Sex Tapes: Apontamentos sobre o caráter pedagógico da pornografia na construção do comportamento sexual masculino (2014)

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Sex Tapes: Apontamentos sobre o caráter pedagógico da pornografia na construção do comportamento sexual masculino

André Henrique dos Santos Francisco1

A pornografia é mais que uma forma de retratamento da vida sexual. Enquanto manifestação cultural, a pornografia também é um elemento de forte caráter pedagógico na construção de comportamentos sociais e sexuais. Entendendo o comportamento (especialmente, nesse caso, o comportamento sexual masculino) como fruto de construção social, podemos tentar compreender como noções, ideias e imagens das masculinidades - ligadas à corporalidade e à performance se apropriam dos discursos expressos na pornografia, seja ela mainstream2, amadora ou mesmo caseira.

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Especialista em Sexualidade Humana pela Laureate/Uni-IBMR e Mestrando do Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF). 2

Termo inglês usado comumente utilizado em referência às artes em geral, com o intuito de designar o pensamento ou o gosto corrente da maioria da população. Refere-se a algo comum/usual, familiar às massas, que está disponível ao público geral, que está em voga (‘na moda’) e/ou que tem laços comerciais. Inclui tudo aquilo que diz respeito à cultura popular, que é disseminado principalmente pelos meios de comunicação de massa, estando facilmente ao alcance do grande público consumidor.

A proposta básica desse artigo é apontar que a pornografia, pelo seu caráter pedagógico e sua inserção na cultura, pode ser um importante objeto de estudos dentro das ciências sociais. Posto que se trata de manifestação cultural que faz sentir sua influência sobre padrões de comportamento social e sexual, talvez seja esse o momento da pornografia assumir certo protagonismo em estudos que tratem de sexualidade, corporalidade, gênero e outros temas correlatos. ‘Desde os primórdios até hoje em dia, o homem ainda faz o que o macaco fazia’

O retratamento dos corpos e da performance sexual faz parte da experiência humana desde tempos muito antigos, como se pode observar em diversas manifestações artísticas, mitos, lendas, fábulas e histórias (LINS & BRAGA, 1995). Há múltiplos exemplos de pinturas rupestres, pré-históricas, que retratam órgãos e práticas sexuais. Com o advento da escrita, diversas civilizações elaboraram ‘compêndios’ ou ‘manuais’ que, ultrapassando o aspecto artístico ou de entretenimento, tinham por objetivo primordial a orientação na busca do prazer. Dentre os manuais mais conhecidos temos o Kama Sutra3 e o Jardim Perfumado4. As filosofias do tantrismo e do taoísmo também têm suas obras que apresentam visões sobre a sexualidade e a sagrada busca pelo prazer. A própria Bíblia cristã e o Alcorão dos muçulmanos trazem ensinamentos e conselhos para a manutenção sadia da vida sexual e dos relacionamentos. Dessa forma, a arte erótica e a própria pornografia apresentam-se sob um aspecto dual de aprendizado e de entretenimento. Avanços tecnológicos - tais como a prensa, meios de transporte e de comunicação - encurtaram barreiras e permitiram a popularização de vários desses manuais, bem como outros materiais. Através do tempo e 3 De origem oriental, escrito por Vatsyayana por volta dos séculos V e IV a.C., este compêndio trata não apenas de descrever posições sexuais, mas é também um manual de orientação para os casais de amantes em sua busca por maiores níveis de excitação e prazer no desempenho da prática sexual (LINS & BRAGA, 1995). Trata-se de um compêndio de forte teor pedagógico, para doutrinar corpos e práticas sexuais, conjugais e mesmo de higiene. 4

O “Jardim Perfumado”, escrito no século XV, é um livro de origem árabe que apresenta opiniões e conselhos sobre sedução para homens e mulheres, sobre técnicas sexuais, avisos sobre a saúde sexual, e receitas para algumas doenças sexuais. Também conhecido como “Os Campos Perfumados onde se obtêm os prazeres”, o manual contém uma lista de nomes para o pênis e a vagina, uma seção sobre a interpretação de sonhos, e descreve atos ilícitos, como o homoerotismo feminino e a zoofilia. Para ilustrar este ‘manual da cópula’, várias histórias são apresentadas para embasar, aludir ou advertir seus ensinamentos.

nas diferentes sociedades, podemos observar diversas formas de retratar, contar e recontar a prática sexual. O surgimento do conceito de pornografia, no entanto, remonta ao século XIX. Tal conceito está inicialmente ligado a uma ars erotica que trata de escritos referentes ao trabalho das prostitutas (LEITE JR, 2012). Mas seu franco desenvolvimento e expansão se ancoram nas evoluções tecnológicas das sociedades, bem como em outros fatores sociais e comportamentais, estimulados pelo mercado e consumo (HUNT, 1999). Tornase, então, um conceito cada vez mais amplo, abrangendo textos, imagens e o retratamento de práticas inseridas no contexto cultural onde tais elementos são produzidos, sempre mantendo seu caráter pedagógico, ‘manualista’. A pornografia, assim, se liga fortemente aos componentes culturais das sociedades onde é produzida. Como faz parte do comportamento humano, lida com temas de intimidade, de privacidade, trata de práticas e técnicas corporais (MAUSS, 1974) e, dessa forma, é um elemento capaz de provocar simultaneamente admiração e repúdio, curiosidade e repulsa (MORAES & LAPEIZ, 1985). No que tange o comportamento humano, liberdades e censuras caminham de mãos dadas. E a pornografia, ligada ao comportamento sexual, não escapa disso: ao mesmo tempo em que se imbui de um forte caráter pedagógico, torna-se um assunto tabu. Mesmo que apresente uma forte vinculação com o comportamento humano, parece que a pornografia está relegada a um segundo plano no que se refere aos estudos sociais e da sexualidade humana. Na atualidade, a maioria dos estudos sobre pornografia parece girar em torno das práticas sexuais, dos discursos e representações pictóricas, ou mesmo do consumo de produtos. Por essa especificidade, talvez não seja reconhecida a devida importância da pornografia enquanto instrumento pedagógico e, portanto, como objeto de estudos para as ciências sociais. Especialmente por conta do modo como a pornografia pode afetar nas práticas e comportamentos sexuais que produzimos e reproduzimos, entendemos que o estudo da pornografia e de sua ação no comportamento sexual humano pode, então, ser uma maneira de entender aspectos da sociedade e da cultura sob novas perspectivas, de desmistificar ideias, de encarar nosso próprio comportamento sob uma ótica diferente.

‘Eu admiro o que não presta’ Apesar do retratamento da vida sexual fazer parte da experiência humana já há longo tempo, o conceito de pornografia é algo relativamente recente, que remonta ao século XIX. Arqueólogos italianos descobriram nas ruínas de Pompéia uma série de objetos e imagens sexuais bastante “explícitos” que, considerados impróprios para circulação e exibição, foram mantidos em área reservada no Museu de Pompéia, proibindo a visitação de mulheres, crianças e homens incultos. O diretor do museu chamou essa área de “gabinete de objetos”, sendo depois chamada de “gabinete de objetos reservados”. Em 1860, sob a direção do escritor francês Alexandre Dumas (pai), esse conjunto passou a ser chamado de “coleção pornográfica”, expressão originada do termo “pornografia”, significando “escritos sobre prostitutas” (LEITE JR., 2012). O avanço da pornografia está ligado aos avanços técnicos e tecnológicos. Quando o homem passou a usar suas mãos e alguns materiais para produzir pinturas rupestres, passou também a produzir imagens que retratavam sua vida sexual. O surgimento da escrita possibilitou que se escrevesse sobre sexo (seja ficção ou não). O florescimento da pornografia se dá, no entanto, mais para o fim do século XIX, especialmente com o surgimento da prensa e de uma cultura impressa. Diretamente ligada ao mercado, é a partir desse marco/período que a pornografia passa a ser entendida como a representação da sexualidade e a produção de objetos para uso sexual como um negócio que visa em primeiro lugar o lucro econômico e possui um mercado específico. Com o incremento das gráficas e editoras, e um aumento substantivo de consumidores e leitores, surge então a “pornografia” como classe independente de obra literária (HUNT, 1999). O mesmo ocorre com a fotografia e o cinema: com seu surgimento, novas possibilidades de representação e expressão da sexualidade se desenvolvem. Novas técnicas de reprodução de imagens incrementaram o “negócio da pornografia”, que se tornou um fenômeno de massa. O material impresso era vendido cada vez mais rápido e em maior quantidade. Algumas revistas expunham o nu e o sexo softcore - uma pornografia mais ‘leve’, branda, mas que também ainda era encarada como algo impuro, imoral, obsceno. Além

dessas revistas que apresentavam ‘fotonovelas eróticas’, nos anos de 1920 apareceram os primeiros comic books, pequenos impressos que foram precursores das revistas masculinas coloridas. A pornografia é, portanto, uma expressão cultural, fortemente impregnada por uma lógica de mercado. Por estar ancorada à variabilidade cultural, a pornografia pode ser compreendida também como uma forma de entretenimento. Não há como negar sua vinculação com o lúdico, com a diversão (MORAES & LAPEIZ, 1985). É partir daí, já no começo do século XX, que se desenvolvem os maiores debates sobre a sua legalidade. Mais que uma questão de moral, a pornografia vai se tornando cada vez mais legalizada para viabilizar um ramo de comércio com grande potencial de crescimento. Desde a década de 1960, com o movimento feminista e de liberdade sexual, estamos experimentando momentos de maior abertura para tocar em assuntos de cunho sexual. Porém, sexo ainda é um tema que é tabu na sociedade, porque envolve os comportamentos mais íntimos dos indivíduos. E sua vinculação com a pornografia e o erotismo ainda é algo estigmatizado. É importante falar de pornografia por conta de sua influência no comportamento sexual, seja positiva ou negativa. Os filmes pornôs, cada vez mais inseridos no contexto mercantilista de produção da Indústria Cultural5, atuam de forma massiva no imaginário – individual e coletivo – e reforçam ideias, estereótipos, padrões de comportamento que podem ser reproduzidos e aceitos como representação da realidade, como verdade. O estudo da pornografia e de sua ação no comportamento sexual humano pode, então, ser uma maneira de desmistificar ideias, de encarar nosso próprio comportamento

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O conceito de Indústria Cultural trata da conversão da cultura em mercadoria (ADORNO, 2010). Tal conceito não se refere especificamente aos veículos de comunicação em si, tais como televisão, jornais, rádio. Trata, entretanto, do uso dessas tecnologias por parte da classe dominante, para a disseminação de ideias e a massificação de comportamentos. A produção cultural e intelectual passa a ser guiada pela possibilidade de consumo mercadológico. Surge uma legítima indústria midiática de fabricação de produtos (sobretudo culturais), informações e discursos que são consumidos como mercadoria pela população. Os indivíduos são transformados em massa, um grupo homogêneo de consumidores (GOLDENSTEIN, 1987). A Indústria Cultural idealiza produtos adaptados ao consumo das massas, assim como também pode determinar esse consumo trabalhando sobre o estado de consciência e inconsciência das pessoas. Ela pode ainda ter função no processo de reprodução ideológica de um sistema, na reorientação de massas e no desenho e imposição de comportamento.

sob uma ótica diferente. Importa ainda compreender como a produção e circulação dessas imagens instiga o imaginário e o desempenho sexual de quem as consome. Estigmatizada, a pornografia se torna assunto de ‘bastidores’, algo que não está em cena – ou seja, algo obsceno (LEITE JR., 2008). Tal como no Museu de Pompéia (e em diversos outros museus e espaços culturais), a pornografia como objeto de estudos ainda é algo que se coloca numa ‘sala reservada’, para a apreciação de poucos.

‘Seja qual for o tema, o que te importa é sexo’ Há uma máxima na biologia – e mesmo na sabedoria popular – que diz que o ser humano nasce, cresce, se reproduz e morre. Esse é tido como o ‘caminho natural’ das coisas, guardadas as devidas proporções e desconsiderando-se um ou outro desvio, ou mesmo algum acidente de percurso. Nesse ‘caminho natural’, há uma série de ações que o ser humano desempenha. Entre o nascimento e a morte, aprendemos a andar, a comer, a nos comunicar, a (con)viver uns com os outros, a produzir nossa própria subsistência etc. A palavra-chave desta proposição é ‘aprendemos’. Afinal, vários de nossos comportamentos, mesmo que pareçam naturais, puramente inatos, de fato também são construções sociais que aprendemos e apreendemos ao longo do tempo e do espaço em que se insere a nossa sociedade. Há, portanto, uma série de comportamentos que são socialmente construídos, passíveis de aprendizado: “Esses ‘hábitos’ variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, mas, sobretudo, com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, com os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, ali onde de ordinário vêem-se apenas a alma e suas faculdades de repetição” (MAUSS, 1974, p. 214).

Desde que nascemos, então, somos submetidos a um intenso e contínuo processo de aprendizado chamado de socialização. Cada indivíduo deverá aprender a reconhecer padrões de comportamento, identificando modelos a seguir ou a refutar, de acordo com aquilo que se espera dele. “Para cada profissão, sexo, idade, há uma expectativa de comportamento específico, supostamente adequado” (DUTRA, 2002, p. 361).

Segundo esta perspectiva, entende-se que nada está dado de antemão: corpo, sexo e sexualidade podem ser produtos de uma cultura (HEILBORN apud FLAUSINO, 2002). De acordo com Fischer (2002), esses processos de subjetivação são históricos e devem ser encarados em sua ampla diversidade, nos modos de existência que produzem, conforme a época, a sociedade e a cultura em que estejam sendo inseridos. Dessa forma, podemos inferir que o comportamento sexual humano é, também, uma construção social. Sendo fruto de aprendizado, é algo que, portanto, pode ser influenciado pelas mais diversas estruturas e instituições da sociedade na qual se insere. Por mais que haja um componente natural e instintivo em nosso desejo sexual, o comportamento sexual humano depende de aprendizado. Ao longo do tempo, podemos perceber diversas manifestações das sociedades humanas em registrar e analisar a sua própria prática sexual. As diversas civilizações já elaboraram, através da arte e/ou de compêndios, “conjuntos de técnicas reunidas em manuais e experiências transmitidas, muitas vezes sob sigilo, de gerações antigas às contemporâneas” (LINS & BRAGA, 2005, pág. 93). É nesse sentido que começam a se esboçar a arte erótica e a pornografia, com o aspecto dual de aprendizado e de entretenimento. Com o avanço das diversas fases do capitalismo, diversão, arte e entretenimento foram se vinculando cada vez mais profundamente às demandas da Indústria Cultural e, com elas, a arte erótica e a pornografia (HUNT, 1999). Há uma legítima indústria midiática de fabricação de produtos, sobretudo culturais, informações e discursos que são consumidos como mercadoria por uma população transmutada em massa, um grupo homogêneo de consumidores (GOLDENSTEIN, 1987). A mídia é fundamental para cristalizar e reforçar opiniões e, dessa forma, a produção massificada da Indústria Cultural contribui para ‘moldar’ o comportamento humano: o público consumidor recebe os conteúdos estabelecidos e os reprocessa em sua vida cotidiana (ADORNO, 2012; GOLDENSTEIN, 1987). A pornografia, vendida como produto cultural e massificada, acaba por transformar os hábitos das nossas sociedades, afetando a construção do comportamento sexual humano.

Podemos perceber que algumas mudanças no padrão de comportamento sexual humano, por exemplo, se processam conjuntamente com as transformações de desejos, expressões e mesmo inovações tecnológicas. Como aponta Leite Jr. (2006), a adoção da perspectiva da “câmera subjetiva” que acompanha o ponto de vista do ator/protagonista – nos filmes pornôs é uma espécie de inovação na técnica cinematográfica e na narrativa que traz em si uma mudança no modo de se comunicar com o público: ao acompanhar ação pelo ângulo do protagonista, o espectador deixa de ser uma audiência passiva (ou seja, sem tomar parte na ação), tornando-se ele próprio um participante da ação, como voyeur6. É nesse âmbito de ação da pornografia na reprodução de conteúdos e comportamentos

sexuais

apresentados,

aliando-se

a

fetiches7

de

exibicionismo/voyeurismo e às facilidades de acesso à tecnologia de gravação, que despontam as chamadas ‘produções caseiras’ de pornografia. Por facilidades de acesso podemos entender, por exemplo, a chegada das câmeras filmadoras domésticas às mãos do cidadão comum, propiciando uma expansão de pequenos filmes caseiros de sexo – e, subsequentemente, sua transformação em uma espécie de gênero da pornografia. Temos, assim, o surgimento e a popularização daquilo que se chama sex tape. Este anglicismo refere-se à fita ou ao vídeo de sexo tipicamente amador, caseiro. Tais gravações de vídeo podem envolver duas ou mais pessoas engajadas em algum tipo de interação sexual, bem como podem conter apenas imagens de uma única pessoa exibindo partes do seu corpo, nudez completa e/ou atividade masturbatória. Em muitos casos, as sex tapes são divulgadas sem o consentimento dos envolvidos na filmagem. Adquiriram certa notoriedade nos últimos anos, não apenas por 6

Termo de origem francesa, ligado à prática do voyeurismo, que consiste num indivíduo conseguir obter prazer sexual através da observação de pessoas. Essas pessoas podem estar sendo observadas com ou sem seu consentimento. A prática do voyeurismo consiste em observar pessoas envolvidas em atos sexuais, nuas, em roupas íntimas, ou com qualquer vestuário que seja apelativo para o voyeur. 7

Termo de origem francesa, comumente utilizado na psicologia para se referir a determinados desejos e atividades sexuais, que podem ou não ser tomados como ‘desviantes’. O termo tem relação direta com a palavra feitiço, por conta da ‘magia’ e da ‘atração’ que certos objetos (e, subsequentemente, práticas) exercem sobre o comportamento humano. No âmbito da psicologia e da sexologia, o fetiche tem conotação sexual, representando um comportamento específico que encontra prazer em certas atividades, objetos ou partes do corpo. Também pode representar uma pessoa admirada/desejada por outra. O fetiche relaciona-se à fantasia e ao simbolismo que paira sobre algo, projetando nesse objeto (ou numa pessoa tornada objeto) uma relação social definida, estabelecida entre os indivíduos.

representarem o crescimento de um fetiche pessoal. A curiosidade em torno da sex tapes aumentou porque muitas delas envolvem uma ou mais pessoas famosas e/ou celebridades, o que desperta o interesse de fãs e/ou das pessoas ‘comuns’. Uma sex tape que, potencialmente, poderia prejudicar as carreiras das celebridades acaba, na atualidade tem o efeito inverso: muitas celebridades têm se beneficiado da publicidade resultante da liberação de uma sex tape. O surgimento desses vídeos de sexo caseiro e amadorístico se tornou tão comum que algumas sex tapes são propositalmente divulgadas na mídia – como se tivessem sido ‘vazadas’, isto é, divulgadas ilegalmente - como uma ferramenta de marketing para promover ou estabelecer uma carreira. Num âmbito mais pessoal, as sex tapes (sejam de famosos, sejam de anônimos) representam um modo dos indivíduos expressarem sua sexualidade e seus fetiches. Podem ser encaradas como uma representação da realidade. Afinal, assim como no filme pornô tradicional e/ou mainstream, no ato sexual das sex tapes também há corpos, identidades e performances. A ideia de uma sex tape é a de um olhar realista, que registra o sexo como uma ação comum, cotidiana. Assim, as práticas sexuais exibidas seriam entendidas como mais ‘naturais’, diferentemente das performances coreografadas do pornô mainstream. Mas será que a sex tape realmente está tão livre de reproduzir performances e papéis já cristalizados no nosso entendimento e comportamento? O filme pornográfico - seja da grande indústria, seja caseiro/amador - pode ser entendido como um elemento pedagógico de construção e de reprodução de ideais de corpo, de masculinidade e de performance. É por conta destas características que se torna um importante objeto de estudos. De acordo com Grossi (2010, p. 05), “nenhum indivíduo existe sem relações sociais, isto desde que se nasce. Portanto, sempre que estamos referindo-nos ao sexo, já estamos agindo de acordo com o gênero associado ao sexo daquele indivíduo com o qual estamos interagindo”. No que tange à sexualidade e à construção de identidades sexuais e de gênero, é comum se pensar no corpo como elemento central para sua definição. Mas, de fato, gênero deve ser entendido como construção social para além do corpo. Papéis e modelos,

elementos socialmente construídos, são transmitidos, reforçados ou modificados. Como aponta Louro (2008), o gênero é uma das dimensões centrais da sociedade, dimensão cultural articulada num campo representacional que envolve a todos antes do nascimento: “a construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo” (p.18).

Tendo em vista que os comportamentos são construídos de acordo com cada sociedade, pode-se conceber que a própria noção de masculinidade é algo socialmente construído. Cada sociedade entende o ‘masculino’ de forma diferente. O próprio modo como a nossa sociedade entende o ‘masculino’ atualmente já é diferente do modo como era entendido há 20 ou 30 anos. Inclusive, as oposições que marcam as categorias ‘homem’ e ‘mulher’ são variáveis, ou seja, podem ser diferentes já que são marcadas pelas sociedades nas quais tais categorias se inserem (MacCORMACK, 1980). Tal como a sexualidade, gênero é, portanto, discurso. E, como discurso, está presente na mídia, mesmo que de forma velada. Papéis e comportamentos são amplamente difundidos de forma massiva, pela grande inserção dos meios de comunicação em nossa vida cotidiana. Esses comportamentos são impostos de forma midiática e influenciam na construção não apenas da identidade de cada um, mas também em seu comportamento sexual.

‘É só um jeito de corpo’ Giddens (1992) afirma que o exercício da sexualidade é uma decisão modelada e limitada pela realidade em que se inserem os indivíduos. E o instrumento através do qual se modela, difunde ou mesmo impõe essa sexualidade construída é a mídia. Então, a respeito da construção da identidade masculina, podemos entender que “masculinidade e corpo [estético] são socialmente construídos (…): para cada sociedade um ideal de masculinidade e para cada ideal de masculinidade um corpo, estabelecendo, assim, algum grau de correlação entre identidades de gênero e os corpos” (DUTRA, 2002, p. 360-361).

A construção da identidade masculina demanda um trabalho de aprendizado, um processo pedagógico. Tal processo é fortemente marcado pela ação da mídia. A pornografia se insere no panorama de produção midiática. E, para além do comportamento sexual, as masculinidades, as corporalidades e as performances são elementos que também se constroem sob a influência da pornografia. A mídia tem um importante papel na construção de identidades, de comportamentos e na subjetivação, pois seus discursos acionam efeitos de ‘verdade’. Pode-se ainda afirmar que a mídia “pode ser considerada como um espaço educativo, uma vez que produz conhecimentos a respeito da vida, do mundo que nos cerca, de como devemos ser ou nos comportar, do que devemos gostar” (FELIPE, 2007, p. 254). Reconhecer-se numa identidade midiática é resposta, em termos de audiência, a uma interpretação da realidade. É também uma resposta que confirma a aceitação de pertencimento a um grupo social. Assim como aprendemos a ficar em pé, a andar, a correr, a comer, também aprendemos a performar identidades. E esse aprendizado também pode derivar da observação e apropriação de modelos: “aprendemos a viver o gênero e a sexualidade na cultura, através dos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis e também, contemporaneamente, através dos discursos dos movimentos sociais e dos múltiplos dispositivo tecnológicos” (FLAUSINO, 2002 p. 22-23). Como dito anteriormente, é comum às diversas sociedades humanas o hábito de documentar, analisar e/ou retratar suas experiências. Ao longo do tempo, diversas civilizações elaboraram ‘compêndios’ ou ‘manuais’ que, ultrapassando o aspecto artístico ou de entretenimento, tinham por objetivo primordial a orientação na busca do prazer. A mídia, na atualidade, também assume esse aspecto de manual, na medida em que dita padrões de comportamento (SOARES & MEYER, 2003). A mídia contemporânea exerce grande impacto, pois vivemos mergulhados em seus conselhos e ordens, estamos vinculados aos seus mecanismos de controle e censura, influenciados por suas potentes pedagogias culturais. Dessa forma, como produto midiático, a pornografia, em suas diversas manifestações, adquire sua característica de manual, configura-se como o novo Kama Sutra, novo Jardim Perfumado etc.

A arte erótica e a pornografia mexem com a imaginação, aguçam os sentidos, despertam o desejo. Para além desse aspecto de entretenimento, há um âmbito formativo. De acordo com Mauss (1974), cada sociedade tem seus hábitos próprios. Estes hábitos, em grande parte, por mais que sejam entendidos como naturais, são frutos de construções sociais. E esta construção perpassa o imaginário coletivo, pode ser vista como um ideário construído socialmente, com a grande influência do filme pornográfico, de modo a atuar também na construção e reprodução de padrões de comportamentos sexuais humanos. Levando isso em conta, o papel desempenhado pelo meios de comunicação social torna-se mais importante na formação e (re)processamento do imaginário social de comunidades cada vez mais interligadas e, por isso, cada vez mais amplas. Através da ação da mídia, essas comunidades recebem e reprocessam esses conteúdos massificados, estabelecidos pelas necessidades de mercado. Ela os assume e os naturaliza e, dessa forma, tais conteúdos passam a fazer parte dos padrões de comportamento socialmente aceitos (DURAND, 2010). No caso da pornografia, tratam-se da reprodução e naturalização de padrões desejáveis de comportamento, para além do âmbito sexual. Neste ponto, cabe dizer que tratamos de explorar os modos como o filme pornográfico pode afetar no comportamento sexual, e mesmo na construção de ‘masculinidades’, porque tais produções, em sua maioria, se voltam para um mercado composto por homens (DÍAZ-BENITEZ, 2010; MORAES & LAPEIZ, 1985). Como qualquer dispositivo midiático, apesar de também construir um discurso e impor comportamentos para o público feminino, o público-alvo da ação midiática do filme pornográfico é o público masculino, independente de sua orientação sexual. No que diz respeito aos atores e atrizes que estrelam as produções, há diversos elementos acerca do corpo e da postura em cena que são exigidos em função da imagem que se quer vender (DÍAZ-BENITEZ, 2010). O público consumidor recebe os conteúdos e os reprocessa em sua vida cotidiana (GOLDENSTEIN, 1987). Tendo esse exemplo como base, é de se acreditar que essa imagem de virilidade transmitida pela postura do ator (bem como a ideia de potência transmitida pela performance e pelo tamanho do membro do ator) é a que fica cristalizada como referência para esse público consumidor.

Então, cabe investigar como essas pessoas reproduzem tais padrões de comportamento, bem como se elas realmente assumem uma postura de masculinidade bastante semelhante àquela que é percebida no filme pornô. Seria esse tipo de reprodução de padrões de comportamento e ideias de masculinidade reproduzidos nas sex tapes? Embora pareçam ser mais livres dos padrões que norteiam a produção da pornografia mainstream, é desta fonte que se inspiram as ações sexuais, práticas e performances apresentadas na fita caseira de sexo? As sex tapes se apropriam8 destes elementos e padrões? Dessa forma, podemos acreditar que o comportamento sexual humano também é fruto da reprodução de modelos e aprendizado. E este comportamento sexual não se restringe apenas ao âmbito do ato sexual em si, mas trata de toda a gama de elementos que está direta ou indiretamente ligada a este ato: a autoestima, o estilo de buscar contato, o peso das opiniões alheias, a reputação, as expectativas próprias e as do parceiro etc. É nesse âmbito que cabem questionamentos acerca da expectativa e da cobrança em cima das performances de masculinidade: quem são os ‘homens’ mostrados no pornô? Que imagens de masculinidade são produzidas por esses filmes? Quais os ideais de masculinidade que são produzidos no pornô? Quais são essas performances que se espera que sejam reproduzidas? As sex tapes refletem tais comportamentos?

‘Depois do prazer’ A importância de se pesquisar acerca das masculinidades na pornografia, especialmente através das sex tapes, reside na busca de uma maior e melhor compreensão de nossos comportamentos, do quanto fatores sócio-culturais – que norteiam a produção pornográfica, em maior ou menor escala – podem influenciar e marcar a construção de identidades. 8

Aqui entende-se ‘apropriação’ de acordo com a perspectiva de Chartier (1990). As manifestações da cultura podem ser analisadas e entendidas no âmbito produzido pela relação interativa entre as noções complementares de “práticas” e “representações”. Nessa interação é que pode ocorrer a apropriação, que consiste – grosso modo - em tornar própria/singular a utilização dos produtos que lhes são impostos. O sujeito sofre influência, porém não a absorve e reproduz de forma integral: é afetado por ela, mas a transforma/ressignifica ao apropriar-se dela. A construção das identidades sociais, por exemplo, seria o resultado de uma relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição - submetida ou resistente - que cada comunidade produz de si mesma (Barros, 2005).

A produção pornográfica - especialmente os filmes, revistas e textos - funciona como uma versão mais atual de manuais e compêndios sobre sexo e comportamento, tais como o Kama Sutra e o Jardim Perfumado. Os filmes pornográficos mainstream nos apresentam performances sexuais atléticas: vigorosas, de longa duração, contemplando várias posições e com fartura de ejaculação. Na maioria deles, os corpos seguem um padrão estético específico e os papéis sexuais são bem delineados, seguindo as determinações da indústria e das demandas de mercado. Um olhar mais atento às práticas e performances da pornografia ‘caseira’ – influenciada ou não por uma pornografia mainstream - pode nos mostrar que o papel pedagógico da pornografia no comportamento sexual dos indivíduos é maior do que se poderia supor. Se entendermos as sex tapes como um olhar que registra a (re)produção ou não de comportamentos, a ideia primordial deste estudo é lançar um ‘olhar sobre o olhar’. Mas, dessa vez, além do olhar que registra, é um olhar que vê, analisa e busca compreensão. Levando em consideração que esse caráter pedagógico e formativo da pornografia, entendendo-a como uma manifestação cultural, é passível de nossa compreensão e análise. Trata-se, enquanto objeto, de uma via de compreensão da nossa realidade que, por ser estigmatizada, ainda não é tão explorada. Por fim, a intenção primordial deste artigo é, de fato, de apontar caminhos. Velhos e novos – e, por que não, prazerosos? - caminhos.

Referências

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