de a precedência dos motivos econômicos ter se tornado justificação da dominação e da desigualdade social, assim como, na cultura, a exposição do aparato técnico e dos procedimentos ou a inoculação de choques se tornou habitual, não sendo mais tensionadas pela recusa do presente, visto como histórico e, portanto, transformável. Há muito a atividade cultural deixou de ser entendida como uma esfera autônoma, mas sem que a essa descida a terra correspondesse acréscimo de senso crítico. Ao fundo de toda a discussão feita por Schwarz sobre os vários temas dos ensaios de Sequências brasileiras, observa-se o estreitamento do horizonte de superação, ligado à derrota da esquerda e à supressão das alternativas socialistas, minando a perspectiva crítica. Na falta de uma força material de oposição a que se articule, a crítica se vê em dificuldades para enfrentar o dinamismo do capital em sua feição contemporânea – e por isso Schwarz insistia na importância da crítica ao fetichismo da mercadoria, considerando sua “independência relativa” do tema da revolução proletária (SCHWARZ, 1999, p. 103, 148, 175). Não se trata, é certo, de abandonar esse tema da luta de classes e da revolução, mas de elaborá-lo de modo renovado pelo ângulo da atualidade, pois outra questão que se levantava era que a passagem ao socialismo não decorreria como que automaticamente de uma reviravolta produzida pelo próprio sistema. O desmoronamento das ilusões, que Sequências brasileiras registra, é também um ponto de partida para a reinvenção da crítica à luz do presente.

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Recebido em 15/06/2013 Aprovado em 22/06/2013 1

Edu Teruki OTSUKA, Prof. Dr. Universidade de São Paulo (USP) Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada [email protected]

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