Será a distinção analítico-sintético um dogma?

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Será a distinção analítico-sintético um dogma?

Por
Aires Almeida



Neste ensaio procuro avaliar os argumentos de Quine contra a distinção
analítico-sintético. Dado que as críticas de Quine se reportam a uma
distinção consagrada pela tradição filosófica, começarei por caracterizar
as noções tradicionais de analítico e de sintético. Na segunda secção,
apresentarei os argumentos de Quine, que se encontram principalmente no seu
ensaio Two Dogmas of Empiricism, contra o que diz ser um dogma apoiado em
ilusões. Na terceira secção confronto os argumentos de Quine com algumas
das réplicas que lhes foram dirigidas no sentido de reabilitar a distinção
ameaçada. Entre muito do que se escreveu sobre o referido ensaio de Quine,
escolhi apenas duas tentativas de resposta aos seus argumentos: um ensaio
mais antigo, que entretanto se tornou uma referencia obrigatória nesta
disputa, e um outro bastante mais recente. O primeiro é o ensaio In Defense
of a Dogma de Grice e Strawson e o segundo é Quine's Holism and
Functionalist Holism de Michael McDermott, publicado na revista Mind de
Outubro de 2001. Numa quarta e última secção apresentarei brevemente a
minha avaliação do confronto de argumentos desenvolvidos nas secções
anteriores, concluindo que o mérito de Quine consistiu principalmente em
ter derrubado um dogma, mas deixando de pé a distinção. Tentarei aí mostrar
que esta última afirmação não envolve qualquer contradição.

1. O analítico e o sintético: a doutrina tradicional.

A distinção entre afirmações analíticas e sintéticas foi explicitamente
estabelecida por Kant e durante muito tempo inquestionada. Referindo-se a
afirmações da forma sujeito-predicado — juízos, na sua terminologia —,
dizia que uma afirmação é analítica se o conceito expresso pelo termo
predicado está contido no conceito expresso pelo termo sujeito. «Os mudos
não falam» é, neste sentido, um exemplo de afirmação analítica. Assim, para
sabermos que uma afirmação analítica é verdadeira não precisamos sequer de
inspeccionar o mundo à nossa volta. Trata-se de algo que conhecemos a
priori — independentemente de qualquer investigação empírica — coisa que
nem sempre sucede com as afirmações sintéticas. Uma afirmação é sintética
se o predicado acrescenta algo em relação ao conceito expresso pelo
sujeito. Um exemplo de afirmação sintética é «os mudos comunicam por
gestos». Comunicar por gestos não faz parte do conceito expresso pelo termo
«mudo», acrescentando desse modo algo ao conceito expresso pelo termo
sujeito. Tal distinção foi, ainda antes de Kant, sugerida por Hume ao
estabelecer a diferença entre relações de ideias e matéria de facto, e
também por Leibniz ao fazer o mesmo entre verdades de razão e verdades de
facto. Leibniz definia as verdades de razão como aquelas que,
diferentemente das verdades de facto, são verdadeiras em qualquer mundo
possível. Enquanto que as verdades de razão exibem a marca da necessidade,
as verdades de facto são contingentes, pois não ocorrem necessariamente
noutro mundo possível. A tradição filosófica acabou por assumir sem
dificuldades a distinção analítico-sintético, reconhecendo que as
afirmações analíticas expressam sempre verdades necessárias, conhecidas a
priori.

A distinção veio mesmo a ocupar um lugar de destaque na filosofia do
positivismo lógico. Mas teve para isso de ser afinada. Assim, para os
positivistas lógicos, uma afirmação analítica é uma afirmação cuja verdade
depende apenas do significado dos termos nela utilizados e das regras
gramaticais que governam a combinação desses termos. Esta definição parece
ter vantagens sobre a anterior, pois evita dois importantes defeitos que
nela podiam ser detectados: deixa de se aplicar apenas às afirmações da
forma sujeito-predicado e prescinde da noção de «estar contido em», noção
algo obscura e metafórica, uma vez que apela para considerações de carácter
psicológico. Com esta definição a distinção ganha em clareza e aplicação.
Mas, tal como para Kant, também para os positivistas lógicos as afirmações
analíticas verdadeiras exprimem verdades necessárias e, portanto,
conhecidas a priori. Em ambos os casos afirmações como «todos os corpos são
extensos» exprimem verdades analíticas e afirmações como «há neve no Polo
Norte» exprimem verdades sintéticas. Há porém algumas diferenças. Para Kant
há um certo tipo de afirmações metafísicas como «todo o evento tem uma
causa», as quais não são analíticas — em termos kantianos, o predicado não
está contido no conceito do sujeito —, mas são necessárias e conhecidas a
priori. Já para os positivistas lógicos afirmações deste tipo não são
analíticas nem sintéticas; são antes afirmações sem sentido(. Não têm
sentido porque, embora correctas sob o ponto de vista gramatical, não
exprimem qualquer proposição susceptível de ser verdadeira ou falsa. Em
termos mais técnicos, um positivista lógico diria que tal afirmação não tem
condições de verificação.

Para tornar claro este último ponto, vale a pena expor, ainda que em traços
largos, as ideias mais importantes da teoria verificacionista do sentido,
teoria que surgiu no seio do movimento do positivismo lógico para responder
a esse tipo de problemas.

A teoria verificacionista do sentido contém supostamente a chave para a
solução de um aparente mistério: como estabelecer a ligação entre uma dada
frase e a proposição, ou significado, que ela exprime? A resposta tinha já
sido sugerida por Peirce ao dizer que o significado de uma frase depende do
método de a confirmar ou infirmar. Tal método consiste, para os
verificacionistas, no conjunto de experiências possíveis da parte de
alguém, as quais permitem mostrar que a afirmação em causa é verdadeira ou
falsa. São essas experiências possíveis que constituem as suas condições de
verificação. As condições de verificação são o critério em função do qual
as nossas afirmações têm significado. E esse critério é manifestamente um
critério empírico. Com efeito, se a uma dada afirmação não for possível
associar qualquer experiência (passada, presente ou futura), então essa
afirmação não tem sentido; não exprime qualquer proposição, mesmo que se
trate de uma afirmação construída sobre uma forma gramatical correcta e
aparentemente com sentido.

Mas se o significado de uma afirmação depende das suas condições de
verificação e se estas, por sua vez, dependem da experiência, então não há
lugar para afirmações analíticas? Serão as afirmações analíticas afirmações
sem sentido?

Segundo os positivistas lógicos, há uma classe de afirmações que, apesar de
não terem conteúdo empírico, têm sentido, na medida em que são verdadeiras
por definição. A sua negação resultaria numa auto-contradição. Quer isto
dizer que são verdadeiras seja o que for que ocorra no mundo. Tais verdades
são, por isso, também imunes à falsificação. Entre as verdades analíticas
encontram-se as verdades lógicas como «se Sócrates morreu enforcado, então
Sócrates morreu enforcado» e verdades da matemática como «cinco maçãs são
mais maçãs do que duas maçãs». Assim, à velha objecção racionalista contra
o empirismo segundo a qual a matemática mostra que nem todas as verdades
têm conteúdo empírico, pode-se responder dizendo que as verdades
matemáticas são verdades analíticas — verdadeiras em virtude apenas dos
termos usados — e que todas as afirmações com sentido ou são analíticas ou
são sintéticas. Afirmações como «o homem é o pastor do ser» ou como «o
absoluto realiza-se na história» são exemplos de prestigiadas afirmações
sem sentido.

Mas que dizer de afirmações como «nenhum homem solteiro é casado»? É esta
uma afirmação com sentido? E se tem sentido, será sintética ou analítica? É
evidente que não se trata de uma verdade matemática. E também não é uma
verdade lógica. Uma verdade lógica seria «nenhum homem não casado é
casado». A resposta às perguntas anteriores é que a frase «nenhum homem
solteiro é casado» é uma frase com sentido, pois trata-se de uma frase
analítica. Isso pode ser compreendido na medida em que a palavra «solteiro»
pode ser substituída por «não casado», já que se trata de formas
linguísticas sinónimas. Ora, se substituirmos aquela por esta, obtemos a
frase «nenhum homem não casado é casado». Verificamos assim que a primeira
afirmação se pode converter na segunda, a qual exprime uma verdade lógica.
Na verdade, a distinção entre estes dois tipos de afirmações analíticas é
já o resultado do esforço de compreensão de Quine da noção de analiticidade
tal como é utilizada pelos positivistas. Como se verá adiante, este irá ser
um ponto importante das críticas de Quine à distinção analítico-sintético.

2. Os argumentos de Quine contra a distinção analítico-sintético.

As críticas de Quine à distinção analítico-sintético desenvolvidas em Two
Dogmas of Empiricism são de dois tipos: começa por denunciar a ausência de
clarificação da distinção, mostrando que ela não pode ser devidamente
compreendida, para seguidamente defender que uma correcta compreensão da
noção de significado não deixa lugar para qualquer distinção, declarando-a
como simplesmente ilusória. Este último tipo de crítica é mais radical. Mas
aqui Quine coloca-se já fora da tradição, coisa que não acontece no caso
anterior. Enquanto o primeiro tipo de críticas se centra na noção de
clarificação, o segundo assenta numa concepção holista e behaviourista do
significado. Em relação ao primeiro tipo, Quine utiliza três argumentos
principais para concluir que a distinção carece de clarificação, pelo que,
segundo ele, nada se ganha em mantê-la. Eis o primeiro.

Foi dito atrás que podem ser identificadas duas classes de afirmações
analíticas: as que são logicamente verdadeiras, como «nenhum homem não
casado é casado», e as que, como é o caso de «nenhum solteiro é casado»,
podem ser, por definição, reduzidas a verdades lógicas. Quine está
principalmente interessado em compreender o que se passa com esta última
classe de afirmações analíticas. Ora, ao afirmar que estas podem ser, por
definição, reduzidas a verdades lógicas, estamos a dizer (utilizando o
exemplo anterior) que 'solteiro' pode ser definido como 'homem não casado',
caso em que ficamos com a afirmação logicamente verdadeira «nenhum homem
não casado é casado». Mas a razão que, segundo Quine, nos leva a considerar
'homem não casado' uma definição adequada de 'solteiro' reside no facto
registado pelos lexicógrafos de habitualmente se estabelecer uma relação
implícita de sinonímia entre ambas as formas linguísticas. Assim, a noção
de definição não contribui em nada para elucidar a natureza de tais
afirmações, uma vez que ela própria pressupõe a noção de sinonímia. Deve
ser, pois, o conceito de sinonímia a chave para a sua elucidação.

É útil neste momento dar conta daquilo que Quine considera ser uma
clarificação adequada de um conceito, nomeadamente do conceito de
analiticidade. Para ele há uma espécie de família de termos ou de
expressões da qual faz parte 'analiticidade'. Essa família de termos ou de
expressões pode ser entendida como o seu círculo intensional. Se for
possível compreender satisfatoriamente um dos termos do círculo, então os
outros poderão ser clarificados a partir dele. Do círculo intensional de
analiticidade fazem também parte, além de 'analítico', os seguintes termos
e expressões: 'necessário', 'sinónimo', 'regra semântica', e 'definição'.
Isto sugere que a elucidação do segundo tipo de afirmações analíticas não
pode ser bem sucedida a partir da noção de definição, pois a noção de
definição repousa sobre a de sinonímia. Será, então, que a noção de
sinonímia pode ser correctamente compreendida? Esta pergunta leva-nos ao
segundo argumento.

A sinonímia deve ser entendida não apenas como a substituição mútua de duas
ou mais formas linguísticas. As formas sinónimas devem, seja qual for o
contexto, preservar o valor de verdade das afirmações em que ocorrem, pois
é de sinonímia cognitiva que se trata. A sinonímia é aqui entendida como
intersubstituibilidade salva veritate. Ora, se queremos elucidar a noção de
sinonímia cognitiva de forma a tornar compreensível a analiticidade, não
devemos de forma alguma recorrer na nossa elucidação àquilo que queremos
compreender — a analiticidade ela mesma. Quine mostra que, no âmbito de uma
linguagem intensional, a intersubstituibilidade salva veritate só por si
não garante a sinonímia cognitiva, pois a linguagem intensional é uma
linguagem que pressupõe a noção a compreender — ou algum outro termo do
mesmo círculo intensional.

Quine coloca seguidamente o mesmo problema, desta vez em relação a uma
linguagem livre de pressupostos, isto é, em relação a uma linguagem
extensional. Neste sentido, poderia dizer-se que duas expressões são
sinónimas se, e só se, são verdadeiras dos mesmos objectos. Mas também aqui
a intersubstituibilidade salva veritate não permite elucidar a sinonímia
cognitiva, visto que a coextensionalidade das formas linguísticas
«solteiro» e «homem não casado» pode ser tão acidental como o par «criatura
com coração» e «criatura com rins». Será, então, que se pode explicar a
analiticidade sem apelar à sinonímia cognitiva? Para responder a isso Quine
vai ainda tentar um terceiro argumento.

Antecipando as objecções do apologista da analiticidade, ele próprio sugere
que talvez a dificuldade em distinguir as afirmações analíticas das
sintéticas se prenda apenas com a vagueza da linguagem vulgar. E pergunta:
será que a distinção se torna clara numa linguagem artificial rigorosa, com
regras semânticas explícitas? Mas também aqui a resposta é negativa.

Uma regra semântica estabelece que afirmações são analíticas para uma
determinada linguagem. Graças a ela podemos dizer que tais e tais
afirmações, e apenas essas, são analíticas nessa linguagem, mas não
conseguimos dizer o que é a analiticidade. Ficamos sem saber o que é que a
regra «a afirmação A é analítica para a linguagem L» atribui à afirmação A,
a não ser incluí-la entre as afirmações analíticas de L. Isto acontece
porque da regra faz parte a palavra «analítica», a qual ainda não
conseguimos compreender. Além disso, ao utilizar a expressão «analítica
para L» não estamos a falar do mesmo que «analítica», ou sequer de
«analítica para», de maneira que estamos a explicar coisas diferentes do
pretendido. Ora, não se trata de saber o que significa «analítica para L»
mas simplesmente «analítica». De novo a analiticidade está pressuposta sem,
contudo, sabermos claramente o que significa. O significado da
analiticidade permanece obscuro.

Chegado a este ponto, Quine conclui que a distinção analítico-sintético não
pode ser devidamente clarificada, pois qualquer tentativa de clarificação
acaba por ser circular. Declara, então, que não temos boas razões para
aceitar a distinção. Mas será que temos boas razões — razões positivas —
para a rejeitar? Quine afirma que sim.

Essas razões encontram-se ligadas à sua concepção simultaneamente
behaviourista e holista do sentido. É certo que o behaviourismo não está
explicitamente formulado em Two Dogmas of Empiricism, mas não deixa de
constituir, como se verá adiante, um forte argumento contra a distinção
analítico-sintético. Em contrapartida, o argumento holista é um argumento
central do referido ensaio de Quine, embora o seu alvo imediato seja o de
desfazer o segundo dos dogmas em causa, o dogma do reducionismo. Um dogma
caro à tradição empirista, nomeadamente à teoria verificacionista, a qual
Quine toma como referência principal nas suas críticas. Todavia, a crítica
holista ao reducionismo tem implicações no abandono da dicotomia analítico-
sintético. A ideia de Quine é que os dois dogmas actuam solidariamente.
Vejamos, em primeiro lugar, em que consiste o argumento holista, passando
depois para o argumento behaviourista.

O dogma do reducionismo consiste, segundo Quine, na tese segundo a qual o
método empírico de confirmação ou de infirmação se aplica às afirmações
tomadas individual e independentemente das relações que elas estabelecem
com outras afirmações que lhes estão associadas. Para o verificacionismo a
unidade mínima de significação deixa de ser a forma línguística para passar
a ser a totalidade da afirmação. Mesmo assim, esta é ainda uma forma de
reducionismo.

A ser verdadeiro, o reducionismo verificacionista torna compreensível a
sinonímia cognitiva e, através dela, a analiticidade. Uma vez que o que
está agora em causa não é a sinonímia entre formas linguísticas, mas a
sinonímia entre afirmações, tudo o que é preciso é que determinada
afirmação seja sinónima de alguma afirmação logicamente verdadeira. Mas
como sabemos que duas afirmações são sinónimas? Para a teoria
verificacionista do sentido, duas afirmações são sinónimas se, e só se, são
semelhantes no seu método empírico de confirmação ou infirmação. Quer isto
dizer que se faz sentido falar de afirmações que enfrentam exactamente com
os mesmos resultados do teste da experiência, também fará sentido falar de
afirmações sinónimas. Mas se assim é, podemos agora dizer que uma afirmação
é analítica se, e só se, é sinónima de uma verdade lógica. Aqui já não
existe qualquer raciocínio circular e fica, portanto, salva a
analiticidade. Em resumo, a classe das afirmações analíticas poderia, para
o reducionismo verificacionista, ser identificada com a classe de
afirmações vacuamente confirmadas. Ou seja, confirmadas sejam quais forem
os factos. Por isso, considera Quine, o dogma do reducionismo e o dogma
analítico-sintético não devem ser encarados separadamente.

Sucede que, segundo Quine, o reducionismo está errado. E está errado porque
assume incorrectamente que as nossas afirmações enfrentam o tribunal da
experiência solitariamente. Bem pelo contrário, para Quine o tribunal
empírico do sentido é enfrentado por diferentes sistemas de afirmações como
um todo. A unidade de significação empírica não é a afirmação mas o sistema
de afirmações — ou teoria. Despertado pelo holismo científico de Duhem,
Quine defende que mesmo quando determinada afirmação é individualmente
testada, tal não significa que o seja independentemente do sistema de
afirmações a que pertence. O teste aplica-se a essa afirmação apenas porque
no contexto da teoria ela parece mais vulnerável, já que está mais longe do
seu núcleo — onde se encontram as afirmações que não estamos dispostos a
rever tão facilmente. As afirmações que se encontram nas zonas periféricas
da teoria são também aquelas cujo conflito com a experiência mais
facilmente ocorre. Mas isso não significa que, em caso de conflito, sejam
necessariamente revistas, pois a cadeia de interdependências lógicas no
seio da teoria pode exigir reajustamentos em vários pontos, de modo a
manter, se assim se achar mais conveniente, a afirmação periférica. A
maleabilidade da teoria deixa sempre espaço para decidir que afirmações
devem ser revistas de modo a resolver o conflito. Daí que numa teoria não
haja qualquer diferença de estatuto entre as afirmações que a constituem.
Apenas há afirmações que estamos, em princípio, mais facilmente dispostos a
abandonar do que outras. Logo, também não há afirmações irrevisíveis; não
há afirmações verdadeiras aconteça o que acontecer. Como a distinção
analítico-sintético supõe a existência de afirmações irrevisíveis, tal
distinção, pensa Quine, é simplesmente errada à luz da concepção holista do
sentido.

Além disso, a conclusão anterior parece também ser reforçada pelo seguinte:
se desistirmos da ideia de que as afirmações tomadas isoladamente têm um
conjunto de condições de verdade, temos de desistir também da noção de
sinonímia, pois esta baseia-se na identidade de tais condições.

Em relação à tese da irrevisibilidade como característica da analiticidade,
Quine procura refutá-la também com outro argumento, o argumento
behaviourista. Como referi atrás, esse argumento não é desenvolvido em Two
Dogmas of Empiricism, mas não deixa de ser um argumento contra a ideia de
analiticidade. O argumento pode resumir-se assim: o significado é uma
propriedade do comportamento verbal publicamente manifesto (esta é a
premissa behaviourista propriamente dita); mas se o significado nada é além
do que está implícito no comportamento dos falantes, então, seja qual for a
linguagem, não há significados determinados para as suas afirmações; ora,
se não há significados determinados também não há afirmações imunes à
revisibilidade. É certo que o significado de muitas das nossas afirmações
resiste fortemente à revisibilidade, mas daí não se segue que eles sejam
imunes à revisibilidade. Deixa de haver, pois, lugar para afirmações
verdadeiras aconteça o que acontecer. A analiticidade deixa de fazer
sentido.





3. Críticas aos argumentos de Quine.

Como referi atrás, o ataque de Quine à distinção analítico-sintético é
sustentado por três argumentos principais: o argumento da ausência de
clarificação da distinção, o argumento behaviourista e o argumento holista.

No ensaio In Defense of a Dogma Grice e Strawson procuram mostrar que
nenhum desses argumentos é suficientemente forte para abandonar a
distinção, enquanto as objecções de McDermott em Quine's Holism and
Functionalist Holism se dirigem apenas ao argumento holista e, com menor
intensidade, ao argumento behaviourista. Comecemos por apresentar a réplica
dos primeiros ao argumento da falta de clarificação.

Grice e Strawson começam por recordar que Quine não critica a distinção por
não ser precisa ou por assentar em termos ambíguos, caso em que seria
falacioso defender que não há distinção, pois o facto de a fronteira ser
imprecisa não implica que não exista diferença alguma. E consideram que
Quine também não critica a distinção por não ter utilidade, caso em que
teria de reconhecer a sua existência. Mas ele nem sequer isso reconhece,
pois procura mostrar que não há clarificação possível, concluindo que a
distinção não passa de um caso de fé.

Para Grice e Strawson, os argumentos de Quine têm de ser suficientemente
fortes, pois muitas outras distinções carecem de clarificação satisfatória
e não deixaram por isso de merecer um enorme consenso entre os filósofos,
tanto no passado como no presente. É claro que, só por si, isto não garante
que tais distinções estejam justificadas. Mas tem de se reconhecer que a
distinção analítico-sintético se aplica sem grandes dificuldades mesmo a
novos casos, pelo que parece haver um forte grau de evidência cuja
refutação exige argumentos muito fortes. Até porque, acrescentam Grice e
Strawson, as objecções de Quine não são apenas às palavras, mas à distinção
que é suposto elas expressarem. Além disso a própria tradição mostra que os
filósofos pecam mais por falta de subtileza do que por excesso de
subtileza. Seja como for, a crítica de falta de clarificação é, para Grice
e Strawson mal justificada. A réplica consiste no seguinte.

Vulgarmente acredita-se que duas expressões são cognitivamente sinónimas
quando correspondem ao que poderíamos exprimir por «x significa o mesmo que
y». Ora, ao negar qualquer distinção estamos também a negar aquilo que
supostamente está a ser expresso através dela. Mas o que exprimimos com
expressões como «significa o mesmo que» e «não significa o mesmo que»? Será
que nenhuma distinção está a ser expressa pelo uso destas expressões? Mas
se não existe qualquer distinção, então expressões como «predicados x e y
são verdadeiros dos mesmos objectos mas não têm o mesmo significado» não
fazem sentido. Só que isso é o que Quine diz ao refutar a definição
coextensional de sinonímia. Quine desiste da noção de significado mas
recorre a ela para refutar a sinonímia entre expressões coextensionais.
Assim, perguntar acerca de uma frase «qual é o seu significado? parece não
ser de todo descabido. E se tal pergunta não é descabida, então a sinonímia
pode ser definida da seguinte maneira: duas frases são sinónimas se, e só
se, qualquer resposta verdadeira à pergunta «qual é o seu significado?»
acerca de uma delas é também a resposta verdadeira à mesma pergunta acerca
da outra. Não há aqui intersubstituibilidade salva veritate; não há aqui
qualquer circularidade; também não há aqui qualquer pressuposto escondido
de analiticidade.

Quine fala também de alguma forma de circularidade a propósito da definição
de analiticidade. Isto porque tal conceito apela para um outro conceito do
mesmo círculo intensional. Este, por sua vez, apela para outro e assim
sucessivamente. Mas isso é o que se passa com muitos outros grupos de
expressões cuja compreensão depende de elas apelarem mutuamente umas para
as outras: o caso de noções morais como «moralmente errado», «digno de
censura» «violador de regras morais», etc. Com tal argumento, teríamos de
declarar como ilusória a compreensão de muitas outras noções cuja utilidade
não é posta em causa.

Em relação ao argumento holista, Grice e Strawson defendem que Quine também
aí não tem razão. Para eles, mesmo supondo que o holismo é verdadeiro, a
noção de sinonímia não tem de ser abandonada. Sublinham que o holismo de
Quine não nega que afirmações individuais possam admitir confirmação ou
infirmação; nega apenas que elas possam ser confirmadas ou infirmadas
independentemente da nossa atitude em relação a outras afirmações. Mas se
assim é, a noção de sinonímia continua a fazer sentido, pois podemos agora
dizer de duas afirmações que são sinónimas se, e só se, sob as mesmas
assumpções acerca dos valores de verdade de outras afirmações, alguma
experiência que confirma ou infirma uma delas confirma ou infirma a outra
no mesmo grau. Tudo a que Quine neste caso nos obrigaria seria apenas a
afinar a definição de sinonímia.

McDermott também acha que a noção de sinonímia não é incompatível com o
holismo de Quine, embora não pelas razões apontadas atrás. Considera até
que o argumento anterior se baseia numa compreensão incorrecta do que Quine
defende. Segundo McDermott, Quine nega mesmo que seja possível confirmar ou
infirmar afirmações individuais. Mas conclui que, nesse ponto, Quine tem de
estar errado. Basta pensar que se apenas o conjunto de afirmações — a
teoria — é susceptível de ser confirmada ou infirmada, então também o
poderão ser as afirmações individuais que dela fazem parte, pois em última
análise uma teoria pode ser reduzida a uma frase. Essa frase seria uma
conjunção suficientemente longa. De resto, mesmo reconhecendo que para
Quine a unidade de significação empírica é a teoria e que seja impossível
confirmar ou infirmar afirmações individuais, daí não segue que não haja
sinonímia entre afirmações. Isso apenas implica que a sinonímia não pode
ser definida apelando directamente para o princípio verificacionista. A
sinonímia pode ser definível indirectamente, conclui McDermott.

O argumento de McDermott é o seguinte. Quine alerta-nos para o facto de a
mudança da unidade de significação empírica dos termos para as frases só
por si não impedir que possamos definir indirectamente a sinonímia.
Poderíamos sempre defender que se duas frases são sinónimas se, e só se,
têm as mesmas condições de verificação, então também se torna possível
dizer que dois termos são sinónimos se, e só se, a substituição de um pelo
outro numa frase resulta numa frase sinónima. O que aqui está em jogo,
sublinha Quine, não é a intersubstituibilidade salva veritate. Isso não
resulta. Trata-se sim de intersubstituibilidade salva significado —
admitindo que se trata de contextos em que o significado é determinado por
condições de verificabilidade. Só que ao defender que a unidade de
verificação empírica é a teoria e não a frase, Quine julga ter evitado esse
tipo de raciocínio. Porém, tudo o que faz é acrescentar-lhe mais um passo,
pois podemos agora estabelecer uma analogia entre o que se passa no caso da
relação entre frases e termos e o caso da relação entre teorias e as frases
que as constituem. Daí que possamos agora dizer que duas frases são
sinónimas se, e só se, a substituição de uma por outra numa teoria
formulada numa linguagem relevante dá lugar a uma teoria sinónima. Aqui
McDermott assume que o holismo de Quine preserva o carácter
verificacionista herdado do positivismo lógico e que, nesse sentido, admite
a sinonímia entre teorias, em sentido lato, desde que elas tenham as mesmas
condições de confirmação, e apenas nesse caso. Mas esta seria apenas uma
das interpretações possíveis do holismo de Quine. McDermott chama-lhe a
versão verificacionista do argumento holista.

A réplica de McDermott ao argumento holista de Quine contra a distinção
analítico-sintético é bastante extensa e detalhada, procurando dar conta
das diferentes versões que tal argumento pode assumir. Vou apenas referir
uma outra importante versão do argumento holista a que McDermott, de
maneira algo estipulativa, dá o nome de versão fenomenológica.

O alvo da definição de «analítico» baseia-se, para Quine, no falso
pressuposto de que a unidade de significação é a frase. Mas como não é esse
o caso, a definição falha o alvo. Este é um aspecto importante do holismo
de Quine. Um outro é o de que a componente factual da verdade das frases e
das teorias não é o mundo externo, caso em que o holismo seria implausível,
pois seria muito fácil determinar a verdade de frases como «Brutus matou
César» individualmente. Em vez de apelar aos factos do mundo ou a um
suposto museu mental onde os significados se encontram, o holismo apela
antes à experiência. Ora, segundo McDermott, mesmo assumindo o holismo como
verdadeiro, a definição não falha o alvo. Ele refere que se os factos da
experiência tivessem sido diferentes, mas a linguagem se mantivesse a
mesma, uma diferente teoria poderia ter sido, de acordo com Quine,
verdadeira. Mas se, novamente, os factos fossem diferentes, um terceiro
conjunto de frases seria verdadeiro. Se considerarmos todas as formas como
a experiência poderia ter ocorrido, ou seja, todas as possibilidades acerca
da totalidade dos factos da experiência; se aceitarmos que a linguagem se
mantém; e se identificarmos o conjunto de frases verdadeiras, ou teoria da
verdade, em cada caso, então é possível encontrar frases verdadeiras
independentemente da experiência. Essas frases são aquelas que são membros
de todas as teorias da verdade e são verdadeiras apenas em virtude da
linguagem. Estamos, portanto, perante frases que podem ser definidas como
analíticas. Mesmo no contexto da teoria holista de Quine.

E quanto ao argumento behaviourista? Grice e Strawson argumentam que também
a tese do behaviourismo, diferentemente do que Quine sustenta, é
consistente com a distinção analítico-sintético. Mesmo admitindo a
revisibilidade como consequência do behaviourismo, é possível conceber pelo
menos uma forma de revisibilidade que não depende de razões de facto, mas
antes da substituição, ou até do abandono, de um conceito ou conjunto de
conceitos, devido a alterações de significado dos termos envolvidos
(revisão conceptual). Teríamos, assim, uma outra distinção: a distinção
entre as afirmações de que desistimos porque concluímos que são falsas e as
afirmações de que desistimos porque o seu significado se alterou. Seria
este o caso das afirmações analíticas como «os solteiros não são casados»,
cujo abandono ou revisão implicaria uma alteração de significado dos termos
que a constituem.

Ao contrário de Grice e Strawson, McDermott não apresenta qualquer réplica
ao argumento behaviourista. Não o faz porque considera o argumento forte.
Considera que se aceitarmos as suas premissas, somos obrigados a aceitar a
conclusão. Tudo depende pois da aceitação do behaviourismo, pelo que só
podemos refutar Quine se não formos behaviouristas. Mas sublinha também que
o behaviourismo de Quine pressupõe a rejeição da semântica mentalista e
encara o comportamento não verbal como irrelevante. Neste sentido o
comportamento consiste basicamente em concordar com afirmações. Por isso
não é possível falar de afirmações verdadeiras independentemente de seja o
que for, não havendo lugar para a analiticidade. McDermott ilustra este
ponto interrogando-se sobre o significado de «independente dos factos».
Prossegue perguntando se a verdade «todas as coisas são idênticas a si
mesmas» é independente do facto de todas as coisas serem idênticas a si
mesmas. E conclui, com Quine, que esta última pergunta é incompreensível,
pois há apenas um lado e não dois. Uma pessoa que não acredita que tudo é
idêntico a si mesmo deveria comportar-se como?

4. Uma distinção sem dogmas.

Uma das coisas que ressalta do confronto de argumentos que acabei de
apresentar é que Quine não se limita a mostrar que a distinção sintético-
analítico é um dogma. O abandono do «dogma» tem um preço. Por isso Quine
exige em troca do seu abandono que se aceitem teses substanciais como o
holismo e o behaviourismo. Além disso, o abandono da distinção arrasta
consigo a sinonímia e acaba por abalar a inteligibilidade da noção de
significado. Noção que me parece fundamental para compreender o fenómeno da
comunicação.


Revendo cada um dos argumentos de Quine contra a distinção, penso o
seguinte.

O argumento da falta de clarificação não parece colher pelas razões
apontadas por Grice e Strawson. Mas também porque Quine centrou a sua
argumentação na noção de sinonímia. Ora, isso só afecta o segundo tipo de
afirmações analíticas: as que se podem reduzir a afirmações logicamente
verdadeiras por substituição de sinónimos. Mas que dizer das verdades
lógicas? Em relação a estas Quine responde que se trata simplesmente de
afirmações que, embora revisíveis, só em último caso estamos dispostos a
abandonar. Isto porque o seu abandono implicaria um esforço muito maior de
reajustamento da teoria do que no caso de abandono de afirmações que se
encontram na sua periferia, o que está de acordo com as suas doutrinas
holista e behaviourista. Mas será que Quine dispõe de algum exemplo de
verdade lógica que tenha sido abandonada? É certo que mesmo não dispondo de
exemplos, tal não prova que as verdades lógicas não sejam revisíveis. Mas
não deixa de ser fortemente contra-intuitivo defender que até as verdades
lógicas são revisíveis sem dispor de exemplos de verdades lógicas que
tenham sido abandonadas. A sua tese perde assim plausibilidade.

O argumento holista, por sua vez, afasta-se da crítica filosoficamente
neutral da falta de clarificação da distinção. Na melhor das hipóteses
teríamos de aceitar o holismo de Quine para refutar a distinção. Mas nem
sequer tem de ser assim, como o demonstraram tanto McDermott como Grice e
Strawson.

Quanto ao argumento behaviourista, seja qual for a interpretação certa, a
de Grice e Strawson ou a de McDermott, trata-se também de um argumento cuja
aceitação me parece difícil. Até porque isso implica aceitar um tipo de
behaviourismo, o behaviourismo verbal de Quine, que me parece
manifestamente contra-intuitivo.

A ideia com que fico é que Quine usa uma navalha bem afiada quando se trata
da analiticidade, mas depois exige que se utilize cola para se preencher o
vazio. Mesmo assim há coisas que resistem à navalha de Quine. Para ele
nenhuma afirmação é imune à revisibilidade. Nem mesmo as regras de
inferência lógica. Mas, ainda assim, continuamos a fazer a distinção entre
as regras de inferência e outras afirmações. Em nome de quê? Haverá alguma
razão para isso? McDermott diz que há nos raciocínios de Quine um argumento
escondido. Trata-se, segundo ele, de um argumento geral a favor da
conclusão de que a distinção analítico-sintético não é espistemologicamente
importante. McDermott parece estar a sugerir que Quine refuta a importância
filosófica da distinção e não a distinção ela mesma. Mas se assim fosse
bastava que Quine argumentasse pela negativa. Não precisava de argumentar a
favor do holismo nem do behaviourismo. Além disso, se a intenção fosse
essa, deveria torná-la claro.

Ainda que Quine possa não ter razão, a discussão iniciada por si tem pelo
menos um mérito: mesmo que não tenha conseguido desfazer a distinção,
contribuiu fortemente para desfazer o dogma. Afinal, o que é um dogma? Um
dogma é uma ideia que se aceita como verdadeira sem antes ter sido
criticamente avaliada. Se eventualmente esse foi o caso antes de Quine,
seguramente deixou de o ser depois de si.





BIBLIOGRAFIA


GRICE, H. P., STRAWSON, F. P., «In Defense of a Dogma», in Martinich, A.
M.,
Sosa, David (eds), Analytic Philosophy: An Antology, Blackwell, 2001, pp.

463-472.


McDERMOTT, Michael, «Quine's Holism and Funcionalist Holism» in Mind, vol.
110, 440, October 2001, pp. 977-1023.


QUINE, Willard Van Orman, «Two Dogmas of Empiricism», in From a Logical
Point of View, Harper & Row Publishers, 1963, pp. 20-46.
( Os termos «sentido» e «significado» serão aqui utilizados
indiscriminadamente.
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