Ser conivente é conveniente: uma perspectiva das conciliações judiciais como forma de dissimular a crise do judiciário e de perpetuar a subcidadania no Brasil (Abrasd)

July 22, 2017 | Autor: Mayara Carvalho | Categoria: Direito, Judicialização, Conciliação
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Ser conivente é conveniente: uma perspectiva das conciliações judiciais como forma de dissimular a crise do judiciário e de perpetuar a subcidadania no Brasil Mayara de Carvalho Araújo

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Juliana Coelho Tavares da Silva

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1 Introdução A constatação da crise do Judiciário não é recente. Todavia, a solução do problema não tem sido tão evidente quanto seu diagnóstico. Os períodos que sucederam as grandes guerras evidenciaram a necessidade de sistemas protetivos de direitos humanos no ocidente e, com isso, passaram a enfatizar a necessidade de observância do direito garantia de acesso à justiça. Embora o "Projeto de Florença de Acesso à Justiça 3" tenha resultado numa das obras mais conhecidas sobre o tema, não foi esta uma das pioneiras a reconhecer a necessidade de universalização do acesso. Cinco anos após o término da Segunda Guerra Mundial, Thomas Humphrey Marshall 4 já havia constatado que o "direito à justiça" compõe o elemento civil dos direitos de cidadania, sendo também uma garantia do cidadão do cumprimento ou eventual responsabilização por descumprimento dos demais direitos. No Brasil, todavia, a importância do Judiciário só se mostrou reforçada diante do regime burocrático-autoritário que comandou o país a partir de 1964. Isso aconteceu porque o modelo de substituição de importações e a acentuada migração do campo para as grandes cidades gerou um ambiente urbano caracterizado pela eclosão de conflitos generalizados, principalmente de cunho social. Esse fato, somado ao relativamente recente reconhecimento de novos direitos, levou a

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Mestranda em Ciências Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com área de concentração em Direitos Humanos; advogada; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: [email protected] 2

Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), integrante projeto de iniciação científica (PIVIC) vinculado ao grupo de pesquisa “Marxismo e Direito”. E- mail: [email protected] 3

O "Projeto de Florença de Acesso à Justiça" foi coordenado pelo jurista italiano Mauro Cappelletti e formado pela união de pesquisadores de diversas áreas das ciências sociais com o propósito de, entre os anos de 1973 e 1978, investigar o sistema judicial de 23 (vinte e três) países, poucos deles latinoamericanos.

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A referência a Marshall (1963), aqui, leva em consideração sua teoria de que os direitos de cidadania podem ser decompostos em três elementos: o civil, o político e o social. O primeiro deles corresponderia, além dos direitos de liberdade, ao direito-garantia de acesso à justiça. 805

explosão de litigiosidade no país sem, contudo, ser acompanhado da preparação e modernização da abordagem jurídica e, por consequência, do Judiciário. Com a constatação da crise do Judiciário e dos mais diversos prejuízos que ela acarreta no país, o que vai da acentuação do "risco Brasil" à negação de liberdades essenciais ao desenvolvimento 5, emergiu a necessidade de adotar métodos alternativos para a resolução de conflitos no Brasil, sejam eles judiciais ou extrajudiciais. Inclusive, várias foram as iniciativas do próprio Estado na tentativa de, a partir do próprio aparato do Judiciário, oferecer uma resposta eficiente para eliminar ou reduzir o utópico acesso de uns frente à litigiosidade agravada de outros. Dentre os projetos com esse intento, destacam-se a criação de Juizados Especiais, o projeto de justiça itinerante e o incentivo às conciliações judiciais. É de se estranhar, todavia, a lógica que legitima a consecutiva criação desses projetos utilizando-se da própria burocracia estatal, uma vez que o esperado diante da constatação de insuficiência na resposta do Estado-Juiz à perpetuação dos conflitos, seria justamente o incentivo a sua solução em âmbito extrajudicial, evitando sua eclosão e reforçando a importância e o potencial de métodos complementares e alternativos à jurisdição estatal. Nesse contexto, o presente estudo tem como objeto o acesso democrático à justiça e pretende analisá-lo a partir da resolução do seguinte problema: a conciliação judicial tem sido empregada no país, em especial na Justiça do Trabalho, com o intuito de garantir o acesso à justiça democrático ou meramente para apaziguar a percepção da crise do Judiciário? Para tanto, parte-se da hipótese de que a conciliação judicial tem atendido mais ao Judiciário do que aos jurisdicionados e que, inclusive, tem sido legitimada pela própria constatação da crise que afeta a Justiça no país. Para averiguá-la, será utilizado o método de abordagem indutivo, o método de procedimento histórico e as técnicas de pesquisa bibliográfica, documental e de análise de caso concreto. Com isso, objetiva-se contribuir para a releitura do acesso à justiça frente a constatação de subcidadanias no Brasil a partir de uma crítica a forma como as conciliações judiciais vem sendo adotadas no país.

2 Subcidadania no Brasil: quebrando o paradigma de igualdade perante a constatação de uma "ralé brasileira"

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Para essa afirmação, tem-se como pressuposto a medida do desenvolvimento não pelo Produto Interno Bruto per capita ou a partir do Índice de Desenvolvimento Humano, mas da disposição de liberdades essenciais para que os indivíduos possam gerir suas vidas com um mínimo de dignidade. Assim, essas liberdades constituem, simultaneamente, fator e medida do desenvolvimento, conforme defendeu Amartya Sen (2000). 806

Dentre os estudos tradicionais sobre cidadania, a abordagem de Thomas Humphrey Marshall é uma das que mais influenciou a compreensão que se tem do tema. Para Marshall (1963, p. 76), cidadania consiste em um status partilhado entre os membros de uma comunidade que garante a eles igualdade no respeito de seus direitos e obrigações. Nessa perspectiva, os direitos de cidadania contemplam os direitos humanos em seu núcleo essencial, ainda que a densidade e a importância conferida a cada um dos direitos que a compõem variem de acordo com características históricas e culturais de cada povo (SORTO, 2009). Essa abordagem tradicional dos direitos de cidadania, contudo, não considera as características internas que distinguem os cidadãos pertencentes à mesma comunidade jurídica em igual período. Diferente da abordagem que se limita a constatar a existência de direitos e deveres de cidadania reconhecidos pela ordem jurídica, acredita-se que mesmo diante de Estados que se intitulam democráticos, é possível haver distinção interna entre seus cidadãos, como se houvessem níveis para atingir a cidadania plena e certos grupos de pessoas gozassem legitimamente de um status diferenciado de cidadania frente aos demais. Em países periféricos 6 como o Brasil, os possíveis danos desse fenômeno acentuam-se a ponto de perpetuar como autênticas práticas de discriminação velada dirigidas a grupos de indivíduos, verdadeiros subcidadãos. As distinções são historicamente enraizadas e distinguem os diferentes níveis de cidadãos em classes que ultrapassam o mero desnível econômico e atingem noções de capital cultural 7. A manutenção dessa realidade é possível a partir da dissimulação da legitimidade do critério meritório 8 e da atribuição de culpa a problemas genéricos e de longo prazo, como investimentos em educação, sem, contudo, discutir temas a eles essenciais, como a necessidade de mudanças pedagógicas no ensino. No caso brasileiro, a classe de subcidadãos, chamada provocativamente por Jessé Souza (2009) de "ralé", advém desde os períodos de recém independência, em que a população nacional era formada principalmente por uma massa de pessoas de baixa ou nenhuma escolaridade, grande parte deles ex-escravos. Foi, todavia, com a necessidade de construção de um "DNA cultural" capaz de aproximar os brasileiros através do compartilhamento de características essenciais e, consequentemente, de distingui-los dos demais povos, que a subcidadania encontrou forma para fluir e afirmar-se de maneira oculta.

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Por países periféricos entende-se aqueles em que as práticas da modernidade antecederam as ideias modernas, conforme defende Souza (2012).

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O termo "capital cultural" é utilizado aqui conforme a perspectiva de Pierre Bourdieu (2012).

O disfarce do caráter social da desigualdade costuma ser obtido pelo recurso à ideologia da meritocracia, capaz de aparentar certa individualidade à discriminação, ofuscando o caráter classista das precondições sociais que possibilitam a conquista do mérito (SOUZA, 2009, p. 120 ss.). 807

As teorias do século XX enfatizaram o aspecto cultural na formação do heterogêneo povo brasileiro, identificando a idiossincrasia brasileira a partir da miscigenação entre índios, escravos e colonizadores. O mais famoso expoente dessa teoria foi Gilberto Freyre (2006), que enfatizou a adaptação nacional herdada dos portugueses. É também de Freyre que parte a compreensão da miscigenação como algo distintivo e motivo de orgulho nacional, como se a unidade do povo brasileiro fosse oriunda da diversidade de influencias que recebeu e soube harmonizar. Criou-se, assim, a imagem do homem cordial brasileiro (FREYRE, 2006, p. 116). A inversão especular feita por Freyre faz do elemento miscigenação algo positivo e singular do povo brasileiro. Passa a constituir a própria identidade nacional a mistura de raças e culturas e, dessa forma, confere suporte teórico ao que já era uma evidência empírica sem, contudo, questionar se essa mestiçagem não era oriunda do poder exercido pelo homem branco frente as mulheres negras e índias, apresentando apenas o fato como uma predisposição cultural a ser valorada positivamente, reflexo da "plasticidade" portuguesa (SOUZA, 2009, p. 54). É importante frisar, contudo, que a pacificidade que caracteriza o brasileiro cordial encobre e, não raras vezes, nega a existência de determinados conflitos sociais. Não só, essa abordagem omite os conflitos sociais existentes na sociedade brasileira, uma vez que todo brasileiro é caracterizado genérica e indistintamente como homem cordial, como se todos os indivíduos de nossa sociedade fossem semelhantes em substância, ignorando-se qualquer divisão de classe e distinguindo-os apenas em relação à renda que possuem. É por essa razão que, conforme atenta Jessé Souza (2011, p. 59), "todo o processo de dominação social e de legitimação da desigualdade, ou seja, o núcleo mesmo de qualquer teoria crítica da sociedade não pode ser discutido posto que não é sequer percebido como uma dúvida ou como uma pergunta fundamental". Isso faz com que se pense o desenvolvimento nacional vinculado exclusivamente ao progresso econômico, como se só assim pudessem ser resolvidos as crônicas desigualdades que levam à perpetuação da subcidadania no país. Repete-se, acriticamente, que "primeiro devemos fazer crescer o bolo, para só então dividi-lo", como se defendeu durante os governos militares no país e em outros que os sucederam, sem, contudo, vislumbrar o desenvolvimento nacional com base no oferecimento das liberdades essenciais aos cidadãos brasileiros. Essas teorias pseudocríticas, contudo, ignoram a gênese do problema social brasileiro na inexistência de efetiva preocupação com esses "milhões de párias" aos quais aludiu Freyre, pessoas que são não só excluídas, mas invisíveis ao sistema, a "ralé brasileira" de que fala Jessé Souza (2009).

3 Acesso à justiça: das perspectivas tradicionais à compreensão do inacesso

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O debate sobre o acesso à justiça ganhou notoriedade principalmente após a famosa obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988). Não que antes não se falasse do tema, mas isso era feito principalmente com o viés liberal característico do Estado de laissez faire, razão pela qual o debate centrava-se na perspectiva formal do acesso. Foi no período do welfare state que o acesso à justiça ganhou uma conotação diferenciada, passando a ser visto como requisito fundamental para a concretização dos demais direitos humanos. Essa nova ótica teve origem na compreensão de que pouco adiantaria reconhecer novos direitos, sejam eles individuais ou coletivos, se seus titulares não dispusessem de mecanismos para reivindicar seu efetivo cumprimento. A partir dos ideais do Estado Social, edificou-se, então, o "Projeto de Florença de Acesso à Justiça", que atribuiu ao acesso à justiça o caráter de garantia essencial para edificação dos direitos humanos. O projeto em questão foi fundamental para a identificação da crise do Judiciário, uma vez que apontou diversos obstáculos ao efetivo acesso à justiça e, portanto, à garantia de cumprimento de direitos humanos. Com isso, de mera burocracia pedante, o processo passa a ser concebido como meio de efetivação de direitos. Conforme mencionado alhures, no âmbito nacional, a crise do Judiciário passou a ser mais notória a partir do regime burocrático-autoritário pós-64, uma vez que, nesse período, não só os novos direitos, mas também os emergentes conflitos sociais não demoraram a alcançar a esfera do Judiciário, que, para responder de forma útil a essas novas demandas, necessitava empregar um aparato estrutural e fazer uso de concepções de que não dispunha. As prestações insuficientes, diante da importância do papel a ele atribuído, exprimiram o despreparo do Judiciário brasileiro para responder satisfatoriamente às novas demandas sociais. A contrapasso, a globalização trouxe consigo uma nova forma de medir o tempo, que então passou a ser valorado em frações de segundos. A sociedade, num ritmo ativo, confrontou-se com um Judiciário moroso e inefetivo. Nessa conjuntura, passou-se, então, a defender a utilização de meios alternativos de resolução de conflitos capazes de amenizar os efeitos maléficos da crise do Judiciário ao cumprimento dos direitos humanos. Mostrou-se essencial, igualmente, abandonar a perspectiva estatizante com que se costuma pensar o acesso à justiça no país. Sem a superação desse paradigma, a compreensão de "ordem jurídica justa" ou mesmo de "acesso à justiça" tem sua extensão limitada aos contornos possíveis através da "tutela jurisdicional" do Estado, permanecendo alheia a todas as outras formas hábeis à adequada produção de decisões. Pretende-se, com isso, abandonar a perspectiva da "estadania" a que se refere Carvalho (2004) e desvincular a produção de decisões justas à limitante figura do Estado-provedor. Assim, defende-se que uma perspectiva democrática do processo e do acesso à justiça exige a

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observância da autonomia dos cidadãos tanto na instituição do direito, quanto no momento da sua aplicação. Essa noção é importante uma vez que a defesa da autonomia dos cidadãos, por intermédio da conquista das liberdades que possibilitam e medem o desenvolvimento (SEN, 2000), ultrapassa a reivindicação de acesso à justiça a um sistema de direitos pré estabelecidos. Com isso, objetiva-se questionar as próprias construções dogmáticas em torno desses direitos que, falando em "acesso", constroem a imagem de falso pertencimento a um sistema rígido, com rol de incluídos, excluídos e esquecidos delimitados desde a sua origem (NUNES; TEIXEIRA, 2013). O modelo eminentemente estatal de exercício da jurisdição apresenta falhas fundamentais que acabam não só por atuar de maneira ineficiente numa perspectiva abstrata do jurisdicionado, como também por reforçar a marginalização de certos indivíduos e grupos sociais. Dentre seus entraves, merecem destaque os obstáculos ao acesso à justiça que ocorrem principalmente em razão dos altos custos para manter um processo ativo; da excessiva morosidade até a obtenção de julgamentos de mérito; do predomínio de decisões sem a liquidez necessária para serem efetivadas; da perspectiva eminentemente individual na análise dos casos, mesmo diante de conflitos coletivos; e da excessiva especialidade de determinadas causas frente à formação genérica dos juristas. Feitas essas considerações, afasta-se da tentativa frustrada de superação do modelo liberal de processo pela realização da justiça material pelo Estado social, para seguir um modelo de efetivação dos direitos de cidadania a partir do diálogo oriundo da ampla participação dos interessados no litígio, ampliando, por conseguinte, a compreensão que se tem do acesso à justiça conforme a perspectiva democrática. Nesse parâmetro, a compreensão de acesso à justiça é ampliada, abarcando não só o acesso ao Judiciário, ainda que material, mas também o acesso a todo meio legítimo para proteger e garantir a efetivação dos direitos.

4 O dilema da conciliação: à serviço do Estado ou do jurisdicionado? Conforme já demonstrado, o judiciário brasileiro enfrenta uma crise, decorrente de sua incapacidade de compor satisfatoriamente as demandas a ele submetidas, especialmente quando consideramos segmentos desfavorecidos da sociedade que encontram-se segregados, por distinções sociais implícitas, em função não somente do capital econômico que possuem, mas em decorrência do domínio de “capital cultural”. Isto, somado à morosidade na solução de controvérsias, é fato gerador de uma frustação social. Neste cenário, seria necessária uma reforma profunda no sistema judicial, o que se transforma em um componente essencial para a boa administração e para o desenvolvimento da sociedade (SANTOS, 2011, p.31). Especialmente, se levarmos em consideração que o papel 810

fundamental do sistema judicial é garantir a certeza e a previsibilidade das relações jurídicas, clarificar e proteger os mais variados direitos. Abrem-se, então, duas possibilidades: de um lado, a transformação na concepção e gestão do sistema judicial, utilizando-se de inovações técnicas e tecnológicas. Do outro lado, a proposição de alternativas ao modelo clássico da administração da justiça, no que se convencionou chamar de “informalização da justiça”, paradoxalmente, guiada por “critérios de eficácia definidos pela lógica formal e estatista do Estado” (SANTOS,1990, p.26). Frente a uma teoria da dialética negativa do Estado capitalista, Boaventura de Sousa Santos (1982, p.12,13,26) nos mostra que a principal função Estatal seria dispersar as tensões sociais, sem se preocupar em superar as contradições sociais, forçosamente se orientando para a obtenção do consenso e da harmonia. É baseado nesse argumento que a legalidade capitalista seria formada por três elementos, que se inter-relacionariam, formando, assim, uma estrutura característica: a retórica, de cunho persuasivo-argumentativo e de adesão voluntária, a burocracia, baseada nos procedimentos hierarquicamente organizados, e a violência. Tomando por base tais elementos, Boaventura elenca os pontos centrais da informalização da justiça, que seriam, dentre outros, a ênfase em resultados mutuamente acordados, a aversão as decisões obtidas por adjudicação, e o reconhecimento da competência das partes para proteger os seus próprios interesses. (SANTOS, 1982, p.17). Contudo, um importante aspecto da sociedade burguesa na qual estamos inseridos é que ela se baseia na desigualdade nos seus mais variados âmbitos. Ou seja, há uma verdadeira relação de complementariedade entre um macro-poder, representado pelo poder estatal, e um micro-poder, presente nas interações sociais assimétricas. Ao primeiro, Boaventura denominou de “poder cósmico” e ao segundo “poder caósmico”. (1982, p.27). É neste escopo que nos propomos a analisar o movimento de acesso e informalização da justiça, enquanto expansão da concepção clássica de resolução judicial de litígios, sem excluir a possibilidade da resolução alternativa de disputas (RAD), dentro dos Tribunais, notadamente através da conciliação judicial. Tal instituto se propõe, através de atuação proativa do magistrado como facilitador do diálogo na transação, a pôr fim ao processo de forma célere, democratizar a justiça, reduzir o número de demandas judiciais e ampliar do exercício da cidadania; o que, por outro lado, contribui para descongestionar o judiciário. A conciliação seria então “um momento prévio em que o Estado oferece um espaço e um momento para promoção do diálogo” (BRAGA NETO, 2009, p.488). Ela é vista como uma opção ao sistema tradicional de justiça, sendo considerada uma auto composição indireta ou triangular, contando com o auxílio de um terceiro não interessado. Ademais, aparenta ser maneira muito eficaz de resolver um conflito, pois as partes autonomamente buscam, no judiciário, um meio imediato de pôr fim a controvérsia. Além disso, se diferencia de outras formas alternativas de 811

resolução de conflitos, à exemplo da mediação e da arbitragem, pois seu objetivo maior é a elaboração do acordo, que põe um ponto final na demanda judicial. Para que procedamos o estudo, não se pode olvidar que no Brasil, estamos imersos numa cultura de neoliberalismo processual, onde o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) impõe aos órgãos jurisdicionais metas elevadas de composição de lides, visando um processo cada vez mais célere, ainda que em total desatenção aos princípios processuais constitucionais, claramente mais preocupados com o aspecto quantitativo do que com o qualitativo. Dessa forma, ele reflete uma lógica neoliberal de produtividade, efetividade e celeridade, perseguindo tais valores a qualquer custo. Neste prisma, foi aprovada em 2010 a Resolução 125 do CNJ (BRASIL, 2010), que visava a consolidação de uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios. Sublinhe-se que muito embora entre seus objetivos, esteja a efetivação do acesso à justiça, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, esta política visa essencialmente garantir a eficiência operacional, através da filtragem dos litígios, reduzindo a excessiva judicialiazação dos conflitos, bem como, a enorme quantidade de recursos que são postos à apreciação do Judiciário. Veja-se que sob o véu da “cultura de paz”, na realidade, foi encoberta uma maneira de “desafogar o Judiciário”. Isso porque ao longo dos artigos da Resolução o que se vê é que, ao invés de oportunizar a resolução dos litígios extrajudicialmente, visando a prevenção dos conflitos, ela criou mecanismos de tratamentos dos mesmos, a serem observadas pelos Tribunais, à exemplo da criação de dos núcleos permanentes de métodos consensuais de solução de conflitos e dos centros Judiciários de solução de conflitos e cidadania. Observe-se que o instituto da conciliação se enquadra perfeitamente aos ideais de produtividade e eficiência, como podemos perceber pela implementação de programas como o “Conciliar é Legal” e a Semana Nacional de Conciliação, na qual são feitos mutirões para conciliar, acarretando uma verdadeira produção em massa de acordos. Nos alerta Dierle José Coelho Nunes (2008, p. 174), ao tratar da aplicação da lógica neoliberal nas conciliações judiciais, que são cada vez mais frequentes as situações nas quais os acordos são impostos, ainda que sejam inexequíveis. Isto acontece tão somente para que haja a resolução do caso, fornecendo a sociedade uma mera ilusão de apaziguamento dos conflitos. A conciliação judicial se torna ainda mais adequada, muito embora problemática, sob a ótica neoliberal, pois, o seu atrativo deriva, em grande parte, do fato de evitar a necessidade de um juízo (FISS, 2007, p.139). Ora, se pensarmos que o juiz homologa o acordo, comparando-o com a decisão judicial hipotética que ele mesmo teria prolatado para o caso, é de causar imensa estranheza que possa o magistrado conciliador firmar qualquer posicionamento tomando como

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norte uma imaginária sentença para a qual não houve nos autos sequer a produção do conjunto probatório, documental ou testemunhal. A busca incessante por resultados por parte dos órgãos Judiciários superiores a qualquer custo acaba por impossibilitar o acesso à justiça enquanto acesso a uma ordem justa. Assevera Owen Fiss (2007, p. 130, em tradução nossa) que a “‘facilitação da conciliação’ se converteu no objetivo explícito das audiências prévias ao juízo e o juiz foi convidado (se esta é a palavra apropriada) a adotar ações visando a conciliação” 9. Frente a essa pressão institucionalizada pela conciliação, podemos ainda nos questionar acerca do consentimento dos jurisdicionados neste processo. É exatamente neste aspecto em que podemos observar claramente como se desenvolve o “poder cósmico” estatal. Com efeito, a aquiescência dos conciliados para o acordo, frequentemente, é resultado da coerção exercida pelo magistrado conciliador, que por ocupar uma posição de autoridade, pode, em certo ponto, até utilizar dos seus poderes para amedrontar as partes visando o acordo 10.

5 Conciliações na Justiça do Trabalho: o consentimento estatal na disparidade de armas A Justiça do Trabalho já nasce com aspirações de informalização, muito antes da institucionalização das políticas de RAD pelo CNJ. Nos informa António Ferreira (2005, p. 13) que “para além de sofrer as influências emergentes do sistema judicial, a justiça laboral encontra-se exposta às transformações dos sistemas de relações laborais onde ocorre uma convergência entre as designadas crises do trabalho, da justiça, do direito do trabalho e do sindicalismo”. Este ramo surgiu depois da Revolução Industrial, diante das novas relações sociais entre capital e força de trabalho. Foi fruto da experiência fracassada dos Tribunais Rurais, em 1922, os quais foram precedidos das juntas de conciliação e julgamento criadas em 1932, órgãos administrativos com competência exclusiva para conciliações, dirimindo apenas os dissídios individuais de empregados sindicalizados. Segundo Mauro Schiavi (2013, p.162-165), outra característica deste ramo do poder Judiciário é que contava, na sua gênese, com a presença de juízes classistas, recrutados nos sindicatos, ao lado de um magistrado com formação jurídica. Aqueles atuavam especialmente na fase de conciliação, mas também podiam votar nos julgamentos, porque conheciam a fundo a realidade da categoria profissional e econômica que representavam. Veja-se que toda a fase de conhecimento do Processo do Trabalho foi pensada contando com a presença dos juízes leigos ou “vogais”. Contudo, devido ao aprofundamento dos conflitos, as decisões da Justiça do Trabalho 9

“En este sentido, la se convirtió em objetivo explícito de las audiencias previas al juicio y el juez fue invitado (si esta es la palabra apropiada) a adoptar accionnes relativas a ”.

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Neste sentido, veja-se artigo 6º da Resolução n.125/CNJ que relaciona a utilização da RAD com promoção dos magistrados por merecimento. 813

foram se distanciando cada vez mais da experiência prática dos classistas e se baseando no conhecimento eminentemente técnico dos magistrados formados em Direito. Uma peculiaridade dos procedimentos processuais trabalhistas, ligada intrinsecamente com o princípio da igualdade processual, é o jus postulandi, insculpido no artigo 791 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) 11. Segundo este dispositivo, não é obrigatório que a parte se faça acompanhar por procurador. Muito embora esta prerrogativa vise a ampliação do acesso à tutela jurisdicional estatal, tendo em vista que boa parte dos seus usuários não tem condição de contratar um advogado, acaba por ter objeções no sentido de que “diante da complexidade das matérias que envolvem o cotidiano do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, a não assistência por advogado, ao invés de facilitar, acaba dificultando o acesso, tanto do trabalhador como do tomador de serviços, à Justiça” (SCHIAVI, 2013, p.310). Importante mencionar que o ato judicial da conciliação é tido como forma primordial de solução das lides trabalhistas, sendo inclusive previsto na CLT. O magistrado vê-se coagido pelo dispositivo normativo, sempre nos momentos de abertura e encerramento da instrução a propor o acordo, pois todos os litígios, sejam eles individuais ou coletivos, estarão sempre sujeitos ao procedimento conciliatório 12. Assim, o que se evidencia é o resultado da regulação da conflitualidade trabalhista, mesmo tendo um viés informal, “é o surgimento de um sistema cuja origem normativa e institucional se deve essencialmente ao Estado” (FERREIRA, 2001, p. 16) É assim que o juiz do trabalho “age, em verdade, como autêntico mediador, antes de desenvolver a atividade jurisdicional típica, consistente no aprofundamento das matérias fáticas e jurídicas postas na demanda” (SILVA, 2009, p. 92). Observe-se que os acordos, proferidos antes da instrução processual são meras sentenças homologatórias das partes, sem qualquer decisão

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Art. 791. Os empregados e os empregadores poderão reclamar pessoalmente perante a Justiçado Trabalho e acompanhar suas reclamações até o final. 12

Art. 764. Os dissídios individuais ou coletivos submetidos à apreciação da Justiça do Trabalho serão sempre sujeitos à Conciliação. § 1º Para o efeito deste artigo, os Juízes e Tribunais do Trabalho empregarão sempre os seus bons ofícios e persuasão no sentido de uma solução conciliatória dos conflitos. § 2º Não havendo acordo, o juízo conciliatório converter-se-á obrigatoriamente em arbitral, proferindo decisão na forma prescrita neste Título. § 3º É lícito às partes celebrar acordo que ponha termo ao processo, ainda mesmo depois de encerrado o juízo conciliatório. Art. 831. A decisão será proferida depois de rejeitadas pelas partes a proposta de conciliação. Parágrafo único. No caso de conciliação, o termo que for lavrado valerá como decisão irrecorrível, salvo para a Previdência Social quanto às contribuições que lhe forem devidas. Art. 846. Aberta a audiência, o juiz ou presidente proporá a conciliação. (Alterado pela L-009.022-1995) § 1º Se houver acordo lavrar-se-á termo, assinado pelo presidente e pelos litigantes, consignando-se o prazo e demais condições para seu cumprimento. (Acrescentado pela L-009.022-1995) § 2º Entre as condições a que se refere o parágrafo anterior, poderá ser estabelecida a de ficar a parte que não cumprir o acordo obrigada a satisfazer integralmente o pedido ou pagar uma indenização convencionada, sem prejuízo do cumprimento do acordo. Art. 850. Terminada a instrução, poderão as partes aduzir razões finais, em prazo não excedente de 10 (dez) minutos para cada uma. Em seguida, o juiz ou presidente renovará a proposta de Conciliação, e não se realizando esta, será proferida a decisão. 814

de mérito, mas já com força de decisão judicial, apenas podendo ser desconstituídos através de ação rescisória, nos termos da Súmula 259 do Tribunal Superior do Trabalho. Não é ocioso destacar que a RAD pressupõe, ainda que implicitamente, a assunção da existência de uma igualdade entre as partes (FISS, 2007, p. 131). Outrossim, a conciliação também está, de certa forma, em função dos recursos de que dispõe cada parte para financiar o processo, os quais, com frequência, estão distribuídos desigualmente (FISS, 2007, p. 131). Ora, enquanto no curso da tutela jurisdicional clássica processo deve o juiz proporcionar um tratamento processual idêntico, garantindo as partes um meio para que possam lutar em pé de igualdade, na conciliação judicial não existe este princípio, já que esta preza pela autonomia das partes. Observa-se que um método alternativo, à exemplo da conciliação, figura, em princípio, como uma solução capaz de proporcionar resultados equilibrados. Todavia, “sob certas condições, a composição dos conflitos realizada através da conciliação pode estar na base de soluções socialmente desequilibradas” (FERREIRA, 2005, p. 90), levando a efeitos perversos, e contrários aos fins esperados, hipótese que se adequa aos conflitos laborais, pelas razões que passaremos a expor a seguir. Ao integrar e institucionalizar os conflitos do mundo laboral “de cima para baixo”, ou seja, do Estado para os seus cidadãos, sem qualquer objetivo de auto regulação, cooperação e paridade, entre os parceiros sociais, observamos que os espaços formais de composição de lides através da conciliação reproduzem os efeitos da desigualdade de poder e recursos sociais (FERREIRA, 2001, p. 19), em clara representação da dualidade entre o “poder cósmico” e o “caósmico”. Segundo António Ferreira (2005, p, 86), como “a mobilização dos tribunais pelos cidadãos implica não só consciência de direitos, mas também a capacidade para os reivindicar, reforça-se o laço sócio-político que liga a atividade dos tribunais ao exercício da cidadania e da participação política”. Contudo, as relações de trabalho são assimétricas por natureza, vez que enquanto em um dos polos está um trabalhador, na maioria das vezes com baixo grau de escolaridade e baixo poder aquisitivo; do outro encontra-se uma empresa, a qual, devido a sua maior capacidade organizacional e maior disposição de recursos, poderá impor uma tutela mais vantajosa dos seus interesses. Este desequilíbrio de poder, levando em consideração, entre outros fatores, a capacidade econômica das partes, afetará, indubitavelmente o processo conciliatório judicial. Veja-se que enquanto a conciliação extrajudicial se propõe a prevenção dos conflitos, a conciliação judicial é uma forma da parte detentora do capital diminuir a condenação através da prolação da sentença. Para ilustrar essa assertiva, note-se o caso de uma reclamação trabalhista que tramitou sob a jurisdição da 13ª Região, de número 01010.2008.006.13.00-5. Nesta ação, a empregada pleiteava, em face de um banco, o pagamento de uma indenização por danos morais decorrentes de um acidente de trabalho, por ter sido vítima de 815

assédio moral, o que teria acarretado um esgotamento emocional. No caso em questão, houve a prolação da sentença por parte do juízo a quo. Devido à gravidade e extensão do dano sofrido pela reclamante, a condenação da empresa foi arbitrada no valor de R$ 980.000,00. A reclamada, então, recorreu ordinariamente para o Tribunal Regional. No entanto, enquanto as partes aguardavam pela apreciação do recurso pela Corte, foi realizada uma conciliação. Note-se que no termo de acordo homologado, a empresa se comprometia a pagar para a empregada um importe equivalente a menos do que a metade do que havia sido condenada em 1º grau. É perceptível como a conciliação foi prejudicial à laborista, que transacionou sobre seu direito supostamente indisponível, e constitucionalmente garantido à honra e a dignidade, e acabou por ganhar valor muito inferior ao que lhe era devido. No cenário acima delineado, fica claro como a diferença estrutural de poder social e econômico pode levar um indivíduo a se sentir coagido a conciliar, por fatores como morosidade processual, leque amplo de possíveis recursos e situação econômica desfavorável. Com efeito, um mecanismo alternativo de resolução de litígios pode ser prejudicial à parte mais frágil da relação, mas ainda assim atender aos interesses do poder Judiciário, que se viu desincumbido do dever de julgar o apelo da empresa. Por fim, inspirados em Gustavo Binenbojm (2006) e Boaventura de Sousa Santos (1982), e com o intuito de propor uma melhor visão do acesso à justiça, na perspectiva do jurisdicionado, não do poder Judiciário, por meio da conciliação judicial, é que propõem-se alguns standards. Com o desenvolvimento exacerbado da legalidade no Estado Capitalista, maior será o nível de institucionalização burocrática e violenta do Judiciário. Daí decorre a constatação de que quanto mais grave e evidente for a violação a direitos fundamentais, mais reforçado deve ser o grau do controle judicial, diminuindo-se então a efetivação de conciliações danosas a parte mais frágil da relação processual. Por outro lado, esse processo, apesar de contar com a presença estatal, deve possibilitar cada vez mais que os envolvidos na lide possam participar efetivamente na composição do seu conflito. Dessa forma, será possível a efetivação das garantias processuais e constitucionais frente a um desequilíbrio de poder, bem como a efetivação da cidadania.

6 Considerações finais Do ponto de vista tradicional dos direitos de cidadania, não são considerados aspectos internos que distinguem os cidadãos que estão inseridos numa mesma comunidade jurídica em igual período. Entretanto, percebe-se que mesmo em Estados democráticos há uma distinção entre aqueles cidadãos que usufruem de forma legítima de um status superior ao de outros cidadãos. No Brasil, como em outros países capitalistas periféricos, os efeitos de tal manifestação são perversos e podem se converter em formas de perpetuação de discriminação aos subcidadãos. Essa questão, somada a um Judiciário moroso, que demanda altos custos de 816

manutenção de um processo, e incapaz de responder aos crescentes anseios sociais, leva a crer que podemos dividir a prestação jurisdicional em cidadãos e subcidadãos. É notável que o nosso modelo estatal de jurisdição é falho, atuando de maneira ineficiente no atendimento ao jurisdicionado, sendo meio de perpetração de desequilíbrio de poder entre indivíduos. Foi nessa perspectiva que se passou a defender a utilização de meios alternativos de resolução de litígios, pretensamente capazes de reduzir os impactos da crise do Judiciário, e dar cumprimento aos direitos humanos à exemplo do direito à cidadania e do acesso à justiça, como possibilidade de fruição de todo um arsenal legitimo para proteger e garantir a efetivação de direitos. Contudo, o que se percebe é que embora se pregue uma “cultura de paz”, através da utilização de institutos como a conciliação, em especial a judicial, tal método, por pressupor uma isonomia entre as partes acordantes, pode mesmo levar a transgressão dos direitos fundamentais dos cidadãos, com efeitos diametralmente oposto aos previstos. Não se pode olvidar o fato do Judiciário, para enfrentar a crise se adequou a uma lógica neoliberal, norteada por ideais de produtividade, massificação e celeridade perseguidas a todo custo, o que apesar de trazer um ganho notável na sua agilidade, é indubitavelmente danoso à promoção da justiça e da harmonia social. À imagem dessa ótica, o foco da conciliação se deslocou de uma maneira de assegurar o amplo acesso à efetivação dos direitos dos cidadãos, notadamente da “ralé brasileira”, para a rápida resolução do caso e sua repercussão nas estatísticas do CNJ. Uma das expressões desse fenômeno se dá na Justiça do Trabalho, onde foi possível constatar que a conciliação judicial não tem sido empregada visando a garantia de um acesso à justiça democrático, mas como uma forma de mascarar a crise do Judiciário e preservar as desigualdades sociais. O contexto em que se inserem as relações laborais é o de assimetria de poder extremada, um verdadeiro jogo entre os poderes “cósmico” e “caósmico”, onde os embates se dão, geralmente, entre um trabalhador quase sempre com baixo grau de escolaridade e situação econômica desfavorável e empresas de grande porte econômico. Veja-se que ao ampliar o campo de visão para outros ramos do direito, é consonante a noção de que nem sempre conciliar é legal, por exemplo, o projeto de lei do novo Código de Processo Civil, ainda em tramite no poder legislativo. No que concerne a conciliação, o novo diploma legal prevê em seus artigos que após ajuizada a petição inicial, e não sendo caso de improcedência liminar do pedido, será automaticamente designada uma, ou mais, audiências de conciliação, e apenas após findo esse processo é que será aberto o prazo para contestação. Esse novo dispositivo poderá acarretar num uso inadequado do instituto pela parte mais poderosa para a protelação do julgamento de mérito e aumento do custo processual, o que também afetará as possibilidades de acordos conciliatórios equilibrados.

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Conclui-se, então, que a utilização de métodos alternativos à composição de litígios, especialmente aqueles propostos “de cima para baixo”, como a conciliação judicial, podem ser danosos para a parte hipossuficiente, levando até mesmo a renúncia da tutela jurídica de direitos indisponíveis, como a honra e a dignidade. Por conseguinte, percebe-se a precarização da prestação jurisdicional, bem como a relativização de direitos e garantias dos jurisdicionados. Entendemos, assim, que a efetivação dos direitos de cidadania só será possível através da combinação entre ampla participação dos interessados na composição da lide em todas as suas esferas, incluindo ai o acesso formal e material ao Judiciário, combinado com práticas extrajudiciais de prevenção de conflitos.

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