Sérgio Bianchi e sua leitura cinematográfica da história: uma análise do filme \"Quanto vale ou é por quilo?\"

July 6, 2017 | Autor: Michelly Silva | Categoria: Cinema brasileiro, Sérgio Bianchi
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O Olho da História, n. 20, Salvador (BA), dezembro de 2013.

Sérgio Bianchi e sua leitura cinematográfica da história: uma análise do filme Quanto vale ou é por quilo? Michelly Cristina da Silva* Resumo Neste artigo realizamos uma análise do filme Quanto vale ou é por quilo? (2005), dirigido por Sérgio Bianchi, salientando as influências literárias e adaptações que o diretor e roteiristas tiveram para levar a cabo o resultado visto em tela. Ao longo do filme em questão,

é

possível observar algumas referências claras sobre o material que Bianchi e sua dupla de roteiristas, Eduardo Benaim e Newton Cannito, utilizaram para compor o material fílmico. Entre as fontes consultadas pela equipe encontram-se processos penais do século XVIII e XIX envolvendo questões sobre a escravidão no Brasil e o conto de Machado de Assis “Pai contra mãe”, publicado originalmente em 1906. Interessa-nos aqui entender a forma como Bianchi, Cannito e Benaim se apropriaram desses materiais para desenvolver este filme, que por sua vez apresenta uma alta crítica social e o questionamento do papel e atuação de Organizações Não Governamentais no Brasil. Palavras-chave: Sérgio Bianchi; assistencialismo; ONGs; Machado de Assis; escravidão.

Abstract In this article, we analyse the picture Quanto vale ou é por quilo?, directed by Sérgio Bianchi in 2005. Through the text, we try to emphasize the literary influencies and adaptations that both director and screenwriters took to reach the final result seen in the screen. As one watches the movie, it is possible to capture the sources, some more explicit than others, that Bianchi, Benaim and Cannito used to compound the film. Among the resources, there are processes dealing with the question of slavery in the 18th and 19th century in Brazil. Besides that, there is also an free adaptation of a Machado de Assis’ novel called “Pai contra mãe”, first published in 1906. Here we are especially interested in understanding how Bianchi, Cannito and Benaim used these materials in order to make this film of high social criticism and of questioning the role of NGOs in Brazil. Key-words: Sérgio Bianchi; assistentialism; NGOs; Macho de Assis; slavery.

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras, e Ciências Humanas (FFLCH/USP). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). e-mail: [email protected]

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Introdução – A composição de um roteiro e a sua riqueza de fontes.

Com Quanto vale ou é por quilo?1, longa-metragem lançado em 2005, o diretor paranaense Sérgio Bianchi apresenta novamente uma crítica menos política do que moral sobre alguns aspectos da sociedade brasileira – tom já visto em outras obras de sua filmografia, como Mato eles? (1982) e Cronicamente inviável (2000). Dessa vez a questão em pauta concentra-se na subserviência do homem na sociedade contemporânea, que será retratada pelo diretor como uma espécie de “escravidão moderna”, que ainda subjuga homens e mulheres à condição de explorados na lógica capitalista.

1 Quanto vale ou é por quilo? Direção: Sérgio Bianchi. Roteiro: Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi. Rio de Janeiro: Agravo Produções Ciematográficas, Riofilme, 2005. 1 DVD (104 minutos).

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Servem de inspiração literária direta para a composição do roteiro do filme, escrito por Bianchi com a colaboração de Eduardo Benaim e Newton Cannito, o conto “Pai contra mãe”, do escritor Machado de Assis, aparecido no livro Relíquias da casa velha, de 1906, e textos do historiador Nireu Cavalcanti sobre processos judiciais no Rio de Janeiro do século XVIII. A partir da leitura de tais processos, disponíveis por sua vez no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Cavalcanti tentou traçar a vida e costumes fluminenses no século oitocentista, dando aos textos produzidos o aspecto de crônicas, publicadas semanalmente no periódico Jornal do Brasil e posteriormente reunidas em livro (CAVALCANTI, 2004). No conto machadiano, ambientado em meados da década de 1850, Cândido Neves, um capitão-do-mato, vê a decadência de sua atividade cada vez mais iminente, com pedidos de captura de escravos cada vez mais escassos e as recompensas mais modestas. Vivendo de favores em uma habitação com sua mulher, Clara, com quem há pouco tivera um filho, e com a tia desta, Mônica, a pobreza cada vez mais aguda desta família obriga Candinho a um ato extremo: o de deixar seu filho na Roda dos Enjeitados da cidade a mando dos pedidos da insistente tia. A salvação deste pai vem por intermédio da escrava fugida e grávida Arminda, que, ao ser recuperada para seu senhor por Candinho, garante a este pai a permanência de seu filho junto ao seio da família, já que os ingressos provenientes do trabalho afastariam, mesmo que provisoriamente, a ideia da adoção. Assim, na luta que dá nome ao título do conto, a derrota da mãe escrava restaura ao pai capitão-do-mato a paz e manutenção de sua família. Dessa forma, perversamente, o sistema escravista de coerção de liberdade para alguns, permite a felicidade de outros, que se beneficiam e dele tiram seu sustento. No filme de Bianchi, as contradições existentes em uma sociedade datada de há quase dois séculos são reencenadas no Brasil do século XXI, numa tentativa de mostrar a continuidade da submissão através da permanência de outras escravidões no cenário nacional. A primeira ação dos realizadores (Bianchi, Cannito e Benaim) para conseguir tal paralelo foi transpor as personagens do conto de Machado para exemplos atuais de uma metrópole como São Paulo, com a conservação, de modo geral, das características das personagens machadianas: a Arminda, outrora escrava em fuga, agora é uma líder comunitária negra; Clarinha, a mulher do capitão-do-mato, é revivida na figura de uma ingênua moça da periferia com aspirações ao sucesso midiático; a “tia Mônica” de Bianchi é uma empregada doméstica que sonha em ocupar o cargo da patroa e em troca descontar-lhe os anos de humilhação, e o herói do conto, Candinho, agora trabalha como lixeiro que, por imposições do meio e da tia autoritária, acaba recorrendo à prática ilegal de matador de aluguel para sustentar a família. Além do núcleo de personagens abertamente inspiradas no conto de Machado de Assis, há ainda na trama as personagens envoltas nas ações da Stiner Empreendimentos, uma empresa especializada na captação de recursos e o seu repasse para projetos de natureza assistencial. Ao longo da história, seus dois sócios-diretores, interpretados pelos atores Herson Capri e Caco Ciocler, irão prosperar economicamente, o que serve de maneira irônica o lucro que a filantropia pode gerar. Ao redor da Stiner Empreendimentos ainda se relacionam vários outros personagens da trama. A empresa é a responsável por manter a ONG da patroa de Mônica, “dona”

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Noemia, senhora membro da classe média que faz questão de sempre se jactar pelos atos beneméritos que faz e pelos “desamparados” que ajuda. A sede da empresa é o local de trabalho da tia de Arminda, analfabeta e a laranja da empresa em seu processo de enriquecimento ilícito. E será a fonte indireta de dinheiro do seqüestrador interpretado por Lázaro Ramos, um parente de Arminda. Escolhendo o Terceiro Setor como um dos eixos da obra, Bianchi dessa forma retoma a ironia machadiana ao indicar que até mesmo atividades à primeira vista idôneas podem ser fonte de lucro e vantagem para alguns poucos que se beneficiam do sistema. A contradição, emblema máximo do final do conto de Machado de Assis, faz-se presente no filme a partir do fato de que pode haver lucro em cima da miséria e dos despossuídos. Assim, enquanto que em “Pai contra mãe” o futuro de uma criança junto à sua família é garantido pela captura de uma mãe escrava e o conseqüente aborto do filho que carrega, em Quanto vale... o insólito reside na possibilidade de lucro e sobrevivência de diversas ONGs em cima do “mal” que deveriam combater, a pobreza. Embora a atuação corrupta dos beneméritos no filme tenha impressionado grande parte de seu público, Bianchi e os demais roteiristas sempre salientaram nas entrevistas de divulgação de Quanto vale... que o foco da história estava em mostrar quais eram as formas de “escravidão” que ainda persistiam em nossa sociedade. Segundo sua explicação, “atestar a sua reprodução por décadas e décadas, bem como a sua atualização através de novas formas de dominação sempre figurou como o argumento principal da história”. Para alcançar essa intenção um último recurso foi inserido no roteiro, enriquecendo sobremaneira a maneira com que a história é contada. A presença de algumas cenas de caráter histórico – encenações das crônicas do historiador Nireu Cavalcanti e do conto “Pai Contra Mãe” – do cotidiano da escravidão ambientadas nos séculos XVIII e XIX (quebrando, por instantes, com a continuidade narrativa) serve para lembrar ao espectador como aquela escravidão inseriase na sociedade capitalista de então como um comércio e uma fonte de renda, ganhando por isso uma “justificação de existência”. Na comparação com os dias atuais, segundo a lógica de Bianchi,

esta

exploração

“justificada”

passou

do

escravo

ao

miserável,

sendo

a

mercantilização em cima de sua dor também moralmente aceitável por todos nós. Neste breve exercício de análise tentaremos discorrer sobre dois aspectos gerais do filme.

Primeiramente, detalharemos os motivos para a construção da história a partir do

uso de tais cenas consideradas históricas no roteiro. Pelo fato de retratar exemplos de relações e práticas dentro do sistema escravista e pela maneira como os conduz e conecta com a história principal ambientada no tempo presente - aspectos que serão vistos a seguir –, acreditamos que o filme em questão se enquadra como exemplo de “filme histórico”, na definição empregada por Robert Rosenstone ( 2010, p.15). Em nossa análise, há uma tentativa de “conscientemente recriar o passado” (Idem, p.15) por parte dos realizadores, mesmo que este passado não seja a história principal que se quer contar. A maneira como se deu a tradução do conto, a encenação das crônicas e a função que ambos têm para o desenvolvimento da história, ajudando o diretor a corroborar sua tese de continuísmo da exploração, tentarão ser desvendadas no primeiro subcapítulo que se segue. Nele também queremos tecer algumas considerações sobre Sérgio Bianchi como um tradutor de obras literárias para o cinema, como mostram suas primeiras produções ainda nos tempos de

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estudos na Escola de Comunicação e Artes da USP, Omnibus

(1972) e A Segunda Besta

(1977), curtas inspirados em contos do escritor argentino Júlio Cortázar. Pensando na disciplina de História, interessa-nos saber como um cineasta concebe a noção de história e como utiliza os conhecimentos que adquire da literatura especializada para formar sua visão dos acontecimentos do passado. Mesmo com uma classificação marginal ao termo “filme histórico”, já que a maioria de sua trama se passa no tempo presente, Quanto vale..., visto sob esta ótica, oferece-nos a possibilidade de refletir sobre como a disciplina histórica trabalha a serviço do cinema. Pierre Sorlin chama-nos a atenção de que embora estes filmes de inspiração histórica se caracterizem pela narração dos acontecimentos que tiveram lugar no passado, eles são, antes de tudo, “uma fala do presente, por mostrar qual é a concepção que as pessoas envolvidas na produção têm dele e como dele se utilizam” (SORLIN, 1984, p.31). Dessa forma, o diálogo de um filme que está retratando o passado, por exemplo, é estabelecido sempre com conflitos existentes no presente e as personagens podem consubstanciar metáforas de problemáticas atuais. O segundo ponto que nos ateremos é sobre a força que adquiriu a crítica ao Terceiro Setor no decorrer da história, tanto para os próprios roteiristas ao longo do desenvolvimento do roteiro, como para a sua plateia. É preciso levar em conta que o cerne do questionamento da atuação das ONGs e grandes empresas que as assessoram em Quanto vale... está no fenômeno do florescimento do “marketing social”, isto é, a publicidade em cima da filantropia como medida ao mesmo tempo que justifica gastos e angaria recursos, um conceito que, segundo o roteirista Eduardo Benaim esteve muito em voga quando ele, Cannito e Bianchi escreviam o roteiro para o filme. Por fim, ao longo da escrita desse texto, realizaremos uma breve comparação com outras obras da cinematografia de Bianchi, de forma a levantar os elementos estéticos e cênicos comuns na carreira deste autor, bem como as personagens e temas também recorrentes que são novamente suscitados e outros que, ao longo da sua carreira, foram, por outro lado, paulatinamente abandonados. Sérgio Bianchi leitor e historiador A indicação do contato com a literatura latino-americana fez-se presente desde os primeiros curtas-metragens dirigidos por Sérgio Bianchi. Ainda estudante de Cinema na ECA, lançou, durante a década de 1970, duas produções inspiradas em contos de Júlio Cortázar encontrados no livro do autor argentino lançado em de 1951, Bestiari. Omnibus, de 1972, adaptação do conto homônimo, retratando a sensação angustiante de um casal em um ônibus condenado pelos olhares dos demais passageiros por não trazerem flores na lapela, como faziam todos os demais e A Segunda Besta, de 1977, inspirado no conto “Carta a una señorita en París”, em que um jovem relata, por meio de cartas, à dona de seu apartamento, o grotesco de vomitar sempre coelhos e a moléstia que a crescente quantidade de animais no recinto, devido aos intermitentes vômitos, causava-lhe. Como salienta Nezi de Oliveira, as primeiras produções de Bianchi, um cineasta ainda em formação, caracterizam-se por “ensaios experimentais, onde a aproximação com o estranho cortaziano é evidente” (OLIVEIRA, 2006: p.19).

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Outra grande influência literária presente na obra de Bianchi é a do escritor brasileiro Joaquim José Maria Machado de Assis. A leitura machadiana que o diretor realizou está presente não apenas em seus filmes com roteiro inspirado em um texto do escritor, mas também pode ser vista em alguns de recursos estéticos, como o narrador ou voz off, majoritariamente irônicos e pouco confiáveis; a ironia na construção das situações e o tom de denúncia social, sutil e diluído na prosa machadiana, e que ganha força total nos seus filmes de exacerbação da crítica política ou moral. O primeiro filme que se inspira em uma história machadiana é A Causa Secreta, de 1994, baseado no conto de mesmo nome do escritor. No filme, acompanhamos um diretor de teatro com ares autoritários ensaiando com seu grupo de atores uma peça que falará sobre a “dor do ser humano”. Para que os atores nela envolvidos possam deparar-se com exemplos atuais da dor,

o diretor os incumbe da tarefa de buscarem locais onde ela se

materialize, seja em hospitais, locais para estudos de animais e centros de cuidado aos soropositivos. Em um exercício de intertextualidade claro, a peça encenada tem os mesmos personagens do conto, embora o seu nome – indicando assim a adaptação -

nunca seja

revelado. O diretor da peça, sua postura, bem como suas falas e crítica assemelhasse por vezes ao próprio Bianchi, sobretudo na sua tentativa desesperada de conseguir os recursos financeiros inúmeras vezes prometidos pela Secretaria de Cultura regional. A burocratização do Estado, tema já visto em seu documentário Mato eles?, volta novamente à cena. O segundo filme a ter um texto de Machado de Assis como fonte literária direta é Quanto vale..., com sua releitura do conto já mencionado, “Pai contra mãe”. Mais uma vez, o conto serve de inspiração para o desenvolvimento de toda a trama da história, não ocorrendo uma encenação propriamente dita da história machadiana. A leitura cinematográfica de uma obra literária foi aqui compreendida como um processo basicamente de tradução do texto original, sem que haja necessariamente um compromisso à “fidelidade” do texto literário. Uma noção da associação hoje possível entre literatura e cinema que exija tal fidedignidade pode empobrecer a percepção de um filme, ao considerá-lo apenas válido se corresponde à história do texto, “como realmente está escrita/foi contada”. Como argumenta Robert Stam, A linguagem tradicional da crítica à adaptação fílmica de romances muitas vezes tem sido extremamente discriminatória, disseminando a idéia de que o cinema vem prestando um desserviço à literatura. Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação” e “vulgarização”, “adulteração” e “profanação” proliferam e veiculam sua própria carga de opróbrio. Apesar da variedade de acusações, sua motriz parece ser sempre a mesma – o livro era melhor (STAM, 2008, p.20).

Já de acordo com Sérgio Paulo Guimarães de Souza é preciso levar em conta que “o cinema não filma livros”, mas que “filmará antes, condicionado por fenômenos de natureza hilética da sétima arte, o que a individualidade de quem o adapta, sujeito marcado por imposições históricas e dominantes subjectivas, lerá” (SOUSA, 2001, pp.27-28). Sendo assim, se o vocábulo “fidelidade” não dá conta de mensurar a capacidade de criação de diversos intertextos no universo cinematográfico a partir de uma única obra literária, parecenos que o tropo adaptação, como uma “leitura” possível do romance-fonte, inevitavelmente

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parcial, pessoal e conjuntural permite, por outro lado, sugerir que, da mesma forma que qualquer texto pode gerar uma infinidade de leituras, assim também qualquer romance pode gerar uma série de traduções. É nesse sentido que inicialmente vemos as adaptações de textos literários feitas por Bianchi. A validez de sua empreitada não está em uma maior ou menor correspondência do resultado fílmico com o texto, mas na liberdade com que o interpreta e os re-significados que a ele dá. Além das fontes diretas para a composição do roteiro – as crônicas e conto - , livros e pesquisas históricas foram usados pelos roteiristas para o entendimento do contexto histórico ao qual se refeririam. Como aponta Eduardo Benaim, último roteirista a ingressar na equipe que escreveria o texto, “(...) compreender Machado de Assis era fundamental e para isso muito nos ajudou a leitura de Roberto Schwarz.” (BENAIM, 2008: p.27).

Em uma

entrevista à revista Época, em 2005, na ocasião do lançamento de Quanto vale... Bianchi revelou que concebia o Brasil como “um reino de contradições”. As incoerências, segundo o diretor, não seriam apenas de ordem econômica ou social, mas também estariam por conta da importação de modelos estrangeiros à nossa realidade– e ele cita como exemplo a forma de se fazer cinema no país, “copiada” do modelo americano. Esta visão que Bianchi diz ter sobre o país é facilmente identificável em seus filmes, como se ele imprimisse sua marca pessoal – neste caso, suas opiniões - no argumento de suas histórias, o que caracteriza seu cinema como extremamente autoral. Schwarz, em um de seus textos mais conhecidos, o primeiro capítulo intitulado “Ideias fora do lugar” de Ao vencedor as batatas, discute justamente a “disparidade e o paradoxo entre a sociedade brasileira escravista e as ideias do liberalismo europeu” (SCHWARZ, 2000: p.12). Segundo Schwarz, a presença do raciocínio burguês no Brasil escravista era inevitável, pois nossa produção estava voltada para o mercado internacional, onde estas noções imperavam. Assim, desde nosso período colonial, esteve marcado pelas contradições. A adesão a um modelo alienígena à nossa realidade, fosse ele o novecentista burguês ou neoliberal do final do século XX, confirmariam este estado de exceção. Bianchi, como diretor do filme, pôde muito bem, a partir do contato com esta literatura, ter utilizado as cenas históricas para apresentar a noção de continuísmo das incongruências e problemas brasileiros. Na entrevista a nós concedida, Benaim revela a influência de outro autor para o desenvolvimento específico de uma personagem do filme, a mulata Fátima. No filme, Fátima mantém uma existência insólita como agregada nas casas de Mônica e depois no projeto social de Noêmia. Sem intimidade com Mônica, ela figura como uma agregada da família, fazendo as vezes de sua empregada e protegida. No momento em que pensa estar passando por um período de felicidade e prosperidade, Mônica oferece-lhe a oportunidade de “pegá-la para criar”, em um lar onde encontraria “uma mãe boa e com comida na mesa todos os dias”. A sequência mostra o assistencialismo confortando a consciência de Mônica a partir da ideia de que Fátima, como agregada, poderia conferir-lhe um prestígio social, pois ela teria “condições de” ser benemérita. Segundo Benaim, Fátima representaria a leitura dos roteiristas do texto “O homem cordial”, de Sérgio Buarque de Hollanda, no livro Raízes do Brasil, na “sobreposição do particular sobre o geral” (HOLLANDA, 1976, p.102) e de uma cultura patrimonialista e personalista própria da sociedade brasileira. Fátima não é adotada

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como filha de Mônica, não se transforma em mais um membro da família Silva. Sua existência é marginal, o seu final presenciado no filme é de moeda de troca em favores entre a empregada Mônica e a patroa Noêmia e a sua inexistência de falas durante todo o filme lhe confere um aspecto desumanizado. Embora a personagem seja pouco decisiva para o desenvolvimento da trama, sua presença nas cenas representa um dos momentos de maior radicalização da mensagem bianchiana. As inúmeras influências da literatura que Quanto vale... mostram a preocupação de Bianchi em nos apresentar uma obra plural, com múltiplas fontes que atestassem sua interpretação. Com a leitura de Machado de Assis e a pesquisa dos historiadores e sociólogos, o filme alcançou um resultado singular, em que as fontes para ele consultadas ora corroboram, explicam ou adicionam à mensagem de continuação da escravidão. “O luxo de ter princípios”.

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Como anteriormente dito, a denúncia existente em Quanto vale... não está em uma crítica velada a todo tipo de assistencialismo, mas na contradição que uma espécie de filantropia gera ao reproduzir, através de sua suposta boa ação, a dominação do explorado. Segundo esta explicação, é de interesse manter os necessitados indeterminadamente atrelados ao sistema de caridade, pois a miséria gera, numa situação extrema, lucro para entidades, empresas e supostos beneméritos. Segundo Gisele Sanglard, a filantropia pode ser entendida, grosso modo, como a caridade de origem cristã laicizada, ocorrida em meados do século XVIII e que teve nos filósofos iluministas do período os seus maiores propagandistas. O “fazer o bem”, o socorro aos necessitados deixa de ser uma virtude cristã para ser uma virtude social (SANGLARD, 2003, p. 1096). A caridade e a filantropia, por outro lado, carregavam entre si diferenças básicas menos na ação propriamente dita que na maneira de realizá-la. De acordo com Sanglard (...) Talvez a maior diferença entre ambos os conceitos esteja não na ação propriamente dita, mas nos meios de realizá-la, pois a caridade, por ser obra piedosa, pressupõe a abdicação de toda vaidade de seu autor, propugnando o anonimato como valor máximo, enquanto que a filantropia, por ser um gesto de utilidade, tem na publicidade sua arma: visto que a publicidade provoca a visibilidade da obra e acirra a rivalidade entre os benfeitores (SANGLAD, 2003: p.1095).

Com relação ao filme de Bianchi não há dúvidas que a palavra mais adequada para nomear as ações de cunho humanitário seja, segundo a definição proposta por Sanglard, a filantropia. O ato de doar deve ser atestado por aquele que o recebe para conferir ao doador prestígio e alívio social. Marta Figueiredo, a personagem de Ariclê Perez, faz questão de registrar que esteve em pessoa entregando seus melhores pares de sapato a uma

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instituição.

No núcleo dramático envolto à empresa Stiner, uma premiação com convidados

e imprensa coroa os empresários que mais se dedicaram a causas sociais. A menção a obras de cunho assistencialista pode ser encontrada em outros filmes de Bianchi. Em produções anteriores como Mato eles? e A Causa Secreta, de intensa crítica política, a burocratização do Estado e o seu aparelhamento corrupto impedem a eficiência da coisa pública. Em Quanto vale... a falência do máquina estatal como provedora de assistência permitiu uma “proliferação” do Terceiro Setor, que muitas vezes se faz valer como aquele que ajuda os cidadãos em carência e “esquecidos”. Dessa forma, enquanto que em filmes anteriores o Estado não funciona e impera sua natureza morosa, em Quanto vale... ele já está praticamente ausente. Ao longo do filme, o ato de doar acompanha, além da busca por reconhecimento, uma busca por ascensão social. Os que podem doar são os que tradicionalmente têm dinheiro para fazê-lo, mas, no novo assistencialismo “do século XXI”, todos querem poder fazer o bem, mostrando assim que progrediram economicamente. Como a personagem de Herson Capri nos explica ainda nas cenas iniciais do filme: “A classe média alta sempre imprimiu seu padrão de consumo nas demais. Hoje, a classe média também quer ter o luxo de ter princípios: daí este surto de ações sociais.” O surto identificado pela personagem pode expressar a mesma consternação dos roteiristas e diretor no desenvolvimento da história. Segundo Benaim, a questão do assistencialismo como objeto da crítica do filme foi uma decisão estabelecida depois que o trabalho com o conto e com as crônicas já estava em andamento: “Para mostrar a exploração

do

homem

pelo

homem

outros

exemplos

foram

idealizados,

como

os

trabalhadores da colheita da cana-de-açúcar, os bolivianos na indústria têxtil brasileira, empregados domésticos, empregos informais...”. O assistencialismo, como objeto escolhido, ganhou destaque após os envolvidos se darem conta do crescimento do “marketing social”, conceito à época estranho e esdrúxulo, mas que ganhou força ao longo da última década: Sentimos que estávamos passando por uma época de transição do antigo assistencialismo para os mega projetos de marketing social. Essa transição foi colocada em algumas cenas pontuais para compor a narrativa do filme. Antigamente, a Igreja e o Estado faziam esse trabalho assistencialista, muitas vezes com forte característica paliativa. Depois surgiram pequenas associações que eram dirigidas por mulheres da classe alta. Agora estamos na hora das ONGs multinacionais e grandes empresas de captação. Hoje em dia, como as empresas estão se fundindo e o mercado tem cada vez menos diversidade, as grandes ONGs, [como] WWF, Fundação Ford, tem sob seu guarda-chuva administrativo uma infinidade de empresas espalhadas pelo mundo (BENAIM, 2008).

Com a ascensão desta nova forma de angariar recursos, todo um esqueleto para o seu bom funcionamento também é posto em marcha. Há uma profissionalização da filantropia e a forma com que estes grupos atuam mais se assemelha a uma empresa. No filme, para conquistar doadores, jovens são treinados a fim de otimizar seu atendimento em um sistema de telecomunicações. Existe um procedimento específico e palavras-chave que devem ser ditas para o interessado em doar ou saber o rumo de sua doação. A forma com que a funcionária incumbida de explicar-lhes em que consiste sua tarefa se parece a um

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sistema de decora e repetição, sem compreensão da lógica do trabalho. A desumanização do ato da benfeitoria é evidente. Escolhido o objeto, a utilização de recursos cinematográficos frequentes na trajetória do diretor faz com que sua plateia identifique rapidamente a denúncia. A ironia e a reflexividade são peças-chave no desmascaramento de atores em um mundo – o do social – à primeira vista acima de qualquer suspeita. Bianchi, na ânsia por rapidamente se expressar, não tarda muito por desmascarar as intenções de suas personagens perante a câmera. À medida que o filme avança e à medida que a ironia torna-se cada vez mais ardil - ajudada pela narração de Milton Gonçalves e Clara Carvalho – as personagens mostram com mais detalhes qual o papel que exercem neste sistema de dominação. Esta voz em off também lembra-nos de que por trás das câmeras há um diretor ávido por inserir-se na história, mesmo que utilizando recursos indiretos, guiando o espectador na direção de uma compreensão da história e em última instância, como lembrou Ismail Xavier, “expulsando o contemplativo” de seu cinema (SOLER, 2005: p.40). Menos intervencionista do que em outros filmes de sua carreira, como Mato eles? e Entojo (1985) – filmes que por sua natureza documentária permitiram uma maior e sarcástica interferência do realizador na condução das entrevistas e na exposição dos fatos – Quanto vale... não tenta impor, por outro lado, uma interpretação única e irrefutável dos fatos que emanam das imagens. Há, de fato, uma montagem conduzindo o espectador a dar-se conta da crítica bianchiana, mas este percurso antes de tudo incita o espectador a uma reflexão pessoal sobre a questão. Um último recurso, a ocorrência de múltiplos finais da obra, é um exemplo dessa liberdade de interpretações que o diretor nos apresenta. Considerações finais Dos três finais pensados para Quanto vale... apenas dois chegaram a ser filmados. O primeiro, que encerra a história com a morte da personagem Arminda pelas mãos do matador de aluguel Candinho retoma por completo o conto de Machado de Assis. A execução do serviço que lhe fora encarregado restaura a paz e a união no lar de Cândido Neves e sua família goza feliz e ingênua na ignorância da proveniência dos maços de dinheiro que saltam ao ar. Segundo Benaim, a existência de um único final, no entanto, exporia a inevitabilidade do destino da personagem de Arminda, pois a narrativa é construída mostrando ao espectador que algo de trágico pode acontecer-lhe. A confirmação desta dúvida evidenciaria, segundo o roteirista, uma pobreza dramática. No segundo final, após o começo dos letreiros de elenco e equipe, vemos Arminda tentando persuadir Candinho a, ao invés de executar o trabalho para o qual havia sido pago, montarem juntos uma “central de sequestros”, profissionalizada e equipada. A alternativa das duas personagens por uma espécie de sequestro profissionalizado retoma cena anterior do próprio filme, na ocasião do rapto de um dos sócios da Stiner. Em uma conversa para estabelecer as condições da soltura da vítima, Lázaro Ramos, no papel do sequestrador, filosofa ao perguntar-se se o sequestro não seria a sua forma de contribuir para a distribuição de renda em sua comunidade. Neste trecho, mais uma vez Bianchi dialoga com a

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própria obra, pois um dos cartazes de divulgação de seu filme anterior, Cronicamente inviável faz igual pergunta. Ainda um terceiro final, futurista e catastrófico, foi inicialmente pensado. Em um governo presidido por Lula da Silva, o Brasil se tornaria o maior exportador de pobres do mundo e o modelo de sua exploração seria copiado por todo o mundo. Segundo Benaim, a falta de recursos e a impossibilidade técnica de filmar a ideia da maneira como a haviam concebido, fez a equipe descartar esta outra opção de término. A multiplicidade de finais também afasta o filme de ser um discurso encerrado em si mesmo, tanto na questão da inevitabilidade do assassinato, no primeiro caso, com a morte de Arminda; como em uma suposta apologia à violência e a sua profissionalização, como no final da “central de sequestros”. Como salienta Xavier, o mérito de Bianchi é realizar um cinema que não se pretende “ser pedagógico, no sentido de buscar soluções e receitas” (SOLER, 2005, p. 39). Completando este pensamento, Airton Paschoa argumenta que este compartilhamento de Bianchi com o espectador sobre o que pensa e sente, através, por sua vez, da revelação sempre que possível sua postura diante da vida, não implicam “qualquer intenção de consenso, mas a busca do confronto, da provocação, da polêmica e do desconforto, que gera arestas espinhosas no diálogo aberto e franco que ele tenta estabelecer com o interlocutor” (PASCHOA, 2001, p. 43). O duplo final configura-se assim como um convite inteligente à reflexão, sem deixar de ser uma provocação última do diretor, que antes nos havia “bombardeado” com mais de cem minutos de desmascaramento da sociedade. As cenas históricas presentes ao longo da trama, por sua vez, conferem riqueza e singularidade a este roteiro ao estarem relacionadas com a sua história “principal”. Presente e passado se confluem para que a História, na visão de Bianchi, possa ser traduzida pelo ato da repetição, neste caso, da exploração do homem pelo homem e na vantagem que uns constroem sobre outros. Na comparação entre cenas destes dois contextos, o Brasil do século XIX e o contemporâneo, as temáticas apresentadas, ou os problemas denunciados são parecidos:

exploração

do

trabalho

escravo

e

exploração

do

trabalhador

pobre

e

desinformado; lucro em cima do escravo, lucro em cima do miserável; tentativa de saída do sistema através da fuga, tentativa de saída do sistema através da denúncia da corrupção. Talvez esteja aí também a chave de explicação para a atualização do conto machadiano: não haveria problema em transpor os personagens do ano de 1850 para o os anos 2000, já que para Bianchi a denúncia de Machado de Assis poderia também ser a sua. A História passa a assumir um segundo caráter, remissivo, sendo possível estabelecer diálogos entre o presente e o passado seguindo o fio da continuidade dos problemas. Sendo assim, as cenas históricas se fazem presentes para compor o escopo geral do filme para introduzir a crítica, mas para também para explicá-la e enfatizá-la. O espectador se identifica e compreende esta noção pela recorrência a elementos cênicos como o recurso de utilizar os mesmos atores encenando personagens de diferentes épocas ou, para aqueles que conhecem o conto de Machado de Assis, a transposição dos personagens novecentistas para dias atuais. Ao terminar refletindo sobre o papel que a História adquire neste filme, talvez uma volta às proposições de Pierre Sorlin seja acertada, pois para nós este filme, ou as cenas

O Olho da História, n. 20, Salvador (BA), dezembro de 2013.

históricas que contém, servem para corroborar um pensamento de falência e desigualdade reinante no “sistema” de hoje, ou seja, são usados com a intenção de ser “uma fala do presente”. Referências BENAIM, Eduardo et al. Quanto vale ou é por quilo? Roteiro do filme. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008. CAVALCANTI, Nireu O. Crônicas históricas do Rio de Janeiro colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. CORTÁZAR, Júlio. “Ómnibus” e “Carta a una señorita en París”. In: Bestiario. Buenos Aires: Sudamérica, 1951. HOLLANDA, Sérgio Buarque. “O homem cordial”. In: Raízes do Brasil. 9ª. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. “Pai contra mãe”. In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. OLIVEIRA, Nezi Heverton Campos de. O cinema autoral de Sérgio Bianchi: uma visão crítica e irônica da sociedade brasileira. São Paulo, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP. PASCHOA, Airton. “A classe média vai ao inferno”. In: Revista USP. São Paulo, no. 49, março/maio 2001. pp.40-49. ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. Trad. Marcello Lino. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. SANGLAD, Gisele. “Filantropia e assistencialismo no Brasil” In: História, Ciências e Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, Vol. 10, número 3, set-dez. 2003, pp. 1095-1098. SCHWARZ, Roberto. “Idéias fora do lugar.” In: Ao vencedor as batatas. 4ª. Edição. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. SOLER, Marcelo (org.). Quanto vale um cineasta brasileiro?. São Paulo: Editora Garçoni, 2005. SORLIN, Pierre. Sociología del cine: la apertura para la historia de mañana. México: Fondo de Cultura Económica, 1984. SOUSA, Sérgio Paulo Guimarães de. Relações intersemióticas entre o Cinema e a Literatura. Coleção Hespérides, Literatura 13. Braga: Universidade do Minho, 2001. STAM, Robert. A leitura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. XAVIER, Ismail. “O concerto do ressentimento nacional.” In: Sinopse – Revista de Cinema. No. 8, Ano IV, abril de 2002. pp. 35-37. QUANTO VALE ou é por quilo? Direção: Sérgio Bianchi. Roteiro: Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi. Rio de Janeiro: Agravo Produções Ciematográficas, Riofilme, 2005. 1 DVD (104 minutos). ENTREVISTA com o diretor Sérgio BIANCHI, Sérgio. Realização de Ana Aranha e Cléber Eduardo. 2005. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT961935-1655,00.html. Acesso em 20 de abril de 2010. ENTREVISTA com o roteirista Eduardo Benaim. Realização de Michelly Silva. Áudio em CD. 176 min. São Paulo, novembro de 2010.

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