SERÃO AS RELIGIÕES VERDADEIRAS?

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SERÃO AS RELIGIÕES VERDADEIRAS?




Se levarmos a sério as pretensões das diferentes religiões a
constituírem e representarem, cada uma de per si, A Verdade Absoluta, e
uma vez que elas são não apenas diferentes mas incompatíveis em muitos
aspectos, não podendo portanto ser todas igualmente verdadeiras, pelo
menos nos pontos em que divergem, ficamos com o problema de saber qual
delas tem razão e fala verdade, ou se nenhuma a tem e são todas falsas.
Acresce ainda o facto de não se saber muito bem como desempatar de forma
racional e criticamente imparcial esse jogo de aspirantes à Verdade,
visto todas eles afirmarem tê-lo ganho e os seus respectivos fiéis não
terem, como seria de esperar, qualquer dúvida sobre o assunto. Argumentar
que todas elas são formas diferentes ou adaptações específicas e
exotéricas, quer dizer, exteriores, de uma mesma Tradição Primordial, ou
de uma mesma Verdade metafisicamente transcendente, a condições histórico-
culturais relativas e diversas que ocultam a sua unidade essencial de
fundo, pode até ser uma solução simpática e verdadeiramente ecuménica,
mas não parece colher grande apoio junto dos crentes de cada uma delas,
mesmo daqueles que conhecem todos os segredos das suas doutrinas
interiores ou esotéricas. A ideia de uma Unidade Transcendente de todas
as religiões que esteja para além da sua multiplicidade imanente e
humana, e onde todas as diferenças existentes entre elas seriam esbatidas
ou anuladas no seio de uma Verdade una e única diversamente expressa ou
manifestada, mesmo que fosse verdadeira, o que está por demonstrar, não é
exactamente nem a doutrina oficial nem a prática real de nenhuma religião
particular; muito pelo contrário, todas elas, ou pelo menos as religiões
teístas, se esforçaram sempre por reivindicar exclusivamente para si
mesmas o privilégio de serem A Verdade Absoluta Revelada por Deus aos
Homens, não passando todas as outras de erros, desvios e heresias, ou, na
melhor das hipóteses, das precursoras necessárias à Revelação Última e
Definitiva do próprio Deus, através do seu Profeta Eleito ou mesmo do seu
avatar humano, a qual é, regra geral - e só por coincidência, claro -
precisamente aquela que se adoptou e onde se foi criado e educado. Como é
evidente que não vale a pena consultar os especialistas das várias
religiões para decidir qual delas, ou se alguma delas, é verdadeira, e
isto quer estejam ou não pessoalmente comprometidos com ela, e como os
critérios de coerência interna, número de fiéis, grau de entrega
passional ou nível de satisfação e de consolo proporcionado pela
respectiva fé não são obviamente critérios aceitáveis para verificar a
sua verdade, resta saber se é possível encontrar algum critério
verdadeiramente independente e imparcial para proceder a semelhante
avaliação. Ora, também não parece ser o caso, visto cada uma delas
assumidamente fazer depender a adesão dos fiéis à "sua Verdade" não de
quaisquer critérios racionais ou empíricos susceptíveis de controle,
exame ou avaliação crítica, nem de quaisquer factos, provas, evidências
ou argumentos lógicos, os quais só são invocados a posteriori depois de
dogmaticamente aceites os fundamentos da fé, mas sim de um acto
incondicional de adesão a essa mesma fé, de um dom ou de uma graça
sobrenaturais ou divinas, que naturalmente pressupõem, como condição, a
verdade daquilo mesmo que importava provar no fim como conclusão,
incorrendo numa petição de princípio que impossibilita qualquer decisão
racional acerca da sua suposta verdade. No entanto, pode sempre perguntar-
se se acaso faz algum sentido esperar que uma pessoa lúcida, sensata e
racional aceite acriticamente, ou acredite cega e dogmaticamente, em
alegações tais como um homem ter nascido milagrosamente de uma virgem por
fecundação espiritual divina, ser ao mesmo tempo humano e divino, ter
ressuscitado mortos, andado sobre a água, ou ter ele próprio morrido e
ressuscitado fisicamente dos mortos, "evaporando-se" depois no ar? Se
pensarmos bem, não será isto pura e simplesmente loucura,
independentemente da quantidade de pessoas que aceitem tais coisas como
verdades, isto é, como dogmas de fé? Fará sentido acreditar em tais
"acontecimentos" e ainda ter o descaramento de considerar a magia e o
ocultismo meras superstições pagãs ou crendices populares irracionais?
Qual é a diferença entre acreditar no poder de amuletos, talismãs ou
rituais mágicos, e a crença no poder protector dos símbolos religiosos,
das promessas aos santos ou da oração? Só se for a postura mais humilde e
passiva do fiel religioso relativamente àquele de quem espera ser
favorecido, em contrapartida à do crente no poder da magia, ou pelo menos
do mago, que adopta uma postura mais dominadora e activa de quem quer
controlar directamente a realidade e assegurar o resultado do processo.
Mas fora isso, no que diz respeito ao essencial, quer dizer, à natureza
das forças ou influências envolvidas, sejam elas positivas ou negativas,
negras ou brancas, do bem ou do mal, a crença básica é essencialmente a
mesma e reporta-se ao seu carácter sobrenatural, venha ela de Deus, do
Diabo ou dos seus enviados angelicais ou demoníacos. Sejamos sérios:
racionalmente, qual é a diferença entre acreditar em deuses, anjos ou
demónios, e acreditar em contos de fadas ou histórias de heróis e
monstros lendários? Como é que se pode levar a sério alguém que acredita
que todos temos um anjo pessoal protector e que se formos muito bonzinhos
e nos portarmos sempre bem, nada de mal nos acontecerá e/ou seremos
recompensados com as delícias da vida eterna no Céu ou no Paraíso,
enquanto os maus serão castigados para sempre nos também eternos fogos
infernais, onde serão submetidos aos tormentos correspondentes aos seus
pecados terrenos? Como é possível acreditar nisto e continuar a julgar-se
são e racional, eis a questão, a qual os fiéis resolvem expeditamente,
invertendo toda a lógica e afirmando que crêem porque é absurdo. Pois
bem, meus caros, sabendo eu que a lógica, a ciência ou razão não são
omnipotentes, não servem para tudo nem se aplicam a tudo, mas também não
são propriamente nenhuma batata que possamos ou devamos ignorar, moldar
ou comer a nosso belo prazer, por minha parte declaro-vos que não
acredito precisamente porque é absurdo, porque acreditar em tais coisas é
primário e infantil, é ceder terreno ao nosso lado irracional e
primitivo, é ridículo e risível para qualquer homem de bom senso, tal
como seria risível e ridículo continuar pela vida fora a acreditar no Pai
Natal e em todos aqueles seres fantásticos que nos povoaram o imaginário
quando éramos crianças e acreditávamos inocentemente em tudo o que nos
contavam ou pudéssemos imaginar, mas que não podem nem devem manter-se
como tais na vida adulta, sob pena de não passarmos de crianças
crescidas, de vivermos de má-fé connosco próprios, ou, talvez pior ainda,
de não passarmos de pobres loucos inconscientes de o serem, ou de
atrasados mentais, no sentido literal da expressão. Pois não dispomos nós
da capacidade natural para investigar a verdade usando a razão a fim de
examinar criticamente as diferentes crenças e opiniões em busca de saber
qual delas é mais provável, verosímil ou razoável, mesmo na ausência de
demonstrações formais ou provas empíricas que resolvam de vez o problema?
Entre o salto irracional da fé religiosa e a certeza matemática ou
experimental das ciências, quer dizer, entre a religião e a ciência, não
existe o campo ilimitado da filosofia que procura precisamente resolver
por via racional (analisando, criticando e argumentando) aqueles
problemas que não são susceptíveis de resolução científica, porque não
são de natureza lógico-formal nem empírica? Entre a arbitrariedade
subjectiva das opiniões, o dogmatismo irracional da fé e a limitação
natural dos métodos de investigação científica, não existe porventura a
actividade filosófica, enquanto forma de questionamento e tentativa de
resposta racionalmente justificada aos problemas humanos mais gerais e
fundamentais, como seja precisamente a questão de saber se Deus existe ou
não, se os milagres e o sobrenatural são reais ou imaginários, que razões
temos para acreditar ou não em tudo isso, se é que temos algumas, ou se
as pretensões das religiões são verdadeiras e válidas ou meramente
ilusórias e humanamente construídas? E não será possível também aí
alcançar um conhecimento rigoroso e objectivo, mesmo que desprovido da
certeza matemática ou da prova experimental, que não se aplicam nestes
casos? Ou será também a filosofia uma questão de mera opinião subjectiva,
ainda que intelectualmente mais sofisticada, como julgam os seus
detractores, acreditando ingenuamente que essa mesma opinião não é nem
subjectiva nem filosófica? Estaremos nós condenados a escolher
exclusivamente entre o dogmatismo pseudo-objectivo da fé religiosa e o
cepticismo assumidamente subjectivo das opiniões pessoais, ou entre estes
e as pretensas certezas absolutas da ciência? Será que fora da ciência
não existe conhecimento verdadeiro e válido, como crêem todos aqueles que
professam a fé cientista? Como? Porquê? Não será isso mais um preconceito
e uma crença filosoficamente insustentáveis? Então e no que diz respeito
àqueles problemas que a ciência é, por princípio e natureza, incapaz de
resolver por estarem fora do seu âmbito, como sejam, por exemplo, todos
os problemas especificamente filosóficos, como os atrás referidos? Dizer
que a ciência não tem competência para decidir se Deus existe ou não, se
há ou não vida depois da morte ou se a vida tem ou não sentido e, em caso
afirmativo, qual é ele, que não é capaz de saber como devemos viver, o
que é o bem ou o mal, ou que é uma sociedade justa, pode até ser verdade,
embora possa, nalguns casos, dar uma ajuda indirecta; mas nada disso
autoriza a concluir que o conhecimento científico e os seus respectivos
métodos de descoberta são tudo aquilo de que dispomos ou podemos dispor
para obter conhecimento, uma vez que isso pressuporia a completa
identificação do conhecimento com a ciência, fora da qual nada se poderia
verdadeiramente saber, o que, como sabemos, é falso, pois existem várias
outras formas de conhecimento real para além do científico.
Portanto, se admitirmos a possibilidade de que as pretensões das
diversas religiões teístas a constituírem A Verdade Revelada sejam
ilusórias e vãs, eventualmente desprovidas de valor cognitivo válido,
embora relevantes do ponto de vista moral, emocional e existencial; se
considerarmos que essa suposta verdade revela mais simbolicamente acerca
da natureza e da condição humanas do que propriamente fornece
conhecimento verdadeiro sobre o Homem e o Mundo, mas não quisermos, ainda
assim, abdicar de procurar imparcialmente a verdade, rendendo-nos à
irracionalidade dogmática da fé, à arbitrariedade da opinião ou ao
positivismo científico estreito, de que outra forma racional dispomos nós
para nos tentarmos certificar do valor real dessas crenças que não seja a
filosofia? Se não buscarmos refúgio no conforto das falsas certezas da fé
teísta, se não quisermos comodamente instalar-nos no cepticismo ou
agnosticismo pseudocientíficos, e conseguirmos igualmente resistir à
tentação de cair na fé (anti-)religiosa do ateísmo dogmático, resta-nos a
alternativa filosófica como única opção viável e razoável para tentar
responder à questão de saber onde está a verdade e quem é que afinal tem
razão, ou não será assim? Dada a importância real, objectiva e
subjectiva, que as religiões indubitavelmente têm para a maioria da
humanidade, influenciando decisivamente a sua visão das coisas e maneira
de viver, e havendo a possibilidade de que sejam todas falsas e
ilusórias, ou de só uma delas ser verdadeira, não parece tarefa de pouca
monta tentar investigar filosoficamente o problema religioso nas suas
premissas mais básicas e nas suas reivindicações mais altas, a começar
pela própria existência de Deus e pelo modo como o concebemos ou julgamos
conhecê-lo, não é verdade?! É que, se a resposta filosófica à primeira
questão for decisivamente negativa, quer dizer, se tivermos mais e
melhores razões para pensar que não do que para acreditar que sim, então
é toda a teologia fundamental que fica em causa e se desmorona, levando
atrás de si tudo o resto, uma vez que a premissa básica de toda e
qualquer hipotética "ciência de Deus assenta naquela premissa original da
existência de Deus, assim como na crença da possibilidade humana para,
ainda que indirectamente, de algum modo o poder conhecer. Mas se Deus não
passar de um objecto imaginário, então toda a teologia será vazia e a
vida dos crentes que dessa crença dependem não estará em melhores
condições, ou estará? Havendo uma elevada probabilidade de que assim
seja, e não estando de modo algum em causa o direito das pessoas a
acreditarem no que bem entenderem, mesmo naquilo que é racionalmente
absurdo e naturalmente impossível (sobretudo antes do pequeno almoço,
claro, como fazia a Rainha de Copas na "Alice no País das Maravilhas"),
se o conteúdo essencial das religiões e toda a teologia que as
racionaliza for redutível à psicologia humana e aos seus mecanismos
inconscientes de alienação, simbolização, identificação projectiva e
percepção imaginativa, suspensão da descrença e auto-engano, os mesmos
que geram a arte, os mitos, os sonhos, as fantasias e os delírios que
animam toda a cultura humana e definem o Homem como sapiens demens que
acredita loucamente na verdade objectiva daquilo que ele mesmo cria e
depois esquece que criou; se as verdades das religiões e da teologia não
passarem afinal de verdades puramente antropológicas, em vez de
metafísicas ou teológicas, se for essa enfim a verdade oculta de todas as
religiões, então o caso é sério e as implicações são graves, restando-nos
filosofar para tentarmos descobrir o caminho para a solução, ou não será
assim?! Filosofemos pois, animados pela esperança, porventura também ela
ilusória, de descobrir esse caminho e o fim a que ele conduz.
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