Ser estranho e velho: \"Bestera\", de Hilda Hilst, e as ciências da velhice

June 2, 2017 | Autor: Marcos Visnadi | Categoria: Literatura, Direitos Humanos, Velhice, Hilda Hilst
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SER ESTRANHO E VELHO:
"BESTERA", DE HILDA HILST, E AS CIÊNCIAS DA VELHICE


Marcos de Campos Visnadi
Mestrando em Literatura Brasileira, FFLCH USP
Contato: [email protected]


RESUMO: A segunda metade do século XX viu os discursos científicos sobre a velhice se multiplicarem de tal modo que já não é mais possível repetir a afirmação feita por Simone de Beauvoir, em 1970, de que haveria uma "conspiração do silêncio" em torno dessa fase da vida. No entanto, esses discursos costumam compartilhar pressupostos e práticas que restringem a velhice a determinados tipos de vivência e de conceituação, perpetuando ou criando novos silenciamentos. É corrente, nas áreas de saúde e humanidades, conceber o envelhecimento como um dado fundamentalmente biológico da vida e as pessoas velhas como marginalizadas e carentes de inclusão social. O conto "Bestera", de Hilda Hilst, publicado em Cartas de um sedutor, põe em xeque essas duas concepções, ao apresentar uma personagem velha que não deseja se integrar socialmente e ao construir a velhice com paradigmas textuais, e não biológicos. Para analisá-lo, e discutir as conexões entre a literatura e as ciências (em particular, a gerontologia), serão mobilizadas a noção de não organicidade do texto, desenvolvida por Georges Bataille em A literatura e o mal, e a discussão que Antonio Candido faz sobre as relações entre direitos humanos e literatura no artigo "Direito à literatura".

PALAVRAS-CHAVE: velhice; literatura; representação; direitos humanos; Hilda Hilst



papel ordinário representando florestas com tigres,

(Murilo Mendes, "Perspectiva da sala de jantar")


O escritor Yuri Vieira conta uma anedota supostamente ocorrida nos últimos anos de vida de Hilda Hilst, de quem foi amigo e secretário:

Quando Hilda Hilst faleceu, em 4 de Fevereiro de 2004, devia cerca de 800 mil reais de IPTU. Dois anos antes, a dívida era de 500 mil reais. Quando morei com ela, a dívida já era altíssima, salvo engano, aí pelos 300 mil reais. Mas, pouco antes de conhecê-la, quando a dívida já a assustava – ela caíra na armadilha de transformar uma área rural em loteamento, o que alterou o imposto de rural para urbano –, a Câmara de Vereadores de Campinas (SP) quis homenageá-la e, após votação, decidiu entregar-lhe a Chave da Cidade. Hilda foi então convidada para ir até a Câmara, mas deu de ombros: "Homenagem? Não quero homenagem, quero que revejam esse valor absurdo do meu IPTU". Ela ganhava apenas 2000 reais por mês...
Os vereadores a esperaram em vão. Assim, como a coisa já estava feita, decidiram enviar um representante à Casa do Sol, residência da autora, onde ele, um vereador (se não me falha a memória, o presidente da câmara), chegou todo sorridente com aquela Chave enorme nas mãos. O porteiro do condomínio anunciou a visita do sujeito, deixando Hilda irritada.
"Que petulância!"
Ela então, como costumava fazer em momentos assim, preparou sua performance: foi até o quarto e se "disfarçou" de velhinha. Sim, à época Hilda já tinha quase 70 anos de idade, mas seu espírito jamais faria alguém confundi-la com uma "velhinha". Por isso, pegou duma bengala, jogou um xale sobre os ombros, encurvou-se e saiu caminhando como velhinha caquética até a entrada da casa, onde o vereador a esperava.
"Dona Hilda!", começou ele, efusivo. "Vim lhe entregar a Chave da..."
"E o meu IPTU?", cortou ela, seca.
Ele, pego de surpresa, gaguejou: "Mas, dona Hilda, nós... eu não tenho poder para isso... Vim apenas porque a Câmara resolveu lhe prestar uma homena..."
"O senhor por acaso já leu meus livros?"
Agora sim ele ficou branco. Engoliu em seco: "Não, senhora, nunca li nenhum dos seus livros".
"Então, ponha-se daqui para fora. Meus leitores já me homenageiam quando lêem meus livros."
O vereador ofendeu-se:
"Vim até aqui de boa vontade lhe prestar uma homenagem, lhe fazer um favor, e a senhora..."
"Favor o senhor faria se me chupasse a cona", berrou ela, brandindo a bengala.
O vereador ficou roxo e não sabia onde enfiar a cara.
"Por favor, retire-se da minha casa", tornou ela, com dignidade. "Vocês querem que eu pague uma fortuna para morar na minha própria casa e ainda acham que vão me comprar com uma chave idiota que não abre porta alguma? Pois diga a seus pares que os mandei enfiar, um de cada vez, a chave em seus respectivos cus. O senhor faça o mesmo."
E então, desfazendo a corcunda, deu as costas ao homem e, pisando firme, imponente, caminhou para dentro de casa. (VIEIRA, 2013, s./p.)

A historinha é ilustrativa da persona ostentada pela escritora e pela qual se tornou conhecida, especialmente a partir do começo dos anos 1990, quando, sexagenária, anunciou para jornalistas que abandonaria a literatura séria e se dedicaria apenas a escrever livros pornográficos. O acontecimento, algo constantemente mencionado e avaliado pelos estudiosos da obra da autora, acabou rendendo quatro livros que ficaram conhecidos como sua "tetralogia pornográfica", composta dos poemas de Bufólicas (1992) e dos romances O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d'escárnio. Textos grotescos (1990) e Cartas de um sedutor (1991). Chamar esses livros de "romances" é mais um atalho de escrita do que uma classificação crítica precisa, uma vez que a prosa de Hilda Hilst se caracteriza por raramente corresponder às expectativas que tenhamos de adequação aos gêneros literários tradicionais, resultando naquilo que Alcir Pécora (2010, p. 10) chamou de "anarquia dos gêneros". Para Eliane Robert Moraes, trata-se de uma característica ainda mais acentuada nos textos pornográficos: "para responder aos dilemas da representação do sexo, mas sem acatar as restrições impostas à pornografia, a autora perverte as leis literárias, criando uma prosa em que os gêneros se degeneram. Uma prosa degenerada" (MORAES, 2014, p. 268).
Essa degeneração simultaneamente textual e moral atingiu também a persona da escritora, que nessa época se confundia com seus personagens cínicos e histriônicos e proporcionava ao futuro anedotas como a contada por Yuri Vieira. O conto "Bestera", incluído na anarquia que forma o livro Cartas de um sedutor, é um bom exemplo disso. Suas primeiras linhas dão à luz uma personagem que se confunde com a imagem legada por sua autora:

Cansei-me de leituras, conceitos e dados. De ser austera e triste como consequência. Cansei-me de ver frivolidades levadas a sério e crueldades inimagináveis tratadas com irrelevância, admiração ou absoluto desprezo. Sou velha e rica. Chamo-me Leocádia. Resolvi beber e berimbar antes de desaparecer na terra, ou no fogo ou na imundície ou no nada. (HILST, 2014, p. 180)

Em certa medida, poderíamos retratar Leocádia com as mesmas palavras usadas por Cristiano Diniz para resumir os aspectos da persona de Hilda Hilst construídos nos anos 1990: "dona de uma inteligência incomum, sem papas na língua, ousada, desconcertante, provocativa e... 'louca'" (DINIZ, 2013, p. 5) Seria um erro, obviamente, operar uma identificação total entre uma pessoa de carne e osso e uma personagem feita de palavras, mas, na medida em que a imagem pública de uma pessoa é feita de matéria imagética e verbal, essa identificação se torna mais razoável. Aqui chegamos a um ponto importante para a análise proposta neste artigo: a distinção entre o orgânico e o inorgânico na consideração da literatura. Em A literatura e o mal, Georges Bataille dá prioridade a esse aspecto literário. Para o filósofo francês, a inorganicidade é uma característica que exime a literatura de obrigações com o bem coletivo: sendo "somente literatura", é ela, e não outra prática, que tem a potência de "desnudar o jogo da transgressão da lei […] independentemente de uma ordem a criar" (BATAILLE, 1989, p. 22).
Ler "Bestera" no contexto de "socialização progressiva da gestão da velhice" (DEBERT, 2012, p. 13) que vem se intensificando desde meados do século XX pode mostrar a pertinência dessa proposição de Bataille. A antropóloga Guita Grin Debert percebe, paralelamente a esse movimento de socialização (marcado por intervenções estatais e institucionais que criaram até mesmo um campo de saber específico para gerir a velhice – a gerontologia), a presença de "processos de reprivatização, que transformam a velhice numa responsabilidade individual" (DEBERT, 2012, p. 14), passível de atenuação (ou, idealmente, de cura) se a pessoa que envelhece se comprometer com sua saúde. Esses dois lados da mesma moeda unem-se pela concepção geral de que a velhice é "uma etapa da vida caracterizada pela decadência física e ausência de papéis sociais" (DEBERT, 2012, p. 14).
O Estatuto do Idoso, sancionado pela Presidência da República em 2003, exemplifica esse nó da velhice ao defini-la, no artigo 8º, como "um direito personalíssimo" cuja efetivação deve ser assegurada por obrigatoriedade (diz o artigo 2º) "da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público" (BRASIL, 2003, s./p.). Ou seja, ao mesmo tempo em que a gestão da velhice é de responsabilidade pública, sua efetivação como prática é de responsabilidade individual. É possível afirmar que o Estatuto do Idoso vem dar força legal a críticas como a desenvolvida por Ecléa Bosi em seu estudo Memória e sociedade: lembranças de velhos, em que se afirma que as pessoas velhas são marginalizadas socialmente e, por isso, deve-se lutar para incluí-las na humanidade. Velhas e velhos formam, portanto, mais uma das minorias carentes de direitos civis:

É preciso mudar a vida, recriar tudo, refazer as relações humanas doentes para que os velhos trabalhadores não sejam uma espécie estrangeira. Para que nenhuma forma de humanidade seja excluída da humanidade é que as minorias têm lutado, que os grupos discriminados têm reagido. A mulher, o negro, combatem pelos seus direitos, mas o velho não tem armas. Nós é que temos de lutar por ele. (BOSI, 2012, p. 81)

A velha Leocádia, de "Bestera", não corresponde a essa imagem de velhice. Seu projeto de vida de se embriagar e fazer sexo "antes de desaparecer na terra, ou no fogo, ou na imundície ou no nada" é fundamentalmente antissocial. Para realizá-lo, ela pretende se valer apenas de sua riqueza:

Contratei uma secretária-acompanhante e disse-lhe o seguinte: és jovem e apetitosa. Quando os homens quiserem ter relações contigo diga-lhes que façam um esforço e deitem-se comigo. Pagarei muitíssimo bem a cada um deles e terás régias comissões a cada êxito. (HILST, 2014, p. 180)

A velha está apartada da sociedade, sim, mas isso é antes solução que problema. Ao nos apresentar seu filho e sua nora, Leocádia relata como usa da astúcia para que não seja incomodada em sua reclusão:

Bem, agora quero lhes contar do meu filho. Tem quarenta anos. Casado. Sua mulher é tolinha, dessas que falam sem parar e sempre imbecilidades. Leu algum que discorreu sobre a importância de "agilizar o conceito de fala", de extravasar. Sua visita era um inferno. Eu colocava meu xale acastanhado e cantava baixinho só para ela uma canção muito engraçada dos meus tempos de faculdade: cume que é meu capim barba de bode/ faz tempo que nóis num mete/ faz tempo qui nóis num fode... Ela se arrepiava inteira. Dizia para meu filho: Leocádio, sua mãe está louca. como é que você pode deixá-la aqui sozinha quando ela deveria estar naqueles belos lugares onde as velhinhas bordam, cantam canções de ninar, fritam bolinho... […] Depois de tê-lo convencido da minha lucidez rodeei minha nora com pulinhos hostis e lançando-lhes perdigotos à cara repeti minha cançãozinha sem que meu filho ouvisse. Graças a Deus, agora não me incomodam mais. (HILST, 2014, p. 181-2)

A imagem de uma velha que se apraz em ser desagradável, que não quer a companhia da própria família e cujo único desejo de interação está em contratar o serviço de prostitutos não serve às intenções de inclusão social elaboradas por Ecléa Bosi ou presentes no discurso da gerontologia. O projeto político-pedagógico do curso de graduação em gerontologia da Universidade de São Paulo, por exemplo, propõe como objetivo dos gerontólogos "o desenvolvimento de um envelhecimento saudável, ativo e significativo, encorajando a participação ativa do idoso, de sua família e da comunidade nesse processo" (YASSUDA, 2012, p. 4). Como documento institucional submetido às leis nacionais, esse projeto tem ecos do Estatuto do Idoso, abordando, no entanto, a mesma questão sob outra perspectiva – não a da legislação, mas a do saber científico.
O discurso que Hilda Hilst elaborou em "Bestera", por sua vez, não ecoa positivamente nenhum desses documentos. A construção de Leocádia se dá justamente em oposição à sociedade, da qual ela deliberadamente se exclui por se dizer cansada "de ver frivolidades levadas a sério e crueldades inimagináveis tratadas com irrelevância, admiração ou absoluto desprezo" (HILST, 2014, p. 180). A visão que a personagem tem de sua relação com essa sociedade é descrita mais adiante nos seguintes termos:

Ah, como é delicioso e prático que as pessoas nos pensem estranhas... O conforto de não ser mais levado a sério, esse traquear de repente e sorrir como se não fosse com você, e poder acariciar um peixe morto na peixaria e chorar diante de um cão sarnento e faminto. É bom ser estranho e velho. (HILST, 2014, p. 182)

Se for possível ler esses trechos relacionando-os, por exemplo, ao Estatuto do Idoso, duas condições deverão ser observadas. De um lado, a absoluta oposição entre o projeto de vida negativo, perdulário e individualista de Leocádia e a intenção pública, comunitária e familiar da legislação brasileira. De outro lado, outra absoluta oposição, desta vez entre a literatura e a lei como gêneros textuais que só podem se perfazer em regimes de leitura excludentes entre si. Nesse sentido, tomar "Bestera" como parâmetro para uma política pública seria contraproducente, se não impossível, pelo fato de que o conto não se destina a representar a velhice em termos populacionais. Leocádia não é uma pessoa velha, mas uma projeção verbal do que poderia ser uma pessoa velha – se assim quisermos retomar o princípio aristotélico de que "não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade" (ARISTÓTELES, 1979, p. 249).
Contudo, se "Bestera" se exime de "assumir a tarefa de organizar a necessidade coletiva" (BATAILLE, 1989, p. 22), não podemos dizer (ainda adotando a perspectiva de Bataille) que o conto também se exima de qualquer intervenção no corpo social: "A literatura é mesmo, como a transgressão da lei moral, um perigo./ Sendo inorgânica, ela é irresponsável. Nada se apóia nela. Ela pode dizer tudo" (BATAILLE, 1989, p. 22). Alguma similaridade encontramos na afirmação de Antonio Candido de que a literatura "não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração"; ela "não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver" (CANDIDO, 2011, p. 178. Grifos do autor).
São estranhamente coincidentes e irreconciliáveis as proposições de Bataille e de Candido. Há uma concordância entre os dois autores quanto ao fato de que a literatura não edifica, mas cada um afirma isso com intensidades diferentes. Para Candido, afinal, a literatura não edifica em sentido comum, mas "humaniza em sentido profundo":

Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza. a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (CANDIDO, 2011, p. 182)

Trata-se, como se vê, de uma aposta humanista, civilizatória nos poderes da literatura. Georges Bataille, por sua vez, percebe na literatura um poder oposto, ainda que de certo modo análogo: o de corromper, sim, mas fazê-lo não num plano "hipermoral", sugerindo uma edificação negativa: "A literatura é o essencial ou não é nada. O Mal – uma forma penetrante do Mal – de que ela é a expressão tem para nós, creio eu, o valor soberano. Mas esta concepção não impõe a ausência de moral, exige uma 'hipermoral'" (BATAILLE, 1989, p. 9-10). Para o filósofo francês, não se trata apenas de negar que a literatura seja uma experiência inofensiva, como faz Candido, mas de afirmar que ela é fundamentalmente culpada:

A literatura é comunicação. A comunicação impõe a lealdade: a moral rigorosa, neste aspecto, é dada a partir de cumplicidades com o conhecimento do Mal, que estabelecem a comunicação intensa.
A literatura não é inocente, e, culpada, ela enfim deveria se confessar como tal. Só a ação tem os direitos. A literatura […] é a infância enfim reencontrada. Mas a infância que dominaria teria uma verdade? Diante da necessidade da ação, impõe-se a honestidade de Kafka, que não se concedia direito algum. (BATAILLE, 1989, p. 10)

A enumeração de Antonio Candido para os resultados da literatura é toda positiva (a "boa disposição para com o próximo", o "senso da beleza", etc.). Já para Georges Bataille, o que importa são as "cumplicidades com o conhecimento do Mal" e a ação que não concede a si mesma nenhum direito. A qual dessas duas expectativas responde a literatura e, mas especificamente, no nosso caso, o conto de Hilda Hilst?
Às duas, e a nenhuma. Numa crônica de 1993, Hilst republicou esse conto na íntegra. Era comum, em suas crônicas, a republicação de poemas inteiros ou de trechos de suas obras em prosa. Após um parágrafo em que conta algumas anedotas de mulheres velhas que realizaram feitos notáveis, a autora introduz "Bestera" da seguinte forma:

Gente! É fantástico! Eu, aos sessenta e três, me sinto um lixo. Tenho tudo a ver com o inanimado. E meus velhos cães são mais elásticos e mais ágeis do que. John Cowper Powys escreve: "Entre um velho que está se aquecendo ao sol e um fragmento de sílex que o sol está aquecendo existe uma reciprocidade indizível". Ah, como eu queria ter me tornado a velha que eu inventei, esta extraordinária Leocádia, que está inteira aqui, neste meu texto que se intitula: (HILST, 2007, p. 145)

O estilo da crônica, desbocado e pedante, parece coincidir com o do conto, mas a narradora Hilst se descola da narradora Leocádia. Esta, ao ser designada como "extraordinária", pode ser vista tanto com as lentes de cultivo e reconhecimento da alteridade de Antonio Candido quanto com as de cumplicidade com o Mal de Georges Bataille. Ela pode humanizar em sentido profundo, mas também – a partir do lamento negativo de Hilst – pode ironizar essa humanização e o direito que queiramos ter por causa dela.
O título da crônica utiliza o nome da secretária-acompanhante (Joyce) e de um autor citado por ela (Chesterton), mas não é em si uma citação ou sequer uma paráfrase de algum trecho do conto. A dupla negação de "Nem Joyce, nem Chesterton" permite várias interpretações, mas fiquemos com esta: ela é outro dos disfarces de Hilda Hilst, reforçando sua identificação com um lixo inanimado ao mesmo tempo em que, com o vácuo deixado pela ausência de escritores canônicos, eleva Hilst a correspondente de Joyce e de Chesterton em seu tempo. Assim como a bengala, na anedota de Yuri Vieira, servia para fingir de velhinha débil, mas também para expulsar aos berros e palavrões um homem do Estado de sua casa, Hilst usa a literatura para criar diversas imagens – de fracasso e de sucesso, mas nenhuma delas submetida às leis e à ciência.


BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Metafísica: livro 1 e 2; Ética a Nicômaco; Poética. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de Vincenzo Cocco et al. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989.
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Disponível em: . Acesso em 17/01/2016.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 5. ed. corrigida pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 171-93.
DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. 1. ed. 2. reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp, 2012.
DINIZ, Cristiano. Com a palavra, Hilda Hilst. In: ______. (Org.). Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013. p. 5-11.
HILST, Hilda. Bestera. In: ______. Pornô chic. São Paulo: Globo, 2014.p. 180-3.
______. Nem Joyce, nem Chesterton. In: ______. Cascos & carícias & outras crônicas: (1992-1995). 2. ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 144-151.
MORAES, Eliane Robert. A prosa degenerada. In: HILST, Hilda. Pornô chic. São Paulo: Globo, 2014. p. 264-8.
PÉCORA, Alcir. Nota do organizador. In: ______. (Org.). Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010. p. 7-29.
VIEIRA, Yuri. Hilda Hilst, o IPTU e a chave. Blog do Yuri, 01/11/2013, 15h51. Disponível em: . Acesso em: 15/01/2016.
YASSUDA, Mônica Sanches (Coord.). Projeto político pedagógico: curso de bacharelado em gerontologia. Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Maio de 2012. Disponível em: . Acesso em: 25/06/2015.


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