Será que o imperativo é um modo?

May 23, 2017 | Autor: Vesela Chergova | Categoria: Portuguese Linguistics
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VESELA CHERGOVA
Universidade de Sófia Sveti Kliment Ohridski

Será que o imperativo é um modo?


Resumo: O artigo pretende oferecer uma possível resposta à questão colocada
no título. A análise concentra-se nas particularidades semânticas, formais
e funcionais do chamado modo imperativo com o escopo de identificar a
pertinência da sua inclusão na categoria modo. A abordagem teórica visa a
categoria modo como núcleo morfológico da modalidade, sendo esta
considerada como hipercategoria modal, semanticamente mais complexa,
hierarquicamente organizada a diferentes níveis de estruturação
linguística.
Palavras-chave: categorias verbais, modo, modalidade, imperativo, apelação


O estatuto do imperativo é uma questão teórico-metodológica mais do que
semântico- -formal, embora a estruturação dos seus recursos formais
possa ter um paradigma próprio mais ou menos desenvolvido nas diferentes
línguas. Sendo assim, é importante salientar, além das interpretações que o
assunto tem na literatura linguística, os conceitos de modo e modalidade
para poder identificar a natureza formal ou o paradigma, propriamente dito,
que poderia constituir um modo.
1. O tema do estatuto do imperativo na literatura linguística
As opiniões a esse respeito, embora divergentes, seguem três linhas
gerais: a de incluir o imperativo na categoria modo; a de excluí-lo desta
categoria verbal (categoria de langue), integrando-o nos recursos
exortativos a nível da fala (parole); a de interpretá-lo como recurso da
modalidade deôntica.
Guillaume (1973: 186, 253, nota 11) exclui o imperativo dos três níveis
da cronotese que realizam as relações modo-temporais na língua francesa,
alegando que o imperativo não forma parte da cronogénese, usando ora o
indicativo, ora o conjuntivo na sua expressão[1]. Jespersen (1958: 363-365)
não considera modos ao infinitivo e ao particípio passado, mas contempla no
conjunto dos modos em inglês o imperativo, o indicativo e o conjuntivo. O
autor define o indicativo e o conjuntivo como categorias sintáticas,
afirmando que o imperativo é uma categoria nocional. Ao mesmo tempo,
interpreta o imperativo como modo da vontade usado pelo locutor na
expressão da sua vontade de influenciar o comportamento do ouvinte, sem
deixar de sublinhar que o imperativo tem fraca realização morfológica e não
se limita aos valores de ordem, posto que funciona com valores condicionais
e narrativos, entre outros. Lyons (1985: 825-841) contempla os orações de
imperativo no âmbito da expressão da modalidade deôntica, facto que aponta
para uma interpretação da expressão discursiva, na nossa opinião. Coseriu
(1992: 105, 207-208) considera que as categorias imperativo, interrogativo
e optativo são categorias do significado e que podem realizar diferentes
funções de sentido[2], possuindo ou não instrumento de expressão
específico. No entanto a ordem, a pergunta ou o desejo são categorias do
discurso, que encontram formas de realização muito variadas nas línguas
concretas.
A linguística espanhola desenvolvida na Bulgária pelas monografias de
Kânchev exclui o imperativo da categoria modo, indicando que a maior parte
das suas características morfológicas são restritivas, funciona apenas em
discurso direto, não compatibiliza com a negação, posto que as formas
negativas do imperativo se referem ao lexema verbal, não à exortação ou à
apelação por elas realizada (Kânchev 2004: 223-225). Vucheva sublinha que
"a exortação pertence ao plano estratégico do ato comunicativo, enquanto
que o imperativo pertence ao plano tático do mesmo"[3], sendo o imperativo
a "forma mais especializada de apelar à atenção do alocutário", é
igualmente "usado em enunciados sem valor exortativo ou apelativo" (Vucheva
2006: 296-299).
No âmbito da linguística búlgara, Gerdžikov (2003: 71-72) inclui o
imperativo, junto com o condicional e o indicativo, no Modus Relativo da
Ação como elemento da hipercategoria da modalidade, porque "a oração surge
quando a relação entre um objeto e um traço possa ser afirmada ou negada,
possa ser considerada real ou necessária, possível, desejada, etc.".
Kucarov considera o imperativo um modo especificado pelo traço de
subjetividade na oposição funcional com o modo indicativo, definindo a sua
semântica como "ação que se realiza pela vontade (desejo) do sujeito
falante" (Kucarov 2007: 287). Nitsolova (1984: 130) identifica o modo
imperativo como o núcleo das orações exortativas que contêm verbo no seu
predicado, incluindo-o na "hipercategoria do Discurso Atual - Irealis I",
porque significa "ação irreal, desejada pelo sujeito falante que exorta ao
alocutário a realizar a ação enunciada, isto é, o imperativo atribui ao ato
de fala uma força ilocutória específica" no discurso atual (Nitsolova 2008:
321-324), com o qual, na nossa perspetiva, incorpora o imperativo no
conjunto dos recursos deônticos (Nitsolova 2008: 403-408).
Na linguística portuguesa predominam as interpretações do imperativo
como um modo sui generis que, no entanto, se diferencia radicalmente da
dupla indicativo / conjuntivo. Hub Faria (1972: 342) interpreta o
imperativo a nível sintático. A autora prefere falar em imperativo, usando
o termo modo imperativo para a forma morfológica. Igualmente assume que o
modo veicula a atitude expressa pelo falante no que se refere à ação
enunciada (Hub Faria 1972: 341), considerando a sua relação com a semântica
de ordem, a sua orientação temporal no futuro e os variados recursos
linguísticos de expressão que podem constituir frases imperativas. Mateus
et al. (1989: 107) fazem referência ao modo imperativo, relacionando-o com
os atos de fala diretivos "onde o fator 'alocutário' se torna
preponderante". Sublinham também a orientação futúrica da ação verbal que
estabelece "correspondência indireta com a modalidade alética contingente",
porque tanto "a ilocução como a própria interação são dominadas pela
relação entre os fatores locutor e alocutário" facto que o torna
facilemte substituível pelo indicativo e pelo conjuntivo. Vilela e Koch
(2001: 179-180) focalizam o imperativo na secção dedicada ao modo e à
modalidade, relacionando o seu valor com a situação comunicativa e o papel
importante do parceiro na interação verbal, posto que o discurso
intencionado do locutor supõe uma adequação às expetativas de cooperação
por parte do alocutário no cumprimento da ação enunciada, manifestada ou
não verbalmente. Os enunciados exortativos contêm entoação específica capaz
de atribuir diferentes valores de pedido, ordem, conselho, ameaça, aviso
etc., mas de qualquer forma compreendem um sema de futuro, marcando o
momento da realização da ação. Igualmente, os autores referem diferentes
recursos formais de realização lexical, fonética e gramatical do valor de
ordem. Oliveira define o imperativo como modo especializado na expressão da
modalidade deôntica que corresponde a ordem, cuja realização formal pode
ser efeituada por formas indicativas, conjuntivas ou formas nominais do
verbo, sendo que "as formas Imperativas não têm outro significado para
além" do deôntico (Oliveira 2004: 254).
A linguística portuguesa desenvolvida na Bulgária é representada por
uma monografia de orientação pragmática (Mangatcheva 2011) dedicada à
descrição dos recursos linguísticos da exortação. A autora especifica que o
imperativo em português tem formas próprias apenas para o afirmativo na
segunda pessoa singular e plural, sendo lacunares as formas de tratamento
formal e as negativas, pois, para estes casos são aproveitadas as formas
conjuntivas; na estrutura morfológica do imperativo não transparece
elemento portador de conteúdo exortativo que possa opor-se funcionalmente
às formas não imperativas; distingue- -se pela entoação específica; a sua
funcionalidade está reduzida às situações comunicativas de diálogo; não tem
paradigma temporal; a forma morfológica, chamada imperativo, mostra
sensibilidade à carga semântica do verbo: os verbos de processos e eventos
que não contenham o traço de sujeito agentivo não são compatíveis com a
expressão da exortação; também não é compatível com predicados nominais que
atribuam caraterísticas inerentes ao sujeito, não combinando a nível
oracional com modalizadores adverbiais de dúvida, hipótese ou falta de
desejo (Mangatcheva 2011: 46-47).
As conclusões desta breve panorâmica de teses científicas patenteiam,
por um lado, a necessidade de definir os conteúdos e recursos formais das
categorias modo e modalidade, e, por outro, a de descrever o imperativo do
ponto de vista paradigmático, semântico e funcional com vistas a
identificar os argumentos para a sua inclusão ou não na categoria modo.
2. Estatuto formal e semântico-funcional das categorias modo e
modalidade
Para os propósitos deste trabalho a modalidade será interpretada como
uma categoria abrangente que compreende mais do que um valor semântico
dentro do mesmo contínuo de conteúdo lógico-mental e mais do que um recurso
linguístico de expressão, ou seja, que tem, ao mesmo tempo, características
lógico-mentais múltiplas que se encontram realizadas por diferentes
recursos morfossintáticos e discursivos, a diferentes níveis de
estruturação linguística e discursiva. Tal interpretação inscreve-a no
quadro das categorias gramaticais definidas como hipercategorias (Gerdžikov
2003), ou como categorias complexas (Halliday 1970, Palmer 2001), ou como
campos semântico-funcionais (Bondarko et al. 1987).
O conteúdo semântico da categoria pode referir a relação entre o
sujeito falante e a ação enunciada (Kucarov 2007: 287) que nos parece
coincidir aproximadamente com a definição "relação modal entre locutor e
estado de coisas" (Mateus et al. 1989: 106). Certas definições alargam a
dimensão categorial, apontando para uma relação tripartita entre sujeito
falante, ação enunciada ou o conteúdo do enunciado e certas circunstâncias
da situação comunicativa. Às vezes, essa relação tripartita implica o
sujeito falante, o conteúdo do enunciado e a realidade (Nitsolova 2008:
317), noutros casos define-se a modalidade linguística como "a categoria
gramatical que representa as diferentes atitudes do locutor em relação a um
conteúdo proposicional e ao seu interlocutor (apud Campos 2004: 265).
Se assumirmos o postulado de que cada categoria gramatical refere um
tipo de relação, as definições que implicam visões tripartitas, contêm em
si maior número de relações categoriais e, por conseguinte, maior número de
categorias gramaticais. Assim, a relação entre o locutor e a ação
enunciada, contido na estrutura proposicional, marca um conteúdo categorial
objetivo (indicativo) / subjetivo (conjuntivo), eventualmente deôntico,
optativo, volitivo em estruturas proposicionais declarativas e por meio de
instrumentos sintéticos (gramemas modais) e analíticos (perífrases modais);
a relação entre o locutor e o alocutário marca outros conteúdos categoriais
vocativo, exortativo, desiderativo, realizados pela força ilocutória dos
atos de fala com diferente formato proposicional (orações imperativas,
interrogativas, declarativas, exclamativas); a relação entre o locutor e o
estado de coisas inesperado, implicado na proposição, marca ainda outro
conteúdo categorial admirativo (Aleksova 2003); a relação entre o locutor
e a valorização do grau de verdade no conteúdo do enunciado (Kitova 2005)
pode instaurar ainda outro tipo de conteúdo categorial epistémico,
eventualmente conclusivo ou dubitativo, se for considerado nas dimensões da
probabilidade ou da possibilidade, e por aí fora.
Todos esses aspetos do conteúdo semântico da modalidade, nas diferentes
línguas, terão ou não realização formal paradigmática (sintética ou
analítica), não paradigmática (Veja-se Nikolaeva 2008), sintática ou
discursiva. O búlgaro, por exemplo, não tem instrumento morfológico,
sintético ou analítico, para realizar valores de conjuntivo, mas consegue
transmitir esses valores por meio de instrumentos sintáticos, nomeadamente,
determinadas funções modais da conjunção да (Kucarov 2007: 282, entre
outros). Também não possui instrumento morfológico para realizar valores de
admiração, a diferença do albanês (Aleksova 2003: 13, Nitsolova 2008: 376),
mas consegue transmitir os seus valores por meio de recursos discursivos,
ou seja, funções modais de formas temporais conclusivas e renarrativas
ativadas pela situação comunicativa (Nitsolova 2008: 376-383).
Assumindo a modalidade como um conjunto de múltiplos conteúdos modais
realizados por diferentes recursos a diferentes níveis de estruturação, o
modo, portanto, poderá ser interpretado como o núcleo morfológico da
categoria modalidade que realiza os valores modais básicos por meio do
morfema categorial modo-temporal do verbo português. Os valores modais,
implicados no morfema modo-temporal, consideram-se básicos por constituírem
a valorização primária da ação verbal, vinculada ao tecido da estrutura
gramatical da predicação (Kitova 2005). Na língua portuguesa há dois
elementos morfológicos que se destacam pela sua especificidade,
configurando a relação opositiva que sustenta a categoria modo (Chergova
2009, 2014):


Oposição modal básica (núcleo morfológico da modalidade):
Indicativo ( ) / Conjuntivo (+)
[não subjetividade] / [subjetividade]


A sua especificidade consiste no facto linguístico de serem os únicos
instrumentos morfológicos que servem de base para o desenvolvimento de
relações temporais (Chergova 2009). No caso do subsistema temporal
indicativo (elemento extensivo da oposição modal básica) as relações
temporais encontram-se muito mais desenvolvidas do que no subsistema
temporal conjuntivo (elemento intensivo da oposição modal básica).
Precisamente esta interpretação da categoria modo motiva o tema do
presente artigo. Será plausível o conceito da oposição modal básica, se a
categoria modo fosse uma categoria composta por quatro elementos:
indicativo, conjuntivo, imperativo e condicional[4]?
3. Será o imperativo um modo? Argumentos formais e semântico-funcionais
3.1. Do ponto de vista semântico o imperativo exprime uma relação, para
além de subjetiva, mais bem intencional, entre o locutor e o alocutário.
Esta característica, precisamente, marca uma distinção semântica
fundamental entre a forma morfológica chamada imperativo e os elementos da
oposição modal básica. A subjetividade que domina nos enunciados
exortativos e desiderativos de imperativo lança uma ponte à área semântica
da modalidade enquanto uma relação mais abrangente entre o sujeito falante,
a ação enunciada e o alocutário, mas fica distanciada da relação
estreitamente estabelecida entre o sujeito falante e a ação enunciada, que
se inscreve na categoria morfológica modo. Ou seja, o imperativo poderia
ser vinculado ao campo semântico-funcional da modalidade, mas é
consideravelmente resistente à inclusão no núcleo morfológico da categoria
modo[5].
Os valores modais do imperativo, portanto, são ativados em função da
situação comunicativa. No entanto, e nos termos da lógica formal, as
orações de imperativo não podem ser consideradas enunciados ou proposições
de raciocínios[6], interpretação à qual se sujeitam apenas as orações
declarativas ou informativas (Quine 1968). O imperativo, neste sentido, não
exprime ação realizada ou em processo de realização, senão uma expetativa
de colaboração ou não colaboração por parte do ouvinte e, por conseguinte,
a subjetividade implicada no enunciado exortativo assemelha mais uma
intenção subjetiva do que uma valorização subjetiva da ação enunciada (Veja-
se Escandell 2006: 36-38). Devido ao qual os recursos de negação não
incidem no valor do imperativo, senão apenas no valor do lexema verbal e no
valor comunicativo do enunciado, constituindo, por exemplo, o contraste
entre ordem e proibição no ato de fala (Nitsolova 1984: 130-131, 135;
Mangatcheva 2011: 40-42). Igualmente, a semântica de posterioridade ao
momento da enunciação que transparece no uso do imperativo não é
propriamente um traço temporal, posto que o imperativo carece de paradigma
temporal, mas representa uma inferência lógica a partir da pressuposição de
colaboração por parte do alocutário na interação comunicativa. A
probabilidade ou a possibilidade de conseguir a colaboração do alocutário
não representa conteúdo gramatical codificado nos morfemas categoriais ou
nas valências sintáticas do verbo, visto que é também da vontade do ouvinte
que depende o sucesso da interação verbal. E não só, o falante escolhe os
recursos exortativos de acordo com a sua previsão das reações possíveis do
ouvinte (Veja- -se Mangatcheva 2012: 81-83).
3.2. Do ponto de vista formal sublinha-se que cada língua concreta pode
ter ou não ter um núcleo morfológico da exortação, isto é, imperativo
(Nitsolova 1984: 128-129, Vucheva 2006: 292-300, Mangatcheva 2011: 153). O
imperativo em búlgaro apresenta um paradigma próprio bem desenvolvido de
formas sintéticas e analíticas (Kucarov 2007: 289-295, Nitsolova 2008: 403-
423) que, mesmo assim, é suscetível apenas aos morfemas número-
-pessoais, assumindo também os recursos da renarração.
O imperativo em português tem um paradigma exclusivamente restrito que
se reduz às formas afirmativas para a segunda pessoa do singular e plural,
apresentando a segunda pessoa do singular homonímia morfológica com as
formas verbais na terceira pessoa do singular do presente do indicativo.
Facto que determina o papel fulcral do contexto na distinção do imperativo
ou do presente do indicativo. Lausberg (1981: 388-390) observa que na
origem das formas imperativas afirmativas nas línguas românicas dá-se desde
o início uma "influência do imperativo sobre o indicativo" em que, em
linhas gerais, as formas indicativas para a segunda pessoa do singular e do
plural perdem o morfema número-pessoal -s, característico da segunda
pessoa, acompanhado de certas alterações fonéticas (Lausberg 1981: 193,
nota 2), mantendo-se a diferença entre indicativo e imperativo para a forma
plural nas línguas sarda, espanhola e portuguesa. Assim, a forma imperativa
para a segunda pessoa do plural, em orações afirmativas, é a única forma
imperativa que possui um marcador morfológico de semântica exortativa,
reconhecível também fora da situação comunicativa. Afirma o mesmo autor que
as formas imperativas reconhecidas como negativas provêm do perfeito e do
presente do conjuntivo (Lausberg 1981: 389), daí a integração do paradigma
do conjuntivo na formação de orações com imperativo que contenham recursos
de negação.
A característica formal que nos parece mais relevante na distinção
entre modo indicativo e modo conjuntivo, por um lado, e o imperativo, por
outro, consiste na falta de paradigma temporal do imperativo. As duas
formas imperativas mantêm entre si apenas uma oposição baseada nos traços
da categoria número: Canta! (singular ( ) / Cantai! (plural (+)[7].
3.3. Do ponto de vista funcional as formas imperativas podem
desempenhar funções exortativas de diferente força ilocutória, como também
funções narrativas de expressividade estilística (Nitsolova 2008: 407-408,
Vucheva 2006: 299, Mangatcheva 2011: 61-64). Considera-se que a função
narrativa (Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és) acarreia maior carga
estilística por ser resultado de uma transposição do valor específico da
exortação para o campo extensivo da não exortação, querendo isto explicar
que o conteúdo semântico da exortação, inerente ao instrumento morfológico
do imperativo, deveria ser o conteúdo marcado.
As diferentes forças ilocutórias da função exortativa do imperativo
(segunda pessoa, singular) podem abranger uma vasta gama de conteúdos
discursivos (Mangatcheva 2011: 48-58), começando pela ordem (Vai-te deitar
já!), passando pelo pedido (Vai lá, toma um café pelo menos), pelo aviso
(Arranja versão melhor, caraças!), pelo convite (Vem comigo ao médico),
pelo "gesto discursivo" que exprime admiração além de chamar a atenção do
ouvinte (Olha! Esta camisola não estava assim, tão esburacada!) ou
simplesmente preenche o espaço da interação com fórmulas estereotipadas
para atrair a atenção (Olha, paciência!)[8], etc.
A frequência de uso do imperativo na segunda pessoa do plural, no
entanto, apresenta consideráveis limitações, aparecendo na fala coloquial
espontânea ou na linguagem literária em variações diatópicas ou com
propósitos estilísticos[9], ora irónicos, ora arcaizantes, ora líricos
(Minha senhora, onde é que você mora? (...) Dizei-me que sem demora lá
também quero morar: http://www.kboing.com.br/gal-costa/1-1135667/),
nalgumas fórmulas estereotipadas do discurso eclesiástico (Louvai ao
Senor!), se calhar em provérbios também.
Vale a pena ressaltar que na norma brasileira do português
contemporâneo a substituição, relativamente generalizada[10], dos pronomes
sujeito para a segunda pessoa do singular tu e do plural vós pelas formas
de tratamento você, visando a segunda pessoa do singular, e vocês, visando
a segunda pessoa do plural, mas que exigem o verbo na terceira pessoa,
singular e plural, resultou em apagamento dos usos do imperativo para a
segunda pessoa do singular e do plural, tendo sido assumidas as suas
funções pela forma do presente do conjuntivo (Tláskal 1980-1981: 36-41,
Teyssier 1994: 86).
Simultaneamente, valores exortativos, com todos os tipos de força
ilocutória, são realizados pelos morfemas modo-temporais do indicativo
(Mangatcheva 2011: 79-84), pelas perífrases verbais de semântica modal
(Mangatcheva 2011: 84-90) em formato de orações exortativas, declarativas e
interrogativas, como também por todas as partes do discurso e classes de
palavras: substantivos (Entrem na sala, meninos! / Sala!), adjetivos (Fica
quieto! / Quieto!), formas nominais do verbo (Cala-te! / Calado! / A
calar!; Anda! / Andando!), advérbios (Já!; Agora!; Depressa!), interjeições
(Caluda!; Andor!) normalmente em formato de orações elípticas, ativada a
sua mensagem exortativa pela curva entonacional característica (Mangatcheva
2011: 64-75).
4. Conclusões

A partir da exposição acima apresentada resulta que o imperativo em
português difere radicalmente do indicativo e do conjuntivo. Enquanto
forma, tem paradigma muito reduzido sem morfemas modo-temporais e altamente
instável, pois marca tendências de restrição funcional e formal
relacionadas com a variabilidade dos pronomes e formas de tratamento, sendo
substituível pelas formas indicativas e, básicamente, pelas formas modo-
temporais conjuntivas com função exortativa. Enquanto semântica, implica um
tipo de relação categorial (entre falante e ouvinte) que difere da relação
categorial referida pelos membros da oposição modal básica (entre falante e
ação enunciada). Enquanto funções, realiza funções, motivadas pela situação
comunicativa em conjunto com uma vasta data de recursos formais de natureza
não imperativa. Factos que impedem a sua interpretação como modo formal,
semântica e funcionalmente equiparável aos membros da oposição modal
básica: indicativo e conjuntivo.
Entre as conclusões ressalta também o facto de o imperativo representar
um núcleo morfológico de outra categoria que poderá ser vinculada com a
modalidade, mas que está configurada e realizada a outro nível de
estruturação linguística, não propriamente morfológico, mas discursivo.
Preferimos denominar essa categoria de apelação, relacionando--a com o
conteúdo semântico de relação entre o locutor e o alocutário na interação
verbal. Neste sentido, podem ser detetados vários subconteúdos semânticos
de acordo com a intenção do locutor que constrói o seu discurso com vistas
ao seu conhecimento da especificidade do alocutário[11]. O subconteúdo da
vocação marca a necessidade de atrair a atenção do ouvinte, usando como
instrumento o vocativo, as formas de tratamento, etc. O subconteúdo da
exortação que marca a necessidade de exigir (ordenar, pedir, sugerir,
permitir, proibir, avisar, convidar, etc.) uma determinada atitude do
ouvinte em colabração verbal ou não verbal, entre cujos instrumentos
inscreve-se o imperativo morfológico junto com o resto de recursos formais,
em diferentes formatos oracionais do enunciado, com diferentes forças
ilocutórias e com a entoação exortativa ou persuasiva indispensável. O
subconteúdo da desideração marca a necessidade de exprimir uma manifestação
de vontade dirigida do falante a ele próprio ou ao ouvinte sem expetativa
de cooperação, inclusive com negação implícita da possibilidade ou da
probabilidade de realização da ação desejada (por exemplo, Deixassem-me
correr! / Quem me dera!). A desideração apresenta um número de ferramentas
mais restrito que incide básicamente em determinadas funções do imperfeito
e do mais-que-perfeito do conjuntivo (Fonseca 1993: 149-179) e de
estruturas estereotipadas, contendo mais-que-perfeito simples do indicativo
(Chergova 2010).


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[1] "Quand au mode impératif, qui est plus un mode de parole qu'un mode de
pensée (...), il emprunte sa forme, suivant le verbe, soit à l'indicatif,
soit au subjonctif" Guillaume (1929: 12).

[2] Veja-se a distinção entre designação, significação e sentido (Coseriu
1978: 134-136, 1981: 187-189).
[3] A tradução das citações do búlgaro é feita pela autora do artigo.
[4] O tema do modo condicional não forma parte do escopo deste artigo,
tendo sido contemplado noutros trabalhos (Chergova 2009, 2014) como função
contextual de formas temporais indicativas, nomeadamente, futuro do
pretérito simples e composto e imperfeito do indicativo.
[5] O valor comunicativo do enunciado depende da atitude do falante face à
realidade. No enunciado exortativo o locutor estabelece uma relação com "a
realidade focalizada como objeto de alteração e não como objeto de
interpretação como seria no âmbito da modalidade" (Nitsolova 1984: 107).
[6] "Posto que as orações com imperativo não podem ser consideradas
raciocínios (a não ser nos casos de transposição do imperativo, passando
este a designar ações passadas reais), também não se pode falar, no seu
caso, em valor assertivo" (Nitsolova 2008: 324). "Recently, it is come to
be realized that many utterances which have been taken to be statements
(merely because they are not, on grounds of grammatical form, to be classed
as commands, questions, &c.) are not in fact descriptive, nor susceptible
of being true or false. When is a statements not a statement? When it is a
formula in a calculus: when it is a performatory utterance [...]" (Austin
1961: 99).
[7] Os exemplos empíricos são recolhidos de diferentes fontes: manuais e
gramáticas da língua portuguesa, monografias, literatura de ficção, filmes
e séries televisivos, réplicas ouvidas em situações de comunicação
espontânea, mas não constituem um corpus organizado e sistematizado, pelo
qual não somos capazes de citar a fonte e omitimo-la na maioria dos casos.
[8] Mangatcheva (2011: 58-61) interpreta os dois últimos casos como funções
não exortativas, apelativas, próprias dos attention-getters.
[9] A vitalidade do morfema número-pessoal do verbo português, inclusive
nas formas imperativas, parece estar estreitamente relacionado com a
vitalidade dos pronomes pessoais em função de sujeito. A forma do
imperativo para a segunda pessoa do plural é usado nas regiões e contextos
que mantêm a forma de tratamento vós que a partir do s. XIX foi caindo em
desuso na norma-padrão coloquial (Teyssier 1994: 33, 72; Menon 2006). O
tema foi também objeto de discussão no Colóquio Internacional decicado ao
20º aniversário da Licenciatura em Filologia Portuguesa na Universidade de
Sófia, que decorreu nos dias 16 e 17 de novembro de 2012.
[10] Esta observação tem em conta o fenómeno registado no estado do Rio
Grande do Sul, no Brasil, onde se mantém o uso do pronome pessoal em função
de sujeito tu, embora costume combinar com a terceira pessoa do singular do
verbo (por exemplo, tu gosta).
[11] Na apresentação desta categoria discursiva seguimos a lógica da
análise aplicada por Nitsolova (1984).
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