Sexualidade e política à época de Augusto: considerações acerca da \'Lei Júlia sobre adultério\'

September 8, 2017 | Autor: Sarah Azevedo | Categoria: Roman History, add História Antiga romana
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Texto publicado como capítulo do livro: CAMPOS, Carlos E. C.; CANDIDO, Maria Regina (org.). CAESAR AUGUSTUS: entre práticas e representações. Vitória/Rio de Janeiro: DLL-UFES /UERJ-NEA, 2014, p.239-255. ***

Sexualidade e política à época de Augusto: considerações acerca da ‘Lei Júlia sobre adultério’ Sarah Fernandes Lino de Azevedo1 1. Introdução Partindo de algumas reflexões sobre a Lex Iulia de adulteriis (Lei Júlia sobre adultério), promulgada por Augusto por volta de 18 a.C., pretendo apresentar, explorar e questionar alguns temas de debates atuais sobre a reforma política e moral de Augusto. Tais temas incluem o papel das mulheres com relação à política durante a instauração do principado e o aumento do caráter público atribuído ao adultério com a promulgação desta lei. Para isto, dividi este texto em três partes. Esta primeira parte trata de uma pequena introdução sobre a definição da ‘Lei Júlia sobre adultério’, o contexto de sua promulgação e seus objetivos. A segunda parte é dedicada a apresentar as interpretações de uma parcela da historiografia sobre o tema. A terceira parte aborda um tema mais específico com relação à historiografia: a questão do público e privado relacionado às interpretações atuais da ‘Lei Júlia sobre adultério’. A ‘Lei Júlia sobre adultério’ definia o adultério como uma relação sexual entre uma mulher casada e um homem que não era seu marido. Ambos eram incriminados, a esposa adúltera e o homem que cometia a ofensa contra o marido dela. Se condenados, a lei previa que fossem relegados para ilhas diferentes, parte de seus bens era confiscada – ao homem, metade de sua propriedade; à mulher, metade de seu dote e um terço de seu patrimônio2. Sarah Fernandes Lino de Azevedo é doutoranda em História Social pela USP, membro do LEIR-MA-USP (Laboratório de Estudos sobre o Império Romano e Mediterrâneo Antigo da USP) e bolsista da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Atualmente a autora desenvolve pesquisa acerca das concepções de adultério e relações de gênero na Roma Antiga, principalmente durante o período da dinastia Júlio-Cláudia (31 a.C. – 68 d.C.). E-mail: [email protected] 2 As principais informações disponíveis sobre a Lex Iulia de adulteriis estão no livro 48 do Digesto, uma famosa compilação das leis imperiais realizada na primeira metade do século VI. Há, também, evidências nas Sententiae, de Paulo (antologia de escritos de um jurista do segundo século, compilada por volta de 300 d.C.); na Collatio legum Mosaicarum et Romanarum (comparação das legislações judaicas e romanas, composta por volta do quarto século); e no Código (Codex), de Justiniano, obra contemporânea do Digesto. Para mais informações acerca desta e de outras leis que diziam respeito às mulheres no Império Romano, indicamos o “sourcebook” publicado por Judith Evans Grubbs em 2002. Este livro apresenta um interessante panorama sobre a legislação romana concernente às mulheres durante todo o Império Romano, nele, a autora reuniu trechos de 1

A lei fez parte de uma reforma de cunho moral e com fins políticos iniciada por Augusto, após pôr fim às Guerras civis (31 a.C.). A reforma fazia parte de um projeto maior, com fins de reestruturar a política romana, legitimar uma nova forma de governo baseada em ideais dinásticos, e, deste modo, efetivar a transição do regime republicano para o imperial. Uma leitura atenta dos pormenores da lei demonstra que o alvo principal da regulamentação era as mulheres. Nota-se, então, que uma contradição se torna flagrante: se a legislação visava restabelecer a ordem política, por que criar leis para controlar as mulheres, uma vez que estas não participavam da política? Qual a conexão entre o comportamento sexual feminino e a política imperial? Estas questões iniciais suscitam outras: quais as implicações do adultério para a manutenção da ordem política e social? Como as regulamentações e a prática do adultério foram utilizadas por homens e mulheres como estratégia política? Como se dá a associação entre o adultério, a retórica, e a política imperial? De que maneira categorias como feminino e masculino, público e privado, são delineadas por meio da noção de adultério? Como é possível perceber e compreender as relações de gênero por meio da apreensão da concepção de adultério? *** A reforma moral de Augusto visava fortalecer a unidade familiar, uma vez que era através da familia, por meio da garantia de uma linha sucessória agnática, que se estruturava o direito à propriedade e também à cidadania3. As preocupações do imperador em reforçar os laços familiares tinha como motivação o desinteresse que era atribuído à aristocracia romana em gerar filhos legítimos, sem os quais não há garantia de sucessão. Deste modo, a preocupação de Augusto incidia na necessidade da legitimação do principado, uma vez que a manutenção de uma linha sucessória agnática permitia a permanência do poder político nas mãos de uma só domus (casa). Tratava-se, deste modo,

juristas, fragmentos de fontes literárias que fazem alusões às leis, e comentários de estudiosos contemporâneos especialistas nas temáticas abordadas. 3

DIXON, 1992; MILNOR, 2005; SALLER, 1994: 74-101.

de uma reforma de caráter moral, com interesses em assegurar privilégios e fortalecer setores políticos e sociais4. Acredita-se que a ‘Lei Júlia sobre adultério’ foi promulgada no mesmo ano em que também foi promulgada a Lex Iulia de maritandis ordinibus (18 d.C.). Alguns anos mais tarde, foi aprovada a Lex Papia-Poppaea (9 d.C.), que, em resposta à insatisfação de parte da aristocracia frente à legislação, modificava alguns pressupostos da Lex Iulia de maritandis ordinibus. Em conjunto, estas três leis visavam a incentivar casamentos entre a aristocracia, promover a natalidade, e inibir adultérios. Entre outras medidas, a legislação declarava que todos os cidadãos com a faixa etária entre vinte e cinquenta anos deveriam estar casados. Os celibatários e aqueles casados, mas que não tinham filhos, eram penalizados financeiramente. Os que tinham no mínimo três filhos gozavam de privilégios. Casamentos entre membros da ordem senatorial com libertos eram proibidos. Ofensas sexuais consideradas como stuprum (sexo ilícito), como por exemplo, relação sexual com uma mulher solteira de status respeitável, ou seja, pertencente à aristocracia, também recebia punição de acordo com a lei sobre adultério. Apesar de o casamento em questão se tratar de relações monógamas, nota-se que não havia incompatibilidade com a atividade sexual polígama masculina. Aos homens era permitido, por exemplo, estabelecer concubinato e/ou manter relações sexuais com escravas ou prostitutas. A legislação de Augusto não pretendia modificar tais costumes, apenas reconhecia o casamento como uma instituição fundamental, pois em torno dele se estruturava a família e o direito à propriedade5. Fontes literárias contemporâneas e posteriores à promulgação das leis - e a própria publicação da Lex Papia-Poppaea - demonstram exemplos de insatisfação ou apoio à política de Augusto. Estas mesmas fontes demonstram, também, que a aplicabilidade da lei pode ter sido instável e irregular6. E, ainda, estas mesmas fontes apontam para uma diversidade de padrões e comportamentos sexuais em Roma. Nota-se que não há consenso.

Susan Treggiari argumenta que Augusto, ao promulgar leis com objetivo de reforçar os laços familiares da aristocracia, intentava assegurar o provimento de homens para o exército e administração do império, dando, assim, continuidade aos privilégios da aristocracia, preservando suas dignidades e propriedades. (TREGGIARI, In: BOWMAN et alii, 1996: 889). Deste modo, a manutenção de uma linha sucessória agnática se relacionava com a legitimação do principado por meio da garantia de sucessão no interior da domus governante; e por meio da conservação de uma aristocracia necessária ao império. 5 FINLEY, In: McCLURE, 2002: 151. 6 Tácito, por exemplo, em Anais, III, 25, indica que a Lex Iulia de maritandis ordinibus não tornou os matrimônios mais frequentes, e serviu, apenas, para engrossar o erário com as confiscações dos patrimônios 4

Uma boa parte destes padrões são inspirados no mos maiorum (costumes dos antigos). Observa-se que as leis de Augusto vão ao encontro destes padrões, uma vez que a reforma proposta por este imperador buscava uma reestruturação da república por meio de um retorno ao passado, por meio de uma valorização de princípios morais que demonstrassem romanidade7. A promulgação da lei e a forte presença dos ideais morais, ao revelarem uma preocupação em regular a prática do adultério, evidenciam que este era um tema polêmico. A controvérsia é ainda enfatizada quando se leva em consideração a variedade de comportamentos e padrões sexuais aceitáveis envolvendo a prática do adultério. 2. O adultério e a ‘Lei Júlia sobre adultério’ na Historiografia A historiografia mais recente sobre o tema menciona as contradições a respeito da prática e da concepção do adultério presentes, principalmente, nas fontes de naturezas literárias e jurídicas, ao mesmo tempo que reconhece uma carência de discussões. Amy Richlin, por exemplo, em um capítulo de livro intitulado “Approaches to the sources on adultery at Rome”, ao elencar estas fontes e apontar algumas contradições, indica que um desafio seria desenvolver análises preocupadas em explorá-las como um todo, procurando conciliar seus diferentes gêneros literários com a realidade política e social romana. Para Richlin, estudos pautados em apenas um grupo restrito de fontes, como, por exemplo, estudos que se concentram nas fontes jurídicas ou em um gênero literário específico, como as sátiras, incorrem no risco de atingir uma compreensão superficial e falsa sobre a complexidade do adultério8. Dois anos depois, em um outro capítulo de livro, intitulado “The evidence on the circumstances surrounding adultery at Rome”, a autora insiste na necessidade de abordagens mais completas e assinala que o material disponível sobre o adultério aponta para pontos importantes a respeito das relações entre os gêneros, principalmente relacionadas ao casamento romano9. Entretanto, apesar dos esforços de Richlin em destacar o adultério como tema potencial para os estudos sobre a sociedade romana, poucas foram as hipóteses intentadas a fim de estimular um debate. Observa-se que não há uma bibliografia específica dedicada ao tema do adultério. Existe um grande número de artigos e capítulos de livros acerca da das vítimas, e alimentar a ganância dos inúmeros delatores, estimulados a fazer denúncias, uma vez que recebiam parte da propriedade confiscada. 7 EDWARDS, 1993: 34. 8 RICHLIN, In: FOLEY, 1981: 396. 9 RICHLIN, 1983: 218.

‘Lei Júlia sobre adultério’, e da legislação de Augusto, porém, nenhum livro contendo um estudo sistemático e mais completo a respeito, não só das implicações da lei, como também da prática e das concepções do adultério. As poucas hipóteses encontram-se diluídas em estudos sobre a moralidade, a sexualidade, a família, e as mulheres romanas, além dos inúmeros estudos sobre legislação. Desta forma, inserido em pesquisas diversas, o tema do adultério permeia vários debates, como por exemplo, a respeito das leis, punições e direito romano; da relação entre público e privado, ou entre a moral e a política; acerca dos padrões e condutas sexuais; sobre a constituição da família, ou o papel das mulheres. É, portanto, um tema ao mesmo tempo, muito e pouco estudado. Além disso, mostra-se como um ponto chave, na medida em que reúne uma multiplicidade de fontes e abordagens. Estudos publicados na primeira metade do século XX foram importantes em assinalar o caráter controverso do tema, entretanto, observa-se que ainda demonstravam resquícios das abordagens moralistas do século XIX, travando a formulação de hipóteses mais razoáveis com relação, principalmente, à sexualidade e às mulheres. Um exemplo é a interpretação de Percy Corbett (1930), que considera que a promulgação da ‘Lei Júlia sobre adultério’, além de se mostrar uma evidência do adultério como prática corriqueira em Roma durante o final da república e início do império, foi também uma resposta “necessária” à crescente “imprudência” das mulheres10. Estudos publicados na segunda metade do século XX refletem avanços e discussões advindas do movimento feminista. Estes estudos foram de fundamental importância para o desenvolvimento de temáticas e abordagens concernentes à História das mulheres (ou História do Gênero), porém, nota-se que há um esforço, por parte de alguns autores, em assinalar uma semelhança entre tipos de comportamento feminino da Antiguidade e os movimentos de liberação feminina atuais. Sarah Pomeroy, por exemplo, associa o adultério à liberdade sexual, e apresenta as adúlteras como representantes do amor livre, buscando expor os fatores políticos e sociais que permitiram esta condição11. Beryl Rawson aponta para a prática do adultério pela mulher romana como uma busca por igualdade de direitos entre os gêneros12. Nota-se, também, que grande parte das pesquisas mais recentes - publicadas a partir da década de noventa, e que, de alguma maneira, abordam o adultério em Roma - indicam CORBETT, 1930: 130. POMEROY, 1976: 149. 12 RAWSON, 1986: 27. 10 11

caminhos para a compreensão das relações de gênero por meio deste tema, entretanto, sem fazer uso direto de teorias da história do gênero, ou sem explorá-las de maneira mais consistente. Por outro lado, aqueles que enfatizam o gênero, não analisam o adultério de forma mais completa.13 Entre os estudos mais recentes, um que indica direções para a compreensão das relações de gênero por meio do tema do adultério, é o de Rebecca Langlands (2006), intitulado Sexual Morality in Ancient Rome. Esta autora aponta a pudicitia (e seu oposto, a impudicitia) como um conceito ético chave para o entendimento da moral romana, justamente por estar relacionado ao comportamento masculino e feminino. A pudicitia é considerada como um conceito específico da sociedade e cultura romana, e relaciona-se não só ao comportamento sexual, mas também a outros setores do campo ético, como, por exemplo, a religião, o consumo de comidas e bebidas, a acumulação de riquezas, etc14. Considerada, também, como uma das principais virtudes femininas, em alguns contextos a pudicitia poderia indicar integridade moral e física15. O caráter moral e físico da pudicitia se torna evidente quando a compreendemos como um conceito subjetivo e um atributo do corpo. Representa um conceito subjetivo na medida em que a busca por esta virtude revela uma força de natureza moral que conduz ações individuais e, um atributo do corpo, porque era este que devia ser controlado e protegido. A proteção da pudicitia envolve aqueles que estão próximos ao corpo que deve ser guardado. Esperava-se que os homens, principalmente aqueles que possuíam mulheres sob sua tutela, zelassem pela pudicitia delas16. Nota-se que a ‘Lei Júlia sobre adultério’ reforça esta expectativa. De acordo com a lei, o marido de uma adúltera tinha a responsabilidade de pedir o divórcio e denunciar a esposa dentro de um período de 60 dias. Durante este prazo, somente o marido ou o pai poderiam fazer a denúncia. Passado o prazo, este direito se tornava acessível a terceiros, que, obtendo testemunhas, poderiam delatar o adultério em um período de até 5 anos. O marido que não se divorciava de uma mulher adúltera podia ser processado por conivência

Como, por exemplo, o estudo de Kristina Milnor sobre a reforma de Augusto e a redefinição do conceito de privado durante o período da dinastia Júlio-Cláudia; e a tese de Ana McCullough, a respeito das construções dos gêneros por meio da organização do espaço público e das imagens das mulheres. Cf. MILNOR, 2005; MCCULLOUGH, 2007. 14 Para uma definição mais completa do conceito pudicitia, ver: LANGLANDS, 2006: 2-3. 15 LANGLANDS, 2006. 16 LANGLANDS, 2006: 93; JOSHEL, In: MCCLURE, 2002: 174; DIXON, 2001: 50. 13

com a prostituição (lenocinium). Desta forma, a lei constrangia e pressionava o marido a supervisionar e regular o comportamento sexual da esposa. Embora constrangimentos fossem impostos a ambos, homens e mulheres, é importante notar que a lei evidencia uma distinção entre o comportamento daqueles que deveriam controlar (o paterfamilias) e aqueles que deveriam ser controlados e estar sob tutela17. Deste modo, comunica aspectos das relações de gênero e das construções do masculino e do feminino informados, e talvez, reforçados, pela legislação. Um dos estudos, que aborda o adultério em Roma, considerado como mais expressivo, e que tem influenciado as pesquisas atuais, é o de Catharine Edwards, publicado em 1993. Embora a preocupação central de Edwards seja não as relações de gênero, mas sim a conexão entre a concepção de imoralidade e a política, a autora aponta hipóteses interessantes a respeito do adultério e de suas implicações para a noção de masculino e feminino. Inicialmente, Edwards questiona o status de mulheres classificadas como adúlteras e inclui a simbologia como variável para análise, uma vez que o adultério fazia parte da inventiva retórica. A autora argumenta que, em muitas fontes de natureza literária, adúlteras nem sempre devem ser consideradas como personagens reais, mas sim metáforas de desordem política e social. Edwards chama atenção para a apreensão do valor simbólico da lei de Augusto, uma vez que a reforma moral intentada pelo imperador visava promover um regime autocrático e, dessa forma, transmitir uma mensagem de ordem política e social, necessária à legitimação da nova forma de governo18. Para Edwards, é possível notar balizas do masculino e do feminino se delinearem quando se apreende uma certa duplicidade do adultério para a sociedade romana. Se por um lado, o adultério, cometido pela mulher, é associado a disrupções sociais e políticas; por outro lado, o adultério quando cometido pelo homem, pode estar vinculado ao poder e à masculinidade, de forma positiva. Deste modo, a autora indica, também, caminhos para compreender o papel contraditório desempenhado pelo próprio Augusto, uma vez que este teria cometido adultérios, inclusive, ao se relacionar com Lívia, sua segunda (ou terceira) esposa, antes dela ter se divorciado de seu marido anterior19. Edwards aponta para uma LANGLANDS, 2006: 20. EDWARDS, 1993: 36. 19 Suetônio, na biografia que escreveu sobre Augusto, indica o adultério de Augusto com Lívia e descreve também, outros adultérios cometidos por Augusto. Entretanto, na biografia sobre o imperador Tibério, Suetônio afirma que Lívia foi dada a Augusto, pelo seu marido anterior, como parte de um acordo de paz. 17 18

associação entre poder político e sexual, como duas categorias que se reforçam no campo da masculinidade20. Em certas circunstâncias, o adultério designava virilidade e superioridade política. Os adultérios cometidos por Augusto poderiam ser, então, uma prática aceitável, principalmente entre os homens; primeiro, por projetar a virilidade dele e, segundo, como ressalta Suetônio, porque o imperador teria cometido adultério não por luxúria (libidines), mas por razões políticas (ratione) (Suet. Aug., 69). Neste sentido, considerando as fronteiras da masculinidade no âmbito político, Edwards questiona se o episódio de Júlia – a única filha de Augusto, banida em 2 d.C., acusada de adultério – significou uma ofensa à virilidade do imperador. Nota-se que a autora busca apresentar uma análise que conjuga retórica e prática política. Deste modo, apoia sua hipótese na associação entre a conivência com o adultério e a falta de virilidade e autoridade, ideia muito presente nas fontes literárias21. Seguindo esta mesma linha de interpretação, Sandra Joshel, em artigo publicado dois anos depois que o estudo de Edwards, analisa a caracterização de Messalina, esposa do imperador Cláudio (41-54 d.C.) e uma das “adúlteras” mais famosas dentre as mulheres da dinastia Julio-Cláudia. Joshel identifica, na personagem de Messalina assim como apresentada por Tácito e Juvenal22, indícios de um discurso senatorial pautado por insatisfação frente ao imperador. Os inúmeros adultérios de Messalina e a ignorância ou conivência de Cláudio, ressaltam a falta de virilidade do imperador, incapaz de manter a ordem e a hierarquia dentro de sua domus. O comportamento de Messalina, desta forma, ao simbolizar excesso e desordem, enfatiza o caráter fraco de Cláudio e faz parte da elaboração de críticas a este23. As hipóteses de Edwards e Joshel, indicando adúlteras como símbolos de desordem, levam-nos a indagar sobre as implicações do adultério na duplicidade de representações femininas relacionadas à política imperial. Tal duplicidade se encontra no

Afirma, também, que Livia estava no final de uma gravidez quando se casou com Augusto. Cf. Suet., Aug., LXIX, e Tib., IV, 3. 20 EDWARDS, 1993: 47-48. 21 EDWARDS, 1993: 62. Elaine Fantham, em sua biografia sobre Júlia, apresenta uma interpretação parecida com aquela de Rawson, e indica que a desobediência de Júlia frente à legislação promulgada pelo seu pai, representou uma tentativa dela em expor a hipocrisia de Augusto e reivindicar igualdade quanto à liberdade sexual entre os gêneros. Cf. FANTHAM, 2006; RAWSON, 1986. 22 Tácito, Anais, livro XI, e Juvenal, Sátiras, VI. 23 JOSHEL, 1995.

fato de que as mulheres da domus Caesarum (casa dos Césares) foram representadas não só como símbolos de desordem, mas também como símbolos de ordem política24. As mulheres da dinastia fundada por Augusto, a dinastia Júlio-Cláudia, cumpriram papel fundamental na transmissão e legitimação de poder, através da geração de filhos legítimos e estabelecimento de casamentos com fins políticos. Observa-se que, com a mudança do regime republicano para o imperial, as mulheres da domus Caesarum passaram a ocupar estas funções, que são próprias das mulheres em regimes monárquicos. Eram, portanto, peças essenciais para a construção de um ideal dinástico, na medida em que determinavam a descendência. Neste sentido, nota-se, através de uma breve análise de fontes materiais, como estátuas e moedas que transmitiram retratos destas mulheres foram veiculadas de modo que representavam uma composição da familia imperial. Desta forma, representações delas fizeram parte dos ideais de Augusto em projetar uma só domus como um núcleo governante, auxiliando no processo de legitimação do regime25. Neste sentido, fica clara a relação entre o comportamento feminino e a manutenção de uma ordem política. A conduta delas dizia respeito à identidade da domus a que pertenciam. Neste caso, o controle do corpo feminino implica em um controle do corpo político. Mulheres da domus Caesarum, se cometiam adultério, colocavam os homens e a ordem política vigente em risco, por pelo menos dois motivos: porque desta forma atribuíam incerteza quanto à geração de herdeiros legítimos; e, principalmente porque por meio do adultério poderiam estabelecer conexões com outras domus, participar de conspirações e transmitir legitimidade política a rivais. Além disso, nota-se que, ao cometer adultério, essas mulheres ofendiam a honra da domus, o que implica na desonra dos membros masculinos de sua família26. Papinian, na Collatio legum Mosaicarum et Romanarum, 4, 11, 1, indica que o adultério era uma ofensa à domus, por meio da expressão: ‘iniuriam laesae domus’. As representações de adúlteras como símbolos da desordem, além de revelar temores masculinos, apontam para relações entre práticas retóricas e políticas27. Mulheres que cometem adultérios são apresentadas segundo estereótipos que demonstram inversão

FANTHAM, 1994: 307. CORBIER, 1995: 178-193. 26 TREGGIARI, 2002: 83. 27 Importante lembrar que as fontes literárias evidenciam preocupações masculinas, uma vez que todas as fontes preservadas foram escritas por homens. Nada do que foi escrito por mulheres durante o período da dinastia Júlio-Cláudia chegou até nós. Este fator dever ser considerado como elemento importante na caracterização dos gêneros. 24 25

daquele que associa a mulher à ordem imperial, o estereótipo da matrona romana. Nesta inversão, nota-se uma clara contraposição de vícios e virtudes, de forma que a associação da figura da matrona à ordem imperial, e a valorização de suas virtudes, influencie na composição de seu reflexo invertido, a adúltera viciosa, fator de desordem28. Observa-se que estudos que exploram o sentido metafórico da adúltera como indicador de desordem, assim como aqueles que apontam a inversão, tendem a generalizar as implicações do adultério envolvendo o feminino. O adultério, quando praticado pela mulher, nem sempre apresenta caráter de desordem. Uma hipótese é que a prática do adultério, seja por homens ou mulheres, como estratégia de aquisição de poder, ou como forma de conexão de caráter político é mostrada, e pode ser observada, com ambivalência, dependendo da intenção e do efeito do ato. Os adultérios de Agripina Menor (mãe de Nero), por exemplo, são classificados por Tácito como aceitáveis quando comparados aos de Messalina, porque os daquela tinham motivação política, enquanto que os desta última eram somente para satisfazer desejos sexuais (Tac. Ann., XII, 7). Cabe dizer também que do mesmo modo que o adultério era utilizado para aproximações e estabelecimentos de vínculos políticos, era também utilizado para removêlos. Acusações de adultério faziam parte da inventiva retórica e da artilharia de processos de difamação e eliminação de rivais políticos. Verdadeiras ou não, acusações de adultério, por meio da ‘Lei Júlia sobre adultério’, serviam como instrumento para afastar concorrentes políticos e garantiam vantagens financeiras ao delator, uma vez que, segundo a lei, este recebia parte do patrimônio confiscado dos acusados29.

3. A questão do público e privado na historiografia acerca da ‘Lei Júlia sobre adultério’ A bibliografia a respeito da Lei Júlia sobre o adultério é extensa. Grande parte desta bibliografia considera que esta lei representou uma invasão no âmbito privado, uma vez que trouxe para o âmbito público algo que, durante o período republicano, era tratado de forma privada. O principal argumento que sustenta este ponto de vista é que, antes da lei o julgamento dos adúlteros era de responsabilidade do paterfamilias, ou seja, do pai ou marido

FISCHLER, 1994: 115-133. RUTLEDGE, 2001: 54; EDWARDS, 1993: 62. Assim como acontecia com a Lex Iulia de maritandis ordinibus. 28 29

da adúltera; com a promulgação da lei foi instituída uma corte permanente (quaestio perpetua) para julgar os casos de adultério e stuprum (sexo ilícito). Apesar de concordar parcialmente com esta ideia, eu entendo que, ao considerar a lei como invasão no âmbito privado, a historiografia cria e mantém uma noção de ruptura que prejudica um pouco a compreensão da dinâmica e funcionamento da ‘Lei Júlia sobre adultério’. Alem disso, creio que as categorias de ‘público’ e ‘privado’, utilizadas para caracterizar tal ruptura, estão impregnadas com uma pequena dose de anacronismo. A fim de averiguar se houve ou não uma ruptura, veremos agora algumas referências sobre a existência de leis anteriores a ‘Lei Júlia sobre adultério’. A principal dificuldade de estudar os antecedentes desta lei reside no fato de que todas as referências sobre as leis anteriores são, ou contemporâneas a Augusto, ou posteriores30. Não existe nada do período republicano, nem mesmo na parte preservada das doze tábuas. As referências contemporâneas a Augusto se encontram em Dionisio de Halicarnasso e Tito Lívio. No livro II de Antiguidades Romanas, Dionísio menciona que Romulo considerava o casamento uma união definitiva e indissolúvel e por isso determinou que o marido não poderia repudiar sua esposa em caso de adultério, entretanto criou uma lei que permitia ao marido matar a esposa, caso ela fosse pega em adultério, ou bebendo vinho. Segundo Dionísio, Romulo considerava que estas eram as ofensas mais graves das mulheres, uma vez que o adultério poderia ser considerado como o princípio de uma ‘loucura temerária’, e o ato de beber vinho poderia incitar o adultério. Tito Lívio, na História de Roma, relata dois episódios isolados. No livro X, o historiador narra que no ano de 295 a.C., Quintus Fabius Gurges, filho do cônsul, condenou algumas matronas acusadas de adultério a pagar uma multa cujo montante foi utilizado para construir um templo a Vênus. No livro XXV, Tito Lívio menciona que no ano de 213 a.C., outras matronas foram acusadas por ediles plebeus em público, e foram exiladas. Como fontes posteriores que indicam a existência de regulamentações de punições de adúlteros no período monárquico ou republicano de Roma, temos uma passagem dos Anais, de Tácito, um trecho da biografia de Rômulo, escrita por Plutarco e uma menção do jurista Paulo. Dionísio de Halicarnasso, Antiguidades Romanas, II, 25; Tito Lívio, História de Roma, X, 31, 9; XXV, 2, 9; Tácito, Anais, II, 50; Plutarco, Romulus, 22, 3; Collatio legum Mosaicarum et Romanarum, 4, 2, 2. 30

Nos Anais, Tácito relata que Apuleia Varília, sobrinha neta de Augusto, acusada de crime de lesa-majestade e de adultério em 17 d.C., teve sua punição amenizada a pedido de Tibério. Segundo o historiador, o imperador resolveu não aplicar a lei Júlia e optou por seguir um costume dos antigos, condenando Apuleia a ser mantida, pelos seus parentes, afastada a mais de 200 milhas de Roma. Em sua biografia de Rômulo, Plutarco relata que o fundador de Roma criou uma severa lei que proibia a esposa de repudiar o marido em qualquer circunstância, e determinava que o marido só poderia repudiar sua esposa em três situações (ou quatro dependendo da tradução): se a mulher simulasse parto, se utilizasse de veneno para matar uma criança31, se utilizasse chaves falsas, ou se cometesse adultério. Nota-se que Plutarco contradiz Dionisio de Halicarnasso, que diz que Rômulo não permitia que o marido repudiasse a esposa por adultério. Na Collatio legum Mosaicarum et Romanarum (Compilação de leis judaicas e romanas do final do século quarto ou início do quinto) o jurista Paulo inicia seu comentário a respeito da ‘Lei Júlia sobre o adultério’ indicando que o texto da lei, o qual teve acesso, começa com uma enumeração das leis anteriores à esta. As conclusões que por hora podemos tirar desse pequeno mosaico de referências é que, de fato, existiram regulamentações e punições anteriores à Lei Júlia, mas que variaram conforme o tempo. Tais regulamentações, no entanto, evidenciam mais continuidades que rupturas. Ao que parece, alguns costumes a respeito das punições de adúlteros foram incorporados na ‘Lei Júlia sobre adultério’, de modo mais estrito e regulado. Sobre o direito de matar os adúlteros, por exemplo, a lei permitia ao pai matar ambos, a filha e o adúltero. Entretanto, ele devia matar os dois, pois se matasse somente o homem, era acusado de assassinato. O marido não podia matar a esposa de maneira alguma, e só podia matar o adúltero se ele fosse um escravo ou um indivíduo que ocupasse uma posição social inferior, como, por exemplo, um ator ou gladiador. A opção pela morte só se justificava se os adúlteros fossem pegos in flagrante delicto e dentro da casa do pai ou do marido32. A respeito das referências sobre as leis criadas por Rômulo, de Dionísio de Halicarnasso e Plutarco, alguns autores, como Volterra, defendem que são baseadas em

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Alguns tradutores interpretam como aborto. RICHLIN, 1983: 215-219; BAUMAN, 1996: 32-33; GRUBBS, 2002.

criações da própria época de Augusto33. Sobre isso, é impossível ter certeza, entretanto estas fontes são importantes para compreendermos como Augusto procurou se associar à figura de Rômulo. Isto faz sentido uma vez que este imperador se colocava como o refundador da república. Que, inclusive, era uma posição que suscitava expectativas quanto à manutenção da ordem política por meio de regulamentações que visavam até mesmo o controle do ambiente doméstico, por se entender que a administração da res publica dependia das casas34. De certo modo, esperava-se, então, que Augusto interferisse na conduta sexual e na dinâmica dos casamentos com fins de projetar uma ordem. Esta ideia se encontra em Dionísio de Halicarnasso. No capítulo anterior ao sobre as leis criadas por Rômulo, o autor menciona que quem tem uma mente política deve legislar se preocupando com a ordem no ambiente doméstico35.

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VOLTERRA, 1960: 62. TREGGIARI, In: BOWMAN et alii, 1996: 885. Dionísio de Halicarnasso, Antiguidades Romanas, II, 24, 2.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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