Sera o relativismo defensavel

May 26, 2017 | Autor: João Santos | Categoria: Epistemologia, RELATIVISMO
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Será o relativismo de Protágoras defensável? Ao longo deste ensaio argumentarei contra o relativismo de Protágoras, ao qual me vou referir simplesmente como relativismo. Usarei a interpretação de Burnyeat no seu “Protagoras and Self-refutation in Plato's Theaetetus”, por concordar que é a que mais assume boa fé por parte de Platão no “Teeteto” e que permite uma caracterização que julgo precisa do relativismo. Antes de prosseguir, é preciso ter em consideração um aspeto do relativismo que não vem propriamente explícito no “Teeteto” de Platão: Sócrates atribui a Protágoras a tese de que a contradição é impossível. A noção de contradição aqui não deve ser aquela que normalmente temos em mente quando pensamos em proposições que não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, como por exemplo “chove” e “o céu está limpo”. Se fosse, poderiase equacionar se Protágoras não rejeitava o princípio da não-contradição. Mas é manifesto que não é este o caso. Se tudo o que parece a um sujeito é verdade para si, então, para alguém entrar em contradição, um objeto teria de parecer e não parecer ao mesmo tempo, o que desafia qualquer conceção de perceção. No entanto, como explicar, como aponta Sócrates, que a diferentes sujeitos parecem coisas distintas em relação a um mesmo objeto? É aqui que entra o segundo critério. Se a minha verdade só o é para mim, e conversamente o mesmo para outro sujeito, então a comparação entre elas não é possível porque não se intersectam. Como é necessário que haja algum ponto comum entre dois objetos para uma comparação ser possível, e como uma contradição é uma comparação, ela não é possível neste caso. Então, se o relativismo for verdade, a contradição não só não é possível como não existem critérios de verdade independentes do sujeito; o único critério de verdade existente, a aparência, é interior ao sujeito. Se se pretender avançar este ponto como uma objeção por ser uma alegada consequência absurda, não parece bem conseguida: não haver critérios de verdade independentes do sujeito só é uma objeção para quem já parte do princípio que há ou têm de haver critérios de verdade independentes do sujeito. I Mas, então, que dizer da proposição “não há nenhum critério de verdade que seja independente do sujeito”? Será que ela mesma é objetiva? Tem de ser para o relativismo ser verdadeiro, isto é, tem de se aplicar como uma verdade que é independente do sujeito; mas se for, então o relativismo não o pode ser, visto que, então, haverá um critério de verdade independente do sujeito. Por outro lado, se não for verdade, então haverá critérios de verdade independentes do sujeito, e nesse caso o relativismo também não pode ser verdade. A questão que Burnyeat levanta é se se pode de todo fazer este raciocínio, em que se aplica o relativismo a si mesmo. O ponto que sublinho, no entanto, é que essa questão só é relevante para quem está a tentar apurar a consistência do relativismo, mas antes da pergunta se fazer, ou seja, quer o relativismo seja aplicável a si mesmo ou não, outro ponto é levantado: o da defensabilidade do relativismo. A partir do momento em que um sujeito afirma que o relativismo é verdadeiro, quer realmente o seja ou não, este passa a ser indefensável do seu ponto de vista, porque o âmbito da verdade fica circunscrito a si mesmo e não se estende o suficiente (não se estender de todo para fora si) para o defender. No sujeito, e devido a condições impostas por si mesmo, deixa de existir um ponto a partir do qual ele o possa defender com o âmbito universal que se exige que tenha se for verdadeiro. II Uma das consequências do relativismo, que segue de tudo o que parecer verdade a um sujeito o ser realmente para si, é ter de rejeitar a dialética e subscrever exclusivamente à retórica. Como já foi dito, não há nada independente do sujeito que determine o valor de verdade que ele mesmo atribui a uma proposição, e a mera atribuição em função da aparência de um valor de verdade a uma proposição constitui conhecimento para si. Assim, se dissesse uma verdade que o seja para mim e a apresentar a um relativista, a resposta deste poderia ser que tenho de o convencer. Mas aí, nada me impediria de responder que ele tem de me convencer a convencê-lo. E isto poderia prosseguir ad infinitum. Talvez não haja grande motivo para não se quebrar deste cenário, mas ele mostra que o relativismo nos atira para uma conceção fortemente negativa de conhecimento por testemunho, que consiste em, por defeito, assumir que um testemunho não é de confiança até se prove que o é. Se o relativismo implica esta conceção, atacá-la constitui um contra-argumento; é isso que vou passar a fazer. Primeiro, não é este o modo como nós, em situações normais, funcionamos. A nossa tendência psicológica é de assumir um testemunho como fiável por defeito até se prove que não é; o que corresponde precisamente à noção positiva de conhecimento por testemunho. Segundo, como no nosso dia-a-dia o conhecimento por testemunho tem um papel essencial, partir do princípio que não podemos confiar em nenhuma fonte seria paralisante para qualquer sociedade que se funde na confiança entre entidades, que se queira funcional. Terceiro, assumindo essa conceção, no limite, em que não confiamos em nenhum testemunho, que critérios usaríamos para passar um a fiável? Com certeza que deve ser paradoxal pensar que para passar a confiar numa fonte precisamos que ela tenha sido fiável no passado, mas que não podemos confiar nela agora porque ainda não o foi. Não é difícil objetar a esta terceira razão desde que, ou se introduza um método que invoque algum critério independente do sujeito para resolver entre fontes que não dependa da confiança já existente nelas, ou se admita que se pode assumir uma inicialmente como fiável. No primeiro caso, obviamente, contradiz-se o relativismo. No segundo, assumir uma fonte como fiável dificilmente constitui ter sido convencido da sua veracidade, ou mesmo que daí nos pareça que a fonte é fiável. De uma forma ou de outra só restam motivos arbitrários para tomarmos um testemunho como verdadeiro, mas aí temos de perguntar: se um

homem a ser tratado contra o cancro indicar o caminho para Évora a Sócrates, a ele vai parecer que é verdade o que o homem diz só porque usa lenço na cabeça? Que seja verdade que até o argumento mais demonstrativo tenha uma dimensão retórica, persuasiva, não significa que nenhum argumento tenha uma dimensão dialética, objetiva, e que esta dimensão não valha por si como conhecimento por testemunho, independentemente do parecer de um sujeito. III Em todo o caso, é difícil de conceber que a única forma para que algo seja verdade para um sujeito é lhe parecer que seja o caso, que as verdades dele dependem só da sua perceção. Toda a gente, se corretamente, vai aplicar uma inferência tão básica como o modus ponens da mesma forma e chegar à mesma conclusão, afirmo, necessariamente. O relativista pode responder que toda a gente chega à mesma conclusão simplesmente porque a cada um desses sujeitos lhe parece que é verdadeira, e não porque há objetividade na verdade das conclusões que se tiram de raciocínios lógicos, matemáticos ou geométricos. Mas este não pode ser o caso, visto ser indefensável que, por exemplo, dada a proposição “o total de entidades em nove conjuntos de nove entidades é oitenta e um” se responda que é falsa, ou sequer que pode ser falsa. Dados nove conjuntos de nove batatas, quem as contar, se o fizer corretamente, não vai chegar a nenhuma resposta que não seja oitenta e uma batatas. Não importa que nomes damos aos conceitos e relações entre eles; um extraterrestre usando representações diferentes destes mesmos conceitos e relações entre conceitos, desde que lhe fossem inteligíveis, chegaria invariavelmente à mesma conclusão. Posto isto, se o relativismo fosse verdadeiro, teríamos de pôr em causa a objetividade dos raciocínios lógicos, geométricos e matemáticos, aos quais vou incluir como manifestações da razão. Isto mais uma vez é problemático para o próprio relativista: como é suposto alguém defendê-lo sem a razão? Mais uma vez, sequer supor o relativismo implica a sua indefensabilidade. Mas o problema ainda é mais profundo: é que não podemos duvidar da razão como um todo usando-a, quando é dela que depende a própria capacidade de duvidar. No entanto, isto nada impede que haja ceticismo quanto à razão, desde que seja circunscrito de tal modo que conserve a nossa capacidade para aplicar esse ceticismo em primeiro lugar. Se parece que isto nos deixa num impasse, é mera aparência. Por supostamente afinal não só não podermos apurar aquilo que alegadamente confere objetividade e validade necessária à razão, como ela funciona nos seus processos mais fundamentais e porquê, isto não significa que ela não tenha essas características ou que não possamos ter motivos para as fundamentar como estando incluídas na razão. O que pende a favor da razão é o facto de, se aplicados corretamente, os seus meios produzirem resultados que nos ajudam realmente e que nos levam a conclusões que fazem avançar efetivamente a nossa compreensão sobre o que nos rodeia. Esta justificação não é circular: se precisar de fazer a bissetriz de um ângulo, usar um método geométrico para chegar a uma resposta e o aplicar corretamente, a conclusão a que chegar vai bater certo, em termos práticos, com realmente ter descoberto o lugar geométrico dos pontos que se encontram à mesma distância de duas retas que se intersetam. Isto é apreensível sem recurso à razão porque raciocínios deste tipo, e ainda mais simples, são recorrentes no nosso dia-a-dia; atividades práticas estão dependentes da sua correção, quer isolada, quanto à correspondência com o mundo, quer com relação a outros raciocínios, quanto à sua consistência. Se os meios da razão não consistissem em critérios de verdade independentes do sujeito, nenhuma dessas atividades práticas seria possível. O que este argumento mostra é que a razão e o relativismo não podem coexistir, e que tendo que escolher entre uma e outro, o relativismo sai forçosamente derrotado. IV Termino com o argumento central que Platão lança ao relativismo no “Teeteto” (adaptado). Começa por supor que Protágoras acredita no seu próprio livro em que expõe a sua teoria, a “Verdade”, e que mais ninguém acredita. E quem não acredita na “Verdade” também não acredita no relativismo. Dado isto, Protágoras tem de admitir que se o relativismo se aplicar a todas a pessoas, se for verdadeiro, então não se aplica às pessoas às quais lhe parecem que o relativismo é falso; para essas, efetivamente, existem critérios de verdade independentes de si. Voltando à suposição inicial, fica claro que nem Protágoras pode acreditar na sua “Verdade”, porque o livro só está correto se todos forem relativistas, algo que, se Protágoras defender o relativismo, implica que haja pessoas que não são relativistas. Protágoras acreditar no relativismo obriga-o, assim, a admitir que a sua “Verdade” não está correta, e assim nem ele mesmo pode acreditar naquilo que escreveu. Mas se ninguém acreditar na “Verdade”, ninguém acredita no relativismo e, consequentemente, o relativismo não é verdade para ninguém. Se isso é verdade para todos, o relativismo é falso. A defesa relativista poderia ser, precisamente, como já foi referido no ponto I, não admitir que se aplique o relativismo a si mesmo. O que equivaleria, por tudo o que já discorri acima, a afirmá-lo dogmaticamente. E assim fica mais uma vez exposto o seu carácter indefensável. Se o relativista fosse congruente com o que ele próprio acredita, nunca sequer o tentaria defender; o facto permanece que não-relativistas são os únicos em condições de defender algo em relação ao relativismo, nomeadamente, que é falso. 07/12/2015, João Santos nrº 54149

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