“Shaolin à Brasileira” - Estudo sobre a presença e a transformação de elementos religiosos orientais no Kung-Fu praticado no Brasil

June 13, 2017 | Autor: Rodrigo Apolloni | Categoria: China studies, Tai Chi Chuan, Kung Fu, Qigong, chi kung, shaolin
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RODRIGO WOLFF APOLLONI

“SHAOLIN À BRASILEIRA” ESTUDO SOBRE A PRESENÇA E A TRANSFORMAÇÃO DE ELEMENTOS RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL

SÃO PAULO 2004

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RODRIGO WOLFF APOLLONI

“SHAOLIN À BRASILEIRA” ESTUDO SOBRE A PRESENÇA E A TRANSFORMAÇÃO DE ELEMENTOS RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL

Dissertação apresentada como requisito parcial para avaliação do Curso de PósGraduação Stricto Sensu (Mestrado), em Ciências

da

Religião,

da

Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo. Orientador: Prof. Doutor Frank Usarski.

SÃO PAULO 2004 2

Para meus pais, Carlos Antônio e Brigitte. Para todos os praticantes de Kung-Fu.

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AGRADECIMENTOS Para muitas pessoas, o “símbolo máximo” da marcialidade oriental é a figura do venerável mestre. É representado como um indivíduo especial, capaz de derrotar um exército e, ao mesmo tempo, de dedicar boa parte de seu tempo a coisas singelas, como brincar com um cão abandonado ou tocar flauta à sombra de uma árvore. Durante a realização deste trabalho, confesso, procurei simbolicamente por essa figura. A vida, porém, nem de longe se aproxima das brumosas ermidas taoístas ou das notas cavas de uma venerável flauta shakuhachi. Apesar disso, posso afirmar que a encontrei. Ela está presente, de uma forma ou de outra, em todas as pessoas que possibilitaram a realização deste trabalho. Gostaria de agradecer, inicialmente, a meu orientador, Professor Frank Usarski, que em 2002 teve a consideração de responder a um e-mail “esotérico” enviado por um desconhecido e que, desde então, foi meu mestre na senda do conhecimento acadêmico. Agradeço, também, aos pesquisadores Meir Shahar, Stanley Henning, Dian Murray e Sônia Maria de Freitas, por suas preciosas informações; aos mestres e professores de Kung-Fu Chan Kowk Wai, Lee Chung Deh, Jorge Jefremovas, Rogério Leal Soares, Dirceu Coelho e Eliane Pontes Cardoso, por mostrarem que, em pleno século XX, é possível fazer da arte marcial chinesa um caminho de vida; a seus alunos, que tão prontamente atenderam à solicitação de uma entrevista. Ao mestre acupunturista Pan Yi Bo, por seu generoso auxílio na tradução de ideogramas e termos religiosos chineses. Agradeço, também, aos amigos Clodoaldo e Helvânia, pela amizade dispensada ao “forasteiro” de Curitiba. A minha família, pelo carinho e pela paciência de escutar, centenas de vezes, as mesmas histórias sobre guerreiros e heróis das dinastias Ming, Tang, Sui, etc. A Fernanda, com quem dividi impressões, preocupações, ira, amor e surpresa diante do desafio de se fazer mestre - sem perder a vontade de tocar flauta. iv

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SUMÁRIO RESUMO......................................................................................................................09 ABSTRACT..................................................................................................................10 1. INTRODUÇÃO - “Kung-Fu Brasileiro: Chutes à Moda Chinesa na Terra do Futebol” ................................................................................................................ 11 2. DOS BRONZES DE SHANG AOS TURISTAS DE SHAOLIN: As Artes da Guerra e a “Religiosidade Marcial” no Contexto Histórico Chinês.......................20 2.1 Considerações Preliminares...................................................................................20 2.2 Uma “linha do tempo” para a arte marcial chinesa.................................................20 2.2.1 Primórdios: de Shang à Era dos Reinos Combatentes.......................................24 2.2.2 O Budismo e a "origem religiosa" das artes marciais chinesas...........................25 2.2.3 O Mosteiro de Shaolin – considerações preliminares..........................................29 2.2.3.1 Fundação, patrocínio e tensões políticas..........................................................30 2.2.3.2 Dinastia Tang: o “primeiro sangue” de Shaolin..................................................31 2.2.3.3 Expressões da marcialidade em Shaolin durante a passagem Ming-Qing......................................................................................................................33 2.2.3.4 Considerações sobre o engajamento militar dos monges de Shaolin no período Ming tardio...................................................................................................34 2.2.3.5 O mosteiro de Shaolin como centro difusor de sistemas marciais..........................................................................................................37 2.2.3.6 Qielan Shen – o bastão de guerra nas mãos da divindade...............................41 2.3 Dinastia Qing e séc. XX - outros estilos e a prevalência da "matriz Shaolin"..........45 2.4 Arte marcial chinesa e modernidade........................................................................49 2.4.1 A visão dos imigrantes chineses acerca dos “velhos métodos”............................51 2.5 Um enfoque complementar: a "arqueologia" dos termos definidores na arte marcial chinesa..............................................................................................................53 2.5.1 A verificação do elemento religioso nos termos identificadores da marcialidade na China...................................................................................................55 2.6 Interpretação dos conteúdos do capítulo.................................................................57

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3. UMA ESPADA NA BAGAGEM: Imigração Chinesa e Transplantação do Kung-Fu de Shaolin para o Brasil...............................................................................59 3.1 Considerações Preliminares.....................................................................................59 3.2 Fontes sobre Imigração Chinesa no Brasil...............................................................60 3.2.1 Imigrantes e Mestres de Kung-Fu..........................................................................61 3.2.2 Hipóteses para a Ausência do Elemento Marcial nos Trabalhos sobre os Chineses no Brasil..........................................................................................................62 3.3 Panorama Histórico da Imigração Chinesa para o Brasil.........................................63 3.3.1 Expansão Colonial e Séc. XIX – Portugal como Ponte entre Brasil e China........67 3.3.2 Segunda Metade do Séc. XX - "Fase 2" da Imigração Chinesa para o Brasil......69 3.4 Interpretação dos Conteúdos do Capítulo...............................................................74 4. DE BRUCE LEE À INTERNET: Representação e Auto-Representação no Kung-Fu Brasileiro......................................................................................................77 4.1 Considerações Preliminares...................................................................................77 4.2 Anos 70 do Séc. XX - O "Primeiro Sangue" do Kung-Fu no Brasil.........................78 4.2.1 "Tranqüilo e Infalível como Bruce Lee"................................................................78 4.2.2 “Kung-Fu” – A Televisão Brasileira como Porta de Entrada para os Monges de Shaolin........................................................................................................80 4.2.3 "The Shaolin Temple" - Beijing adere ao Cinema de Kung-Fu.............................82 4.2.4 Shang-Chi, Yin, Yang e o “Kung-Fu Mental”……………….……………….……....83 4.2.5 Livros sobre Kung-Fu nos Anos 70.......................................................................84 4.2.5.1 "A Sabedoria Kung Fu"......................................................................................85 4.2.5.2 "Kung Fu - Curso Básico de Bastão".................................................................88 4.3 Produtos Culturais Recentes: Passagem para a Auto-Representação...................89 4.3.1 Revistas Especializadas.......................................................................................90 4.3.1.1 "Pragmatismo" x "Tradição" nas Revistas Especializadas Brasileiras..............90 4.3.1.2 “Oriente”............................................................................................................90 4.3.1.3 "Kiai", “Kung Fu Defesa Pessoal" e "Trump!"...................................................93 4.3.2 Apostilas Publicadas por Academias...................................................................96 4.3.2.1 “Kung Fu: Versão Curta de uma História Muito Longa”....................................97 4.3.2.2 Apostila da Associação Sino-Brasileira de Kung-Fu Wu Shu de Florianópolis..........................................................................................................101 vi

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4.3.3 Livros Recentes sobre Kung-Fu Publicados no Brasil......................................104 4.3.3.1 "Kung-Fu Shaolin do Norte - Técnicas Básicas 1º e 2º Kati".........................105 4.3.3.2 "Os Segredos do Kung-Fu"............................................................................107 4.3.4 Sites Brasileiros sobre Kung-Fu........................................................................109 4.3.4.1 Sites Institucionais..........................................................................................111 4.3.4.2 Sites pessoais................................................................................................114 4.4 Interpretação do material apresentado................................................................118 5. OS BUDAS DA ACADEMIA: Interpretação Acadêmica da Iconografia no Universo Semântico do Shaolin Do Norte.......................................................121 5.1 Considerações preliminares................................................................................121 5.1.1 Uma Aproximação Teórica...............................................................................121 5.1.2 A cor e a Moldura do Kung-Fu Praticado no Brasil..........................................122 5.2 "As 18 Câmaras De Shaolin": Construindo um Espaço para a Prática de Kung-Fu...............................................................................................................124 5.2.1 Um Salão Para o Dragão.................................................................................125 5.2.2 Sobre o Pó e os Cheiros das Academias........................................................126 5.2.3 A Arca de Shaolin............................................................................................127 5.2.4 O Gabinete do Venerável Mestre....................................................................129 5.3 A Iconografia Religiosa.......................................................................................130 5.3.1 Vencendo a Barreira dos Ideogramas.............................................................131 5.4 Elementos Iconográficos de caráter Religioso encontrados em Academias......131 5.4.1 Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu...........................................132 5.4.1.1 A Frente da Camiseta: o Brasão...................................................................133 5.4.1.2 As Costas da Camiseta: o Dragão................................................................141 5.4.2 “Placa da Ética e da Ancestralidade”...............................................................144 5.4.3 O Altar..............................................................................................................151 5.4.3.1 Um Conjunto Semântico de Prevalência Confucionista................................154 5.5 Interpretação das Informações do Capítulo........................................................154

6. “PARA CONHECER O FILHOTE DO TIGRE...”: Apresentação e Leitura dos Resultados da Pesquisa de Campo......................................................................156 6.1 Considerações Preliminares...............................................................................156

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6.2 O Universo da Pesquisa....................................................................................156 6.3 O Modelo da Pesquisa.......................................................................................160 6.4 A Construção dos Questionários – Perguntas e Temas....................................161 6.4.1 Entrevistado de Primeira Geração – Grão-Mestre Chan Kowk Wai...............161 6.4.2 Entrevistado de Segunda Geração – Mestre Lee Chung Deh........................166 6.4.3 Entrevistados de Terceira Geração - Professores Brasileiros........................172 6.4.4 Entrevistados de Quarta Geração – Alunos Brasileiros.................................178 6.5 – Interpretação do material apresentado...........................................................184 7. SÍNTESE DOS RESULTADOS DA PESQUISA.................................................185 8. CONCLUSÃO......................................................................................................191 REFERÊNCIAS........................................................................................................206

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RESUMO O presente trabalho de pesquisa procurou investigar as transformações observadas, ao longo do tempo, nos conteúdos de natureza não-corporal (em especial, os religiosos) pertencentes ao universo semântico de uma arte marcial oriental transplantada para o Brasil. A arte marcial pesquisada foi o Kung-Fu do estilo Shaolin do Norte, originária da China e introduzida no país, em 1960, pelo mestre chinês Chan Kowk Wai. Seu principal diferencial em relação às demais artes marciais orientais transplantadas para o Brasil se refere à coexistência de aspectos fundantes étnicos e transculturais. Essa “transplantação de dupla paternidade” – definida pelo ingresso de técnicas corporais tradicionais e de elementos

não-corporais

transculturais



determinou

características

específicas

relacionadas à adoção, entendimento, representação e significação da História, dos mitos de criação e da religiosidade envolvidos com a arte marcial. Para investigar a evolução do “subuniverso Kung-Fu” em seus aspectos não-corporais, buscamos trabalhar com duas linhas, uma de caráter teórico-bibliográfico e, outra, de caráter empírico. A primeira linha relacionou os principais elementos que compõem o “universo teórico” do Kung-Fu, em especial o do estilo Shaolin do Norte: História da arte marcial; relação entre arte marcial e imigração; representação e auto-representação da arte e dos praticantes; iconografia religiosa. A segunda linha se ocupou de investigar as transformações no universo não-corporal do estilo a partir de entrevistas com quatro gerações de praticantes, formadas por dois mestres chineses, dois professores brasileiros e seis alunos brasileiros. O cruzamento das informações permitiu concluir que a arte marcial chinesa praticada no Brasil, principalmente em seu entendimento filosófico, ético e religioso, vem adquirindo características cada vez mais locais. A fim de compreender o porquê dessa transformação e de projetar um cenário futuro do nosso objeto de estudo, fizemos uso de um constructo teórico baseado na chamada “Teoria da Transplantação Religiosa”, de Martin Baumann, e na chamada “Construção Social da Realidade”, de Peter Berger e Thomas Luckmann.

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ABSTRACT This research investigated the transformations observed, through a time frame, the nonphysical contents (especially the religious) regarding the semantic universe of an oriental martial art transplanted to Brazil. The martial art researched was Northern Shaolin Style Kung-Fu, which had originated in China and was introduced in Brazil in 1960, by Chinese master Chan Kowk Wai. The main difference regarding the other oriental martial arts transplanted to Brazil is the coexistence of the founding ethnical and transcultural aspects. This “double paternity transplant” – defined by traditional corporal techniques and non– corporal transcultural elements – determined the specific characteristics regarding the embracing, understanding, representation and meaning of History, creation myths and religiosity involved in the martial arts. To investigate the evolution of this “Kung-Fu subuniverse” in its non-corporeal aspects, we worked in two lines, one of them theoretical-bibliographic and the other one empiric. The first line listed the main elements that constituted the Kung-Fu “theoretical universe”, specially the Northern Shaolin style: Martial Arts History; martial arts and immigration relationship; representation and self-representation of the martial art and its martial artists; religious iconography. The second line investigated the transformations of the style in the non-corporeal universe, through interviews with four generations of martial artists, formed by two Chinese masters, two Brazilian instructors and six Brazilian students. The crossing of information allowed us to conclude that the Chinese Martial Art practiced in Brazil, mainly in its philosophical, ethical and religious understanding, is getting more and more local characteristics. To understand why this transformation happens and project a future scenario of our study aim, we used a theoretical construct based on Martin Baumann’s “Theory of Religion Transplantation” and Peter Berger and Thomas Luckmann’s “Social Construction of Reality”.

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1. INTRODUÇÃO – “KUNG-FU BRASILEIRO: CHUTES À MODA CHINESA NA TERRA DO FUTEBOL” “Everybody was Kung Fu fighting, those jerks were fast as lightning In fact it was a little bit fright'ning, but they fought with expert timing (…)” (“Kung-Fu Fighting”, C. Douglas, 1973)1

Bruce Lee, Jackie Chan, “O Tigre e o Dragão”, “Matrix”, “Kill Bill”, “Tekken”. Nos últimos quarenta anos, a arte marcial chinesa (conhecida no Ocidente como “Kung-Fu”) saltou das telas dos cinemas de Hong Kong para conquistar o mundo. As pessoas podem até não conhecer a fundo esse conjunto de práticas corporais e filosóficas – saber de onde veio ou qual sua História, por exemplo – mas certamente já tiveram em mente o “arquétipo Kung-Fu”: a figura de um oriental sorridente, franzino e conhecedor de uma venerável e terrível arte que, vez por outra, lhe permite despejar socos e chutes “a torto e a direito” contra facínoras de todos os gêneros. Apesar de não possuir Chinatowns e nem uma colônia chinesa das mais expressivas em termos numéricos,2 o Brasil conheceu o moderno Kung-Fu praticamente ao mesmo tempo em que os demais países do Ocidente.3 Por aqui, como em quase todos os lugares fora da China e da grande faixa histórica de concentração de chineses ultramarinos (Sudeste Asiático),

a

aproximação

entre

sociedade

e

marcialidade

chinesa

se

deu,

fundamentalmente, a partir da indústria do entretenimento do século XX (literatura popular, cinema e televisão). Quem, com mais de quarenta anos, não assistiu a pelo menos um episódio da série televisiva “Kung-Fu” - aquela, em que um monge tristonho vagava pelo Velho Oeste dando conselhos aos bons e “porradas” na bandidagem - ou foi convidado para as famosas “sessões Faixa Preta” no cinema? Nos anos 70, o sucesso dos filmes de Bruce Lee – ator sino-americano que viria a se tornar uma espécie de “James Dean da pancadaria” – levou imigrantes chineses conhecedores da arte marcial de seu país a 1

Letra em (c. 02.02.2003). 2 Acredita-se que, atualmente, vivam no Brasil entre cem mil e duzentos mil imigrantes chineses e descendentes (algo entre 0,05% e 0,11% do total da população do país). Em outros países americanos, como os Estados Unidos, Peru e Cuba, essa população é bem mais significativa. 3 Informações de caráter histórico, porém, apontam para um conhecimento “remoto” do termo Cong-Fu: jesuítas franceses o utilizaram para descrever exercícios físicos e respiratórios praticados na China do séc. XVIII. 11

abrirem academias em cidades brasileiras como São Paulo. Hoje, apesar de não haver um registro do número total de praticantes brasileiros, pode-se dizer que o Kung-Fu é praticado em pontos tão remotos dos grandes centros urbanos quanto o Acre e Rondônia. O que vai, porém, na cabeça dos praticantes brasileiros de Kung-Fu - além da técnica marcial pura e de imagens inspiradoras - a respeito de sua arte marcial? É impossível esquadrinhar todo o pensamento de um indivíduo, quanto mais de um grupo deles. Podemos, no entanto, nos arriscar a examinar de perto o “dragão verde e amarelo” e chegar a alguns resultados interessantes. Nossa área é a das Ciências da Religião: o que dizer, pois, do pensamento religioso desses praticantes? A bem da verdade, não desejamos saber se esse aluno é evangélico, aquele católico e um terceiro, judeu ou budista. Buscamos, sim, saber como se dá o contato entre o conjunto semântico da religiosidade brasileira – com sua peculiar característica de inclusão – e os elementos religiosos chineses (taoístas, budistas e confucionistas) presentes na arte marcial. Nossa atenção se voltou para um cenário que inclui uma base étnica - o mestre fundador chinês - e alunos brasileiros. Normalmente, em suas academias, esses transmissores de informações tradicionais oferecem, também, conteúdos ligados às religiões de seu país de origem, principalmente através da iconografia e de histórias que são ouvidas e, com maior ou menor fidelidade, replicadas pelos “jovens gafanhotos”. Que valor esses praticantes dão aos elementos religiosos chineses presentes no Kung-Fu? Qual sua leitura a respeito, por exemplo, dos altares, da queima de incenso e das placas votivas encontradas nas academias? Eles chegam a superar a barreira semântica dos ideogramas? De que forma se referem ao passado histórico da arte praticada? E os mestres chineses, conseguem transmitir, em português, conceitos tão abstratos para a mente ocidental quanto o do Tao e o da iluminação Chan? Essa “religiosidade ancestral” é de corte popular ou erudito? Nossa proposta, nessa dissertação, foi buscar respostas a esses questionamentos. Para tanto, elegemos um grupo específico de praticantes de um estilo tradicional de Kung-Fu nominalmente relacionado a uma religião chinesa, o Shaolin do Norte (Bei Shaolin,

). Shaolin é o nome de um mosteiro budista fundado no ano de 495 d.C.

na província de Henan, no centro-norte da China. Introduzido entre nós pelo imigrante chinês Chan Kowk Wai nos anos 60, o estilo é, atualmente, um dos mais praticados por

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brasileiros, com ramificações (a partir do Brasil) na Argentina, Estados Unidos, Canadá e Espanha. A fim de se obter um quadro mais representativo do pensamento de professores e alunos brasileiros, entrevistamos praticantes em Florianópolis (SC) e Campo Grande (MS) – locais distantes da “base de operações” de Chan Kowk Wai, a cidade de São Paulo. A captação de conteúdos semânticos originários da China e de uma “visão étnica” se deu a partir de entrevistas com dois mestres chineses, um de São Paulo (o próprio Chan Kowk Wai) e um de Curitiba (Lee Chung Deh, responsável direto pela introdução do estilo na Região Sul). Antes de chegar às entrevistas, porém, buscamos nos ocupar de quatro elementos que julgamos indispensáveis para a investigação do universo semântico dos praticantes brasileiros de Kung-Fu: - O primeiro, uma História da arte marcial chinesa, construída a partir de bases acadêmicas, com atenção especial ao “Kung-Fu de Shaolin” (vale observar que estudos acadêmicos a respeito da marcialidade, principalmente os de caráter histórico - ainda são relativamente tímidos no Brasil); - O segundo, o papel da imigração chinesa na transplantação do Kung-Fu para o Brasil; - O terceiro, as fontes de representação/auto-representação encontradas ao longo das últimas três décadas no Brasil (filmes, revistas, sites, livros, músicas, jogos de computador); - E o quarto, um estudo mais aprofundado da iconografia encontrada nas academias brasileiras de Shaolin do Norte. A investigação das fontes acadêmicas nos permitiu estabelecer, inicialmente, os aspectos do Kung-Fu considerados relevantes pelos pesquisadores, principalmente no que se refere ao “mito de criação de Shaolin”, tema central no universo semântico não-corporal dos praticantes, especialmente no estilo Shaolin do Norte. Essa investigação também permitiu determinar o peso da imigração para o estabelecimento da arte marcial chinesa no Brasil, bem como a relação entre a massa de imigrantes estabelecidos no país e o Kung-Fu praticado nas academias.

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A investigação das fontes de representação/auto-representação, por sua vez, permitiu desvendar o papel dos produtos da “cultura de massa” na formação do pensamento éticofilosófico e religioso do Kung-Fu no Brasil. Esta leitura desvendou o contínuo processo de recriação e institucionalização de conteúdos “milenares” – uma espécie de “reconstrução do velho mestre” e de seus aforismos - uma vez que possibilitou observar como os conteúdos de fontes populares influenciam os praticantes e, também, como os praticantes participam na eleição, produção, entendimento e replicação desses conteúdos. Já a pesquisa relativa à iconografia encontrada nas academias permitiu provar a presença e a profundidade de elementos religiosos tradicionais ligados às três grandes religiões que floresceram na China – Taoísmo, Confucionismo e Budismo. As informações obtidas serviram como parâmetro de comparação com os dados sobre essa mesma iconografia obtidos juntos aos professores e alunos brasileiros. O trabalho se justifica, pois, tanto pelo aspecto histórico quanto pelo de observação de como elementos culturais de uma determinada sociedade se comportam quando transplantados para uma sociedade de características religiosas e de visão de mundo muito diferentes. Há que se observar o trabalho, ainda, pelo viés da chamada “religiosidade fragmentária”, isto é, pela análise de como elementos religiosos de uma determinada cultura acabam “contrabandeados” para dentro de outra a partir de atividades aparentemente não relacionadas a qualquer forma de religiosidade. Vale notar, ainda, que o trabalho ajuda a abrir um filão, uma vez que em nosso país não há estudos sobre a marcialidade originária da China dentro das Ciências da Religião e, de modo geral, nas chamadas Ciências Humanas. Por fim, há que se considerar que a pesquisa pode levar temas de reflexão aos próprios praticantes, uma vez que eles serão confrontados com uma abordagem diferente da que estão acostumados, que é baseada, sobretudo, em uma tradição oral enriquecida por informações externas de fontes que, normalmente, não explicitam a origem de seus dados. O universo de entrevistados desta pesquisa foi estabelecido com interesse de determinar se e como os conteúdos religiosos orientais originalmente presentes no Kung-Fu se transformaram no Brasil desde o primeiro contato entre mestres chineses e alunos brasileiros. Para captar essa evolução, chegamos a um grupo de dez pessoas que contempla, em um “microcosmo”, quatro gerações de praticantes: a primeira, formada

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pelo mestre chinês que introduziu a arte marcial no Brasil; a segunda, formada por outro mestre chinês, formado no Brasil pelo mestre anterior e que foi o grande responsável pela difusão do Shaolin do Norte fora de São Paulo; a terceira, formada por dois professores brasileiros do mestre chinês de segunda geração; e a quarta, formada por seis alunos brasileiros desses professores. A fim de chegarmos às respostas, dividimos o problema de pesquisa em quatro blocos distintos, dos quais três são de caráter bibliográfico e um de caráter empírico. Essa divisão tomou como referência os elementos enunciados nos parágrafos anteriores. Assim, o primeiro deles, formado pelos capítulos dois (“As artes de guerra e a ‘religiosidade marcial’ no contexto histórico chinês”) e três (“Uma Espada na Bagagem: imigração chinesa e transplantação do Kung-Fu de Shaolin para o Brasil”), buscou abranger, num primeiro momento, o desenvolvimento histórico da arte marcial na China e suas relações com o Taoísmo e o Budismo. No segundo momento, buscou examinar o papel da imigração chinesa para a difusão Kung-Fu no Brasil e determinar o papel do elemento étnico nesse universo semântico e de relações humanas. O segundo bloco, formado pelo capítulo quatro (“De Bruce Lee à Internet: representação e auto-representação no Kung-Fu brasileiro”), buscou examinar produtos brasileiros decorrentes da “invasão da arte marcial chinesa” verificada na primeira metade da década de 70. Procuramos determinar a origem das primeiras informações “filosóficas” sobre arte marcial chinesa que chegaram ao Brasil, assim como o momento de substituição de conteúdos “alienígenas” sobre Kung-Fu por conteúdos locais, ou seja, informações derivadas do entendimento de brasileiros que se tornaram praticantes. Ainda dentro desse bloco, buscamos examinar o resultado da replicação de informações dentro do universo brasileiro de Kung-Fu, procurando compreender como se dá a transmissão de dados e também a consolidação de certos mitos e tradições da arte marcial chinesa. O terceiro bloco, formado pelo capítulo cinco (“Os Budas da Academia: interpretação acadêmica da iconografia religiosa encontrada no universo semântico do Shaolin do Norte”), buscou identificar os elementos gerais e os de caráter religioso encontrados nas academias brasileiras de Shaolin do Norte, conferindo a esses conteúdos uma leitura acadêmica. Em um primeiro momento buscamos apresentar um “cenário médio” das academias de Shaolin do Norte para, a seguir, identificar e “traduzir”, a partir de uma

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leitura acadêmica, os elementos religiosos orientais presentes nesses ambientes. Os dados obtidos nessa parte da pesquisa funcionaram para identificar traços do Budismo, Taoísmo e Confucionismo dentro da iconografia do estilo Shaolin do Norte e, também, como um referencial para determinar o grau de transformação sofrido por esses conteúdos dentro do universo semântico dos praticantes brasileiros. O quarto bloco, formado pelo capítulo seis (“Para conhecer o filhote do tigre...” – Apresentação e leitura dos resultados da pesquisa de campo), trouxe um conjunto de informações obtido a partir da sistematização dos conteúdos das entrevistas; esse conjunto foi construído a partir da apresentação e cruzamento dos dados obtidos junto aos mestres chineses, professores brasileiros e alunos. Estabelecidos os quatro blocos de desenvolvimento da dissertação, pudemos concluir o trabalho determinando a validade das hipóteses iniciais (geral e particulares) de trabalho. A conclusão também permitiu inferir, a partir do estilo que foi objeto de pesquisa, um quadro futuro para o Kung-Fu brasileiro em relação a seus conteúdos não-corporais (religiosos, históricos e filosóficos). Em nosso projeto de pesquisa elencamos uma hipótese “geral” ou “fundamental” de trabalho, que foi desmembrada em seis hipóteses “particulares”. Partimos da hipótese geral de que O Kung-Fu praticado no Brasil teve seu universo semântico não-corporal condicionado por fatores que implicaram em uma valoração e em um entendimento particulares, por parte dos praticantes locais, dos elementos da religiosidade chinesa associados à prática marcial original. A formatação desse “Kung-Fu à Brasileira” decorreu de um processo que envolveu as fontes, a forma de transmissão e a compreensão dos conteúdos religiosos, filosóficos e históricos que compõem o universo semântico não-corporal da arte marcial chinesa. Decorreu, também, do interesse dos mestres chineses e dos praticantes brasileiros em difundir/valorizar tais conteúdos.

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Essa hipótese geral só pôde ser confirmada/negada a partir da verificação das seis hipóteses particulares, que são: a) - A prevalência de uma tradição oral centrada no valor atribuído à informação do “mestre” (chinês ou brasileiro), a ausência de obras acadêmicas sobre arte marcial chinesa, a obtenção empírica de conhecimentos e, principalmente, a forte presença de conteúdos não-corporais sobre Kung-Fu em produtos da indústria cultural (a partir dos anos 70), implicaram na formação de um universo semântico não-corporal sui generis, moderno e de fulcro transcultural. b) - A dificuldade de acesso a informações originárias da China, assim como de entendimento dos dados culturais daquele país, levaram os praticantes locais a buscar informações “extra-academia” - em livros, revistas, filmes e internet. Tais informações teriam por fim sacramentar as atividades desenvolvidas nas academias como arte marcial “de fato”,4 ou seja, como prática de agressão transformada em “caminho de vida” por meio da inserção de fatores éticos e de caráter legitimador. c) - As diferenças culturais existentes entre os mestres chineses que chegaram ao Brasil e os praticantes brasileiros (a começar pelo idioma) teriam criado uma “barreira semântica” que dificultou a transmissão de valores religiosos e ético-filosóficos que, originalmente, formavam o “substrato espiritual” do Kung-Fu. d) – A ausência de uma colônia chinesa numericamente expressiva no Brasil e a falta de interesse dos próprios chineses em conhecer a arte marcial de seu país de origem implicaram em um “esvaziamento étnico” no Kung-Fu brasileiro. Esse esvaziamento teve como principal conseqüência uma apropriação, por parte da população local, da arte marcial chinesa, com conseqüências diretas para seus conteúdos não-corporais. e) - Práticas rituais e ícones chineses associados originalmente à religiosidade no KungFu foram esvaziados de seu sentido original e convertidos em símbolos de caráter “cenográfico”, ou seja, de representação do universo marcial. Segundo essa visão, uma

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Faz-se necessário, para o melhor entendimento da hipótese, observar que o conceito “arte marcial” não decorre mais apenas de um suposto “olhar oriental”. É, hoje, um conceito de caráter transcultural. 17

estátua do espírito tutelar Kuan Kung, por exemplo, perderia seu caráter devocional e passaria à condição exclusiva de peça necessária à legitimação do ambiente marcial. f) - A visão do Kung-Fu como atividade desligada de conteúdos que não os de caráter puramente marcial ou de condicionamento físico fez com que os praticantes não investigassem e nem se interessassem pelos elementos religiosos, promovendo uma desvalorização dos mesmos no universo da arte marcial. A verificação das hipóteses particulares foi feita a partir do cruzamento dos dados bibliográficos e empíricos obtidos na pesquisa. A verificação da hipótese geral foi feita a partir de uma leitura de conjunto, por uma lente derivada do constructo teórico adotado, das respostas às hipóteses particulares. O constructo teórico nasceu de um cruzamento entre a teoria de Martin Baumann sobre a transplantação religiosa e as considerações de Berger & Luckmann a respeito da construção social da realidade. A teoria de Martin Baumann acerca da transplantação religiosa permitiu desvendar o desenvolvimento do Kung-Fu brasileiro a partir de suas raízes étnica e não-étnica. Aplicamos à teoria, necessariamente, ligeiras adaptações (que não implicaram em qualquer tipo de distorção metodológica), dado que o Kung-Fu não é uma religião, mas uma prática marcial dotada de conteúdos religiosos. Pela aplicação, ao Kung-Fu do Shaolin do Norte, das etapas de transplantação enunciadas por Baumann, pudemos verificar de que forma o conjunto semântico histórico-religioso de uma cultura alienígena se estabeleceu entre nós, e também como a mediação entre conteúdos tradicionais, não-tradicionais e da sociedade local produziu o que nós chamamos de “Shaolin à Brasileira”. Essa mediação é a chave para a aplicação do segundo componente do constructo teórico, a saber, o trabalho de Berger & Luckmann sobre a construção social da realidade. Buscamos determinar se o elemento cultural decorrente da interação entre um produto originalmente chinês o olhar brasileiro adquiriu um caráter de conformação ou de confrontação em relação à realidade-padrão. No caso de conformação, a partir da renúncia/ressignificação em relação a que valores originais; no caso de confrontação, a partir do atrito entre que valores, e se as divergências semânticas implicaram em algum

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tipo de encapsulamento da realidade dos praticantes de Kung-Fu brasileiros dentro da realidade-padrão local. O acesso a fontes acadêmicas para a produção dos capítulos de fundamentação teórica (dois, três, quatro e cinco) foi vital para uma apreensão mais precisa dos elementos envolvidos com a arte marcial chinesa tradicional, tanto em terras chinesas quanto no restante do mundo. O levantamento de dados históricos sobre a arte marcial na China e em Shaolin foi possível principalmente graças aos trabalhos de Meir Shahar (Tel Aviv University), Stanley Henning (pesq. independente, Havaí), Dian Murray (University of Notre Dame) e Barend ter Haar (Leiden University). A definição do Kung-Fu como “produto transcultural” foi possível graças aos trabalhos de Leon Hunt (Brunel University) e de Wolfram Manzenreiter (University of Viena) & Sabine Frühstück (University of California). Indicações sobre o significado tradicional e a tradução dos ideogramas chineses presentes nos elementos iconográficos foram possíveis graças ao auxílio do médico acupunturista chinês Pan Yi Bo, originário de Henan, que atualmente vive em Curitiba.

19

2 – DOS BRONZES DE SHANG AOS TURISTAS DE SHAOLIN: AS ARTES DE GUERRA E A “RELIGIOSIDADE MARCIAL” NO CONTEXTO HISTÓRICO CHINÊS 2.1 – Considerações preliminares As artes marciais ocupam um lugar especial na cultura chinesa. Praticadas há milênios com maior ou menor grau de sistematização -, elas formam um corpo de conhecimentos e tradições de base oral que alcançou a literatura (com o gênero Wusia, reservado aos “heróis combatentes das injustiças”),5 o teatro e o cinema. Elas oferecem um vasto campo de trabalho e um desafio: diante da diversidade das lendas e mitos de criação – diante, enfim, do "folclore marcial" - como chegar às suas raízes históricas? Um caminho é o da pesquisa em fontes cronologicamente determinadas - livros, edifícios e monumentos - que não padecem da “dinâmica transformadora” verificada na transmissão oral. E, ainda que tais fontes possam sofrer influências como a do olhar de uma classe social sobre outra – ou de uma linha predominante de pesquisa - mostram-se valiosas em aspectos que vão da localização da nomenclatura marcial à compreensão das motivações que levaram um grupo humano a se dedicar a práticas marciais. Essas fontes, bem como pesquisas feitas por scholars chineses e japoneses, serviram como objeto de trabalho para os pesquisadores ocidentais que, no século XX, passaram a considerar o tema como digno de estudo. 2.2 – Uma “linha do tempo” para a arte marcial chinesa Antes de iniciar o estudo específico do tema, é preciso determinar os períodos históricos chineses com base na ascensão e queda das dinastias e no início do regime republicano. Essa determinação é fundamental para a compreensão da História da China, vista como matriz de todo o movimento marcial verificado naquela civilização (ver tabela 1).6 O desenvolvimento tecnológico de armas, o aprimoramento das técnicas de combate e a produção de um pensamento filosófico de viés marcial (seja em termos de estratégia, seja em termos éticos) decorre, fundamentalmente, das épocas de transferência de poder. Há que se observar que, no caso chinês (assim como em muitas outras civilizações), toda a transferência de poder se deu a partir de confrontos nos campos de batalha. Alianças 5 6

Literatura Wusia em (c. 10.06.2003). Os dados da tabela se baseiam em (c. 12.08.2004) 20

entre reinos, intrigas palacianas e a capacidade de manter linhas de suprimento para as frentes de batalha também participaram desse processo – elas estão ligadas, fundamentalmente, ao princípio enunciado por Carl Von Clauzewitz no início do século XIX (logo após a derrota de Napoleão Bonaparte), segundo o qual “a guerra é uma simples continuação da política por outros meios”.7 *

Tabela 1 – Cronologia das Dinastias e do período republicano chinês Dinastia

Dinastia/Período Republicano

(1) Shang 1750 a 1050 a.C.

(8) Tang 618 a 907

(2) Chou 1050 a 221 a.C.

(9) Cinco Dinastias e Dez Reinos 907 a 960

(3) Ch’in 221 a 207 a.C.

(10) Song 960 a 1279

(4) Han 206 a.C. a 221 d.C.

(11) Yuan 1279 a 1368

(5) Três Reinos 221 a 280

(12) Ming 1368 a 1644

(6) Chin 280 a 420

(13) Qing 1644 a 1911

(7) Sui 420 a 617

(14) República da China 1911 a 1949

(15-a) República Popular da China 1949 ao séc. XXI

(15-b) República da China/Taiwan 1949 ao séc. XXI

7

CLAUZEWITZ, C., “Da Guerra”, 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1996, 921 p., p. 27. Iniciamos a contagem de tempo por Shang, o período histórico mais antigo confirmado pela arqueologia. Em termos míticos, a origem da civilização chinesa se inicia cerca de 1.300 anos antes, com os imperadores “fundadores” Shen-nung, Huang Ti, Fu-hsi, Yao, Shun e Yü. Ver THORWALD, J., “O Segredo dos Médicos Antigos”, 10ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1990, 319 p., p. 224-225 *

21

A partir de pesquisas mais específicas em relação ao nosso objeto é possível traçar uma “linha do tempo” que representa a evolução histórica das artes marciais chinesas ao longo dos últimos 30 séculos (tabela 2). Ela é composta por “grandes eventos” documentados ou resgatados pela arqueologia. Para facilitar a aproximação e estabelecer uma unidade temática, optamos por apresentar essa “linha do tempo” e, então, fazer a análise dos dados. Como será possível observar, há uma forte presença, nessa cronologia, do mosteiro budista de Shaolin (a tabela foi dividida nas fases “Pré-Shaolin”, “Shaolin” e “Pós-Shaolin”). Ela se justifica pelo fato de que um estilo decorrente da “tradição Shaolin” (o Shaolin do Norte) ocupa uma posição central em nosso objeto de pesquisa. Além disso, há que se considerar que o mosteiro ocupou, de fato, um locus estratégico no desenvolvimento marcial chinês, principalmente em relação à tradição do moderno KungFu. Procuramos não omitir, porém, outros desenvolvimentos marciais, principalmente em relação ao período abrangido pelos sécs. XVI a XVIII, que é chave para a construção da atual arte marcial chinesa. Tabela 2 – “Linha do Tempo” das Artes Marciais Chinesas Fase

Época

Fato Relevante

1500 a

Dinastia Shang. Espadas, lanças, punhais e machados de bronze. Primeiros

1122 a.C.

registros de prática marcial na China.

1000 a.C.

Dinastia Chou. Representações, em peças de bronze, de figuras humanas em posturas de combate.

Pré-

722 a

Registro de práticas marciais no “Livro dos Ritos” e nos “Anais da Primavera e

481 a.C.

Outono”. Lao Tzu escreve o clássico taoísta Tao-Te-Ching. Na obra, condena o uso

Shaolin

das armas. 403 a

“Era dos Reinos Combatentes”. Sun Tzu escreve a obra “Os 13 Momentos”.

221 a.C. Registros sobre o shoubo e jueli, formas de luta e pugilismo. Aproximação entre 206 a.C. a 220 d.C.

conceitos taoístas, confucionistas e budistas nas práticas religiosas e corporais. “Origem religiosa” do Kung-Fu. Fundação do primeiro mosteiro budista chinês, o Bai Ma (“Cavalo Branco").

64 136 a 208 402

O médico taoísta Hua To cria os “Jogos dos Cinco Animais”. Fundação, segundo a tradição, da Pai-lien She (“Sociedade do Lótus Branco”).

22

495 610 a 621

Fundação, próximo de Luoyang (Henan), do mosteiro de Shaolin. Bandoleiros atacam Shaolin: início da relação entre os monges e a marcialidade. Os monges de Shaolin participam da campanha de Li Shimin contra Wang Shichong, que foi determinante para a implantação da Dinastia Tang.

1515

O scholar Du Mu redescobre a “Estela do Mosteiro de Shaolin”.

1553

Participação de “tropas monásticas” em campanhas antipirataria em Zhejiang.

1621

Cheng Zongyou publica a “Exposição sobre o Método Original de Bastão de

Shaolin

Shaolin”. Séc. XVI

Aparecimento de artistas marciais itinerantes na China.

Séc. XVII

Desenvolvimento, em Chenjiagou (Henan), do estilo Tai-Chi-Chuan.

Séc. XVIII

Desenvolvimento, em Henan e Shanxi, dos estilos Hsing I Chuan e Pa Kua Chuan. Criação da Tiandihui (“Sociedade do Céu e da Terra”). Disseminação da lenda dos “monges fundadores da Tríade”. Segundo a tradição marcial, incêndios destroem os mosteiros de Shaolin em Henan e Fujian.

1900

Rebelião dos Boxers. Derrota do movimento sectário chinês.

1917

Mao Tsé-Tung escreve o ensaio “Um Estudo sobre a Cultura Física”.

Anos 20

Movimento de resgate e institucionalização das artes marciais. Criação de institutos e realização de competições. Em 1928, incêndio no Mosteiro de Shaolin.

PósShaolin

1949

Comunistas chegam ao poder na China. Fuga de mestres do país.

1954

“Estandardização” dos sistemas marciais na República Popular da China. Criação do moderno Wushu. Revolução Cultural Chinesa. Nova debandada de mestres da China. Chega ao

Anos 60 1966

Brasil o grão-mestre Chan Kowk Wai (1960). Chegada do mestre Lee Chung Deh ao Brasil.

Anos 80

Reforma e reocupação de Shaolin. Nomeação de um abade para o templo.

1990

O Wu-Shu é incluído entre os esportes de competição nos Jogos Asiáticos.

Séc. XXI

O governo da China inicia campanha para transformar o Wu-Shu em esporte olímpico.

23

2.2.1 – Primórdios: de Shang à Era dos Reinos Combatentes As mais antigas representações marciais chinesas possuem três mil anos: aparecem em vasilhas de bronze datadas de cerca de 1000 a.C. (na passagem da Dinastia Shang para Chou) e mostram homens em situação de combate.8 De acordo com Draeger & Smith,9 a origem das artes marciais pode ser traçada até a Dinastia Chou (1122 a 255 a.C.).10 Referências às artes marciais praticadas pela nobreza – arco-e-flecha, esgrima e pugilismo – aparecem no “Livro dos Ritos”, nos “Anais da Primavera e Outono” (722 a 481 a.C.) e em obras da chamada “Era dos Reinos Combatentes” (464 a 221 a.C.). Escavações

arqueológicas

revelaram

que

os

guerreiros utilizavam machados, lanças, facas e espadas confeccionadas em bronze (ver fig. 1 e 2),11 liga conhecida desde Shang (1500 a 1122 a.C.).12 Armas

semelhantes

aparecem

nos

modernos

sistemas de Kung-Fu, inclusive no Shaolin do Norte. Se aceitarmos a hipótese de que a prática regular determinou o surgimento de escolas e estilos marciais, é possível relacionar o período estudado à moderna marcialidade.13

O domínio do arco e da condução de carruagem era parte da educação dos nobres de Chou; no caso do arco, ele se tornou um passatempo da nobreza já na época do filósofo Confúcio (551 a 479 a.C.). Mêncio (372 - 289 a.C.) se refere a um modo de transmissão das técnicas de arco-e-flecha semelhante ao adotado nas modernas academias de Kung-

8

Cf. HOLCOMBE, C., “Theater of Combat: A critical look at the Chinese Martial Arts”, in (c. 25.08.2003). 9 DRAGER, D., & SMITH, R., “Asian Fighting Arts” (1ª ed., Tóquio: Kodansha International Ltd., 1973, 201 p.), p. 15. 10 Ver , c. 29.08.2003) e PEERS & MCBRIDE, “Ancient Chinese Armies 1500 – 200 b.C.”, 1ª ed., Oxford: Osprey Publishing, Men-at-Arms Series, 1998, 48 p. 11 Imagens extraídas de: PEERS, C., & MCBRIDE, A., "Ancient Chinese...", p. 7 (punhal) e 11 (machado). 12 Ibid., p. 5 a 8. 13 MING, Y., “Ancient Chinese Weapons – A Martial Artist´s Guide”, 1ª ed., Boston: YMAA Publications, 1999, 140 p. 24

Fu.14 Na “Era dos Reinos Combatentes”, as guerras entre os reinos de Chin, Chi, Wei, Wu, Chu e Yueh aceleraram o desenvolvimento de tecnologias e do pensamento militar. Foi o tempo de “A Arte da Guerra” (ou “Os Treze Momentos”), obra atribuída ao expert militar Sun Tzu. “Livro de cabeceira” de executivos no século XXI, ficou conhecido no Ocidente a partir 1772, quando foi traduzido para o francês pelo jesuíta Jean-Joseph Marie Amiot.15 Ainda que a atividade marcial fosse exclusiva da nobreza até a Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.), há referências à prática de pugilismo por outros grupos sociais. Essa “democratização marcial” se configurou, aparentemente, como reflexo do aumento da violência na sociedade chinesa durante a Era dos Reinos Combatentes, que implicou, em um primeiro momento, na separação entre as figuras do “rei” e do “general”. A segunda conseqüência – diretamente relacionada à evolução técnica da guerra – se refere ao aumento da conscrição de civis. Henning cita o termo bo ou shoubo (palavras que, durante a Dinastia Song - séc. XII – seriam substituídas por Quan ou Ch’uan)16 para identificar um método conhecido na Dinastia Han Anterior (206 a.C. a 9 d.C.). Esse método estaria descrito no manual Han Shu I Wen Chih (“Seis Capítulos a Respeito do Combate de Mãos”, mencionado no “Livro das Artes de Han”).17 Praticado por militares e civis, era diferente do pugilismo esportivo dos militares (jueli).18 2.2.2 – O Budismo e a "origem religiosa" das artes marciais chinesas Na Dinastia Han Posterior (25 a 220 d.C.) houve uma aproximação entre Taoísmo, Confucionismo e Budismo (que avançara para a Ásia Central a partir dos esforços de Ashok, imperador indiano da Dinastia Maurya); ela teria sido favorecida pela crise institucional na Dinastia Han e pelo descrédito com que os intelectuais de então viam o Confucionismo. Ainda que não seja possível determinar o momento exato do contato, os pesquisadores aceitam o ano de 64 d.C. como o da entrada “institucional” das primeiras

14

HOLCOMBE, C., "Theater of Combat...", op. cit., doc. eletr. Cf. CARDOSO, A., “Os Treze Momentos – Análise da Obra de Sun Tzu” (1ª ed., Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1987, 158 p.), p. 4. 16 Cf. HENNING, S., “Academy Encounters the Chinese Martial Arts”, in Havaí: China Review International, Vol. 6, n. 2, 1999, p. 319 a 332, p. 320. 17 Cf. DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting...", p. 16. 18 Cf. HENNING, "Academy Encounters...", p. 320. 15

25

obras budistas na China.19 Nesse ano foi fundado em Luoyang (na atual província de Henan)20 o Baima (“[Mosteiro do] Cavalo Branco”).21 Em termos marciais, o momento é significativo: ele teria gerado práticas corporais decorrentes da fusão entre preceitos budistas, hinduístas (através do Budismo) e taoístas. Essas práticas estariam na origem das artes marciais chinesas. Segundo Holcombe, na Dinastia Han Posterior houve um cruzamento entre as antigas práticas respiratórias taoístas (chinesas) e hindus (indianas): A tradição chinesa taoísta de exercícios de prolongamento da vida se mesclou com o Yoga indiano introduzido na China nos primeiros séculos da era cristã. O interesse inicial no Budismo se concentrou nas aproximações para os mesmos problemas, e alguns dos primeiros textos traduzidos do sânscrito para o chinês eram devotados à meditação, ao 22 controle da respiração e a segredos para atingir a imortalidade no outro mundo.

Huard

&

Ling

citam

práticas

medicinais

exportadas da Índia para a China; elas incluíam exercícios físicos que relacionavam formas de respiração, movimento e mentalização. No século IV (...) Kumarajiva inundou a China com obras budistas. Desde essa época, os Budas e os Bodhisattvas, seres transcendentes, foram confundidos com sábios taoístas. Eles acabaram vencendo nas devoções populares; o budismo ensinou igualmente preceitos de higiene e as suas comunidades favoreceram os 23 exercícios coletivos (...).

É personagem desse período o médico taoísta Hua To (136 ou 141 a 208 d.C.),

24

tido como o criador dos "Jogos dos Cinco Animais"

(exercícios zoomorfos que imitavam os movimentos da grua, do urso, do tigre, do veado e do macaco).

19

Cf. (c. 15.09.03). Província do centro-leste da China. Inf. em , mapa em (c. 18.11.2003). 21 Ver e (c. 15.09.2003). 22 HOLCOMBE, op. cit., "Theater of combat...", doc. eletrônico. Trad. livre do inglês. 23 HUARD & LING, "Técnicas e Cuidados do Corpo na China, no Japão e na Índia" (1ª ed., São Paulo: Summus Editorial, 1990, 317 p.)., p. 60 e 61. Kumarajiva (344 – 413) foi um dos principais tradutores de obras budistas para o chinês. Foi o responsável pela primeira tradução, para o chinês, do “Sutra do Diamante”. 24 Ibid., p. 64. 20

26

De acordo com Needhan, Huard & Ling e Holcombe, esses exercícios são a base da arte marcial chinesa (fig. 3).25 Segundo Holcombe, a inflexão saúde x arte marcial provavelmente decorreu da popularização de obras como a de Hua To. A passagem teria ocorrido a partir de seitas como Pai-lien She ("Sociedade do Lótus Branco", fundada em 402 pelo monge budista Hui-yuan), que fundiram a religião das elites com práticas xamanísticas.26 Tais seitas seriam as grandes responsáveis pela manutenção da nota religiosa na arte marcial chinesa: Nos séculos XVIII e XIX, o repertório de técnicas ensinadas aos conversos ao Lótus Branco incluía encantamentos, controle respiratório, massagem terapêutica e exercícios de luta. Os seguidores do Lótus Branco se referiam a essas técnicas como kung-fu, mas a transcendência permanecia sendo seu principal fator de atração. Mesmo entre os boxers, mais recentes, (...) a função do kung-fu consistia, ainda, na obtenção religiosa de poderes 27 sobrenaturais.

Ainda de acordo com Holcombe, o Tai-Chi-Chuan - arte marcial provavelmente criada no século XVII em Henan, cujo nome pode ser traduzido como “Boxe do Grau Supremo” -28 seria a prova da "herança taoísta" das artes marciais. Segundo ele, a idéia de “Grau Supremo” deriva do “Livro das Mutações” (I Ching) e as bases filosóficas do Tai-Chi, do Taoísmo.29 Joseph Needham, autor da série “Science and Civilization in China” (obra em sete volumes publicada em 1954 pela Cambridge University Press), afirmava que “o pugilismo chinês provavelmente nasceu como um departamento dos exercícios corporais taoístas”. Os métodos chineses de combate são tratados no volume II e V da obra.30 Draeger & Smith são mais diretos em relação à proximidade entre Taoísmo e arte marcial: eles afirmam que “esses métodos foram trazidos para dentro do moderno pugilismo e se tornaram o núcleo do chamado Sistema Interno”.31

25

Ibid, p. 66 (imagem). HOLCOMBE, "Theater of Combat...", op.cit. 27 Ibid, trad. livre do inglês. 28 Cf. SHAHAR, “Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice”, art. publ. in Harvard: Harvard Journal of Asiatic Studies, v. 61, n. 2, dez. 2001, p. 359 a 413, p. 388; Tradução de "Tai-Chi-Chuan" cf. DERRICKSON, "Chinese for Martial Arts", 1ª ed., Rutland: Charles E. Tuttle, 1996, 40 p., p. 20. 29 HOLCOMBE, "Theater of combat...", op. cit. 30 Cf. HENNING, “Academy Encounters the Chinese Martial Arts”, p. 320 e nota 6. Biografia de Needham em (c. 09.09.2003). 31 DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 16. Ver tb. SHAHAR, “Ming-Period…”, op. cit.,apêndice. 26

27

Henning se opõe a uma “ascendência religiosa” das artes marciais e atribui essa conexão exclusivamente às sociedades secretas dos séculos XVII e XVIII. Segundo ele, o relativo segredo em que esteve mergulhada a transmissão marcial contribuiu para cercar o tema de “uma névoa de mito e mistério”.32 Para o pesquisador, muitos scholars erraram ao supervalorizar “lendas populares, práticas japonesas e modernas, novelas chinesas de cavalaria, mitos de criação das sociedades secretas do período Qing tardio ou dos Boxers de 1900”.33 O pesquisador observa que a filosofia taoísta e a “Teoria dos Opostos” (Yin e Yang) permearam a mente chinesa como um todo. “Ainda assim, as artes de combate não eram necessariamente associadas com as técnicas de cultivo taoístas, alquimia ou Taoísmo religioso em geral”.34 Em sua avaliação, os “Jogos dos Cinco Animais” não guardam relação com o Tai-Chi-Chuan ou com qualquer outra forma de luta.35 Um dos principais responsáveis por essa visão equivocada, para Henning, foi Joseph Needham: Parece que Needham tentou conformar à força o boxe chinês em uma noção pré-concebida do papel do Taoísmo na cultura chinesa; conseqüentemente, o boxe chinês é discutido na narrativa sob [os temas] “Taoísmo” e “Alquimia Fisiológica” no volume dois e na terceira e quinta partes do volume cinco, mas apenas como curiosidade nas notas de rodapé da sexta parte do volume cinco, sobre pensamento e tecnologia militares – como uma atividade 36 taoísta em um meio ambiente militar.

Uma leitura do clássico taoísta Tao Te Ching pode fornecer argumentos religiosos para a defesa do “desligamento” entre a prática taoísta e a marcial proposta por Henning. Para o filósofo Lao Tzu, as armas não encontram lugar na vida de quem busca a transcendência: "Armas afiadas são instrumentos do homem mau, e não instrumentos do homem superior; ele os utiliza apenas na compulsão da necessidade."37

32

HENNING, "Academy Encounters...", p. 319. Ibid. 34 Ibid., p. 321. 35 Idem, “Ignorance, Legend and Tai-Chi-Chuan”, disp. em (c. 24.07.2003) 36 HENNING, "Academy Encounters...", p. 319. 37 LAO TZU, "Tao Te Ching", verso 31 (trad. para o inglês por James Legge, disp. em , c. 10.09.2003). Trad. livre p/o português. 33

28

2.2.3 – O Mosteiro de Shaolin – considerações preliminares38 Outro elemento poderoso na polêmica sobre a "religiosidade fundante" da marcialidade chinesa é o Mosteiro de Shaolin (fig. 4 e 5).39 Ao analisar documentos, os pesquisadores têm aberto novas possibilidades de interpretação para as tradições orais que ligam estilos de Kung-Fu ao mosteiro de Henan e, também, para a conexão entre a arte marcial e a religião. O assunto foi tratado por scholars orientais (chineses e japoneses) desde o século XVI e, no século XX, teve no pesquisador Tong Hao (1897 - 1959) um de seus principais investigadores. Seu trabalho serviu como base para a obra de Meir Shahar, que colocou Shaolin no universo acadêmico ocidental. Até então, aparentemente, a marcialidade de Shaolin não era vista como digna de nota pelos pesquisadores. Essa desconfiança decorreria da “mitologia” estabelecida ao redor do tema na China, do fechamento do país sob Mao-Tsé-Tung e da “apropriação pop” dos monges guerreiros no final do século XX.

Shahar produziu dois artigos a respeito do tema: “Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice”, sobre a relação entre o mosteiro e as artes marciais no final da dinastia Ming, e “Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin Monastery”,40 que focaliza os registros sobre a participação de monges de Shaolin em combate na passagem das dinastias Sui para Tang (séc. VII d. C.). Henning também 38

As fontes fundamentais de informação utilizadas para a investigação do tema “marcialidade em Shaolin” foram SHAHAR, M. (“Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice”) e HENNING, S. (“Reflections on a Visit to the Shaolin Monastery", art. publ. em Journal of Asian Martial Arts, Vol. 7, n. 1, 1998, p. 90 a 101). A obra de SHAHAR foi traduzida por APOLLONI, R., com autorização do autor, e publicada em . Para evitar a citação reiterada (e exaustiva) dessas obras, optamos por referir em notas apenas informações decorrentes de outras fontes. O leitor deve considerar todos os demais dados como extraídos dos autores supracitados. 39 Imagens extraídas de (c.17.06.2004) 40 SHAHAR, M., “Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin Monastery” (inédito, 21 p.), texto recebido do autor por e-mail em 21.07.2003. 29

voltou a atenção para Shaolin: no artigo “Reflections on a Visit to the Shaolin Monastery”,41 ele aborda o passado e, principalmente, o presente do mosteiro. Outros estudos recentes foram feitos por Barend Ter Haar42 e Dian Murray.43 Ainda que não tenham como elemento o mosteiro, estes trabalhos prospectaram as tradições dos grupos sectários e revelaram seu papel na consolidação do “mito de Shaolin”. Em nosso estudo vamos nos basear, fundamentalmente, nos textos acima relacionados. Buscaremos observar as relações dos monges com a política e seus efeitos sobre a marcialidade; o desenvolvimento de sistemas marciais em Shaolin; e a marcialidade e a tradição religiosa. 2.2.3.1 – Fundação, patrocínio e tensões políticas O mosteiro de Shaolin foi fundado em 495 no sopé do pico Shaoshi, no monte Song (Henan). O local já era reverenciado pelos imperadores como uma das “cinco montanhas sagradas da China” antes da chegada do Budismo.44 Localizado próximo da cidade de Luoyang (capital do império chinês a partir de 493, quando a Dinastia budista Wei do Norte transferiu sua capital de Datong para lá),45 ocupava um lugar privilegiado em relação à “geografia sagrada” e ao poder político. Ainda que algumas vezes tenha sido patrocinado por imperadores devotos (caso de Wendi - 581 a 604 d.C. -, representante da Dinastia Sui que doou ao mosteiro uma área de 1.400 acres até hoje conhecida como “Gleba do Vale do Cipreste”), a instituição não escapou da desconfiança de outros governantes. Essa desconfiança dizia respeito ao fato de o Budismo ser uma religião “estrangeira” (em oposição ao Taoísmo) e à sua forma de organização em mosteiros, vistos como potenciais focos de rebelião.46 Um acontecimento histórico verificado no século VII, porém, permitiu que Shaolin sobrevivesse às campanhas antibudistas imperiais que nos séculos seguintes destruíram mosteiros, restringiram direitos de culto e assassinaram religiosos.

41

Publ. in "Journal of Asian Martial Arts", v. 7, n.1, 1998, p. 90 a 101. TER HAAR, B., “Ritual & Mythology of the Chinese Triads”, 1ª ed., Leiden: Brill´s Scholars List, 1997, 577 p. 43 MURRAY, D., “The Origins of the Tiandihui – The Chinese Triads in Legend and History”, 1ª ed., Stanford: Stanford University Press, 1994, 350 p. 44 Sobre as montanhas sagradas da China, ver (c. 29.09.2003). 45 Cf. (c. 29.09.03) e (c. 29.09.03). 42

30

2.2.3.2 – Dinastia Tang: o “primeiro sangue” de Shaolin Os mais antigos registros da participação de monges de Shaolin em ações militares são encontrados na “Estela do Mosteiro de Shaolin” (Shaolin si bei, erigida em 728), que traz sete textos produzidos entre 621 e 728: “A História do Mosteiro de Shaolin”, do ministro Pei Cui, de 728; a “Carta de Li Shimin”, de 26 de maio de 621; a “Doação do Príncipe”, de 625; a “Carta Oficial”, de 632; o “Presente do Imperador”, de 724 (dois textos); e a “Lista dos Treze Monges Heróicos”, sem datação definida. A estela (fig. 6)47 é considerada o mais importante

documento

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o

tema

produzido nas dinastias Sui-Tang. Ela foi redescoberta em 1515 pelo scholar chinês Du Mu, que produziu um relato precioso sobre as primeiras ações guerreiras dos monges Shaolin. Ele também observou a ausência dos feitos militares dos monges na obra oficial “História [da Dinastia] Tang” e dedicou sua obra a “retificar essa omissão”. De acordo com a “História do Mosteiro de Shaolin”, escrita pelo ministro de Pessoal de Xuanzong (imperador Tang que governou entre 712 e 755), Pei Cui, os monges entraram em ação pela primeira vez em 610,48 quando derrotaram bandidos que ameaçavam destruir o mosteiro. A primeira ação de caráter político, porém, se deu em 621, quando eles estiveram envolvidos com a chegada da Casa de Tang ao poder: com o fim da Dinastia Sui, no início do séc. VII, nobres e militares lutaram pelo domínio do império. Em 618, Li Yuan (566 - 635) fundou a Dinastia Tang. O início do governo não foi pacífico: em 619, um general de Sui, Wang Shichong, fundou outra Dinastia (Zheng) em Luoyang.

46

Cf. (c. 29.09.03). Imagem (em negativo) extraída de SHAHAR, M., “Epigraphy...”, op. cit., p. 23. Estela é uma prancha de pedra com inscrições, fixada verticalmente no solo. Normalmente, funciona como marco funerário. 48 Ou entre 605 e 618. A primeira data é de SHAHAR; a segunda, de HENNING. 47

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O segundo filho de Li Yuan, Li Shimin (o futuro imperador Taizong) foi encarregado de combater Wang. A guerra durou quase um ano. A ordem de Li Shimin aos seus generais foi atacar o inimigo em Luoyang e cortar as rotas fluviais de abastecimento da cidade. Na primavera de 621, por conta disso, as tropas de Wang Shichong passavam fome. Mesmo cercado, Wang conseguiu firmar uma aliança com outro rebelde, Dou Jiande. Dou, que havia mobilizado tropas entre Shandong e Hebei, resolveu lançá-las contra Li Shimin em Luoyang. Numa atitude digna de Sun Tzu, Li Shimin antecipou-se ao ataque. Em maio de 621, em Hulao, a cem quilômetros de Luoyang, Dou Jiande foi derrotado e morto. Com isso, Wang Shichong se rendeu - ele seria assassinado logo depois, quando seguia para o exílio. No dia quatro de junho de 621, as tropas de Li Shimin entraram em Luoyang. De acordo com Pei Cui, os monges participaram dos combates pouco antes da vitória de Li Shimin em Hulao. Eles derrotaram soldados de Wang Shichong que ocupavam o monte Huanyuan, em Baigu Zhuang (“Gleba do Vale do Cipreste”). Vizinho da sede do mosteiro, o monte estava situado na passagem para Luoyang e formava um passo – cenário em que poucos soldados poderiam vencer muitos inimigos. No local, a tropa de Wang construíra uma torre que possibilitava o envio de informações para os sitiados em Luoyang. Pouco depois de derrotar as tropas em Huanyuan, os monges capturaram o sobrinho de Wang Shichong, Wang Renze. Em agradecimento, Li Shimin enviou aos monges uma carta e doou ao mosteiro uma área de 560 acres e um moinho. De acordo com um segundo documento da “Estela de Shaolin” - a “Carta Oficial de 632”, escrita pelo vice-magistrado do condado de Dengfeng - um dos monges, Tanzong, foi nomeado “general-em-chefe” do exército de Li Shimin. Outro registro da “Estela de Shaolin”, a “A Lista dos Treze Monges Heróicos” (único texto não-datado), traz os nomes dos monges que se destacaram nos combates de 621: Shanhu (deão), Zhicao (abade), Huiyang (supervisor), Tanzong (general-em-chefe), Puhui, Mingsong, Lingxian, Pusheng, Zhishou, Daoguang, Zhixing, Man e Feng. O texto de Pei Cui, observa Shahar, não deixa claro se os monges foram convidados ou coagidos a lutar. Ele acredita que a iniciativa pode ter nascido do desejo de vingança ou da observação, pelos monges, das chances dos contendores. O fato é que a vitória implicou em uma mudança no status do mosteiro junto à casa imperial: Shaolin não sofreu grandes perseguições durante a Dinastia Tang.

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O favor imperial pode ser observado na “Carta de Pei Cui” e em outros textos da “Estela de Shaolin”, como a carta de Li Shimin aos monges (datada de 26 de maio de 621), a “Doação do Príncipe”, de 625 – que devolveu aos clérigos o domínio sobre o Vale do Cipreste – e os “Presentes do Imperador”, de 724, que reforçaram o patrocínio ao mosteiro. Sharar observa, porém, os limites dessa aliança: em um trecho da “Carta de Li Shimin”, o futuro imperador Taizong exorta os monges a retomarem suas atividades religiosas. O incômodo de Li Shimin diante da possibilidade de lidar com monges lutadores é perceptível; além disso, avalia Shahar, a inscrição de documentos oficiais em pedra é reveladora, mostrando que os monges se protegiam contra possíveis “esquecimentos” do imperador. 2.2.3.3 – Expressões da marcialidade em Shaolin durante a passagem Ming-Qing A busca pela presença marcial em Shaolin no período entre 717 e 932 anos49 que vai da fundação de Tang até a fase final da Dinastia Ming (1368 - 1644) pode levar um estudioso a crer que a exortação de Li Shimin aos monges foi tomada ao pé da letra: é que não há registro de prática marcial dentro do mosteiro ou de envolvimento dos monges de Shaolin com atividades guerreiras nesse período. Ainda que não se possa descartar a possibilidade de que os monges tenham atendido à recomendação,50 é preciso observar que uma leitura crítica recomenda prudência na avaliação desse “silêncio marcial”. O período abrange momentos políticos distintos (a Dinastia Tang, o período das chamadas “Cinco Dinastias e Dez Reinos”, a Dinastia Song, a Dinastia mongol Yuan e parte da Dinastia Ming),51 que, provavelmente, implicaram em orientações diversas na condução do diálogo imperial com o clero budista. A situação mudou na última etapa da Dinastia Ming: de 1515 (ano da publicação do trabalho de Du Mu) até a primeira metade do século XVIII, quarenta fontes atestaram a ligação do mosteiro com a marcialidade! Com base nesses registros, é possível 49

SHAHAR indica 717 anos; HENNING, 932 anos. A diferença pode ser explicada pela utilização de datas de referência diversas: enquanto o primeiro toma como referência um indício de 798 e o ano de publicação dos ensaios sobre a “Estela do Mosteiro de Shaolin” (1515), o segundo parece comparar os episódios de 621 à campanha de 1553 dos monges de Shaolin contra a pirataria. 50 Segundo HENNING, não há registros da participação de Shaolin nos episódios marciais da Dinastia Song, quando monges do monte Wutai (Shanxi) e de outros mosteiros lutaram contra os invasores Jin. Shaolin foi arrasado em 1350, na “Revolta dos Turbantes Vermelhos”; os monges foram expulsos e só voltaram em 1359. "Turbantes Vermelhos" em (c. 05.11.03). 51 Ver tabela 1. 33

afirmar que aí se deu a fixação do “mito de Shaolin” e da figura do “monge boxeador”. As fontes incluem manuais militares e de arte marcial, relatos de viagem, relatórios de governo, poesias, estelas e inscrições tumulares na “Floresta de Stupas” de Shaolin. A "Floresta" - que reúne um dos maiores grupos de stupas de toda a China - é um cemitério de monges localizado em Shaolin.52 Tais registros são a prova da existência dos monges guerreiros budistas: eles apontam sua participação em ações militares, atestam que o mosteiro de Shaolin se transformou em um centro de difusão marcial e indicam que os monges foram levados a adaptar sua prática religiosa às exigências da prática marcial. 2.2.3.4 – Considerações sobre o engajamento militar dos monges de Shaolin no período Ming tardio Shahar observa que, em Shaolin, a demanda pelo engajamento militar foi grave o suficiente para fazer com que os monges incluíssem em seu dia-a-dia funções "incomuns". Segundo ele, o papel militar de monges no século XVI53 tem como explicações a deterioração da atividade militar, o esvaziamento institucional da Casa de Ming, a depressão econômica e um aumento brutal da violência, especialmente em Henan.54 Nesse contexto, observa, está incluído o próprio desenvolvimento das artes marciais. Scholars observaram o papel da violência endêmica para a História das artes marciais nas planícies do Norte da China. A economia predatória transformou as artes marciais em um elemento integral da sociedade rural em boa parte de Henan e nas províncias vizinhas. A prática marcial no nível dos vilarejos serviu como pano de fundo para rebeliões como a de 55 Wang Lun (1774), dos Oito Trigramas (1813) e a dos Boxers (1898 - 1900) (...)

Boa parte dos registros da participação de monges em batalhas56 se refere às campanhas antipirataria deflagradas em Zhejiang.57 Nas décadas de 1540 e 1550, as 52

A stupa é uma estrutura arquitetônica típica do Budismo. Ver (c. 29.07.03). Não só de Shaolin, mas de Emei (Sichuan), Wutai (Shanxi) e Funiu. As fontes de SHAHAR para as indicações são o Jiangnan jing lüe, de Zheng Ruoceng (1568), e o Mingshi (doc. oficial de 1739), que cita as tropas monásticas como “milícias locais”. 54 A província de Henan é uma das áreas mais povoadas do mundo. A tensão decorrente da superpopulação é visível atualmente, quando a província conta com 110 milhões de habitantes e problemas graves como o de disseminação do vírus HIV entre a população rural. 55 SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 389, trad. livre do inglês. 56 Wobian shilüe, de Cai Jiude (1558), Zhejiang Tongzhi (1561) e Jiangnan jing lüe (1568, de Zheng Ruoceng), Wusong jia yi wo bian zhi (1604, de Zhang Nai), Shaolin Seng Bing (1670, de Gu Yanwu) e Mingshi (1739, por Zhang Tingyu e outros). Cf. SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 408 a 413. 53

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províncias vizinhas do Mar da China foram assaltadas por piratas conhecidos como wukou. Eles agiam na costa, em rios e canais,58 e chegaram a capturar áreas como Songjiang (Xangai); além disso, minavam o poder Ming pela corrupção de governantes locais. Na tentativa de solucionar o problema, o governo resolveu mobilizar os clérigos de Shaolin e de outros mosteiros budistas.59 O responsável pelo engajamento teria sido Wan Biao, vice-comissário em chefe na Comissão Militar em Nanjing (capital da província de Jianxi). As fontes identificam quatro batalhas que tiveram a participação de tropas monásticas: em 1553, quando derrotaram piratas em Hangzhou (Zhejiang); em Wengjiaigang (julho de 1553), Majiabang (primavera de 1554) e Taozhai (outono de 1555), na rede de canais do delta do rio Huangpu. Na última batalha, os monges teriam sido derrotados. Quatro deles - Chetang, Yifeng, Zhenyuan e Liaoxin - morreram e foram sepultados na “Stupa dos Quatro Monges Heróicos”, no monte She, perto de Xangai (esse monumento foi destruído). A maior vitória nessa campanha teria sido obtida entre 21 e 31 de julho de 1553, em Wengjiaigang. Segundo o relato do geógrafo e conselheiro militar Zheng Ruoceng, 120 monges derrotaram um grupo de piratas, tendo perseguido e exterminado os sobreviventes. Mais de cem pessoas teriam sido assassinadas, boa parte delas a golpes de bastão de ferro. O comandante da tropa nessa vitória teria sido um clérigo de Shaolin chamado Tianyuan, apontado como expert em artes marciais e estratégia militar. Ainda que a campanha de Zhejiang seja um acontecimento importante, também há relatos da participação de monges em combates em outras províncias. Em 1552, cinqüenta monges de Shaolin liderados por Zhufang Cangong teriam auxiliado o governo de Henan a derrotar o bandido Shi Shangzhao (as informações são do “Epitáfio de Zhufang Cangong”, na stupa funerária do próprio Zhufang. O monumento, de 1575, está na “Floresta de Stupas” de Shaolin); em 1510 - num momento anterior, portanto, à redescoberta da “Estela do Mosteiro de Shaolin” por Du Mu -, teriam combatido um certo Liu Liu e, em 1520, teriam participado da campanha contra outro bandido de Henan, 57

Província vizinha de Fujian, Jiangxi, Anhui, Jiangsu e Xangai. Ver e (c. 18.11.2003). 58 Uma das “portas de entrada” era o rio Yangtze, que nasce no Tibete e deságua em Xangai. O rio tem 5.500 km de extensão. Mapa em (c. 19.11.2003).

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Wang Tang.60 Inscrições na “Floresta de Stupas” também se referem ao engajamento militar individual: o epitáfio do monge Sanqi Yougong (1548) informa que ele teria ocupado postos militares na fronteira de Shanxi e Shaanxi, e que teria participado de uma expedição militar em Yunnan. Os epitáfios dos monges Wanan Shungong (1619) e Benda (1625) informam que ambos se distinguiram em combate (as inscrições não informam as batalhas de que teriam participado). Em 1630, monges de Shaolin teriam sido contratados por um magistrado de Shanzhou (Henan) para treinar uma milícia e tentar conter a crescente anarquia. A tropa teria obtido muitas vitórias contra grupos rebeldes, até que acabou derrotada pelo líder rebelde Ma Shouying, conhecido como Lao Huihui (“Companheiro Muçulmano”).61 Um dado revelador da importância dos monges guerreiros no cenário institucional chinês do século XVI está nas discussões oficiais sobre as vantagens e riscos de seu engajamento. Enquanto alguns militares e burocratas da época os louvavam, outros os acusavam de sedição e banditismo. Entre os que viam vantagens está o supracitado Zheng Ruoceng: Nas artes marciais não há, nesta terra, quem não se renda a Shaolin. [O mosteiro de] Funiu [em Henan] pode ser colocado em segundo lugar. (...) Em terceiro lugar vem Wutai [em Shanxi]. (...) Juntos, esses três [centros budistas] compreendem centenas de mosteiros e incontáveis monges. Nossa terra é sitiada internamente por bandidos e externamente por bárbaros. Se o governo lançar uma ordem para o recrutamento [desses monges], irá ganhar 62 todas as batalhas de que participar.

Em 1625, o grande coordenador para a região de Henan, Cheng Shao, escreveu um poema (Shaolin Guan Wu) citando a contribuição dos monges para a “defesa nacional”; em 1670, Gu Yanwu produziu o poema Shaolin si, no qual manifestava o desejo de ver os monges combatendo os fundadores da Dinastia Qing. Opinião contrária teve o burocrata Wang Shixing, de Henan. Na obra Yu Zhi (“Notícia de Henan”, de 1595), ele acusa os monges de falsidade, propensão ao banditismo e à revolta:

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O registro mais completo dessa mobilização está em “A Primeira Vitória dos Exércitos Monásticos” (“Seng bing shou jie je”), de Zheng Ruoceng (1568). 60 Inf. na estela “Dengfeng xian tie”, de Shaolin. 61 As informações sobre a contratação de monges em Shanzhou estão em “Mingshi” (1739). 62 Zheng Ruoceng, in “Seng bing shou jie je”. Cf. SHAHAR, p. 384. Trad. livre do inglês. 36

Os monges de Henan nunca obtêm certificados de ordenação (dudie). Hoje eles cortam seus cabelos e se tornam monges; amanhã, deixam [o cabelo] crescer e voltam à laicidade. Eles fazem o que lhes apraz. Bandidos (dao) também freqüentemente raspam suas cabeças, mudam de aparência e se unem à ordem monástica. Assim que os problemas acabam, eles voltam à laicidade. Não importa que sejam sedentários ou itinerantes, você não encontra um monge em cem que não beba vinho ou coma carne.63

Como se pode observar, de acordo com Wang, os clérigos de Shaolin eram meros “escroques” que sequer se davam ao trabalho de ocultar suas intenções (um bom exemplo disso está na inobservância dos preceitos dietéticos budistas). Segundo ele, a condição monacal servia muito mais como "fachada" em tempos de perseguição do que como caminho religioso. Outra prova apresentada por Wang seria o desconhecimento, por esses "monges", dos gritos e golpes de bastão utilizados como facilitadores dos insights místicos (a “Iluminação”) no Budismo Chan. 2.2.3.5 – O mosteiro de Shaolin como centro difusor de sistemas marciais Um dado comum à tradição das academias de Kung-Fu diz respeito ao cotidiano de Shaolin: para muitos praticantes, o mosteiro foi uma “grande academia de artes marciais” - a literatura Wusia64 e o cinema confirmam essa imagem. Henning “joga um balde de água fria” nos entusiastas da tese: ele observa que, em Shaolin – como em qualquer mosteiro budista – a prática religiosa e as demandas de sobrevivência institucional (construção e manutenção de prédios e pátios, assim como cultivo de alimentos) ocupavam lugares centrais. Especificamente sobre as artes marciais, ele afirma que Eram mais como uma diversão para um percentual relativamente pequeno de monges, que haviam trazido esse conhecimento para dentro do mosteiro. Além destes monges, uns poucos clérigos – que encontravam tempo, dentre as muitas tarefas do dia – se tornavam seus alunos e acabavam por auxiliar na defesa do complexo religioso. A realidade era muito distante da apresentada pelas novelas populares, que descreviam a existência, em Shaolin, de um programa altamente desenvolvido de treinamento marcial, coroado por uma “prova 65 final” que consistia em superar os golpes de bonecos inteligentemente construídos.

A abordagem de Henning carrega boa dose de irritação contra a moderna representação de Shaolin (seu artigo mostra como, no século XX, o mosteiro se transformou em uma espécie de "Disneylândia" para aficcionados em artes marciais) e, por conta disso, deve 63

Wang Shixing, in “Notícia de Henan”, cit. por SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 386 e 387. Trad. livre do inglês. 64 Para o significado de “Wusia”, ver nota 5. 65 HENNING, “Reflections on a Visit...”, p. 95. Trad. livre do inglês. 37

ser vista com o devido cuidado. Em sua análise das fontes primárias, Meir Shahar mostra que, em determinado período, a prática marcial em Shaolin foi algo mais do que uma “diversão” ou atividade marginal. O próprio Stanley Henning parece admitir isso, ao tratar da evolução marcial em Shaolin. Ele observa que, no século XVI, os monges praticavam, de fato, arte marcial. Mesmo assim, em sua avaliação, grande parte da fama do mosteiro decorre do apelo patriótico feito pelo historiador Huang Zongxi (1610 – 1695), autor do “Epitáfio para Wang Zhengnan” (1669). O “Epitáfio” é uma obra de resistência à dinastia Qing que, segundo o pesquisador, moldou o imaginário marcial chinês. Henning conclui seu raciocínio citando autores de obras militares. Ele defende a tese de que os monges praticavam sistemas marciais comuns a outros grupos chineses e que, por conta disso, nada tinham de extraordinário: Escritos Ming sobre o assunto, produzidos por Tang Shunzi (1507 – 1560), Qi Jiguang (1528 – 1587), He Liangchen (cerca de 1591) e Zheng Ruozeng (1505 – 1580) não mencionam o pugilismo de Shaolin em suas listas de estilos de Kung-Fu conhecidos nas respectivas épocas. Cheng Zongyou (1561 - ?), que afirma ter vivido 10 anos no mosteiro estudando técnicas de luta com bastão, informa que, durante sua estada, os monges enfatizavam as técnicas de “mãos livres” para tentar chegar ao nível alcançado pela do afamado “bastão de Shaolin”; ainda assim, Cheng não oferece nenhuma descrição do conteúdo de tais técnicas. O manual de luta de Zhang Kongzhao, “Luta Clássica: A Essência do Pugilismo” (cerca de 1784), que pretendeu registrar as técnicas ensinadas por um monge de Shaolin, Xuanji, é, primeiramente, um discurso sobre os princípios básicos 66 que poderiam ser facilmente aplicados às técnicas de luta em geral.

Shahar faz outra leitura: para ele, técnicas marciais originárias do mosteiro apareceram regularmente em enciclopédias militares do período Ming Tardio, mesmo nas obras de Tang Shunzi e Qi Jiguang. A razão para esse “descompasso de leituras” pode estar nos limites adotados para “arte marcial”: aparentemente Henning se limita ao pugilismo, enquanto Shahar inclui as técnicas de bastão. Em nosso estudo adotamos a segunda postura, uma vez que tal generalização reflete um aspecto do Kung-Fu atual, quando os estilos possuem tanto rotinas de mãos livres quanto com armas. Boa parte das obras do século XVI, segundo Shahar, louva as técnicas de Shaolin; pelo menos uma - o “Tratado de Preparações Militares”, do scholar Mao Yuanyi (1549 – cerca de 1641) - afirma que elas teriam servido como “fonte de todos os demais estilos de bastão”. No Zhenji ("Registro de Técnicas Militares", de 1565), o comandante militar He

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Liangchen afirma que os monges de Shaolin teriam ensinado sua técnica de bastão para outros monges, do “monte Niu” (o autor se refere, provavelmente, ao mosteiro budista do monte Funiu, em Henan). O levantamento de Shahar não inclui apenas obras elogiosas às artes do mosteiro, mas também as de “opositores” das técnicas de Shaolin e, mesmo, as que colocavam em dúvida a fama dos monges. O principal trabalho dessa última tendência é o Jianjing ("Clássico da Espada"), de Yu Dayou (1503 – 1579). Especialista em um método de bastão (sua obra, apesar do título, reúne técnicas de luta com esta arma), Yu teria visitado o mosteiro em 1560, onde encontrou monges praticando técnicas que considerou medíocres. Teria, então, convidado dois monges a aprenderem com ele sua técnica. Shahar acredita que Yu Dayou superestimou a própria contribuição e afirma que o mosteiro já possuía técnicas consolidadas antes da visita do general. Ele cita o Shou bi lu ("Registro de Mãos e Armas”), obra de 1660 do mestre lanceiro Wu Shu. Wu se refere a técnicas ensinadas por Yu Dayou e a técnicas cujos nomes aparecem em obras anteriores ao Jianjing. Para SHAHAR, a referência mostra que os monges receberam instrução de fora e mantiveram as próprias técnicas no período Ming tardio. Segundo Shahar, a fonte essencial para a confirmação dos sistemas marciais "nativos" do mosteiro é Shaolin gunfa chan zong (“Exposição sobre o método original de bastão de Shaolin”), de Cheng Zongyou (1610). A obra é tida como o primeiro “manual de técnicas” de Shaolin. Seu autor foi um scholar de Xiuning (Anhui) que dedicou a vida a estudar as artes marciais. O próprio Cheng resume sua relação com a arte marcial: Desde minha juventude eu estive determinado a aprender as artes marciais. Sempre que ouvia falar de um professor famoso, não hesitava em viajar para longe para ganhar sua instrução. Portanto, arrecadei o valor necessário às despesas de viagem e segui para o 67 Mosteiro de Shaolin, onde despendi, no total, mais de dez anos.

De acordo com Cheng, o complexo do monte Song seria o lugar onde, ao lado das técnicas do Budismo Chan, cavalheiros podiam aprender as técnicas de bastão dos monges. A idéia de escrever um livro, justifica, teria nascido de uma cobrança de seus pares: 66 67

HENNING, p. 97 e 98, trad. livre do inglês. Cheng Zongyou, “Shaolin Gunfa”, cit. por SHAHAR, p. 367. Trad. Livre do inglês. 39

(...) ilustres cavalheiros de toda a região começaram a elogiar os supostos méritos do meu trabalho. Então me censuraram por mantê-lo em segredo, privando-os [de tais conhecimentos]. Então finalmente eu encontrei algum tempo livre, reuni as doutrinas a mim transmitidas por professores e amigos, e combinei esse conhecimento com o que eu havia 68 aprendido em minha própria experiência.

A obra fornece indícios de que os monges desenvolveram sistemas marciais. A começar pelo título: o termo seng (“original”) marca um desejo de diferenciação, por parte do autor, em relação a outras obras que se referiam a técnicas derivadas de Shaolin. Cheng também se refere ao método como “técnica budista”. Outro elemento está na transmissão, feita por clérigos (segundo o scholar,

exclusivamente

pelos

monges,

oralmente e, até sua chegada a Shaolin, essencialmente “de um mestre budista para outro”). Dois de seus mestres – Hongzhuan e Guang’an (os outros seriam Hongji, Zongxian e Zongdai) - guardavam entre si uma relação marcial hierárquica: Guang’an, apontado por Cheng como seu grande mestre, teria herdado os conhecimentos de Hongzhuan, que, na época da chegada do autor ao mosteiro, já era bastante idoso. Essa relação que indica a existência de uma genealogia marcial. Um quinto elemento está na identificação da origem de sistemas marciais: Cheng Zongyou identificou cinco métodos de bastão criados por monges. Os métodos da “Exposição” tinham os nomes de Xiao Yecha, Da Yecha, Yinshou, Pai gun e Chuansuo (respectivamente, “Pequeno Espírito Yaksa”, “Grande Espírito Yaksa”, “Mãos Ocultas”, “Bastão que Empurra” e “Bastão de Aplicação Compassada”). Eles eram formados por 53 posturas individuais (shi) colocadas em seqüências (lushi). As seqüências – a exemplo

68

Ibid., trad. livre do inglês. 40

do que ocorre hoje nas academias de Kung-Fu – formavam os métodos ou sistemas (fig. 7).69 Ainda que Shahar destaque o bastão como "arma padrão" dos monges, há registro de uso de outras armas e métodos de combate. Henning relacionou os monges a práticas como a do “boxe do macaco”. Wu Shu afirmou que eles usavam lanças (Qian). Já Zheng Ruoceng observou que, além do bastão, eles também combatiam com tridentes (Gangcha) e lanças com ganchos (Gouqian). O próprio Cheng Zongyou observou que os clérigos treinavam técnicas de pugilismo. Em um conjunto relativamente amplo de habilidades marciais, porém, o bastão foi a arma de maior destaque, como indica sua presença nas fontes dos sécs. XVI, XVII e XVIII. Ele possuía uma "ligação natural" com o Budismo através do Vajra (em chinês, Jingangchu) e da figura do monge caminhante. O Vajra - representado por um bastão, espada ou cetro - indicava poder espiritual;70 no caso do monge itinerante, o bastão servia como ferramenta de apoio, tendo se tornado (junto com a tigela) um símbolo do ascetismo errante Chan. Essas ligações parecem ter sido estratégicas em um movimento verificado dentro de Shaolin no período Ming: a partir do bastão, os monges estabeleceram uma ponte para a inclusão dos conteúdos marciais na prática religiosa. 2.2.3.6 – Qielan Shen – o bastão de guerra nas mãos da divindade A prova definitiva da marcialidade em Shaolin não está nos relatos de guerra, mas, paradoxalmente, em suas tradições religiosas. De acordo com Shahar, o elemento marcial se tornou tão relevante para o cotidiano dos monges que os levou a incluir uma vigorosa “nota marcial” em seus mitos e rituais. Até onde as fontes permitem identificar, essa inclusão teria ocorrido antes do século XVI. Ela se caracterizou pelo estabelecimento do culto ao qielan shen (“espírito guardião”) Jinnaluo (em sânscrito, Kimnara) e pela criação de uma lenda referente à origem divina das técnicas de bastão. Segundo Shahar, as transformações religiosas em Shaolin tiveram por fim conciliar os

69

Imagem 7 em SHAHAR, p. 397 Ver DUKES, T., “The Bodhisattva Warriors – The Origin, Inner Philosophy, History and Symbolism of the Buddhist Martial Art within India and China” (1ª ed., York Beach: Samuel Weisner Inc., 1994, 527 p.), p. 65 e 66. 70

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preceitos budistas referentes à não-violência e à prática marcial dos monges e, com isso, reduzir um foco de tensão religiosa. Pelo menos cinco fontes - o “Método de Bastão de Shaolin”, de Cheng Zongyou, o Song Shu (“Livro sobre o Monte Song”, com prefácio de 1612), uma listagem do condado de Dengfeng (1652), uma lista oficial da área administrativa de Henan (1661) e uma inscrição na estela Naluoyan shen hufa shiji (“O Espírito Naluoyan protege a Lei e mostra sua Divindade”, de 1517), de Shaolin - se referem à lenda da transmissão divina das técnicas de bastão. De acordo com a lenda, no século XIV uma divindade (identificada em Naluoyan shen hufa shiji como Naluoyan/Narayana e, nas demais fontes, como Jinnaluo/Kimnara) teria impedido a destruição do mosteiro por bandidos usando um bastão ou um atiçador de fogueira. Esse ser sobrenatural ingressara no monastério como um humilde monge e revelou sua real identidade apenas quando do ataque dos fora-dalei: ele então se transformou em um gigante que, zurzindo um bastão, os afugentou. Em agradecimento, os monges o teriam eleito como sua divindade tutelar (qielan shen) e começado, a partir de então, a praticar técnicas de bastão.

Como observa Shahar, a lenda não é desprovida de uma base histórica: o mosteiro de Shaolin foi atacado no ano de 1351, durante a chamada “Rebelião dos Turbantes Vermelhos”.71 Os monges teriam sido obrigados, inclusive, a abandoná-lo, voltando 71

Ver nota 50. 42

apenas nove anos depois, quando os rebeldes já haviam sido derrotados por tropas da Dinastia Yuan. A aproximação entre os monges e Naluoyan (fig. 8 e 9),72 segundo Shahar, pode ter como base o aspecto marcial da divindade. Originária dos panteões hindu/budista e reverenciada em Shaolin pelo menos desde o século XII, Naluoyan tem como principais características o semblante aterrador e o fato de portar o Vajra. A mudança de protagonista na lenda, para Jinnaluo, não é bem compreendida pelos pesquisadores. Shahar observa que os Jinnaluo não possuíam características ligadas a um poder divino destrutivo - originalmente, os Kimnara não portavam bastões. Eram identificados no Budismo indiano como semideuses ou músicos celestiais; na China, foram identificados com os oito tipos de seres que integravam o séquito de Buda. Para o scholar, a "troca de protagonista" na lenda foi provocada, provavelmente, pela semelhança entre os nomes das divindades (Naluoyan - Jinnaluo) e por um engano dos monges. Graças à troca, em Shaolin Jinnaluo não só ganhou um bastão e uma índole vingadora como, também, teve seu status modificado no panteão budista. Na versão da lenda registrada por Cheng Zongyou,73 por exemplo, ele é alçado à condição de Bodhisattva74 e ligado à deusa Guanyin. A deusa, também conhecida como Kuan Yin P’usa ("Bodhisattva que ouve os lamentos") é uma das divindades maiores do panteão budista; associada à compaixão, pertence ao grupo dos "Cinco Bodhisattvas" e é reverenciada na China desde o séc. III.75 A importância do culto a Jinnaluo em Shaolin pode ser observada, fundamentalmente, pelo fato de a divindade não gozar do mesmo prestígio em outros mosteiros budistas. De modo geral, segundo Shahar, a divindade tutelar genérica dos mosteiros budistas é Kuan Kung (Guangong, Kuan Yü ou Kuan Ti), personagem histórico da chamada "Era dos Três Reinos" (221 a 280 d.C.) alçado à condição de "super-herói" pela literatura e à de semideus pela religiosidade popular: ele goza de prestígio nos mosteiros, junto a famílias, a comerciantes e a praticantes de artes marciais (fig. 10). O personagem histórico teria 72

Imagens 8 e 9 em SHAHAR, p. 397 e p. 402. Na “Exposição sobre o Método Original de Bastão de Shaolin”. 74 "Os conceitos de bodhisattva nas seitas budistas do Theravada e do Mahayana são distintos; ainda assim, o papel último do bodhisattva, em ambas, é guiar a humanidade para a iluminação." Inf. de KING, M., in (c. 04.12.2003). Trad. livre do inglês. 75 Cf. STEVENS, "Chinese Gods – The Unseen World of Spirits and Demons", 1ª ed., Londres: Collins & Brown, 1997, 192 p., p. 89 e 90. 73

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sido decapitado; sua cabeça foi enterrada em Luoyang, num local onde, atualmente, há um templo em sua homenagem. Em Shaolin há uma réplica da "Serpente Verde", alabarda associada ao personagem.76 Segundo uma tradição surgida na Dinastia Song, Kuan Kung se tornou protetor dos mosteiros budistas depois de ter a sua alma salva pelo monge histórico Zhiyi (que viveu entre 538 e 597). O fato é que, em Shaolin, foi apeado de tal posição, sendo substituído por Jinnaluo. O culto ao novo guardião tutelar implicou na construção de uma estátua de vime (destruída em 1928) e de um espaço específico de culto; o santuário foi reconstruído em 1984 e, de acordo com Shahar, é palco de renovada devoção.

Além de Jinnaluo, outros seres sobrenaturais também parecem ter sido colocados a serviço da causa marcial em Shaolin. São eles os Luohan (ou Lohan, em sânscrito Arhat), na tradição budista indiana "veneráveis" ou "iluminados". O termo é aplicado aos seres que se salvaram para a eternidade. Normalmente, eles são representados como monges dotados de poderes extraordinários.77 Em Shaolin, aparecem em uma pintura mural no Qianfo dian ("Salão dos Mil Budas"). O Wubai Luohan ("Painel dos 500 Arhats") foi produzido por volta de 1630 – no período áureo da marcialidade no mosteiro - e mostra alguns de seus personagens portando bastões em atitudes explicitamente marciais. No caso dos Luohan, observa Shahar, o bastão não representou um "acréscimo iconográfico", posto que ele já era associado, primitivamente, ao personagem. Tal associação tem por base o fato de os Luohan serem representados como monges: um dos símbolos básicos do clérigo budista é o bordão de caminhante ou, então, o xizhang (em sânscrito, kakkara), bastão dotado de anéis. A diferença, pois, não é iconográfica, mas de atitude: alguns dos Luohan do “Salão dos Mil Budas” não estão usando o bastão 76

Ibid, p. 147 (Fig. 10 extraída da mesma p.). O modelo de alabarda de Kuan Kung é conhecido, no meio marcial, como Kuan Tao, expressão que pode ser traduzida como “Espada de Kuan” (Dao = espada pesada ou facão). 77 Cf. STEVENS, "Chinese Gods...", p. 95. 44

como apoio caminhar e nem têm rostos amigáveis. A bem da verdade, se parecem com “santos guerreiros” tentados a rachar os crânios de “inimigos da fé”. 2.3 - Dinastia Qing e séc. XX - outros estilos e a prevalência da "matriz Shaolin" Shaolin não foi a única “linha mestra” da marcialidade chinesa entre os séculos VII e XIX. Nesse período surgiram outras expressões marciais. Como explicar, então, a menor participação de tais expressões na memória marcial recente, dominada por Shaolin? A resposta está na identificação da matriz temporal dos atuais estilos: eles não nasceram há “milhares de anos”, como quer a tradição oral marcial, mas entre os séculos XVI e XX.78 Os fundamentos técnicos e as conexões religiosas já existiam há muito, mas só então é que os estilos se configuraram para formar o atual “Kung-Fu”. A ausência de referências a estilos “modernos” antes do século XVI pode estar ligada ao domínio institucional até então exercido pelos militares profissionais sobre as artes de guerra ou, então, ao fato de que técnicas foram desenvolvidas por milícias interioranas, normalmente formadas por camponeses iletrados e, portanto, incapazes de registrar as informações por escrito. A estagnação tecnológica e militar verificada a partir do séc. XV (provocada por fatores como a ausência de inimigos, a desmobilização de tropas e a aversão das autoridades por novas tecnologias),79 o crescimento da miséria nas áreas mais populosas da China e o espírito de rebelião motivado pela ascensão da Dinastia "estrangeira" Qing (ou Tsing, originária da Manchúria, região situada no nordeste da China) parecem ter aberto a porta para um desenvolvimento mais intenso da marcialidade junto a outros grupos sociais. Shahar observa que estilos “não-Shaolin” do atual cenário de Kung-Fu, como Tai-ChiChuan, Hsing I Chuan e Pa Kua Chuan (respectivamente, “Boxe do Grau Supremo”, “Boxe dos Punhos e do Pensamento” e “Boxe dos Oito Trigramas”),80 nasceram na mesma época em que a técnica monástica ganhava relevo. O Tai-Chi teria surgido no

78

O mesmo vale para os estilos desenvolvidos na matriz Shaolin. Ver PEERS, C. & SQUE, D., “Medieval Chinese Armies 1260 – 1520” (1ª ed., Londres: Osprey Publishing, 1992, 48 p.), p. 23 a 34, e DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 14 e 15. 80 Trad. dos termos cf. DERRICKSON, "Chinese for...", p. 20. 79

45

século XVII em Chenjiagou, Henan; o Hsing I e o Pa Kua teriam surgido em Shanxi no século XVIII.81 O aparecimento de artistas marciais errantes, fundamentais para a fixação da marcialidade na cultura popular chinesa, também data desse período. Segundo Shahar, esses personagens estavam entre o grupo social conhecido como jiangshi (“rios e lagos”), formado por milhões de pessoas que, sem ter ocupação fixa, circulava pelo país. No caso dos artistas marciais, a mobilidade

estaria

ligada,

também,

ao

aprendizado e a testes de habilidade. Muitos artistas se abrigavam em templos budistas, onde se apresentavam e ministravam aulas; esse fato teria reforçado os laços entre a marcialidade e Budismo na China. Estabelecida a gênese da moderna marcialidade, pode-se refazer a pergunta: o que levou à prevalência da chamada “tradição de Shaolin” no cenário marcial chinês? Alguns autores relacionam cerca de 400 estilos à tradição de Shaolin!82 Ela atingiu todo o país e foi, mesmo, matriz de um poderoso mito marcial sulista referente a um suposto mosteiro “Shaolin do Sul” (Nan Shaolin si) que teria sido construído em algum lugar de Fujian83 e dado origem a vários estilos de luta.84 Nossa conclusão é de que a tradição de Shaolin foi fixada em mitos de origem de grupos e não, aparentemente, na transmissão em grande escala de técnicas marciais. Esses mitos estavam relacionados ao movimento sectário chinês, nascido há séculos e reforçado, durante a Dinastia Qing, por grupos que mesclavam auxílio econômico mútuo, arte marcial, religiosidade e intenções sediciosas. Essa tradição pode ter origem, por exemplo, em obras nacionalistas relacionadas aos monges, como o “Epitáfio para Wang Zhengnan”, de Huang Zongxi.

81

SMITH & DRAEGER (“Asian Fighting…”, p. 18) se referem a Shantung como berço de estilos marciais. DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting…”, p. 13. 83 Inf. sobre Fujian em e (c. 15.12.2003). 84 Ver DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting…”, p. 45 e 46. 82

46

Draeger & Smith notam a presença de um mito de origem ligado a Shaolin na chamada “Tríade” ou Tiandihui, a "Sociedade do Céu e da Terra":85 criada em 1761 ou 1762 no Guanyinting (“Pavilhão de Guanyin”)86 de Gaoxi, Fujian (província apontada como berço do “Shaolin do Sul”), foi a mais importante das "sociedades de ajuda mútua" chinesas (fig. 11). No período anterior ao da “Guerra do Ópio” (1839 – 1842), seus integrantes teriam atuado em pelo menos 74 localidades. Características: fraternidade, segredo e participação em crimes e rebeliões.87 De acordo com o mito da Tríade (do qual existem várias versões, dentre elas sete produzidas nos séculos XIX e XX e compiladas por Murray),88 monges do mosteiro de Shaolin - localizado em Henan ou Fujian - teriam sido traídos e, depois, massacrados por um imperador Qing, provavelmente Kangxi (1662 1723);89 jurando vingança e apoiados pelo Céu – que se manifestou materializando um miraculoso queimador de incenso - os sobreviventes teriam se unido para criar a primeira Sociedade do Céu e da Terra. A lenda relativa à destruição do mosteiro por ordem da Dinastia Manchu também é corrente na tradição do Kung-Fu, como se pode observar, por exemplo, em um manual publicado em 1998 pela Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, de São Paulo, que cita o incêndio da unidade de Henan em 1736 e o de Fujian em 1768.90 Segundo os pesquisadores, é difícil provar a veracidade desses fatos: Shahar, por exemplo, diz desconhecer um incêndio no século XVII e, tampouco, a existência de um segundo mosteiro de Shaolin em Fujian;91 Ter Haar questiona o local de instalação do mosteiro de Fujian, observando a ocorrência, em nossos dias, de uma disputa entre os governos de Putian e Quanzhou pelo status de “cidade-sede do mosteiro de Shaolin em Fujian”. Apesar de construída a partir de pesquisas arqueológicas, essa disputa tem um objetivo essencialmente econômico: um segundo mosteiro de Shaolin poderia representar um significativo aporte de recursos do "turismo marcial".92 Henning, por sua vez, classifica de “espúria” toda informação sobre o mosteiro em Fujian: ele afirma que as confusões a

85

Trad. do termo por MURRAY, “The Origins...”, op. cit.; ver, tb., TER HAAR, “Ritual & Mythology...”. Imagem extraída de MURRAY, “The Origins...”, p. 2. 87 Cf. MURRAY, “The Origins...”, p. 5. 88 Ibid., Apêndice B, p. 197-228. 89 Cf. DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 45. Kangxi foi o principal imperador Qing, conhecido por sua inteligência e por seu interesse em demover os chineses de seu preconceito contra os manchus. 90 “Kung-Fu – Versão curta de uma história muito longa” (publ. da academia: São Paulo, 1998, 26 p.), p. 13. 91 Cf. inf. repassada através de e-mail em 10.10.2003. 92 TER HAAR, “Ritual & Mythology...”, p. 44. 86

47

respeito surgiram com a publicação da obra “Segredos do Boxe Shaolin” (1915), escrita por um patriota chinês sob o pseudônimo de “Mestre do Gabinete do Amor Próprio”. Pelo menos no que se refere ao mosteiro de Shaolin em Henan, as fontes colocam em dúvida a ocorrência de uma destruição completa nos séculos XVII-XVIII. Henning, por exemplo, se refere a dois relatos: o primeiro, “A Miscelânea de Zhonzhou”, de 1659, afirma que apenas dois monges mendicantes viviam no mosteiro naquele momento; o segundo, de uma visita ao mosteiro pelo oficial manchu Lin Qing em 1828, traz um quadro diferente, mostrando que no início do século XIX vários monges viviam lá e praticavam artes marciais. Segundo Lin Qing, em uma demonstração de habilidades marciais os monges se mostraram “ágeis como um pássaro e poderosos como um urso”. Shahar se refere a uma data mais recente de ocupação e de destruição de Shaolin: segundo ele, em 1928 - na esteira da chamada “Era dos Senhores da Guerra”, período entre 1917 a 1927 caracterizado por violentos combates entre milícias locais - os clérigos fizeram uma opção política desastrada, que acabou por implicar na redução do mosteiro a ruínas. Eles apoiaram Fan Zongxiu (1888 – 1930), que foi derrotado por Shi Yousan (1891 –1940). Em represália, Yousan incendiou o mosteiro em 15 de março de 1928. Um relato de 1936, feito por um visitante ocidental, confirma o esvaziamento do mosteiro.93 Shaolin só viria a ser reconstruído no início dos anos 80 do século XX, quando o governo de Beijing se apercebeu do potencial turístico do lugar. O primeiro passo foi a instalação de um “Comitê de Gerenciamento do Templo Shaolin” por Beijing, que em 1985 nomeou um novo abade, Yongxin, para o mosteiro.94 Em 1995, o departamento postal chinês emitiu uma série de quatro selos comemorativa dos 1.500 anos de fundação do templo. Atualmente, como observa Henning, Shaolin se tornou uma espécie de “parque temático” para praticantes de Kung-Fu, configurado para alimentar a fantasia dos turistas: em 1999, por exemplo, visitantes chineses e ocidentais gastaram o equivalente a US$ 66 milhões em visitas ao mosteiro! Em 2000, o mosteiro empregava nada menos que dois mil guias turísticos.95

93

O relato está presente em “The sacred mountains of China: Song Shan, the deserted”, de HERS, J., The China Journal, 24 (2), 76-82. 94 (c. 16.12.2003). 95 Inf. extraídas de “Ancient Buddhist Temple Untouched by Modern Tourism”, publ. pelo “Diário do Povo” (Beijing) em 28.12.2000 e disp. em (c. 17.12.2003). 48

As artes marciais praticadas atualmente na encosta do monte Song fogem às de qualquer “velha tradição”, seguindo as orientações da “nova arte marcial chinesa” ditada por Beijing. Atualmente, o mosteiro dispõe de 180 “monges guerreiros” que fazem demonstrações do moderno Wushu na China, Europa e América do Norte.96 O Budismo, controlado pelo Estado, parece não encontrar guarida para qualquer relação séria com “espíritos guardiões guerreiros”, apesar da observação de Shahar sobre o renascimento do culto popular a Jinnaluo. Os monges administradores, por sua vez, travam novas batalhas, como, por exemplo, a referente à exploração comercial da marca “Shaolin” por estrangeiros97 ou à inscrição do complexo religioso na lista de patrimônios da humanidade da ONU.98 2.4 - Arte marcial chinesa e modernidade Assim como Shaolin, também o conjunto da arte marcial chinesa foi batido pelos “ventos da contemporaneidade”. Essa mudança se deu em duas ondas, na instalação da República (1911) e na chegada dos comunistas ao poder na China continental (1949). A primeira etapa se caracterizou por uma tentativa de institucionalização e resgate dos estilos; teve como âncoras entidades como o “Instituto Central de Boxe Nacional e Cultura Física de Nanking” (de Sichuan), a “A Associação de Boxe Chinês” (de Chungking), a “Associação Provincial de Boxe de Kiangsu” e a “Associação Central de Kuo-Shu” (Guandong). Nos anos 20 foram organizadas várias competições nacionais e, em 1929, o governo republicano emitiu um documento determinando a criação, em todo o território chinês, de institutos para o ensino das artes marciais. Esse desenvolvimento foi barrado pela invasão japonesa à China, que colocou tais práticas na clandestinidade.99

96 Ver “Pilgrimage to Mecca of Kung-Fu”, em “China Daily” (10.08.2003), disp. em (c. 17.12.2003) 97 O artigo "Monks Battle Use of ‘Shaolin’ as Trademark” (publ. em 25.09.2002 pela agência Xinhua e disp. em , c. 17.12.2003), conta a batalha legal travada pelo governo chinês para manter o controle sobre as marcas “Shaolin” e “Shaolin Temple”. Em todo o mundo existiriam 117 produtos registrados com esses nomes. 98 O pedido de inclusão foi formalizado em 2002. A justificativa é de que o complexo abriga o maior conjunto de stupas funerárias do mundo (600), na “Floresta de Stupas” de Shaolin. Cf. “Shaolin Temple Pagodas to Apply for World Heritage Listing”, publ. pelo “Diário do Povo” (Beijing) em 22.07.2002 e disp. em (c. 17.12.2003). 99 A institucionalização do Kung-Fu no início do século XX é explicada por RAVIGNAT, M., em “External System – Modern Development”, disp. em (c. 17.12.2003)

49

A segunda etapa de transformação das artes marciais chinesas se deu a partir do final da Segunda Guerra Mundial e, principalmente, com a chegada de Mao Tsé-Tung ao poder, em 1949. Como observam Draeger & Smith, o “Grande Timoneiro” tinha plena consciência do valor “revolucionário” dessas artes,100 e tratou de moldá-las de acordo com sua visão de mundo: no primeiro artigo que publicou, “Um Estudo sobre Cultura Física” (1917), Mao criticou duramente a atitude da nação em relação às atividades físicas e ao corpo. Segundo Mao, “o principal ponto da educação física é o heroísmo militar”. Em 1951, a Federação Chinesa para Todos os Esportes começou a discutir o futuro das artes marciais e, em 1954, deu início à “estandardização” das rotinas, que implicou numa aproximação em relação a esportes ocidentais como a ginástica rítmica desportiva e, também, na supressão de muitos dos velhos elementos “subversivos” – entre eles os de caráter religioso.101 As primeiras competições dentro do novo formato – dividido nas categorias Chuan Chu (“formas de mãos livres”), Wu Shu (“formas com armas”) e Chang Chuan (“formas do punho longo”) – foram realizadas em 1957 e 1958. As lutas (San Shou) passaram a ser realizadas com equipamentos de proteção semelhantes aos usados no boxe e em “esportes

marciais”

como

o

Tae-Kwon-Do;

também

ganharam

ainda

uma

“ocidentalíssima” divisão em categorias, de acordo com o peso dos competidores.102 Em 1990 o Wu-Shu foi incluído, pela primeira vez, entre os esportes oficiais dos Jogos Asiáticos e, atualmente, os campeonatos mundiais da modalidade reúnem atletas de 56 países.103 No início do século XXI, um dos principais pleitos do Comitê Olímpico Chinês é transformar o Wu-Shu em esporte olímpico. As transformações na arte marcial chinesa durante o regime comunista não nasceram apenas nos gabinetes da burocracia. As guerras e, nos anos 60, a Revolução Cultural Chinesa, aceleraram o processo e implicaram em uma “disseminação forçada” do KungFu tradicional pelo mundo. Muitos mestres seguiram para Hong Kong, Taiwan, América e

100

Cf. SMITH & DRAEGER, “Asian Fighting...”, p. 20 e 21. Cf. RAVIGNAT, M., in “External System...”, op. cit. 102 FRÜHSTÜCK, S, & MANZENREITER, W., in “Neverland lost - Judo cultures in Austria, Japan, and elsewhere struggling for cultural hegemony” (art. publ. em In Befu, Harumi [Editor]. Globalizing Japan: Ethnography of the Japanese Presence in America, Asia, & Europe. Florence, KY, USA: Routledge, 2001, p. 69 to 93.), observam a transplantação da divisão em categorias de peso no Judô. 103 Cf. inf. disp. em (c. 17.12.2003). 101

50

Europa,104 locais onde, atualmente, se concentra o maior volume de praticantes de estilos tradicionais. A adoção e a interpretação dos conteúdos religiosos presentes nesses estilos por praticantes ocidentais – em especial, pelos brasileiros - é um tema que ainda não recebeu atenção por parte dos pesquisadores. 2.4.1 – A visão dos imigrantes chineses acerca dos “velhos métodos” Conforme já foi observado, a maior parte dos estilos "modernos" de Kung-Fu nasceu na China entre os séculos XVI e XIX, em um dos períodos mais complexos da História daquela civilização.105 Nesse contexto - que produziu rebeliões de grandes proporções, como as do Taiping (1840 - 1864),106 dos Nian (1851 - 1868)107 e dos Boxers (1900)108 as artes marciais floresceram principalmente junto às milícias locais e aos chamados grupos sectários. Eles reuniam toda sorte de descontentes com o governo Qing: líderes políticos e religiosos, imigrantes, minorias étnicas, agricultores, militares e bandidos. À exceção dos tempos de guerra declarada, porém, esses grupos - cujos exemplos mais conhecidos são a "Sociedade do Lótus Branco" e a "Sociedade do Céu e da Terra" quase sempre se mantiveram ocultos ou à margem da lei. Seu poder, porém, pode ser medido em termos de longevidade: Barent Ter Haar cita a perseguição policial a remanescentes da "Tríade" em Hong Kong nos anos 70!109 É possível, inclusive, que tais grupos sigam existindo sob outra roupagem – tudo leva a crer que os componentes da chamada "máfia chinesa" sejam seus herdeiros.110 Nesse contexto, a proximidade recente entre tradição marcial e um banditismo calcado na predação aos próprios sino-

104

Chan Kowk Wai partiu de Cantão para Hong Kong em 1949; em 1960 chegou ao Brasil, onde iniciou a difusão do Kung-Fu Shaolin do Norte. Ver (c. 05.09.2002). 105 Sobre a violência na China no período, ver SPENCE, J., "Em Busca da China Moderna - quatro séculos de História", 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 817 p. 106 Sobre o Taiping, ver SPENCE, J., "O Filho Chinês de Deus", 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1998, 412 p., e (c. 26.04.2004). 107 Sobre a Revolta dos Nian, ver e (c. 27.04.2004) 108 Sobre a Rebelião dos Boxers, ver HARRINGTON, P., "Peking 1900 - The Boxer Rebellion", 1ª ed., Oxford: Osprey Publishing, 2001, 96 p. e (c. 26.04.2004). 109 TER HAAR, "Ritual & Mythology...", p. 26 e 27. 110 Sobre a presença de mafiosos chineses nos EUA, ver o artigo de FINCKENAUER, J., "Chinese Transnational Organized Crime: The Fuk Ching", disp. em (c. 22.04.2004) 51

descendentes pode ter sido determinante para o afastamento entre o "homem chinês comum" e a arte marcial. O brutal confronto entre valores guerreiros tradicionais chineses (calcados em um élan fadado ao desaparecimento e no estímulo de governantes avessos a inovações tecnológicas) e os da sociedade européia (baseados na especialização e na predação colonialista) também pode ter sido decisivo para um afastamento entre o universo semântico marcial e a realidade-padrão da sociedade chinesa (fig. 12 e 13).111

A antiga visão chinesa, que conectava o Kung-Fu à instrumentalidade, à sobrevivência, à rebelião e a um "espírito nacional", parece ter sido substituída por outra, marcada pelo ceticismo em relação à sua finalidade no mundo real. Afinal, porque empunhar uma espada ou um tridente em tempo de fuzis e canhões Krupp? Esse olhar étnico negativo só parece ter se alterado a partir da segunda metade do séc. XX, quando o Ocidente se aproximou do Kung-Fu de forma positiva. Ainda assim, ele pode ter sido compartilhado por muitos dos imigrantes que chegaram ao Brasil. Não se pode esquecer, contudo, a forte presença marcial na cultura popular chinesa: muitas das histórias presentes no folclore, na literatura e, mais tarde, nos filmes, trazem personagens envolvidos com atividades guerreiras. É reveladora, por exemplo, a presença, nas histórias populares, de mulheres guerreiras, algo incomum em uma cultura

111

Fig 12 (A e B), in HARRINGTON, P., "Peking 1900…", p. 12 e 23. Fig. 13 in GÖTZ, H., “German Military Rifles and Machine Pistols”, 1ª ed., Pensilvania: Schiffer Publishing, Ltd., 1990, 245 p., p. 63. 52

fortemente marcada pelo patriarcado.112 Muitas das divindades das religiões populares também são portadoras de armas, usadas para afugentar fantasmas e demônios.113 Essa sobrevivência da marcialidade em uma "realidade fantástica" tem um caráter dos mais interessantes: se, por um lado, mantém uma conexão entre a sociedade e a tradição marcial, por outro parece relegar as práticas marciais a um plano distinto do da realidadepadrão. Por essa leitura, o Kung-Fu teria um caráter meramente folclórico ou, numa leitura mais radical, exótico ou fantasioso – em sentido figurado, algo como uma velha espada pregada na parede da sala de visitas. Um dado de observação empírica feita pelo autor desta dissertação contribui para reforçar essa afirmação: nos anos de 2001 e 2002 participamos, na condição de organizador, dos festejos do Ano Novo Chinês em Curitiba. Nesses dois anos, as apresentações folclóricas de corte marcial (a “Dança do Dragão” e a “Dança do Leão”) e as demonstrações de Kung-Fu foram realizadas por professores e alunos brasileiros vindos de várias regiões do país, sem a participação de nenhum sino-brasileiro. Estes, que se ocuparam principalmente das vendas de produtos típicos da cozinha chinesa, de uma barraca de caligrafia e de um campeonato de mah-jong (um tipo de jogo chinês), não participaram porque nunca haviam tido qualquer contato com a arte marcial chinesa! 2.5 – Um enfoque complementar: a "arqueologia" dos termos definidores na arte marcial chinesa Elementos históricos da arte marcial chinesa não se revelam apenas no estudo das fontes primárias. É possível descobrir dados complementares - especialmente em relação à matriz religiosa - pelo conhecimento do significado dos nomes utilizados para identificá-la na China e no Ocidente. Apesar de não constar dos dicionários brasileiros, Kung-Fu (

) é reconhecido, no

Ocidente, como sinônimo de “luta chinesa” (fig. 14).114 Em chinês, o termo expressa algo 112

A esse respeito ver APOLLONI, R., "Eu sou a Invencível Deusa da Espada! A representação da mulher na 'cultura marcial chinesa' e seus possíveis reflexos sobre as relações de gênero", texto disp. em (c. 29.03.2004). 113 Uma galeria de divindades chinesas pode ser encontrada em STEVENS, K., "Chinese Gods...”, op. cit. 114 Caligrafia: acervo do autor. 53

como uma habilidade intuitiva obtida pela repetição de uma ação.115 Ao associar maestria à superação do “Falso Ego”, o termo se aproxima da visão oriental de transcendência.116 Os chineses, porém, jamais utilizaram Kung-Fu para identificar sua arte marcial.117 Eles adotam os termos Wushu (

) e Guoshu (

),118 que significam, respectivamente,

“Arte Guerreira” e “Arte Nacional”.119 Um terceiro termo identificador é Chung-kuo Ch’uan - "Boxe do País do Centro".120 Outros termos são Ch’uan Fa, Ch’uan shu121 e Wuyi.122. A quantidade de termos é um indício da importância da arte marcial na cultura chinesa. De acordo com Draeger & Smith, a forma Kuo-Shu (Guoshu) teria sido adotada institucionalmente na China em 1928, em substituição a Wushu, que, segundo os autores, teve seu uso resgatado anos mais tarde. Esse “resgate” estaria relacionado à chegada dos comunistas ao poder na China continental: além de reafirmar o termo, Beijing impôs uma passagem das formas tradicionais para desportivas que implicou em sua releitura. Isso se deu pela criação de rotinas e modalidades de luta – hoje praticadas como parte das atividades físicas nas escolas de toda a China.123 Apesar de os autores não informarem como se deu a mudança de nomenclatura - eles afirmam, apenas, que foi "em um momento de promoção de grandes competições nacionais" -,124 vale observar que, também em 1928, o governo republicano chinês fundou a primeira grande instituição representativa das artes marciais nacionais, o Central Wushu Institute, em Nanjing. Esse nome parece desmentir um desejo das instituições chinesas de mudar a forma identificadora da arte marcial nacional.125

115

Trad. de "Kung-Fu" em DERRICKSON, "Chinese for...", p. 19. Para uma aproximação de corte psicológico da "habilidade intuitiva", ver JUNG, C., “Psicologia e Religião Oriental”, 1ª ed., Petrópolis: Vozes, 1980, 138 p., e WATTS, A., “O Budismo Zen”, 4ª ed., Lisboa: Editorial Presença: 1990, 249 p. 117 A não ser recentemente. Ver (c. 09.01.1997). 118 Variantes: Wu Shu, Wu-shu, Kuoshu, Kuo Shu e Kuo-shu. 119 Cf. DERRICKSON, "Chinese for...", p. 9, os elementos formadores desses termos são wu - relacionado a guerra, shu – a arte, e guo (ou kuo), a país. 120 Chung-kuo (lê-se “tzunkuo”) significa algo como “País do Centro” - denominação chinesa para seu próprio país - e ch’uang (chuan ou quan, lê-se “tchuen”) “pugilismo”. Cf. DRAEGER, D., & SMITH, R., "Asian Fighting...", p. 12. 121 Citados por DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting…", p. 12. 122 Cf. TER HAAR, B., “Ritual & Mythology...”, p. 516. 123 Cf. DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting...", p. 12 e 19. 124 Ibid., p. 19. Pode-se imaginar que a mudança tenha tido um caráter político: enquanto o apelo de Wushu seria belicista, o de Kuoshu seria nacionalista. 125 Sobre o Central Wushu Institute, ver (c 31.08.2003). 116

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Atualmente, a instituição representativa das artes marciais chinesas junto ao Comitê Olímpico Internacional (COI) é a International Wushu Federation, criada em 1990 na República Popular da China. Uma de suas metas é transformar o Wushu em esporte olímpico, numa estratégia semelhante à de Japão e da Coréia do Sul em relação ao Judô e ao Tae-Kwon-Do.126 Sobre esse projeto vale citar o filósofo Bruno Ballardini, da Universidade de Salerno: Depois de pelo menos 2000 anos de história, as mais tradicionais disciplinas chinesas parecem estar renascendo para uma nova vida. Mas sua moderna recodificação sob os auspícios da Revolução Cultural transformaram-nas dramaticamente tanto em forma quanto em substância, fazendo-as perder seu conteúdo “marcial” e tradicional. (...) Como documentos Maoístas confirmam, desde o estabelecimento da República Popular da China o Wushu se tornou um componente fundamental da cultura socialista e da educação física e desportiva, tendo se desenvolvido espetacularmente. Wushu oferece um extraordinário caso de uso ideológico de disciplinas físicas tradicionais para propaganda. Devido à falta de fontes recentes, algumas comparações podem ser feitas com a modernização de outras artes marciais “nacionais”, que já conseguiram adentrar ao sistema Olímpico: o japonês Judô e o coreano Tae Kwon Do. Pode-se concluir algumas coisas sobre a definição equivocada de “arte marcial”. Apesar de o governo Chinês insistir na manutenção deste termo, as disciplinas que seguem sob a definição de “Wushu” – que, literalmente, significa “Arte Marcial” – há muito não são artes marciais. Elas são, sob todos os aspectos, esportes 127 modernos.

A “ideologização” dos termos Wushu e Kuoshu também pode ser constatada em Taiwan: lá, o órgão representativo das artes marciais é a International Chinese Kuoshu Federation - o nome reafirma uma expressão tradicional e, por certo, um posicionamento ideológico. 2.5.1 – A verificação do elemento religioso nos termos identificadores da marcialidade na China Não há, nos termos que identificam genericamente a arte marcial chinesa, uma conotação religiosa. Assim, pode-se dizer que, nesse nível, a arte marcial chinesa não possui corte religioso. Já Kung-Fu possui uma ligação com a religiosidade: o termo chegou ao Ocidente no séc. XVIII, através dos relatos enviados por jesuítas que atuavam na China. Esses documentos descrevem exercícios respiratórios taoístas e práticas corporais de grupos que também praticavam formas de pugilismo e luta com armas. Apesar da proximidade entre marcialidade e religião nesses grupos, porém, ela parece

126

International Wushu Federation: (c. 31.08.2003). Sobre o Judô como produto cultural globalizado, ver FRÜHSTÜCK, S, E MANZENREITER, W., "Neverland Lost...", op. cit. 127 Original em (c. 31.08.2003). Trad. livre do inglês 55

não ter implicado em mudanças na visão geral da arte marcial ou no significado básico do termo "Kung-Fu" para os chineses. Já a nomenclatura dos estilos que compõem o gênero “arte marcial chinesa” aponta, em muitos casos, para o elemento religioso. É o caso do Shaolin do Norte, que tomou seu nome de um mosteiro budista. Esse empréstimo128 indica a natureza da relação entre marcialidade e religião na China, caracterizada pelo cruzamento de dois valores dominantes na cultura: religiosidade129 e violência. As diferenças de "proximidade religiosa" entre os termos definidores genéricos e os definidores dos estilos marciais chineses parecem indicar uma penetração mais intensa de valores religiosos no corpo marcial a partir de um certo período histórico, provavelmente no apogeu do movimento sectário chinês (sécs. XVI a XIX). Esse momento - marcado por um brutal aumento da violência na China - coincide com o surgimento dos principais estilos marciais chineses modernos e, também, com a chegada do termo Kung-Fu (Cong Fu) ao Ocidente. O crescimento da religiosidade na arte marcial, porém, não parece ter implicado em uma “sacralização” do conjunto da marcialidade, mesmo porque, na China, o poder das armas não foi privilégio de uma única casta, como ocorreu no Japão. Essa relação é fundamental para se chegar aos limites do corte religioso de nossa análise: ao contrário do que ocorreu no arquipélago nipônico, onde o Zen exerceu profunda influência sobre os controladores da prática marcial (a partir do séc. XVI), na China a relação marcialidade x religião se deu em bases aparentemente mais "pragmáticas" do que "transcendentais". O sentido de “instrumentalidade” é visível até em Shaolin, onde os monges não treinavam visando à transcendência, mas à sobrevivência material. A se confiar em certos relatos históricos, pode-se afirmar, inclusive, que em muitos casos a “fachada monástica” se prestava apenas ao acobertamento de atividades criminosas. De modo simples, pode-se dizer que o indivíduo não pretendia chegar ao Nirvana, mas, ao contrário, buscava chamar os “poderes celestes” para si e, dessa forma, mudar a realidade de acordo com 128

A lista de nomes relacionados à religião é imensa. Temos, p. ex., Tai-Chi-Chuan, Pa Kua, Lohan e Hsing I, que tomam seus nomes de elementos do universo budista ou taoísta. 129 “Uma afinidade pelo Taoísmo filosófico e pela Teoria dos Opostos parece permear a psique chinesa”. HENNING, “Academia Encounters...”, p. 320, trad. livre do inglês. 56

sua vontade (exemplos dessa tendência aparecem em rebeliões como a do T’ai Ping Tao130 e a do Taiping). O estabelecimento de culto a uma divindade marcializada em Shaolin durante a Dinastia Ming – em outras palavras, a adaptação da tradição religiosa à prática marcial, com vistas a legitimar essa última – se mostra a prova mais veemente dessa particular relação entre religião e marcialidade. Essa “marcialidade diferente do esperado” quebra um paradigma comum no Ocidente - o de que, na relação arte marcial oriental x religiosidade, o trabalho físico e o aprendizado são voltados necessariamente a um fim “transcendental” ou de natureza ética elevada. Shahar observa que, no caso de Shaolin, nenhum documento do século XVII associa a prática marcial à perfeição espiritual. O surgimento de um “Caminho Espiritual da Espada”, segundo o pesquisador de Tel Aviv, nasceu no Japão do século XVI, quando o mestre Zen Takuan Soho (1573 - 1645)131 estabeleceu o conceito de mushin (“nãomente”) e o associou à esgrima. Esse conceito, popularizado no Ocidente através de autores como Suzuki e Herrigel,132 foi pesadamente incorporado ao olhar ocidental sobre as artes marciais do Oriente. Que tipo de efeito ele pode ter sobre os praticantes brasileiros de arte marcial chinesa? Essa pergunta será respondida a partir dos dados da pesquisa de campo. 2.6 – Interpretação dos conteúdos do capítulo A análise do desenvolvimento histórico das artes marciais chinesas e de sua relação com a religiosidade traz dados interessantes para os pesquisadores das Ciências de Religião e da área específica da marcialidade. Inicialmente o de que, na China, a marcialidade instrumental – ou seja, despojada de considerações outras que não as derrotar e não ser derrotado - é muito antiga. Esse fim-em-si, que se revela nos nomes genéricos utilizados para a identificação das artes marciais, já contava com pelo menos doze séculos quando se deu o primeiro contato entre o campo militar e práticas corporais taoístas e budistas voltadas à longevidade e à transcendência. 130

“Rebelião dos Turbantes Amarelos”, ocorrida entre os anos de 175 e 205 sob o comando de Chang Chueh, defensor de uma doutrina de caráter escatológico. Ver (c. 13.08.2004). 131 Takuan foi autor de ensaios voltados à “Não-Mente”. Sua biografia e um de seus textos mais populares, “A Mente Livre: Escritos do Mestre Zen para o Mestre da Espada” podem ser encontrados, em inglês, em (c. 19.12.2003).

57

O ponto de contato – o corpo do fiel ou guerreiro – parece reforçar o caráter instrumental da relação: ao incorporar elementos religiosos, os praticantes buscavam finalidades mais “terrenas” do que “transcendentais”, como proteção mágica contra as armas e aquisição de força física extraordinária pelo cultivo do Chi (“Energia”, na tradição taoísta).133 O fato de que a “religiosidade marcial” chinesa só viria a ganhar força durante o apogeu do movimento sectário parece comprovar isso: aparentemente, esses praticantes não buscavam uma sofisticada “Iluminação Zen” ou um sutil “Paraíso Taoísta”, mas a transformação da realidade com apoio de forças sobrenaturais. As fontes primárias revelam, ainda, uma escassez de informações sobre os rituais mágicos ou religiosos específicos dos grupos marciais na China. Tal dificuldade pode ser superada, no caso do presente trabalho, a partir das entrevistas com os mestres originários, que fornecerão os elementos necessários à comparação com os dados obtidos junto aos praticantes brasileiros. Por fim, a aproximação entre o Shaolin “histórico” e o “das academias brasileiras” será feito a partir de uma comparação entre elementos como os apontados por Shahar (o culto de Jinnaluo) e os encontrados entre os grupos de praticantes pesquisados. Essa aproximação permitirá estabelecer uma hipótese que nos autorize a afirmar que a tradição das academias brasileiras decorre mesmo do mosteiro ou, então, que é fruto do movimento sectário chinês dos séculos XVI-XIX.

132

D. T. Suzuki (1870 – 1966) produziu obras como “Zen e a Cultura Japonesa”; Eugen Herrigel (1884 – 1955), “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”. 133 Uma lista interessante de “receitas mágico-marciais” pode ser encontrada em DRAEGER & SMITH (“Asian Fighting...”, p. 50 e 51). 58

3. UMA ESPADA NA BAGAGEM - IMIGRAÇÃO CHINESA E TRANSPLANTAÇÃO DO KUNG-FU DE SHAOLIN PARA O BRASIL 3.1 - Considerações Preliminares Este capítulo, que trata da relação entre imigração chinesa e transplantação do Kung-Fu para o Brasil, tem como ponto de partida dados empíricos: Chan Kowk Wai,134 introdutor do estilo "Shaolin do Norte"135 em nosso país, trocou Hong Kong (para onde havia seguido em 1949, vindo de Cantão) pela cidade de São Paulo em 1960.136 Como a maioria dos imigrantes, constituiu família e construiu patrimônio; além disso, trouxe na bagagem uma prática específica de sua cultura: o Kung-Fu de Shaolin. O segundo mestre chinês incluído em nosso estudo, Lee Chung Deh,137 também emigrou para o Brasil. Veio de Taiwan em 1966, aos 14 anos, e fez sua formação em Kung-Fu em terras brasileiras, como discípulo de Chan Kowk Wai (fig. 15 e 16).138

Diante de tais evidências, não há como negar a relação entre imigração e transplantação da arte marcial chinesa para o nosso país. Resta saber, porém, em que medida o domínio do universo semântico da arte marcial foi e é uma característica típica do imigrante chinês "médio". A partir da resposta a esse questionamento – que buscaremos encontrar no presente capítulo - é possível determinar dois pontos que consideramos essenciais em 134

Entrevistado, em nossa pesquisa, como "mestre chinês de primeira geração". Estilo de Kung-Fu que é objeto de nossa pesquisa. 136 Inf. in FREITAS, S., "Falam os Imigrantes... Memória e Diversidade Cultural em São Paulo", São Paulo, 2001. 374 p. mais anexos. Tese de doutorado. Dep. de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 137 Entrevistado, em nossa pesquisa, como "mestre chinês de segunda geração". Lee Chung Deh foi o responsável pela difusão do Shaolin do Norte na região Sul do Brasil na década de 70. 135

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nosso estudo. Primeiramente, a importância do conjunto da imigração chinesa na transplantação do Kung-Fu para o nosso país; em segundo lugar, o valor da arte marcial como elemento de construção da identidade étnica chinesa no Brasil. A determinação do segundo ponto permite inferir o grau de tensão na relação entre os emigrados chineses e os brasileiros interessados em praticar Kung-Fu. A medida dessa tensão, por sua vez, está diretamente relacionada à forma de difusão e às transformações semânticas da arte marcial chinesa em nosso país. 3.2 - Fontes sobre Imigração Chinesa no Brasil A presença chinesa no Brasil e seus reflexos sobre a sociedade e a economia locais são objeto de interesse por parte de pesquisadores e analistas da realidade brasileira desde o século XIX. No universo acadêmico estão trabalhos clássicos (mas de caráter pontual), como os de Gilberto Freyre139 e Câmara Cascudo,140 e recentes, como os de José Roberto Teixeira Leite,141 Sônia Maria de Freitas,142 Alexandre Chun Yuang Yan,143 Sally Borthwick,144 Sachio Negawa,145 Zhou Shixiu,146 Rafael Shoji147 e Giralda Seyferth.148

138

Imagem 13 - fotos A e B: década de 60; foto C: década de 90, séc. XX. Imagem 14 - foto A: década de 70; foto B: década de 90; foto C: década de 80, em Shaolin (acervo do autor). 139 FREYRE, G. "Louça da China no Brasil Antigo", artigo disp. em (cons. em 19.03.2004) 140 CASCUDO, C., "Dicionário do Folclore Brasileiro", Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Ediouro), n.d., 930 p., especialmente os verbetes "Cheiro" (p. 271) e "Papagaio" (p. 669). Câmara Cascudo nunca produziu um trabalho específico sobre as influências chinesas no folclore e nos hábitos brasileiros. Ainda assim, em algumas de suas obras aparecem referências ao contato entre as duas culturas. 141 LEITE, J., "A China no Brasil", 1ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1999, 288 p. mais anexos, e "Imigração Chinesa para o Brasil", in China em Estudo, São Paulo: FFLCH-USP, v.2 , n.2 , p. 49-57, jul./dez. 1995. 142 FREITAS, S. "Falam os Imigrantes...", op. cit. 143 YANG, A., "A Cultura do Chá no Brasil", in China em Estudo, São Paulo: FFLCH-USP, v.2 , n.2 , p. 4147, jul./dez. 1995. Idem, "O Budismo entre os Chineses no Brasil", in China em Estudo, op. cit, p. 49 a 57. 144 BORTHWICK, S., "Chinese at the University of Brasília", in China em Estudo, São Paulo: FFLCHUSP, v.2 , n.2 , p. 59-61, jul./dez. 1995. 145 NEGAWA, S., "Formação e transformação do bairro oriental: um aspecto da história da imigração asiática da cidade de São Paulo, 1915 - 2000", São Paulo, 2000, 137 p. mais anexos. Dissertação de mestrado. Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 146 Zhou Shixiu é coordenador adjunto do Programa China-Ásia-Brasil da Universidade Cândido Mendes (RJ). Seu estudo, sobre a presença de elementos chineses no Brasil colonial, é apresentado no artigo "Intercâmbio Brasil-China verificado antes do século XVIII" (sem autoria definida, disp. em , cons. 29.08.2002) 60

Revistas brasileiras de grande circulação, como "Veja", também deram atenção ao tema.149 Esses trabalhos lançaram luzes sobre elementos da cultura do "Celeste Império" e, principalmente, sobre as interações decorrentes de sua transplantação ao Brasil. Eles incluem, por exemplo, aspectos econômicos e filosóficos da imigração chinesa no século XIX, a cultura do chá em nosso país, a presença chinesa nas artes, arquitetura e costumes do Brasil colonial, a entrada recente de imigrantes, sua inserção na sociedade brasileira atual e a presença de cultos religiosos chineses em nosso país. 3.2.1 - Imigrantes e mestres de Kung-Fu A referência à marcialidade chinesa nesses trabalhos é, porém, praticamente inexistente. De todas as fontes pesquisadas, apenas uma - a tese de doutorado de Sônia Maria de Freitas - liga imigrantes chineses à prática do Kung-Fu e à disseminação dessa arte marcial no Brasil.150 Construído a partir de entrevistas com imigrantes, esse trabalho teve como objeto os grupos étnicos de menor expressão numérica que participaram do processo de imigração na cidade de São Paulo. No caso dos chineses, a relação com a arte marcial surgiu em entrevistas com integrantes da comunidade. Ao todo, Sônia Maria de Freitas entrevistou 13 representantes da colônia chinesa de São Paulo: deles, seis explicitaram uma relação com a arte marcial chinesa, dos quais dois como difusores (Chan Kowk Wai, mestre de Kung-Fu, e Wong Sun Keung, que na entrevista informou ser o introdutor do Tai-Chi-Chuan em São Paulo) e quatro como praticantes de Tai-ChiChuan. Vale lembrar que, ainda que seja uma arte marcial, o Tai-Chi-Chuan ingressou na

147

SHOJI, R., "Estratégias de adaptação do Budismo chinês: brasileiros e chineses na Fa Kuang Shan", artigo publicado em USARSKI, F. [org.], "O Budismo no Brasil", 1ª ed., São Paulo: Editora Lorosae, 2002, 317 p., p. 125 a 149. 148 SEYFERTH, G., "Colonização, Imigração e a questão racial no Brasil", artigo publ. na Revista da Universidade de São Paulo, seção "Textos", n. 53, pp. 117-49, mar.-mai./02. Disp. em (cons. 25.03.2004). O artigo de Giralda Seyferth não trata especificamente da imigração chinesa, mas se refere ao tema dentro do contexto da relação entre racismo e política de imigração no Brasil do séc. XIX. 149 "O Vasto Mundo da China em São Paulo", Vejinha On Line, "Especial 450 anos de São Paulo". Matéria disp. em (cons. 25.03.2004). 150 FREITAS, S., "Falam os imigrantes...", op. cit. Ementas dos depoimentos dos chineses entrevistados por Sônia Maria de Freitas estão disponíveis em (cons. 25.03.2004). 61

moderna sociedade ocidental como uma prática mais sofisticada, assumindo um prisma terapêutico e "estético".151 José Roberto Teixeira Leite, que se dedicou a pesquisar os usos e costumes chineses incorporados pela sociedade brasileira no período colonial -152 dentre eles, os de caráter corporal - não se refere a qualquer assimilação de conteúdos de natureza marcial. Vale observar que esse autor não tratou apenas de efeitos diretos da imigração chinesa ao Brasil no período colonial, mas principalmente das influências que aqui chegaram por conta do contato entre a metrópole portuguesa e a China (através de Macau). Essas influências foram marcantes principalmente na arte e na arquitetura. Há que se observar, porém, que, no período colonial – em função da política portuguesa para suas colônias -, não se estabeleceu um contato direto entre Brasil e Macau. Estudos como o de Rafael Shoji153 e Alexandre Chun Yuang Yan,154 que abordam especificamente a religiosidade chinesa em terras brasileiras, também não trazem informações sobre eventuais relações com a arte marcial. Pesquisas sobre arte marcial chinesa relacionadas a outras áreas do conhecimento acadêmico, como Educação Física, Fisioterapia e Medicina Desportiva, também são raras no Brasil. Uma consulta feita aos sistemas de bibliotecas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Universidade de São Paulo e da Universidade de Brasília apontou apenas um trabalho acadêmico específico sobre o tema "Kung-Fu", em nível de graduação.155 3.2.2 - Hipóteses para a ausência do elemento marcial nos trabalhos sobre os chineses no Brasil Acreditamos que a ausência do elemento marcial nos trabalhos acadêmicos sobre imigração chinesa no Brasil decorre de alguns elementos, tais como a negação ou a

151

Para informações sobre a História do Tai-Chi-Chuan, ver WILE, D., "Lost Tai-Chi Classics from the Late Ch'ing Dinasty" (1ª ed., Nova Iorque: State University of New York Press, 1996, 252 p.). 152 LEITE, J., “A China no Brasil”, op. cit. 153 SHOJI, R., "Estratégias de adaptação do Budismo chinês: brasileiros e chineses na Fa Kuang Shan", op. cit. 154 YANG, A., "O Budismo entre os Chineses no Brasil", op. cit. 155 CÂMARA, R., "Uma crítica ao mecanismo da educação física a partir da filosofia do kung fu", São Paulo, 2003. 86 p., trabalho de conclusão do curso de graduação em Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Registro completo in (c. 19.03.2004). 62

desvalorização da marcialidade na cultura imigrante, seu caráter menos aparente no universo cultural transplantado ou, mesmo, sua condição de “elemento subuniversal”. Possuindo a marcialidade uma presença tão poderosa na cultura chinesa, porém, como explicar essa "valoração a menor" de uma prática tradicionalmente associada ao espírito chinês e, mesmo, a uma espécie de élan nacional? Pensamos que é possível explicar esse aparente "esquecimento", marginalização ou ocultação do Kung-Fu pela sociedade chinesa da primeira metade do séc. XX - base do principal grupo de imigrantes que chegou ao Brasil - a partir de elementos históricos: ela se baseia, sobretudo, na visão das artes marciais tradicionais como “obsoletas” ou cabíveis apenas na literatura e no cinema.156 Modernamente, porém, com a revalorização do Kung-Fu, é possível que tal visão seja radicalmente alterada, não em termos étnicos, mas transculturais. 3.3 - Panorama histórico da imigração chinesa para o Brasil Apesar da escassez de informações que relacionem a imigração chinesa ao ingresso do Kung-Fu no Brasil, julgamos essencial estabelecer, a partir das informações presentes nos trabalhos acadêmicos acima citados, um panorama histórico geral da presença chinesa no Brasil. Esse panorama será apresentado de forma sucinta, uma vez que a maioria dos estudos acadêmicos sobre imigração chinesa nos quais nos baseamos está disponível em português. Atualmente, de acordo com informações coligidas pela pesquisadora Sônia Maria de Freitas, existem cerca de cem mil chineses (entre imigrantes e seus descendentes) no Brasil. Esse número não é pacífico: em texto para a homepage do Memorial do Imigrante (de São Paulo), a própria Sônia reviu os dados presentes em sua tese, informando que "Calcula–se que vivam hoje no Brasil cerca de 190 mil chineses e descendentes, 120 mil dos quais no Estado de São Paulo".157 Em matéria para a "Folha de S. Paulo", a jornalista Adriana Carranca informa que apenas em São Paulo "há, hoje, cerca de 20 colônias, que reúnem chineses de diferentes regiões e somam mais de 100 mil imigrantes."158 No ensaio "Chinese in Brazil", a pesquisadora Clara Chu informa a existência de 60 mil

156

Os dados que sustentam tais afirmações estão no item 2.4.1. In (c. 27.03.2004). 158 CARRANCA, A., “Colônias de SP reúnem mais de 100 mil pessoas”, in Folha de S. Paulo, p. C3, ed. de 02.06.2001. 157

63

chineses apenas em São Paulo.159 Utilizando dados de 1987 do "Anuário da Economia dos Chineses no Exterior" (do Comitê Mundial de Comércio e Negócios dos Chineses de Ultramar, de Taiwan), Rafael Shoji informa que há cerca de 100 mil chineses no Brasil.160 A discrepância entre os números indica a ausência de uma contagem populacional específica para a comunidade sino-brasileira ou, pelo menos, a falta de atualização dos dados. E onde vivem esses imigrantes? Eles se instalaram principalmente em centros urbanos como São Paulo, Curitiba, Foz do Iguaçu (PR), Belo Horizonte e Porto Alegre.161 Ainda que muitas famílias mantenham um forte vínculo com o segmento econômico de alimentação – em Curitiba, por exemplo, a maior parte das lanchonetes e restaurantes da área central pertence a famílias oriundas da China nas últimas três décadas -162 a presença chinesa também é visível em outros setores da economia, em universidades e instituições de pesquisa. Apesar de a presença chinesa no Brasil ser anterior à de outros imigrantes – os primeiros chineses desembarcaram no Rio de Janeiro em 1812, por autorização de Dom João VI – pode-se afirmar que a atual comunidade sino-brasileira pertence a um movimento recente de imigração. Com base em dados das fontes utilizadas (sistematizados na tabela 3) é possível estabelecer uma divisão nesse histórico de imigração. Ele é compreendido por duas fases: uma "antiga", verificada ao longo de todo o séc. XIX, e uma "recente", verificada a partir da segunda metade do séc. XX. Essa divisão, por nós proposta para a imigração chinesa ao Brasil, guarda certa semelhança em relação à divisão estabelecida por Wang Gungwu e citada pela

159

CHU, C., "Chinese in Brazil", in (c. 29.03.2004). 160 SHOJI, R., "Estratégias de Adaptação...", p. 130 161 CLEMENTE, I., em “Anistia da PF regularizou 9.229 pessoas”, in Folha de S. Paulo, caderno "Cotidiano", ed. de 23.07.2000, se refere à imigração chinesa durante os anos 90 (séc. XX). Segundo a autora, esses imigrantes, originários da República Popular da China, se instalaram principalmente em São Paulo, Foz do Iguaçu e Curitiba. 162 Na capital paranaense, a maior concentração de lanchonetes e restaurantes administrados por famílias chinesas está no eixo formado pelas praças Tiradentes, Generoso Marques, Rui Barbosa e Osório, e pelas ruas Quinze de Novembro, Tobias de Macedo, Barão do Cerro Azul, Marechal Floriano Peixoto, Marechal Deodoro, Riachuelo e Desembargador Westphalen. Informação obtida pelo autor a partir de observação de campo no período de dezembro de 2003 a fevereiro de 2004. 64

pesquisadora Marie-Paule Ha para a diáspora chinesa.163 Analisando a migração de chineses, ela identificou quatro padrões, relacionados fundamentalmente à motivação de saída da China e ao perfil dos emigrados: - o primeiro é o chamado de "Coolie" (Huagong), e se refere à importação de mão-de-obra para substituição da mão-de-obra escrava nas Américas, Austrália e Sudeste Asiático no séc. XIX; - o segundo é chamado de "Mercantil" (Huashang), e se refere a imigrantes tecnicamente mais sofisticados, artesãos e comerciantes que se estabeleceram, sobretudo, no sudeste asiático, também no séc. XIX; - o terceiro é chamado de “Temporário" (Huaqioa), e diz respeito a imigrantes que deixaram a China a partir do séc. XIX por conta das turbulências políticas que afetaram o país até a segunda metade do séc. XX; - e o quatro e último padrão é o chamado de "Remigrante" (Huay), e diz respeito a chineses de Taiwan e Hong Kong ou a sino-descendentes do Sudeste Asiático que, nas últimas três ou quatro décadas, seguiram para a Europa Ocidental, Austrália e América do Norte. Esses imigrantes têm como principal característica um alto nível educacional e de preparo

profissional;

por

conta

dessas

características,

são

assimilados

mais

tranqüilamente pelas sociedades em que se inserem. As duas fases que estabelecemos para a imigração chinesa ao Brasil estão diretamente relacionadas aos padrões um (Coolie) e três (Temporário) propostos por Wang Gungwu. Tabela 3 - Histórico da Imigração Chinesa para o Brasil Fase

Época 1514

Antecedentes coloniais

1553

Fato Relevante Navegadores portugueses chegam à China. Portugueses se estabelecem em Macau e iniciam um contato mais intenso com a cultura chinesa.

163

HA, M., "Cultural Identities in The Chinese Diaspora", art. disp. em (c. 16.04.2004). 65

1812

D. João VI autoriza a entrada de dois mil chineses no país. Desembarcam 400.

1843

Britânicos sugerem às autoridades brasileiras que importem 60 mil chineses.

1855

Nova entrada de chineses no Brasil. São 303, chegados ao Rio de Janeiro.

1855 - 1890

O movimento abolicionista cresce no Brasil. A idéia de importação de trabalhadores chineses gera polêmica entre intelectuais, que temem a "mongolização" do país. Positivistas acusam o governo de tentar "transferir a escravidão" para os chineses. Em 1870, fundação da "Sociedade Importadora de Trabalhadores Asiáticos", que se propunha a trazer chineses. A iniciativa não teve sucesso. Em 1874,

Fase 1

cerca de mil trabalhadores vindos de Cantão desembarcam no Rio de

Séc. XIX

Janeiro. Em 1880, primeira missão diplomática brasileira à China. Proposta de tratado de amizade, comércio e navegação. Acordo diplomático assinado a cinco de setembro. No ano seguinte, revisão do acordo. Em 1888, Henrique Lisboa, um dos integrantes da missão diplomática brasileira de 1880, publica "A China e os Chins", primeiro relato de viagem de um brasileiro sobre a China. 1900

Primeira entrada oficial de chineses em São Paulo: 107 pessoas, vindas de Lisboa no vapor "Malange". Foram abrigados na Hospedaria dos Imigrantes, na cidade de São Paulo, e depois seguiram para Matão (SP).

1949

Comunistas chegam ao poder na China Continental. "Diáspora Chinesa".

1960

Chan Kowk Wai, patriarca do estilo Shaolin do Norte no Brasil, desembarca

Fase 2

em São Paulo vindo de Hong Kong.

Séc. XX 1962

Fundado na cidade de São Paulo o 1º templo budista chinês brasileiro, o Mi To.

1966

Lee Chung Deh, discípulo de Chan Kowk Wai e difusor do Shaolin do Norte fora de São Paulo, desembarca no Brasil vindo de Taiwan.

1973

Fundação, na cidade de São Paulo, da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu (de Chan Kowk Wai).

1975

O Brasil e a República Popular da China estabelecem relações diplomáticas.

66

1980

Criação, em São Paulo, da Associação Cultural Chinesa do Brasil.

1985

Estabelecimento, em SP, do Consulado da República Popular da China.

Anos 90

Imigrantes chineses vindos da República Popular da China se estabelecem

Fase 2

em São Paulo, Curitiba e Foz do Iguaçu (PR). Em 1999, a polícia federal

(cont.)

brasileira regulariza a situação de cerca de 9.200 chineses clandestinos. Séc. XXI

A China se consolida como um dos principais parceiros comerciais brasileiros, principalmente no setor de produtos agrícolas.

2003

A Escola de Samba Águia de Ouro, de São Paulo, apresenta o enredo "A milenar cultura de um povo, quem tem olho grande já entra na China”. Participam do desfile passistas chinesas e praticantes de Kung-Fu. Apresentação, na cidade de São Paulo, da mostra "Guerreiros de Chian", a maior exposição de arte e cultura chinesa até então realizada no Brasil.

2004

O presidente da República do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, leva à China uma comitiva de políticos e empresários à China. O Brasil se esforça por ampliar os contatos com a China nas áreas comercial, científico-tecnológica e de infraestrutura.

3.3.1 – Expansão colonial e séc. XIX – Portugal como ponte entre Brasil e China A expansão colonial portuguesa na China é, sem dúvida, um tema rico em possibilidades de pesquisa. Em nosso contexto, porém, ela se coloca na condição de antecedente do contato Brasil-China, de pouca relevância para o estudo. A primeira fase da imigração vai do início do séc. XIX até a primeira metade do séc. XX, sendo caracterizada principalmente pelo interesse das autoridades brasileiras na captação de indivíduos que pudessem substituir os escravos nas lavouras de café ou colonizar terras. O problema da mão-de-obra, considerado grave já no início do século XIX (por conta da pressão britânica pelo fim do tráfico negreiro e, mais tarde, pelas pressões abolicionistas internas),164 fez com que o governo brasileiro construísse uma política de imigração que levou em conta, inclusive, os debates acerca de raça e miscigenação em voga naquele período. 164

Ver LEITE, "Imigração Chinesa...", p. 25 e 26. 67

Leite,165 Seyferth166 e Lesser167 observam que a questão da importação de trabalhadores chineses (conhecidos genericamente como coolies) para o Brasil suscitou acalorados debates entre autoridades e intelectuais brasileiros no período entre 1855 a 1890. Esses debates, centrados na questão racial - no receio da "mongolização do Brasil" e da mestiçagem -, parecem ter tido relação direta com o número de chineses trazidos ao país no período. O movimento positivista também participou das discussões, se colocando contra a imigração chinesa por considerá-la, na realidade, uma tentativa de implantação de uma "segunda escravidão" no Brasil. De fato, como observa Marie-Paule Ha,168 o padrão Coolie de imigração se caracterizou pela exploração brutal do trabalho e pelo preconceito racial. O interesse britânico em exportar trabalhadores ou em bloquear a saída de mãode-obra da China também foi determinante para a incipiente imigração chinesa ao Brasil no século XIX: segundo José Roberto Teixeira Leite, entre 1812 e 1889 cerca de três mil chineses desembarcaram no país.169 O número de indivíduos não foi suficiente para o estabelecimento de grupos suficientemente estruturados, que pudessem manter e replicar suas características étnicas. Vale observar que, em outros países latino-americanos, os mesmos entraves não se verificaram: no Peru, 90 mil trabalhadores chineses chegaram, até 1874, para substituir a mão-de-obra escrava nas lavouras de cana-de-açúcar e algodão;170 em Cuba, a importação chegou a cem mil trabalhadores entre os anos de 1850 e 1880.171 É preciso destacar que a concentração mais estruturada de imigrantes chineses em outros centros para onde seguiram, nesse período, não está relacionada, apenas, ao 165

Idem, "Os Imigrantes...", p. 29 a 39. SEYFERTH, G., "Colonização, Imigração...", op. cit. 167 LESSER, J., "Neither Slave nor Free, Neither Black nor White: The Chinese in Early Nineteenth Century Brazil", art. disp. em (c. 26.03.2004). 168 HA, M., "Cultural Identities...", op. cit. 169 LEITE, J., "Os Imigrantes...”, p. 39. O número toma por base cálculo de CONRAD, J., in "The Planter Class and the Debate over chinese Imigration to Brazil. 1850 - 1893", art. publ. em "International Migration Review", Nova Iorque: The Center for Migration Studies of New York, Inc., n. 1, p. 41 a 55, março/junho de 1975. 170 LEITE, J., "Os Imigrantes...”, p. 26. 171 Inf. in "A Chinese man's odyssey to Cuba", art. sem autoria definida publ. in San Francisco Examiner e disp. em (c. 29.03.2004). 166

68

número de indivíduos. Em países como os Estados Unidos, que recebeu um número muito grande de imigrantes chineses,172 a imigração teve como uma de suas conseqüências o estabelecimento de Chinatowns - bairros étnicos que abrigaram boa parte dos emigrados. Esses bairros, que tiveram um papel fundamental para a preservação de características culturais do país de origem, foram formados por conta de pressões da comunidade branca, que não admitia conviver com indivíduos considerados racialmente e culturalmente "inferiores".173 Jonathan Spence se refere a algumas das diferenças culturais que reforçaram a segregação: Os chineses - ou "mongóis", como muitos brancos começaram a chamá-los - eram também antipatizados e temidos pelos ocidentais devido à relativa estranheza de seus costumes sociais. A trança que muitos homens ainda usavam parecia bizarra nos Estados Unidos. Os americanos observavam a proporção extremamente alta de homens para mulheres nas comunidades chinesas - em 1880, havia mais de 100 mil chineses do sexo masculino vivendo no Oeste do país, para apenas 3 mil do sexo feminino - e, sem procurar entender os motivos disso, consideraram-nos como anormais. O som monótono da fala chinesa, a propensão de alguns a fumar ópio e a queda de outros pela bebida e pelo jogo, sua disposição para comer coisas com aparência esquisita ou sensaboronas, tudo se combinou para criar um clima cheio de boatos no qual ganhavam destaque a iniqüidade e a 174 depravação dos chineses.

No caso brasileiro, qual o destino desses poucos imigrantes chineses da primeira fase? Segundo José Roberto Teixeira Leite,175 eles se concentraram principalmente no Rio de Janeiro, onde trabalharam como peixeiros, cozinheiros, fogueteiros e tintureiros, na maior parte das vezes em péssimas condições de vida. Dispersos em uma sociedade institucionalmente menos organizada e com menor grau de restrições à miscigenação pelo menos, no nível popular - acabaram absorvidos, inclusive em seus traços raciais. 3.3.2 - Segunda metade do séc. XX - "Fase 2" da Imigração Chinesa para o Brasil A segunda fase da imigração vai de 1949 – ano da “Diáspora Chinesa” provocada pela tomada do poder pelos comunistas na China continental – até meados dos anos 70,

172

Uma lista de artigos acadêmicos e jornalísticos sobre a presença chinesa nos EUA podem ser encontrados em (c. 16.04.04). 173 Ver HA, M., "Cultural Identities...", op. cit. 174 SPENCE, J., "Em Busca da China...", p. 219. 175 Tomando por base obras como "O Rio de Janeiro do meu tempo" (1938), de Luiz Edmundo. In LEITE, J., "Os Imigrantes...", p. 39. 69

quando chegaram ao Brasil famílias chinesas expulsas das antigas colônias portuguesas na África (Angola e Moçambique) por conta de guerras civis.176 Antes de seguir com a descrição dessa fase, julgamos importante tecer algumas considerações a respeito do termo "diáspora", utilizado em muitos ensaios acadêmicos sobre o movimento migratório chinês na segunda metade do século XX. O termo vem do grego diasporá (

), que significa "dispersão". De acordo com a definição

dicionarizada, "diáspora" pode ser definida como "a dispersão dos povos por motivos políticos ou religiosos, em virtude de perseguição por grupos dominadores intolerantes".177 O caso da imigração chinesa recente pode ser incluído nessa definição. Aos motivos elencados pelo dicionarista como motivadores da dispersão, podemos acrescer o de caráter econômico: por força da má distribuição de renda - determinada, entre outros fatores, pelo esforço dos grupos dominantes em manter o controle sobre a riqueza populações são levadas a deixar seus locais de nascimento para "tentar a vida" em outros lugares. O termo também mereceu atenção de pesquisadores do universo religioso. É o caso de Martin Baumann,178 que se questionou a respeito dos elementos que qualificam uma situação como sendo de diáspora. Segundo Baumann, uma situação de diáspora se apresenta quando um grupo de pessoas perpetua uma identidade pela associação com um território geográfico (e suas tradições culturais e religiosas) fictício ou há muito tempo distante de sua realidade-padrão. Nos parece que a diáspora chinesa não se encaixa nessa definição, uma vez que o território de origem e a cultura "de berço" dos imigrantes - apesar da dinâmica natural das sociedades - seguem existindo. Além disso, há que se considerar, no caso chinês, o poder econômico e de comunicação dos emigrados, que facilitou o estabelecimento de pontes – ainda que restritas - em relação a seu território de origem. Wong, no abstract do artigo "Belonging and Diaspora: The Chinese and Internet", observa que "no caso da 176

Não encontramos referências sobre a entrada de chineses das colônias portuguesas na África para o Brasil. Nos anos 70, famílias vindas de Moçambique desembarcaram em Curitiba. 177 HOLANDA, A., "Novo Dicionário Aurélio", 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975, 1517 p., p. 474. 178 BAUMANN, M., "Becoming a Colour of the Rainbow: Indian Hindus in Trinidad Analysed along a Phase Model of Diaspora", paper apresentado ao 18th Congress of the International Association for the History of Religions, Durban, África do Sul, agosto de 2000, 11 p. 70

comunidade chinesa ficou claro que, embora a internet tenha sido útil para a criação de uma presença chinesa, ela jamais privilegiou o essencialismo e a hegemonia comunal."179 Feitas as considerações acerca dos limites do termo "diáspora", podemos voltar à análise da segunda fase da imigração chinesa no Brasil. A partir da segunda metade do séc. XX, o movimento migratório não partiu de uma demanda brasileira, mas de situações decorrentes do contexto internacional - avanço do comunismo na China e as revoluções que, na esteira da Guerra Fria, levaram à independência das ex-colônias européias na África - que implicaram no deslocamento de milhões de chineses para vários países: atualmente há cerca de 44 milhões de chineses ultramarinos vivendo apenas em países da Ásia.180 É nesse período, efetivamente, que a presença chinesa em terras brasileiras se tornou mais perceptível, com a instalação de entidades culturais de caráter étnico como igrejas e movimentos religiosos, centros comunitários, escolas para o ensino da língua e da escrita e centros de prática de arte marcial criados por imigrantes.181 Apesar dessa "sinalização" da presença chinesa recente, ainda são poucos os trabalhos acadêmicos voltados ao tema. Além deles, porém, há outra fonte relevante de informações sobre a comunidade sino-brasileira da segunda fase de imigração: a imprensa. Em nossa pesquisa encontramos dez notícias diretamente relacionadas à presença chinesa recente no Brasil, publicadas em jornais e revistas entre 1993 e 2004. Esse número, evidentemente, deve ser encarado com o devido cuidado, uma vez que a pesquisa foi feita apenas junto a jornais e revistas brasileiros de grande circulação, em um período limitado de tempo. Diante da quantidade de veículos de imprensa existentes no país, é de se presumir que outras matérias enfocando a imigração chinesa tenham sido publicadas.

179

WONG, L., "Belonging and Diaspora: The Chinese and Internet", paper publicado in First Monday - Peerviewed Journal on Internet, abstract disp. em (c. 29.03.2004). Trad. livre do inglês. 180 Inf. in O’BRIEN, T., “A Nova Zelândia e a ASEAN”, art. disp. em (c. 28.03.2004). 181 O site (c. 29.08.2002), do Instituto Cultural Chinês (Belo Horizonte), lista 41entidades culturais sino-brasileiras, entre associações culturais (6), escolas (11), centros religiosos cristãos e budistas (21) e academias de artes marciais (3). 71

As notícias abrangem temas diversos, tais como a presença de colônias chinesas em cidades brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro e Londrina),182 apresentações culturais (como as mostras "Guerreiros de Chian"183 e "A Viagem do Dragão: Arte e Imigração Chinesa"184), a medicina tradicional,185 o Kung-Fu186 e até uma interação radical entre as culturas chinesa e brasileira verificada no carnaval de 2003 em São Paulo, quando escola de samba Águia de Ouro levou para o Sambódromo o enredo “A milenar cultura de um povo, quem tem olho grande já entra na China”.187 Há, evidentemente, dezenas de outras notícias e artigos enfocando aspectos diversos da cultura chinesa, tais como a religiosidade, a arte marcial, a medicina, a arquitetura, os locais de visitação turística, a economia e as relações internacionais; elas refletem um aparente aumento do interesse dos brasileiros pelo "Celeste Império" e, sem dúvida, o crescimento da China como objeto de atenção do mundo do século XXI. Como, porém, não estão diretamente relacionadas aos imigrantes chineses que se instalaram no Brasil a partir da segunda metade do século XX, não as incluímos em nosso universo de consulta. Uma análise das matérias referentes à imigração chinesa recente para o Brasil mostra que, de modo geral, os veículos brasileiros mostram sensibilidade para o tema, observando-o a partir de campos temáticos bem definidos, como o da arte, da culinária, da medicina e da arte marcial. No que respeita a esse último campo temático, observa-se um embasamento em “informações consolidadas” -188 decorrentes da representação 182

São Paulo: “O Vasto Mundo...”, Vejinha On Line, op cit.; Rio de Janeiro: CLEMENTE, I., “Chineses invadem ‘área nobre’ da Rocinha”, in Folha de S. Paulo, ed. de 23.07.2000; Londrina (PR): MASCHIO, J., “‘Chinatown’ pode virar bairro fantasma no PR”, in Folha de S. Paulo, p. C8, ed. de 01.08.1993. 183 A exposição “Guerreiros de Chian”, realizada na Oca (cidade de São Paulo) entre 20 de fevereiro e 8 de junho de 2003, foi objeto de diversas matérias de jornais de todo o país, como a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e a Gazeta do Povo (de Curitiba). 184 GUARIGLIA, A., “Mostra traz arte e imigração na China”, in Folha de S. Paulo, p. E2, ed. de 26.11.1997. 185 “Chinês faz remédio com ervas brasileiras”, matéria sem autoria definida, publicada in O Estado de S. Paulo, caderno “Seu Bairro”, ed. de 08.12.1995. 186 SEBBA, J., “De olhos bem puxados, a revanche”, in VIP Exame, São Paulo: Editora Abril, n. 188, dez. 2001, p. 144. 187 In O Estado de S. Paulo, a matéria “Vai-vai e Gaviões se destacam” (sem autoria def., p. C1, ed. de 02.03.2003), informa que “numa das alas, um grupo de lutadores fazia exibição sincronizada de kung-fu” e que “em outra, ainda, mulheres com ascendência chinesa faziam evoluções com leques”. Outra matéria – “Águia de Ouro trouxe passistas chinesas para o Anhembi” -, publ. no site Globonews.com. (sem autoria def., in , c. 02.03.2003), informa que a escola de samba trouxe “passistas chinesas enviadas pelo consulado da China no Brasil para representar o país”, e que “outro destaque foi uma ala com centenas de lutadores de kung-fu”. A letra do samba enredo da Águia de Ouro pode ser encontrada em (c. 02.03.2003). 188 O tema da representação e da auto-representação no Kung-Fu brasileiro é tratado em detalhes no cap. 4 desta dissertação. 72

brasileira da arte marcial chinesa, construída a partir, principalmente, dos produtos da indústria norte-americana de entretenimento que chegaram ao nosso país nos anos 70 (séc. XX) - que fogem de dados mais precisos sobre o tema. Na matéria “De olhos bem puxados, a revanche”,189 o jornalista Jardel Sebba relata sua vivência de um mês na Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, como discípulo de Chan Kowk Wai. A matéria revela coisas importantes, como o respeito que os alunos devotam ao mestre e a extensão do universo marcial, que inclui métodos terapêuticos. Ainda assim, se fixa em informações genéricas ou pouco precisas do tipo “o clima é totalmente Zen” e “geralmente a figura é um velhinho temido e respeitado por todos”. Em várias visitas a academias - inclusive à Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, base da matéria de Jardel Sebba - não encontramos elementos suficientes para informar que o clima, lá, é “Zen”. Trata-se de locais de prática onde, efetivamente, os alunos desenvolvem trabalho marcial, sem grandes considerações pelo aspecto religioso. Ainda que as percepções – a do repórter e a nossa – possam variam em função do olhar pessoal sobre o tema, vale destacar que o trabalho na academia Sino-brasileira de Kung-Fu não inclui a meditação, que é um dos pilares do Zen. No que se refere à figura do mestre como um "velhinho chinês", vale observar que, atualmente, o número de mestres chineses em atividade no Brasil é infinitamente menor que o de professores brasileiros. Durante a recolha de matérias jornalísticas sobre a imigração chinesa recente, nos chamou a atenção a ausência de matérias a respeito da religiosidade chinesa no Brasil. O número de entidades de caráter religioso (budistas e cristãs) voltadas à colônia chinesa é relevante e poderia, de per se, gerar pautas de interesse.190 Ainda que não possamos comprovar cientificamente - uma pesquisa a esse respeito foge do nosso objeto de estudo -, acreditamos que essa ausência reflete uma visão da sociedade brasileira sobre a religiosidade oriental (especialmente no caso do Budismo) que não distingue aspectos étnicos, linhas ou escolas.

189

SEBBA, J., “De olhos...”, p. 144.

73

3.4 - Interpretação dos conteúdos do capítulo A ausência de dados documentais a respeito da presença de elementos marciais chineses no Brasil do século XIX e da primeira metade do século XX (primeira fase da imigração) não nos permite concluir sobre sua chegada ao Brasil. Ainda que seja tentador pensar que a Capoeira – prática de caráter marcial tipicamente brasileira, nascida nas senzalas e desenvolvida em cidades de caráter cosmopolita, como o Rio de Janeiro e Salvador - possa ter recebido elementos do Kung-Fu a partir de imigrantes ou de marinheiros chineses (as duas artes guardam semelhanças técnicas e até de “ritmo de combate”), não há elementos que permitam comprovar tal assertiva.191 A constatação de que dois dos mestres incluídos em nossa pesquisa de campo são emigrados da segunda fase nos permite concluir que existe relação direta entre a imigração chinesa recente e a transplantação do Kung-Fu para o Brasil. A ausência de uma quantidade significativa de informações a esse respeito em fontes acadêmicas e jornalísticas brasileiras - que abordam temas como a imigração chinesa no período colonial e recente, os hábitos e costumes chineses incorporados pela sociedade brasileira, a religiosidade e a influência chinesa nas artes e arquitetura - nos leva a crer, porém, que essa transplantação se deu de forma "pontual", ou seja, foi levada a termo por uns poucos indivíduos que, a partir de um certo momento, passaram a disseminar sua arte entre brasileiros e, com isso, se afastaram de um público "étnico". Em sua entrevista para esta pesquisa, Chan Kowk Wai informou que, em um determinado período dos anos 60, deu aulas apenas para chineses no Centro Social Chinês de São Paulo. Ainda nos anos 60 e também na década seguinte, graças, entre outros motivos, ao sucesso dos filmes de Bruce Lee e da série de TV "Kung Fu" no Brasil, ele fundou uma academia freqüentada por descendentes e não-descendentes de chineses. Essa passagem parece ter implicado em um "distanciamento do fator étnico" provocado, sem dúvida, pela visibilidade adquirida pela arte marcial chinesa e, certamente, pelas perspectivas econômicas relacionadas ao ensino do Kung-Fu.

190

O site (c. 29.08.2002) relaciona 21 centros religiosos cristãos e budistas estabelecidos pela colônia chinesa brasileira. 191 Vale, aqui, o “Princípio da Navalha de Okham”. Para informações históricas sobre o desenvolvimento da Capoeira, ver CASCUDO, "Dicionário do Folclore Brasileiro", op. cit., p. 241 a 243. 74

A percepção de que o conhecimento marcial não é uma característica necessária ao universo semântico do "imigrante médio", e de que muitos dos imigrantes guardam maior distância em relação à arte marcial do que os brasileiros praticantes, permite concluir que a importância do conjunto da imigração chinesa na transplantação do Kung-Fu para o Brasil é relativa. Permite concluir, também, que a arte marcial não é um elemento de construção da identidade étnica chinesa no Brasil; ela pode ser incluída, talvez, na representação brasileira dos chineses. Um exemplo da representação brasileira de que "todo chinês é um Bruce Lee" pode ser visto na matéria de Jardel Sebba.192 Se grande parte dos sino-brasileiros não participa do universo de prática do Kung-Fu no Brasil - à exceção dos mestres originários que ainda ministram aulas, bem como de um certo número de interessados (concentrados na cidade de São Paulo) -, pode-se inferir que não há tensão na relação entre os emigrados chineses e os brasileiros que buscam a praticar arte marcial chinesa. Se essa tensão ocorre, ela se dá no nível mestre-discípulo, ou seja, na empatia que faz com que um aceite (ou rejeite) o outro. Esse é um elemento de caráter pessoal, que vai além, portanto, da tensão étnica. A ausência de tensão entre emigrados e brasileiros em relação à transmissão da arte marcial chinesa nos leva a acreditar na existência de implicações para o Kung-Fu brasileiro. A primeira delas, sem dúvida, diz respeito à apropriação da prática pelo público não-chinês e ao caráter inclusivo por ela assumido ao longo do tempo. Informações recolhidas em conversas com a presidente da Federação Paranaense de Kung-Fu, Eliane Pontes Cardoso,193 dão conta dos limites dessa inclusão: atualmente, no Paraná, há professores de Kung-Fu mesmo em municípios aonde imigrantes chineses jamais chegaram. Muitos desses professores nunca fizeram contato com mestres chineses ou com técnicas tradicionais, tendo criado estilos a partir de uma leitura peculiar de revistas e dos filmes norte-americanos e chineses de arte marcial. Atualmente, uma das principais metas da Federação Paranaense de Kung-Fu é fazer com que esses professores (conhecidos pejorativamente como "piratas" no meio marcial) se graduem em estilos reconhecidos pela Confederação Brasileira de Kung-Fu e que, com isso, saiam da "marginalidade marcial".

192 193

SEBBA, J., “De olhos...”, p. 144. Entrevista realizada em dezembro de 2003, em Curitiba. 75

A segunda implicação, decorrente da primeira, se refere a mudanças mais rápidas no universo semântico do Kung-Fu, com efeitos, por exemplo, sobre os elementos religiosos nele presentes. Ainda que os mestres originários ensinem conteúdos tradicionais e deixem subentendida a determinação de que seus alunos brasileiros aceitem e respeitem os elementos semânticos replicados, há que se considerar que essa cobrança se dá num nível diferente da que existiria se a arte marcial fosse ensinada, por exemplo, em um meio étnico, onde a presença de "muitos olhos chineses" poderia implicar em uma necessidade de mergulho na ortodoxia. Há que se considerar ainda que, em um meio étnico, o acesso a informações "de raiz" é maior: ao ter dúvidas sobre um termo ou conceito transmitido pelo mestre, o aluno poderia tentar esclarecê-las junto a sino-brasileiros que estivessem em uma situação de maior proximidade.

76

CAPÍTULO 4 - DE BRUCE LEE À INTERNET - REPRESENTAÇÃO E AUTOREPRESENTAÇÃO NO KUNG-FU BRASILEIRO 4.1 – Considerações Preliminares A formação de uma comunidade de praticantes de Kung-Fu no Brasil não se baseou apenas em mestres chineses. A presença chinesa, apesar de antiga na comparação com a de outras etnias, deixou marcas menos aparentes entre nós. Considerando a arte marcial como uma fração do universo cultural chinês, pode-se deduzir que o número de mestres originários é pequeno. Seriam eles os responsáveis pelo sucesso do Kung-Fu no Brasil? Em parte sim, fundamentalmente no que tange à transmissão de conteúdos de caráter corporal. Mas, como será possível observar neste capítulo - que trata da representação/auto-representação194

na

arte

marcial

chinesa

-

a

indústria

do

entretenimento e, a partir dela, a oferta local de produtos de Kung-Fu, também desempenharam um papel importante para a instalação desse subuniverso cultural.195 Apesar da presença chinesa nas produções cinematográficas dos anos 60, vale lembrar que, no Ocidente, predominaram as produções norte-americanas, ou, então, filmes chineses lidos pelo mercado dos Estados Unidos e, a partir daí, replicados para outros países. Isso determinou uma releitura dos conteúdos da tradição, com mudanças no universo semântico das artes marciais neste lado do mundo. Em nossa pesquisa elencamos, inicialmente, fontes da "primeira onda" da arte marcial chinesa no Brasil, que vai dos anos 70 até o início dos anos 80. As demais fontes se referem à segunda metade dos anos 80 e aos anos 90. Vale observar que o número de documentos que compõe o universo da representação e, principalmente, da autorepresentação dentro da arte marcial chinesa no Brasil, é relativamente extenso. Por conta da dimensão desta dissertação, buscamos reunir exemplos que pudessem representar esse universo - e suas principais características - de forma emblemática.

194

A afirmação de um universo semântico diverso do da realidade-padrão implica na geração de um subuniverso (caracterizado pela diferença) ou de uma subcultura (caracterizada pela condição marginal). Ela gera representação e auto-representação. Cf. BERGER, P. & LUCKMANN, T, "A Construção Social da Realidade", 21ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2002, 247 p., p. 35 a 46 e 117 a 126. 195 Ver MEYERS, et. al., "From Bruce Lee to the Ninjas – Martial Arts Movies", 1ª ed., Nova Iorque: Carol Publishing Group, 1991, 256 p., p. 45 a 58 e p. 61 a 162. 77

4.2 – Anos 70 do século XX - O "primeiro sangue" do Kung-Fu no Brasil Os anos 70 foram marcados pelo surgimento, no Ocidente, de produtos culturais relacionados à representação no Kung-Fu: filmes e séries televisivas, histórias em quadrinhos, músicas e publicações populares. A presença desses produtos levou pesquisadores a identificarem a arte marcial chinesa como fenômeno transcultural, ou seja, que já deixou os limites de uma cultura nacional e foi apropriado (e realimentado) por fontes culturais diversas.196 Diferentemente de produtos anteriores voltados à representação da cultura chinesa, marcados pelo estranhamento e pelo preconceito racial,197 eles se centraram na marcialidade e em valores considerados nobres pela sociedade ocidental, como habilidade marcial, sabedoria, coragem e honra. Dentre os produtos culturais dessa fase estão os relacionados a Bruce Lee, a série de TV "KungFu", o filme "Shaolin Temple", quadrinhos e livros. 4.2.1 - "Tranqüilo e Infalível como Bruce Lee" As "sessões Faixa Preta" nos cinemas dos anos 70198 influenciaram muitos professores brasileiros de Kung-Fu. Um exemplo é Ariovaldo Veiga, co-autor do livro "Kung Fu Shaolin do Norte – Técnicas Básicas - 1º e 2º Kati".199 Em um artigo disponível na internet, ele dá o seguinte testemunho: “(...) atraí-me pelo Kung Fu primeiro pelos seus aspectos marciais e somente depois pelos seus aspectos filosóficos: Os aspectos marciais começaram a me atrair nos filmes que eram exibidos em Piracicaba na década de 70, onde encontrei meus primeiros ídolos na arte (...)”.200 Veiga dá outras pistas sobre a construção do universo marcial-filosófico dos professores brasileiros de primeira geração: cita a revista esotérica “Planeta” e autores como Jacques Bergier ("O Despertar dos Mágicos"), Huberto Rohden (tradutor do "Tao Te Ching"), 196

Ver HUNT, L., "Kung Fu Cult Masters - From Bruce Lee to Crouching Tiger", 1ª ed., Londres: Wallflower, 2003, 229 p. 197 Um exemplo é "Fu Manchu", de Sax Rohmer. Ele é "o perigo amarelo encarnado em um só homem", seg. MAC DONAN, K., "Le Maitres de L´Etrange", 1ª ed., Paris: Éditions Atlas, 1985, 244 p., p. 137. Outro vilão, Ming de Mongo (de 1934, por Alex Raymond), possui nome chinês e traços orientais. Para Ming de Mongo, ver (c. 04.01.2004). 198 Entre 1970 e 1973, trezentos filmes de Kung-Fu foram lançados no mercado internacional. Cf. HUNT, "Kung Fu Cult...", p. 3. 199 CHAN, W., e VEIGA, A., "Kung Fu Shaolin do Norte – Técnicas Básicas - 1º e 2º Kati." 1ª ed., São Paulo: Biopress, 1995, 118 p. 200 Art. disp. em (c. 10.08.2003). 78

Michael Minick ("A Sabedoria do Kung-Fu") e Lin Yutang ("A Sabedoria da Índia e da China"). Refere-se, ainda, à série de TV "Kung-Fu", identificando-a como o "golpe de misericórdia" para sua opção marcial.

Nesse cenário de "encantamento" dos primeiros praticantes brasileiros, um personagem desempenhou um papel extraordinário: Bruce Lee (Lee Jun Fan, nascido em novembro de 1940 em São Francisco, EUA).201 No artigo "Trinta Anos sem Bruce Lee",202 o presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, Marcelo Janot, captou de maneira exemplar o papel representado por Bruce Lee (fig. 17 e 18)203 para a formação do "ideário filosófico-religioso" no Kung-Fu brasileiro: "Assim como James Dean, Bruce Lee encarnou dentro e fora das telas o mesmo personagem. E se Dean ficou marcado pra sempre como o rebelde sem causa, Lee foi imortalizado como sinônimo da força e da filosofia zen das artes marciais.”204 A morte de Lee em julho de 1973, três semanas antes da estréia, nos EUA, de “Enter the Dragon” (no Brasil, “Operação Dragão”), não impediu o ingresso de suas antigas 201

“To most of the world, the martial arts movie can be summed by one name: Bruce Lee. It was he, more than anyone else, who established the power of the genre internationally.” (MEYERS, et al., "From Bruce Lee ... ", p. 13). 202 Art. disp. em http://www.graciemag.com/edicao/73_brucelee.shtml > (c. 10.10.2003). 203 Fig 17, acervo do autor. Fig. 18 extraída de INSIDE KUNG-FU, Burbank (Califórnia), C.F.W. Enterprises, vol. 24, n. 4, abr. 1997, 142 p., p. 42.

79

produções no Ocidente205 e nem a produção, a partir de fotogramas inéditos, de novos filmes estrelados por ele.206 Em 1993, Hollywood lançou “Dragon: The Bruce Lee History”.207 Ainda nos anos 70, o ator também foi lembrado na música: indiretamente, em “Kung-Fu Fighting”, de Carl Douglas, (“Everybody was Kung Fu fighting, those jerks were fast as lightning …”)208 e diretamente em “Um Índio”, de Caetano Veloso (“... tranqüilo, e infalível, como Bruce Lee ...”). Nos anos 80, os movimentos do ator e os cenários de seus filmes inspiraram jogos eletrônicos criados especialmente para casas de fliperama.209 A importância de Bruce Lee para o Kung-Fu brasileiro pode ser vista, ainda, em revistas lançadas nos anos 70 e 80.210 Nelas é reforçada a dimensão "mítica" do artista. Não há, aí, referências diretas à religiosidade chinesa.211 As histórias e os filmes de Bruce Lee parecem remeter, sim, às sagas heróicas de caráter universal.212 4.2.2 – “Kung-Fu” – A televisão brasileira como porta de entrada para os monges de Shaolin A segunda grande fonte de inspiração do Kung-Fu brasileiro foi o seriado de TV "KungFu".213 Além de mostrar a arte marcial chinesa como algo atraente e “sábio”, a série apresentou o tema Shaolin ao Brasil (fig. 19):214 um texto em uma homepage de academia de Shaolin do Norte em Valinhos (SP), indica o papel da série na atração de praticantes: “Até 1974 (...) a modalidade era lecionada exclusivamente para os chineses. ‘Os antigos

204

JANOT, M., "Trinta Anos...", op. cit. “O Dragão Chinês” (“The Big Boss”, 1971), “A Fúria do Dragão (“Fist of Fury”/“The Chinese Connection”, 1972) e “O Vôo do Dragão” (“The Way of the Dragon”, 1972). 206 “Game of Death” ("Jogo da Morte", 1978), “Game of Death 2” ("Jogo da Morte 2", 1982). Entre 1979 e 2002 foram produzidos 12 filmes documentários sobre Lee (cf. c. 08.01.2004). 207 No Brasil, “Dragão: A História de Bruce Lee”. 208 Letra em (c. 02.02.2003). 209 Como "Kung-Fu Master" (Japão, Irem Corp., 1984), "Yie Ar Kung-Fu" (Japão, Konami, 1985) e "Tiger Road" (Japão, Capcom, 1987). Ver HUNT, L., "Kung-Fu Cult Masters...", p. 184 a 200. 210 Tivemos acessos às revistas “Bruce Lee” (NSD/Impacto), “Bruce Lee – A vida do maior lutador de todos os tempos” (Editora Três), “Bruce Lee Kung-Fu” (Editora Três), “A História de Bruce Lee” (Zolar Editora Gráfica), “A Escola de Bruce Lee” e “Bruce Lee Especial nº 1” (Nova Sampa). 211 Essas obras se limitam à iconografia e a aforismos de autoria incerta. A exceção é "O Tao do Jeet Kune Do", do próprio Lee (LEE, B. "O Tao do Jeet Kune Do", 1ª ed., São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003, 239 p.), que faz referências ao Budismo. 212 Lee é o típico herói "campbelliano". Mito do herói cf. CAMPBELL, J., "O Herói de Mil Faces", 4ª ed., São Paulo: Pensamento, 1995, 416 p. 213 Exibido nos EUA entre 1972 e 1975 e, no Brasil, em 1975. Cf. (c. 05.01.2004). Em 1975 a editora Livraria José Olímpio Editor produziu livros sobre o herói. Ver fig. 19. 214 Imagem extraída do site < http://www.retrotv.com.br/kungfu> (c. 06.01.2004) 205

80

Mestres não queriam dar aulas para os brasileiros, mas com o sucesso do seriado na TV, eles acabaram abrindo os olhos.’”215 Ainda que não disponhamos de provas documentais, acreditamos que o próprio termo "Kung-Fu" tenha se estabelecido, no Brasil, a partir da veiculação do seriado. Sendo

os

mestres

chineses

adeptos das formas “Kuoshu” e “Wushu”, que outra fonte teriam os

brasileiros

denominação

para

a

da arte marcial

chinesa? Há que se considerar, porém, que, de olho no mercado, os próprios mestres, a partir do seriado de TV, tenham passado a adotar o termo “Kung-Fu”. Os episódios também fizeram a primeira

conexão

entre

marcialidade chinesa e religião 216

em um produto cultural de massa.

“Kung-Fu” apresentava a história de Kwai Chang

Caine,217 um mestiço sino-americano saído do mosteiro de Shaolin que, por volta de 1870, perambulava pelo Oeste americano. A série se caracterizou tanto pela simpatia que os telespectadores acabavam nutrindo por Caine – misto de homem atormentado, guerreiro e pacifista - quanto pelas associações entre arte marcial, religião e filosofia oriental.218 215

Cf. (c. 05.01.2004). Isso, apesar de produzidos por norte-americanos (Estúdio: ABC; roteirista: Ed Spielman). Ver (c. 06.01.2004). Ver, tb., PILATO, H. "The Kung-Fu Book of Caine: The Complete Guide to TV's First Mystical Eastern Western" (1ª ed., EUA: Charles E. Tuttle Company, 1993, 200 p.) 217 Interpretado pelo ator não-chinês David Carradine. 218 Em flashbacks, Kwai Chang Caine era transportado para o mosteiro de Shaolin, onde ouvia sábias lições dos mestres Pô e Kan, interpretados pelos atores sino-americanos Keye Luke e Philip Ahn. Diálogos da série em (c. 05.01.2004). 216

81

É difícil estabelecer a origem dos conteúdos religiosos de "Kung-Fu", mesmo porque os roteiros eram produzidos por americanos não sino-descendentes. Ainda assim, o fato de David Carradine ter se tornado um adepto do Kung-Fu é um belo exemplo de seu poder de persuasão. 4.2.3 - "The Shaolin Temple" - Beijing adere ao cinema de Kung-Fu Em 1981, a República Popular da China produziu "The Shaolin Temple", produção que transformou em astro o campeão chinês de Wushu Jet Li (Li Lian Jie, nascido em 1963 em Beijing).219 O enredo do filme difere das lendas tradicionais sobre o mosteiro:220 conta a história de um garoto que, no séc. VIII (ou seja, durante a Dinastia Tang), foge da escravidão e é recebido em Shaolin. Lá, aprende a lutar e, com ajuda dos monges, vinga a morte do pai.221 Como era de se esperar de uma produção da China continental, os aspectos religiosos foram reduzidos à iconografia; os monges foram mostrados como homens que não abriam mão de lutar e de consumir vinho e carne.222 Qual a importância de "The Shaolin Temple" para a popularização do Kung-Fu? O filme foi responsável pelo surgimento, na China, de uma crença renovada nas artes marciais do mosteiro de Henan.223 Não é, pois, sem motivo, que os anos 80 foram marcados por uma impressionante "redescoberta de Shaolin" na China continental, com reflexos mundiais. Esse é, pode-se afirmar, um exemplo típico de transculturalidade: percebendo o sucesso do cinema de Kung-Fu no Ocidente, o governo de Beijing resolveu “apostar suas fichas” e resgatar um valor tido – pelo menos, durante a ainda recente Revolução Cultural - como “execrável” por servir a um modelo político condenável (imperial) e por instilar superstições e “rompantes subversivos” entre a população. A aposta, como veremos mais adiante, deu excelentes resultados.

219

Cf. , (c. 19.01.2004). Sobre as lendas, ver cap. 2 da presente dissertação. 221 Sinopse em (c. 19.01.2004). 222 Esses hábitos aparecem em obras históricas como "A Notícia de Henan", de Wang Shixing (1595). 223 Seg. MEYERS et. al ("From Bruce Lee...", p. 140), o filme forçou Beijing a publicar um decreto proibindo estudantes de abandonar as escolas para viajar ao mosteiro de Shaolin! 220

82

4.2.4 – Shang-Chi, Yin, Yang e o “Kung-Fu Mental” O

mercado

editorial

brasileiro

aproveitou o boom marcial chinês para

publicar

histórias

em

quadrinhos sobre Kung-Fu. Foi o que aconteceu com o “Mestre de Kung Fu”,224 herói da Marvel criado em 1973 por Jim Starlin e Steve Englehart.225

As

histórias

se

baseavam em elementos religiosos genéricos e na fantasia sobre os poderes marciais do protagonista Shang-Chi e de seu oponente, o “redivivo” Fu Manchu.226

Shang-

Chi (fig. 20) 227 é filho de Fu Manchu. Esse "resgate de caráter" de pai para filho expressa uma mudança, em termos de representação na cultura de massa, dos orientais: a arte marcial e os "conhecimentos arcanos", antes voltados à conquista do mundo, agora eram utilizados para salvá-lo. Outra série da época - “Kung-Fu”228 - trazia quadrinhos e elementos de filosofia oriental e técnicas marciais. Foi, pode-se afirmar, uma espécie de "proto-revista brasileira especializada em Kung-Fu": o número cinco, por exemplo, trazia temas ligados ao universo histórico, filosófico e religioso da arte marcial chinesa. O artigo “Tai Chi Chuan – O Kung Fu Mental”, do pioneiro Marco Natali, aborda a origem do Tai Chi Chuan e sua relação com a “força interior” (Chi). Nas páginas internas, o artigo “O que faz as artes marciais surtirem efeito” (sem autoria) aborda a psicologia, ética e finalidade das artes marciais.

224

“Shang-Chi, Master of Kung Fu”, publ. no Brasil pela Bloch e pela Abril Cultural. Descrição do personagem em (c. 08.01.2004). 226 Descrição de Fu Manchu em (c. 19.01.2004). 227 Imagens: esq., acervo do pesquisador; dir., "Kung Fu", , Rio de Janeiro, Editora Brasil-América, n.5, 1974, 50 p., p. 4. 228 "Kung Fu", op. cit. Escrita por Joe Gill e desenhada por Warren Satiler, a série foi publicada no Brasil entre 1974 e 1975. 225

83

O autor explica como “anular psicologicamente o oponente”. O padrão "esotérico" do texto pode ser observado no trecho: "Uma mente como água é calma e imperturbável qual a superfície de um lago tranqüilo. As águas claras refletem imagens nítidas do oponente (...) A desatenção de origem nervosa é como a nuvem que encobre a luz da lua." 229

As duas histórias em quadrinhos da mesma edição relacionam elementos históricos e religiosos à arte marcial chinesa. “A Maldição do Mal”, por exemplo, se passa em 1890. A China é apresentada como “(...) uma terra conturbada, vítima da cobiça de nações ocidentais, de tratados desonestos, dividida por lutas internas entre o governo, sociedades secretas e senhores poderosos (...)”.230 O herói, “Yang”, busca vingar a morte do pai, vencer um vilão e libertar seu povo dos opressores ocidentais. O nome do herói tem origem no Taoísmo.231 4.2.5 - Livros sobre Kung-Fu nos anos 70 Na esteira do sucesso no cinema e na TV, as editoras brasileiras investiram em livros sobre Kung-Fu.

Em nossa pesquisa, selecionamos dois títulos de muito sucesso do

período: "A Sabedoria Kung Fu" (1975),232 de Michael Minick, e "Kung Fu - Curso Básico de Bastão" (1978),233 de Marco Natali (fig. 21 e 22).234 Os títulos reúnem elementos que interessam ao nosso trabalho: são obras populares, de grande penetração junto ao público; além disso, apontam para aspectos essenciais na formação do universo semântico do Kung-Fu brasileiro: o primeiro segue por uma linha filosófica e, o segundo, por uma pragmática de tratamento da arte marcial.235

229

Ibid., p. 27 e 28. Ibid., p. 3. 231 Pouco antes de morrer, seu pai lhe diz - “Seja Yang para todos os homens! A fonte de calor, de luz e retidão!” ("Kung Fu", p. 4.) A filha do vilão chama-se Yin e é “o oposto de Yang... isto é, escuridão... Mal!” (p. 20). O Tao não é maniqueísta. Conceito de Tao em , (c. 09.01.2004). 232 MINICK, M., "A Sabedoria Kung Fu", 1ª ed., São Cristóvão (RJ): Artenova, 1975, 170 p. 233 NATALI, M., "Kung Fu - Curso Básico de Bastão", 1ª ed., São Paulo: Ediouro, 1978, 185 p. 234 Acervo do autor. 235 Essas linhas, como veremos à frente, viriam a caracterizar o universo temático das revistas especializadas dos anos 90 no Brasil. 230

84

4.2.5.1 - "A Sabedoria Kung Fu" "A Sabedoria Kung Fu" é um livro devotado à "espiritualidade" da arte marcial chinesa. A obra foi escrita em 1974 e traduzida para o português no ano seguinte, no mesmo período de veiculação da série "Kung-Fu" nos EUA e no Brasil. Um levantamento feito junto a professores brasileiros de primeira geração mostrou que é tido como referência: três professores - Ariovaldo Arruda Veiga (SP), Rogério Leal Soares (SC) e Jorge Jefremovas (PR) citam trechos da obra e até distribuem cópias para seus alunos. O livro é dividido em duas partes: a primeira traz o conceito de Kung-Fu ("O que é Kung Fu", p. 9), desenvolvimento histórico ("A História do Kung Fu", p. 20), ética e comportamento ("Costumes e Treinamentos Kung Fu", p. 37), estilos ("Técnicas Populares de Kung Fu", p. 47), relação com a medicina ("Práticas Saudáveis de Kung Fu e Medicina Chinesa", p. 71) e armas tradicionais ("As Armas Kung Fu", p. 79); a segunda parte é reservada a uma vasta coleção de aforismos, atribuída a filósofos e à sabedoria popular chinesa. Segundo o autor, seu conhecimento é essencial para o verdadeiro praticante. "Os capítulos seguintes são um resultado de uma cuidadosa e detalhada pesquisa nos pensamentos e provérbios chineses. (...) as citações que seguem são o coração e a alma dos ensinamentos que motivaram os mestres de kung fu por milhares

85

de anos."236 Boa parte dos aforismos é atribuída a mestres chineses como Mêncio, Confúcio, Lao Tzu, Hui Hai e Shoo King. O autor não cita as obras de onde extraiu as frases, o que dificulta a confirmação dos dados. Contrariando a hipótese mais aceita pelas fontes acadêmicas, de que a arte marcial chinesa é mais "instrumental" do que "ética", a obra procura incutir uma "nobreza KungFu" que só é encontrada nas obras da literatura Wusia e nos manuais populares chineses de arte marcial.237 Isso pode ser visto na definição de Kung-Fu,238 O verdadeiro kung fu, não a idéia que normalmente fazemos, é uma coisa especial, e assim sendo não é definida nem rotulada. O kung fu real é um Estado de espírito (...) Se quiséssemos reduzir o kung-fu (...) ele se pareceria com o que o povo pensa que é - um método de defesa pessoal. (...) o kung fu se expandiu desses limites há milhares de anos.

e no subtítulo "O Herói Kung Fu", que compara esse personagem Robin Hood ("...ele tomava dos ricos para dar aos pobres. Grosseiramente um misto de cavaleiro de armadura, um bandoleiro do Oeste, e um filósofo taoísta, ele captou a atenção do mundo inteiro...”) e o conecta ao mundo das artes, letras e religião ("Geralmente um budista ou taoísta... tinha como principal objetivo alcançar uma natureza tranqüila interior pelo completo controle da mente e do corpo"). O embasamento dessa descrição no herói Wusia nos parece clara. O livro também se refere ao dia-a-dia das antigas academias de Kung-Fu239 e ao seu modelo familiar. "A escola torna-se a família do aluno e há uma estrutura rígida a que todos devem obedecer. O professor (o mestre só ensina a alunos avançados) é chamado de instrutor pai (...) Os alunos veteranos são conhecidos por irmãos mais velhos - em virtude de sua idade atual." Ainda que se possa, por hipótese, associar essa estrutura à de clãs militares, grupos sectários ou mesmo clericais, as fontes acadêmicas disponíveis não permitem avançar nesse sentido. O contato com mestres chineses no Brasil também não permite vislumbrar traços desse tipo de estrutura. Por fim, outro aspecto interessante da obra em relação "modelo espiritual" de Kung-Fu é o da crença em práticas esotéricas - exercícios corporais-respiratórios-espirituais que 236

MINICK, "A Sabedoria...",p. 89 e 90. Sobre a literatura Wusia, ver nota 3. 238 MINICK, "A Sabedoria..., p. 9. 239 MINICK, "A Sabedoria...", p. 37 a 44. 237

86

dariam ao praticante um poder sobrenatural. Ele cita as técnicas da "Pata do Dragão" (que transforma os dedos em “pontas de lança”), "Testículos Contráteis" (recolhimento dos testículos à cavidade abdominal através de técnicas respiratórias, visando sua proteção) e o "Punho do Poço" (que permitiria matar oponentes à distância pelo movimento das mãos).240 As informações parecem se basear em crenças populares do Kung-Fu. Crenças semelhantes chegaram ao Brasil na forma, por exemplo, do "Chi Kung da Palma de Ferro", prática que soma técnicas respiratórias, exercícios de fortalecimento das mãos e uso de “remédios de ervas” aplicados na pele. Minick também reserva espaço para a História do Kung-Fu. Mais uma vez, parece se basear em obras populares chinesas ou em informações da tradição genérica da arte marcial chinesa. Muitas delas não possuem respaldo nas fontes acadêmicas; outras encontram comprovação. Em "A História do Kung Fu",241 ele reconhece a dificuldade em estabelecer um histórico, mas, ainda assim, não deixa de apresentá-lo. Dentre os dados, se destacam a origem das primeiras formas, "há aproximadamente 5.000 anos", o papel do “Imperador Amarelo”242 na criação da arte marcial e o surgimento de uma arte marcial, denominada "Go Ti" por volta de 2600 a.C. Sobre a relação arte marcial x religião, cita monges eruditos que, no século V d.C., teriam descrito o "Cong Fu"; cita, também, Bodhidharma, que teria ensinado as primeiras técnicas marciais aos monges de Shaolin. Ainda sobre o mosteiro, relata a participação dos monges "no combate a uma invasão" durante a Dinastia Tang, no séc. VIII (p. 27), dá nomes de monges heróis e informa que seu desempenho em batalha lhes teria rendido fama em toda a China. A informação de que a arte marcial teria nascido há "5000 anos" não se confirma.243 As referências ao “Imperador Amarelo” e a uma arte marcial chamada "Go Ti" também não encontram suporte nas fontes acadêmicas (o Imperador Amarelo pertence à História mítica da China; ainda assim, não é associado à marcialidade). A informação de que exercícios de "Cong Fu" teriam sido descritos no século V parece correta, uma vez que o

240

Ibid., p. 65 a 69. Ibid., p. 20 a 35. 242 Figura histórico-lendária que teria governado a China antes do apogeu da casa de Shang. Sua Dinastia, conhecida como Xia ( ), teria sido responsável pela transmissão de dados essenciais ao desenvolvimento da civilização chinesa. 243 Ver PEERS. & MCBRIDE, "Ancient Chinese Armies...”, p. 4 a 13. Ver, tb., a "linha do tempo" apresentada no cap. 2 desta dissertação. 241

87

período indicado é o mesmo aceito pelos pesquisadores como sendo de fusão entre técnicas medicinais e corporais budistas e taoístas. A citação de Bodhidharma como precursor das artes marciais em Shaolin não encontra respaldo nas fontes acadêmicas, mas apenas nas tradicionais.244 Sobre a participação dos monges em combate nos sécs. VII e VIII, a informação possui um fundo de verdade. Como abordado no cap. 2 desta dissertação, datam desse período os primeiros registros de combates envolvendo monges de Shaolin. Ao contrário do que informa Minick, porém, esses clérigos não teriam "combatido uma invasão", mas sim bandidos e um candidato a sucessor da Dinastia Sui; o texto afirma, ainda, que a vitória teria conferido "fama nacional" aos monges; de acordo com as fontes acadêmicas, essa fama só viria a surgir, de fato, durante o período Ming Tardio. Minick também se refere à destruição do mosteiro de Shaolin por tropas Qing no século XVII e reproduz a informação da tradição do Shaolin do Norte, de que monges fugitivos teriam disseminado suas artes de guerra pelo sul da China. Essa história não encontra respaldo nas fontes acadêmicas; aparentemente, está associada aos mitos de criação das tríades.245 4.2.5.2 - "Kung Fu - Curso Básico de Bastão" O livro de Marco Natali é mais simples em relação aos aspectos apontados por Michael Minick. Mais devotado às técnicas corporais, reserva quatro páginas a aspectos históricos. É obra importante para o nosso estudo por ter sido escrita por Marco Natali, "mestre" que afirma praticar Kung-Fu desde 1962 e que, sem dúvida, é o mais prolífico autor de livros sobre o tema no Brasil.246 Além disso, foi o criador da "Fraternidade KungFu",247 responsável pela popularização da arte marcial chinesa através de cursos por correspondência. Em "Kung Fu - Curso Básico de Bastão", as referências à escolha da arma e a seu passado são pragmáticas: "Por que ele foi escolhido entre as trinta e quatro armas 244

Ver HENNING, S., "Reflections on a Visit... ", p. 90 a 101. Ver cap. 2 desta dissertação. 246 Natali publicou 18 livros. Ver (c. 03.02.2004). 245

88

diferentes? Principalmente porque seus movimentos são clássicos e, portanto, básicos para o aprendizado de outras armas."

248

É interessante a referência a "trinta e quatro

armas" clássicas: segundo outros autores devotados à tradição, ela seriam 18.249 Sobre a História do bastão, Natali deduz que ele surgiu na pré-história250 e informa que "no império chinês já era utilizado desde tempos imemoriais e estava incluído nas armas da infantaria a [sic] mais de 2.000 anos antes de Cristo." É difícil provar uma informação como essa com base em registros históricos. Natali ainda faz referências a Shaolin, informando que, como no mosteiro era vedada a entrada de armas, o bordão dos monges se converteu em instrumento de defesa. Ele afirma ainda que as demais armas do Kung-Fu ingressaram no mosteiro na Dinastia Qing, quando oficiais Ming lá se refugiaram: "Tendo achado refúgio no templo, os oficiais aprenderam o método Shaolin e ensinaram o que sabiam das armas utilizadas no exército chinês." Fontes históricas indicam que os monges usavam tridentes, lanças e bastões dotados de ganchos desde a Dinastia Ming; sobre o intercâmbio entre monges e militares, as fontes acadêmicas observam que ele pode ter existido, mas não há elementos que mostrem que isso teria acontecido durante um período de clandestinidade dos oficiais Ming. O livro traz ainda instruções para que o leitor construa seu próprio bastão. Não há referências sobre filosofia e religiosidade associadas à arte marcial. 4.3 - Produtos culturais recentes - passagem para a auto-representação Nos anos 80 e 90, com o fim do boom Bruce Lee e a abertura de academias por professores não-chineses, houve uma consolidação do universo brasileiro de Kung-Fu. Parte da produção cultural sobre arte marcial chinesa foi nacionalizada, com revistas, apostilas, livros e sites desenvolvidos em português por e para brasileiros. Esses produtos se inserem tanto no campo da representação - o Kung-Fu visto "de fora" - quanto no da auto-representação - como eu, como praticante, me insiro nesse universo. Como nosso objeto de pesquisa se refere ao estilo Shaolin do Norte, buscamos centrar o foco, na medida do possível, em produtos a ele relacionados.

247

A "Fraternidade" teria mudado de nome para "Chinese Boxing Society" em anos recentes. Cf. (c. 03.02.2004). 248 NATALI, M., "Kung Fu... ", p. 13 e 14. 249 MING, Y., "Ancient Chinese Weapons ...", p. 2. 250 NATALI, M., "Kung Fu - Curso Básico...", p. 17. 89

4.3.1 – Revistas Especializadas A consolidação de um mercado de Kung-Fu implicou na produção de revistas especializadas. Nelas, de modo geral, as artes marciais são tratadas de modo genérico (há, porém, publicações voltadas só ao Kung-Fu). Em boa parte dos casos elas não possuem vida longa, seguindo uma política de vendas "popular" ou de produção a partir dos recursos financeiros disponíveis. Um indício dessa política editorial está nas capas das revistas por nós pesquisadas: a maioria não traz número ou data. Esse dado ganha relevo quando comparado aos de revistas dos EUA, que possui publicações como a revista “Inside Kung-Fu” (31 anos em circulação), e da França, com “Karate Bushido” (30 anos). A situação no Brasil mudou em anos recentes graças à afirmação internacional do "Brazilian Jiu-Jitsu", que já possui títulos específicos, como “Gracie Magazine”: à época da realização dessa dissertação, já havia chegado à edição de número 84.251 4.3.1.1 – "Pragmatismo" x "Tradição" nas revistas especializadas brasileiras A leitura das revistas permite estabelecer uma divisão temática: de um lado estão as matérias

“pragmáticas”

(técnicas/corporais)

e,

do

outro,

as

"tradicionais"

(filosóficas/religiosas). As do primeiro grupo ligam a marcialidade à modernidade e abrangem elementos como aplicação das técnicas, relação arte marcial x saúde e o calendário de competições. As do segundo grupo, que interessam mais diretamente ao nosso estudo, ligam a marcialidade à História, Ética, Filosofia e às religiões orientais. Tais matérias podem ser subdivididas em duas linhas: de um lado estão as relacionadas à História dos estilos e, do outro, as relacionados aos temas filosóficos, éticos ou religiosos. 4.3.1.2 – “Oriente”

Iniciamos o estudo com “Oriente – Artes Marciais, Filosofia e Cultura Oriental”,252 editada pelo entusiasta de artes marciais Gilberto Antonio Silva e vendida em academias e

251

Site da revista: (c. 10.01.2004). "Oriente – Artes Marciais, Filosofia e Cultura Oriental", São Paulo, Núcleo de Estudos Orientais, 1996, edições de 1 a 10; 1996 (uma edição), 1997 (duas), 1998 (duas), 2000 (três), 2001 (uma) e 2002 (uma). 252

90

pela.253 Ao todo, a publicação trouxe 115 reportagens, das quais 25 relacionadas ao Kung-Fu e 20 ligadas a temas do segundo grupo da nossa divisão temática. A leitura revela o respeito do editor pela tradição oral e sua percepção da função documental da publicação: das dez edições, nove abriram espaço a entrevistas com mestres (fig. 23).254 Foram ouvidos cinco mestres originários e três brasileiros. Um exemplo pode ser visto na entrevista com o grão-mestre Chan Kowk Wai: - O: Como o aluno estreante deve treinar o Kung-Fu? Dizem que na China o aluno não pode perguntar, mas apenas deve seguir o mestre. - MC: Na China o aluno pode começar a fazer perguntas após 3 anos de prática. Antes disso, ele deve apenas acompanhar os movimentos do professor, já que não conhece nada do estilo. Depois de 3 anos ele já sabe 255 alguma coisa e pode perguntar. (...)

É interessante notar que os mestres entrevistados e consultados não se aprofundaram no tema religião. Outros materiais tiveram como base as opiniões do próprio editor. Diferente das outras publicações pesquisadas, “Oriente” foi além dos temas comuns “técnicas” e “História dos estilos”. Isso foi feito em ensaios do próprio editor sobre temas como interpretação de ideogramas nas artes marciais e os “mitos” que rondam as academias brasileiras. Esses artigos, aparentemente, refletem a vivência marcial do próprio Gilberto Silva: o conteúdo é fortemente autoral, baseado na convivência com praticantes e em leituras; ele reforça o sentido de auto-representação, já que se trata de um praticante falando sobre si para outros praticantes. Um exemplo é o ensaio “Filosofia ou Religião?”, em que Gilberto Antonio Silva afirma que é possível treinar uma arte marcial sem ferir preceitos religiosos: Você pode praticar artes marciais e estudar filosofia oriental independente da sua religião, qualquer que ela seja. (...) Para isso devemos saber o que é RELIGIÃO e o que é FILOSOFIA. (...) Pelo que acabei de mostrar, nem toda filosofia é necessariamente uma religião, mas toda religião tem uma filosofia predominante, um conjunto de regras e leis que determinam o funcionamento do Universo. (...) Na verdade, todas as artes marciais orientais

253

No site (c. 12.01.2004), que possui a mesma proposta da revista. 254 “Oriente”, n.10, 2002. 255 "Oriente", n. 1, p. 12 e 13. 91

estão profundamente embebidas nessas filosofias. (...) Você vai encontrar diversos 256 paralelos entre estes ensinamentos e os da sua religião, não importa qual seja. (...).

Outro exemplo é “Demolindo Mitos nas Artes Marciais”, em que aborda a questão do “espírito crítico” dos praticantes. Silva questiona informações comuns ao universo das artes marciais, como a tradução de "Kung-Fu" ou a antigüidade do Jiu-Jitsu. Para isso, parece se basear no próprio conhecimento. Em nenhum momento há referências diretas a fontes bibliográficas, o que, de certa forma, faz com que a obra recaia no objeto que critica – a falta de critério em relação às informações: Não sou nem pretendo ser o dono da verdade. O que você vai ler a seguir é o resultado de toda uma vida dedicada ao estudo da História e Filosofia das Artes Marciais. Qualquer pessoa que tenha alguma informação que contradiga o que está aqui, que escreva para esta revista. Se forem argumentos sólidos e bem baseados, com referências bibliográficas ou de outro tipo, e principalmente que possam ser checadas, eles serão publicados. Não adianta nada aparecerem com aquela velha história de que 'aprendeu assim de um mestre 257 oriental desconhecido mas muito sábio e velhinho que, infelizmente, já morreu.'

Em “As Escolas Filosóficas da China” ele apresenta o Budismo, Confucionismo e Taoísmo. Dessa vez, utiliza referências bibliográficas mais próximas do universo acadêmico, tais como "Os Analectos de Confúcio" (publ. Martins Fontes), "Chuang Tzu Escritos Básicos" (Cultrix) e "A Sabedoria do I Ching: Mutação e Permanência", de Richard Wilhelm (Pensamento), além de obras de autores como Ricardo M. Gonçalves ("Textos Budistas e Zen-Budistas") e Antonio Renato Henriques ("Iniciação ao Orientalismo"). Note-se que, aí, não aparecem informações obtidas de mestres originários. Na abordagem de outros temas do universo filosófico, ético e religioso das artes marciais (e do Kung-Fu), Gilberto Antonio Silva segue pelo mesmo caminho, citando as referências em alguns casos, mas, principalmente, valorizando as próprias percepções. A partir da divisão temática estabelecida no item 4.3.1.1, pode-se afirmar que, na revista “Oriente”, as matérias são abordadas da seguinte maneira: em relação às do “primeiro grupo” (arte marcial e modernidade), há um equilíbrio em relação às fontes (mestres, professores e o próprio editor); em relação às matérias da primeira linha do segundo grupo (origem e História dos estilos), são feitas com base na tradição oral (ensaios de mestres e professores, entrevistas, artigos baseados em entrevistas); por fim, em relação às matérias da segunda linha do segundo grupo (temas filosóficos, éticos e religiosos que 256 257

Ibid., n. 2, jul./97, p. 49 e 50. Ibid., n. 4, maio/jun. 1998, p. 12. 92

compõem o universo da arte marcial), elas são produzidas com base nos conhecimentos pessoais, leituras e visão de mundo do editor Gilberto Antonio Silva. 4.3.1.3 – "Kiai", “Kung Fu Defesa Pessoal" e "Trump!" Outras publicações merecem destaque: “Kiai”,258 “Kung Fu Defesa Pessoal”259 e “Trump! A Sua Revista de Luta”.260 A leitura revela os níveis de abordagem do Kung-Fu: se em “Oriente” ele era estabelecido por um adepto das artes marciais preocupado em aprofundar conhecimentos, nas outras revistas esse critério varia. A publicação que mais se aproxima da linha de “Oriente” é “Kiai”, que teve o próprio Gilberto Silva como consultor. A que está mais longe, por motivos que serão vistos à frente, é “Trump!...”. A principal característica de "Kiai" era a de promover a arte marcial em um contexto moderno. A revista, que parou de ser publicada nos anos 90, investia no calendário desportivo, com ampla cobertura de competições. Apesar da linha editorial estar centrada em matérias do nosso chamado "primeiro grupo", "Kiai" também reservava espaço para filosofia, ética e religião. Tais temas eram abordados em entrevistas com mestres e artigos centrados na tradição oral. Um bom exemplo pode ser visto no artigo “Ng Long Pakua Kuan”, de Roberto Giovanni: Existem muitos livros que contam a história e as técnicas de vários estilos de Kung Fu, porém, divergem entre si (...) existe uma maneira mais precisa e correta de se obter informações sobre a história e as técnicas dos estilos de Kung Fu e que dirime as dúvidas porventura existentes: é a tradição oral, aquela que é transmitida pelos mestres aos 261 discípulos durante sucessivas gerações.

A tradição oral também aparece com força em “Kung Fu – Defesa Pessoal”,262 que apresentou os sete estilos mais populares no Brasil. Deles, cinco – “Shaolin do Norte”, “Fei Hok Phai”, “Garra de Águia”, “Hung Gar” e “Serpente Divina” (Shen She Chuen) foram apresentados mestres originários e um – “Wing Tsun” - por um discípulo de primeira geração.263 258

"Kiai – Revista Oficial das Artes Marciais", São Paulo, Biopress, n.d. "Kung Fu Defesa Pessoal", São Paulo, Grupo de Comunicação Três S/A, n.1, n.d., 66 p. 260 "Trump! A Sua Revista de Luta – Esportes de Impacto", Especial Kung-Fu, São Paulo, Editora Escala Ltda., n.d., 62 p. 261 "Kiai", n. 17, 1994, p. 40 262 "Kung Fu Defesa Pessoal”, op. cit. 263 O "sétimo estilo" abordado na revista é o Wushu olímpico. 259

93

Nos textos, o elemento religioso apareceu relacionado à condição clerical dos fundadores dos estilos. No texto sobre o Shaolin do Norte, na frase: "Com o passar dos anos, devido ao estado físico debilitado dos monges, foi necessária a implantação de exercícios que formaram a base do Shaolin Kung Fu". No texto sobre o Fei Hok Phai, associado ao mosteiro do "Shaolin do Sul"; no texto sobre o Garra de Águia, na ascendência de seu fundador, que teria sido aluno de um mestre que, por sua vez, teria aprendido técnicas marciais em Shaolin; sobre o Hung Gar, na reprodução de mitos de criação relacionados às tríades: o estilo teria sido criado pelo discípulo de um monge sobrevivente do incêndio de Shaolin, em 1734;264 no texto sobre o Wing Tsun, na atribuição da criação do estilo a uma decorrência de um incêndio que teria atingido Shaolin durante a Dinastia Qing. O único texto que foge à "fórmula Shaolin" é o do estilo Shen She Chuen, que teria sido criado pelo discípulo de um monge do "Templo do Bambu". Presume-se que esse templo seja o localizado a doze quilômetros de Kunming (Yunan), construído no séc. XIII.265 A revista também fez uma concessão ao que chamamos de “dados gerais de Kung-Fu”. Esses "dados" - que constituem um importante elemento teórico resultante de nossa pesquisa - nascem da fusão de informações obtidas pelos praticantes em revistas, livros populares e em conversas com mestres/praticantes. Na replicação oral, essa "mistura" ganha legitimidade e passa a representar, mesmo, uma "nova-velha tradição" (ou seja, uma tradição tida como ancestral, mas constituída de elementos recentes, ou da fusão recente de outras tradições). No caso de "Kung Fu Defesa Pessoal", esses dados surgem nas matérias sobre a História das artes marciais chinesas e sobre origem do Kung-Fu de Shaolin.266 Nelas pode-se conhecer, "em detalhes", as artes marciais chinesas desde a pré-história até o desenvolvimento do Kung-Fu pelos monges budistas. Entre os elementos de destaque na "apresentação" do Kung-Fu de Shaolin está o seguinte "código de conduta": 1. Seja hábil. Os movimentos devem ser variados, não telegrafados e flexíveis. 2. Seja discreto. Derrote seu oponente usando a própria força, 'assim, você poderá derrubar uma pessoa que pesa 100 kg, usando apenas uma força que move 0,5 kg'. 3. Seja corajoso. Ataque sem hesitação sempre que houver oportunidade. 264

Ver cap. 2. "Kung-Fu, Defesa Pessoal", p. 8 (Shaolin do Norte), p. 17 (Fei Hok Phai), p. 22 (Garra de Águia), p. 30 (Hung Gar); p. 37 (Wing Tsun) e p. 45 (Shen She Chuen). Templo do Bambu in (c. 19.01.2004). 266 "Kung-Fu Defesa Pessoal", p. 5 a 7. As matérias não são assinadas. 265

94

4. Seja rápido. O oponente pode ver sua mão, mas não seu soco. 5. Seja impetuoso. Golpeie os pontos vitais. 267 6. Seja prático. Todos os movimentos possuem um fim estratégico.

O autor não diz de onde extraiu esse "código" e, em suas considerações, não relaciona as religiões orientais e o Kung-Fu. Também não se refere às tradições religiosas observadas no conjunto de práticas das academias brasileiras. No que se refere aos elementos históricos, pode-se dizer que funde dados comprováveis historicamente e dados provavelmente extraídos da tradição oral do Kung-Fu. Das publicações pesquisadas, a que mais chamou a atenção em razão do conteúdo foi “Trump!”.268 Na revista, o tema Shaolin foi abordado em uma insólita riqueza de detalhes: em 15 páginas, foi apresentada desde a história da “rede de mosteiros Shaolin” até as divisões de hierarquia marcial dentro do clero “budo-marcial”. As informações não se sustentam: fontes históricas a respeito de Shaolin desmentem a existência de uma "rede de mosteiros" ou de uma hierarquia marcial entre os monges.

A exceção, em

relação à hierarquia, poderia estar na atribuição oficial de cargos de comando militar a monges, como aconteceu nos episódios envolvendo a luta pelo poder na passagem das dinastias SuiTang (séc. VIII).269 O texto da revista, porém, afirma a existência de uma hierarquia marcial interna, o que não se sustenta em dados históricos. O material, traduzido de um texto publicado em um site270 e complementado por fotos, não traz referências bibliográficas. O teor das informações não encontra paralelo nas demais revistas pesquisadas. Entre elas está a seguinte, que, a nosso ver, revela uma disposição ao mesmo tempo catequética e defensiva do autor: Algumas entidades históricas geram muitos debates e confusões sobre Shaolin e alguns professores universitários negam sua existência e acreditam que os templos eram fictícios, baseadas em histórias e romances. Acreditamos que muitas pessoas foram enganadas pelas histórias da Guerra Civil que ocorreu naquele lugar. As descrições seguintes foram obtidas por pessoas que 1) praticaram os estilos dos supostos templos, 2) aprenderam as

267

Ibid., p. 7. "Trump! A Sua Revista de Luta – Esportes de Impacto", op. cit. 269 Ver cap. 2. 270 Do “Shaolin Gung Fu Institute”, (c. 10.09.2003). 268

95

artes dos templos antes que eles fossem destruídos, ou 3) aprenderam dos praticantes dos 271 templos.

Os responsáveis pela revista efetivamente parecem ter assumido uma "ortodoxia" baseada nos dados gerais de Kung-Fu. No caso de “Trump!” o resultado é peculiar, essencialmente em virtude da quantidade de dados, que abordam até aspectos religiosos e de comportamento dos monges (fig. 24).272 Para um leitor com um mínimo de senso crítico, a publicação gera suspeita. Resta esclarecer seu impacto sobre praticantes mais “impressionáveis”. Nas publicações pesquisadas não foram encontrados artigos específicos relacionando rituais ou práticas religiosas nas academias brasileiras. 4.3.2 - Apostilas publicadas por academias Algumas vezes mestres ou professores decidem publicar apostilas ou folhetos para consumo pelos alunos. Esses materiais incluem a codificação de conteúdos da tradição oral, observações sobre o dia-a-dia e a inclusão de conteúdos literários sobre a arte marcial ou o estilo. Eles são importantes porque refletem um esforço de fortalecimento do corpo de conhecimentos da arte marcial: o professor ou mestre demonstra preocupação com a consolidação dos conteúdos da tradição oral (institucionalizando ou fortalecendo a institucionalização preexistente) e com a inclusão, nesse corpo de conhecimentos, de informações novas. Em função de sua fonte, tais dados são tidos como legítimos e se tornam referência para os alunos. Nossa pesquisa abrange documentos de duas academias do estilo Shaolin do Norte: o libreto “Kung Fu – versão curta de uma história muito longa”,273 da Academia SinoBrasileira de Kung-Fu (São Paulo), e uma apostila publicada pela Academia SinoBrasileira de Kung-Fu de Florianópolis.274 O que revelam esses documentos? O primeiro, originário da matriz do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu,275 tem como fulcro a 271

Trump...", p. 6. “Trump...”, p. 7. 273 Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, "Kung Fu – versão curta de uma história muito longa", São Paulo, 1998, 26 p. 274 SOARES, R. (Associação Sino-Brasileira de Kung Fu Wushu), doc. sem título, Florianópolis, n.d. (década de 90), 10 p. 275 A primeira academia de Shaolin do Norte do Brasil, fundada na cidade de São Paulo em 1973. 272

96

normatividade e constrói seu conteúdo a partir da reprodução de dados da tradição oral. O segundo, de uma filial do sistema localizada a cerca de 750 km da matriz, pertence a um tipo misto, que, na visão do autor deste trabalho de pesquisa, é típico da visão dos atuais professores brasileiros. 4.3.2.1 - “Kung Fu – versão curta de uma história muito longa” O libreto publicado pela Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu276 pode ser interpretado como um “documento de codificação” do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu.277 Publicado especialmente para distribuição durante a comemoração do 25º aniversário da academia (março de 1998), reúne conhecimentos fundamentados na tradição oral do Shaolin do Norte. O libreto traz na capa uma ilustração do grão-mestre Chan Kowk Wai e, na contracapa, o símbolo do “dragão abraçando

os

Oito

Trigramas”,

identificador do Shaolin do Norte no Brasil (fig. 25). O documento elenca onze temas: “história”,

“o

mosteiro”,

“mestres

Shaolin”, “mestre chan”, “linhagem do mestre Chan”, “estilos”, “chi kun”, 278

“armas”, “técnica” e “o treino nesta academia”.

O que mais chama a atenção é o

pragmatismo com que eles são abordados, inclusive a questão da dificuldade de resgate histórico de dados (“Portanto nem todas as informações têm a precisão histórica com a qual gostaríamos de contar”).279 A página de abertura280 aborda o termo "Kung-Fu" e sua extensão. O autor observa que o termo é uma denominação genérica e que sua tradução pode ser tanto "maestria" quanto "trabalho árduo". Também afirma que "wu shu" traduzido como "artes marciais" - é mais correto. Ele admite que no Brasil os dois termos 276

Em formato meio A-4, com 26 páginas a cores. O sistema foi criado pelo grão-mestre Chan Kowk Wai no início dos anos 70 para difundir o estilo Shaolin do Norte no Brasil. 278 Mantivemos os termos na forma original, sem alterações em relação às letras maiúsculas e minúsculas. 279 “Kung-Fu – versão curta...”, p. 5. 280 Ibid., p. 3. 277

97

servem para identificar as artes marciais chinesas, indicando, ainda, que "wu shu" guarda maior identificação com a prática desportiva - essas considerações não contrariam o que é aceito pelos pesquisadores. O autor ainda alerta para a existência de várias "Histórias" da arte marcial, uma para cada estilo (essa informação é confirmada por pesquisadores da arte marcial chinesa). O capítulo "história"281 fornece respostas a dúvidas dos praticantes. O Kung-Fu é descrito a partir das dinastias chinesas e o autor apresenta uma linha do tempo em que aparecem fatos expressivos da História Ocidental (como o fim do Império Romano, em 476) e da tradição do Kung-Fu, como a fundação do mosteiro de Shaolin em 495. Essa linha pode ser vista como uma “síntese” de como a tradição oral organiza sua História: nela aparecem fatos como a luta dos monges de Shaolin contra piratas japoneses (1553), o início do ensino das técnicas para leigos pelo abade Chiu Jin (1630), os incêndios em Shaolin (1736 e 1928) e a migração dos mestres para o Ocidente (1949). Desses fatos, o início do ensinamento das técnicas aos leigos e o incêndio do mosteiro de Shaolin em 1736 não puderam ser confirmados pelas fontes acadêmicas. Como descrito no cap. 2 desta dissertação, há registro de ensino de técnicas marciais pelos monges para leigos desde o séc. XVI; sobre o incêndio de 1736, os estudos indicam que ele estaria relacionado aos mitos de criação das tríades chinesas e não a um episódio histórico. Sobre a relação entre Kung-Fu e religião oriental, o autor observa que na dinastia Jing “O kung fu recebeu influências do Budismo e Taoísmo”, cita o médico taoísta Ge Hong como “integrador” do Chi Kung ao Kung-Fu e se refere aos monges budistas Ba Tuo e Bodhidharma. Eles são citados como o fundador e o introdutor da marcialidade em Shaolin.282 A data de integração entre Budismo e Taoísmo nas práticas de saúde apontada na apostila está dentro dos limites temporais admitidos pelos pesquisadores. Em “o mosteiro” aparecem informações sobre a fundação e a localização de Shaolin que não fogem do que é aceito pela historiografia. Em “mestres Shaolin” surge um encadeamento relevante para a ortodoxia do estilo: nele fica estabelecida a ligação do grão-mestre Chan Kowk Wai com o mosteiro de Shaolin através de uma longa linhagem de mestres. O capítulo é reforçado por uma árvore 281 282

Ibid., p. 4 a 13. “Kung-Fu – versão curta...”, p. 5 e 6. Ver cap. 2 desta dissertação. 98

genealógica que afirma a proficiência de Chan Kowk Wai em 13 estilos de arte marcial chinesa. É difícil comprovar, com base na historiografia disponível no Ocidente, a existência dos integrantes dessa "árvore genealógica", pelo menos no caso dos personagens mais antigos. As fontes acadêmicas sobre Shaolin utilizadas em nossa pesquisa não se referem à existência de um "abade Chiu Jin" (ou "Zhao Yuan Heshang") em Shaolin no séc. XVII. Fotos encontradas na internet, porém, mostram o encadeamento de três dos mestres mais recentes da linhagem: Ku Yu Cheung (fig. 26), 283 Yang Sheung Mo (fig. 27) e Chan Kowk Wai (fig. 28).284 O

fato

de

essas

informações virem de fontes

de

diferentes EUA

e

países (Brasil, Canadá)

indica que a diáspora de mestres chineses na segunda metade do século XX atingiu o Shaolin do Norte: tanto Chan Kowk Wai quanto Wing Lam (fonte do ensaio de "Inside Kung-Fu") foram alunos de Yang Sheung Mo; no caso de Mathieu Ravignat, a genealogia indicada aponta para Chan Kowk Wai como responsável pela transmissão dos conteúdos. A constatação é de que a genealogia

é

originária

da

China e tem uma tradição de pelo menos 50 anos. O capítulo seguinte, “mestre chan”, é uma síntese da vida do fundador da academia. Nele é descrita a entrada do grão-

283

Sobre Ku Yu Cheung, ver "Ku Yu Cheung, …A True Iron Palm Master" (CHING, G., Inside Kung-Fu, Burbank: C.F.W. Enterprises, vol. 24, n. 4, abr. 1997, 142 p., p. 84 a 89) e "Ku Yu Cheung and His Northern Shaolin System", de RAVIGNAT, M., (c. 14.01.2004). 284 Fig. 26, 27 e 28: fotos extraídas de (c. 14.01.2004). 99

mestre nas artes marciais aos quatro anos de idade em Cantão, a mudança para Hong Kong em 1949, o contato com o mestre Yang Sheung Mo (que, segundo o documento, lhe ensinou o Shaolin do Norte e abriu as portas para o aprendizado com outros mestres), a vinda para o Brasil em 1960, o trabalho no Centro Social Chinês (SP) e a abertura, em 1973, da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, onde se deu o contato com praticantes brasileiros. O capítulo também se refere às capacidades curativas do mestre (que “é muito procurado por seus conhecimentos de Medicina Tradicional Chinesa, que aprendeu de seus mestres”).285 Em “estilos”, o autor explica as diferenças entre os estilos. Shaolin do Norte, Ton Lon, Choy-Li-Fat, Tai Chi, Luo Han e Pa Kua são apresentados segundo suas características: assim, o Shaolin é descrito como “forte e gracioso”, o Ton Lon como “veloz e ágil”, o Choy-Li-Fat como “de golpes poderosos”, o Tai Chi como “incorporando movimentos da natureza”, o Luo Han como “baseado no movimento dos monges” e o Pa Kua como “imitando o movimento do Dragão”. O texto não relaciona os nomes "Tai Chi" e "Pa Kua" a uma origem religiosa (no Taoísmo). O capítulo seguinte, “chi kun”, se refere aos exercícios respiratórios chineses, associados pela tradição marcial a poderes extraordinários. O autor explica que os exercícios de chi kun286 “são técnicas respiratórias que desenvolvem o corpo e a mente do praticante, mantendo seu equilíbrio psíquico e aguçando sua percepção e controle emocional”.287 Apesar do discurso "técnico", ele reafirma a crença na aquisição de capacidades físicas extraordinárias através da prática do chamado “chi kun marcial” (“O Chi Kun marcial refere-se à aplicação das técnicas do Chi Kun ao kung fu, resultando na capacidade de receber golpes ou suportar pesos muito acima do comum, sem sofrer danos. As técnicas de quebramento são fortemente desenvolvidas a partir do controle da respiração.”). Na mesma página estão duas fotos dos antepassados marciais mais próximos do grãomestre Chan Kowk Wai (Ku Yu Cheung e Yang Sheung Mo) em demonstrações de

285

“Kung-Fu – versão curta...”, p. 19. Essa forma de grafia é incomum. Na maioria dos documentos pesquisados, o termo aparece como "Chi Kung" ou "Qi Gong". 287 “Kung-Fu – versão curta...”, p. 23. 286

100

resistência física e força. As crenças apontadas parecem ligadas às tradições mágicas praticadas no contexto das tríades e mostram que elas chegaram ao Brasil.288 O capítulo seguinte, “armas”, apresenta as armas “clássicas” relacionadas ao Kung-Fu. No caso do Shaolin do Norte, segundo a obra, são 18, abrangendo desde o bastão – arma aceita pelas fontes acadêmicas como sendo utilizada pelos monges de Shaolin a partir do século XVI - até armas “exóticas”, como o tridente (tai pat), a “lança cobra” ou o chuço (kan). Em “técnica” são descritas as rotinas que compõem o estilo e é feita uma apresentação da forma como as mesmas são ensinadas na academia (junto com combates simulados, combates livres, quebramentos e exercícios respiratórios). Segundo o autor, “todas as práticas levam ao aprimoramento tanto físico quanto mental; treinam defesa pessoal, desenvolvem coordenação, concentração e disciplina e cultivam saúde”.289 O último capítulo, “o treino na academia”, apresenta a forma do treinamento, informando como é o desenvolvimento do aluno, os estilos que pode aprender e as regras de conduta. Reforça, também, a presença de Chan Kowk Wai. (“Que ensina pessoalmente os alunos – ou indica, se necessário, um aluno que o ensine, mas sempre sob o seu acompanhamento”). No libreto da matriz do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu não há capítulos específicos sobre a religiosidade no estilo Shaolin do Norte. Não há referências ao papel das religiões chinesas no contexto do moderno Kung-Fu, ou, então, a rituais como o cumprimento tradicional ou a elementos de natureza aparentemente religiosa presentes na academia como o altar, estátuas, fotos dos mestres e queimadores de incenso. 4.3.2.2 - Apostila da Associação Sino-Brasileira de Kung-Fu Wu Shu de Florianópolis

A segunda apostila foi cedida por um dos entrevistados, o professor Rogério Leal Soares, de Florianópolis.290 Discípulo de Lee Chung Deh, Soares é o principal difusor do Shaolin do Norte em Santa Catarina. De acordo com ele, o documento nasceu de uma apresentação feita para universitários. Por acreditar que representasse uma síntese, 288

Ver cap. 2 desta dissertação. “Kung-Fu – versão curta...”, p. 25. 290 SOARES, op. cit. 289

101

passou a distribuí-lo a seus alunos na segunda metade dos anos 90. Dos documentos deste capítulo é o que melhor representa a soma entre tradição oral, leituras e conclusões do professor, consistindo em um legítimo documento do "Kung-Fu de Shaolin à Brasileira". Enquanto a apostila da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo se prende mais à tradição oral, no documento de Florianópolis há inclusão de conteúdos. Sua apresentação é feita em doze itens e quatro anexos. Os itens são “Kung-Fu – Wu Shu”; “O Que é o Kung Fu?”; “A História do Kung Fu”; “Técnicas Populares de Kung-Fu”; “O Kung Fu na Medicina Preventiva”; “Chi Kun nas Artes Marciais, na Medicina Preventiva e de Cura”; “O Kung Fu Competitivo (Wu Shu moderno): um Esporte tipicamente Chinês”; “As Rotinas”; “Combate”; “O Kung Fu no Brasil”; “O Kung Fu para Crianças, Jovens e Adultos”; e “Sistemas de Graduação”. Os anexos são a genealogia do professor Rogério Leal Soares, o regulamento para o julgamento de rotinas em competições, a reprodução de um artigo do próprio Leal sobre Tai-Chi-Chuan (publicado na revista “Combat Sport” em nov. de 1993) e uma tabela com as graduações existentes no Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu.291 O diferencial do documento está na quantidade de informações. Em princípio ele preserva os dados da tradição oral, mas também os transforma e atualiza. É o que acontece em "O Kung Fu no Brasil",292 que soma à história do grão-mestre Chan Kowk Wai a do mestre Lee Chung Deh. Ainda sobre o histórico do Kung-Fu, o anexo "Árvore Genealógica e Figuras Lendárias"293 traz os mesmos nomes citados na apostila de São Paulo e inclui os do mestre Lee Chung Deh (apresentado como "um dos primeiros alunos do Mestre Chan, e introdutor do Kung-Fu no sul do Brasil. Grande conhecedor da natureza humana") e de Rogério Leal Soares (seguido da apresentação "iniciou seus treinamentos com mestre Lee Chung Deh em 1975, e o segue até hoje, introduziu o Kung Fu em Santa Catarina em 76, junto com seu mestre"). Essa inclusão explicita a relação do autor com seu estilo e, ao mesmo tempo, dá conta de que a transmissão dos conteúdos tradicionais do Shaolin do Norte já não depende apenas de mestres originários chineses. Vale observar que, na genealogia apresentada em "Kung Fu - versão curta de uma história muito longa", a linha de mestres se encerra na figura de Chan Kowk Wai. Se, por um lado, isso pode ser explicado porque Chan é a maior 291 292

Sobre "Combat Sport", ver (cons. em 19.01.2004). SOARES, p. 6.

102

autoridade dentro de sua própria academia - essa parece ser a explicação mais lógica por outro poderia indicar a existência de uma dificuldade, na casa de um mestre originário chinês, em relação à inclusão de nomes de professores brasileiros. A apostila mostra uma tendência à "modernidade" ao incluir uma síntese das regras de competição294 e as etapas que compõem a graduação através do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu.295 Essa tendência também está em "O Kung Fu para Crianças, Jovens e Adultos",296 no qual o autor apresenta o Kung-Fu como uma atividade saudável para todas as idades. Para tanto, se refere ao trabalho desenvolvido atualmente pelas escolas da República Popular da China. O autor elenca elementos como a melhor condição de saúde, coordenação, postura, equilíbrio e a possibilidade de, através da arte marcial, "manter viva a natureza filosófica que os direciona na busca do 'caminho', cultivar a arte como folclore e desenvolver o aspecto medicinal que envolve o estudo dos exercícios e métodos respiratórios."297 Vale lembrar que as atividades desenvolvidas atualmente na China comunista em relação à arte marcial se baseiam, sobretudo, no Wu-Shu - prática que procura se aproximar do esporte e se afastar das "superstições" das tradicionais práticas marciais. Nos itens referentes à História, Filosofia e religiosidade chinesa dentro do Kung-Fu, a apostila se baseia nos conteúdos do supracitado livro de Michael Minick. Essa transplantação mostra o valor do livro para professores brasileiros de primeira geração e a sua carência de informações sobre os temas por ele abrangidos. Como no documento estudado no item anterior, também no de Florianópolis não há referências diretas às religiões chinesas e nem a elementos de natureza aparentemente religiosa presentes na academia.

293

SOARES, p. 7. In “As Rotinas” e “Combate” (p. 4) e no anexo “Regulamento para Katys” (p. 8). 295 A apresentação do sistema de graduação aparece no item “Sistemas de Graduação” (p. 6) e no anexo “Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu”. Esse sistema foi implantado no Brasil pelo grão-mestre Chan Kowk Wai e, curiosamente, não consta no libreto “Kung Fu – versão curta de uma história muito longa” (op. cit.). 296 SOARES, p. 6. 297 Ibid. 294

103

4.3.3 - Livros recentes sobre Kung-Fu publicados no Brasil Uma pesquisa em livrarias brasileiras na internet mostra que existe uma razoável oferta de

obras

sobre

Kung-Fu,

principalmente em inglês. Ainda assim, os brasileiros que não dominam esse idioma também obras

encontram em

Selecionamos

várias

português.298 dois

títulos:

"Kung-Fu Shaolin do Norte Técnicas Básicas 1º e 2º Kati", escrito por Chan Kowk Wai em parceria com Ariovaldo Veiga,299 e "Os Segredos do Kung-Fu", do norte-americano George R. Parulski Jr.300 Apesar de não estar disponível em livrarias,301 "Kung-Fu Shaolin do Norte..." é relevante porque foi o primeiro livro produzido no Brasil sobre o estilo e também porque é a única obra do gênero assinada por um mestre originário chinês radicado em nosso país. Há muitas obras estrangeiras a respeito de Shaolin, mas poucas específicas sobre o estilo Shaolin do Norte. Elas são de autoria de professores/mestres ligados à mesma genealogia de Chan Kowk Wai, que tem como mestres essenciais Ku Yu Cheung e Yang Sheung Mo. É notável observar que, assim como na obra em português, os livros em inglês também foram produzidos em co-autoria por um mestre chinês e um discípulo ocidental.302 Já a obra de Parulski é relevante porque foi lançada por uma grande editora303 e também porque faz uma apresentação genérica do Kung-Fu.

298

Pesquisa em , e (c. 30.01.2004). 299 CHAN, W., & VEIGA, A., "Kung Fu Shaolin...”, op. cit.. 300 PARULSKI, G., "Os Segredos do Kung-Fu - Um guia completo para princípios do Kung-Fu Shaolin e da Energia Intrínseca (Ch'i)", 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Record, 1996, 173 p. Trad. de Rosane Pinho. 301 A obra pode ser adquira pela internet, através de (c. 04.02.2004), na própria academia ou via editora. 302 KWON, W. & MANCUSO, T., "Moi Fah - The Plum Flower Fist", 1ª ed., Burbank: Unique Publications, 1984, 98 p.; e HUNG, L. & KLINGBORG, B., "Northern Shaolin Kung-Fu - The History, Form and Function of Pek Sil Lum", 1ª ed., Boston: Tutle Publishing, 1999, 128 p.

104

4.3.3.1 - "Kung-Fu Shaolin do Norte - Técnicas Básicas 1º e 2º Kati" Lançado em 1995, foi a primeira demonstração de interesse de professores do Shaolin do Norte em produzir um livro sobre o estilo. A obra focaliza as duas primeiras rotinas ensinadas dentro do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu.304 Das 116 páginas, seis possuem caráter introdutório, 67 são de apresentação das rotinas e 43 voltadas a elementos histórico-filosóficos e religiosos do estilo. Apesar de calcada na tradição oral, a obra começa contestando um dado da tradição genérica: "É parte da cultura chinesa atribuir a criação de grandes obras a personagens importantes (...) Assim, para se aumentar a importância do Wu-Shu, atribuiu-se sua origem a Ta Mo [nome chinês de Bodhidharma], do qual só se pode afirmar com certeza que viveu durante alguns anos no mosteiro de Shaolin de Henan (...)".305 O dado não foge do que é aceito pelos pesquisadores acadêmicos. No que tange à tradição, porém, nada mais há de "revolucionário": são reforçadas informações como a de que os monges de Shaolin viviam em paz com os governantes Ming, de que o mosteiro foi atacado e destruído por tropas Qing em 1736 e de que os sobreviventes fundaram um novo templo no sul da China. A novidade está nos nome dos monges sobreviventes - Li Shikai, Hu Dedi, Ma Shaoxing, Fang Dahong e Cai Dezhong - e a localização do mosteiro de Shaolin do Sul - em Julianshan, na província de Fujian.306 Como observado no cap. 2 desta dissertação, não há referências sobre um incêndio em Shaolin no ano de 1736; as fontes acadêmicas também vêem com dúvidas a existência de um mosteiro de Shaolin em Fujian. Os nomes dos mestres que compõem a genealogia do Shaolin do Norte são apresentados com uma pequena biografia. Aos dois representantes mais recentes dessa linhagem - os autores do livro - é reservado um maior espaço biográfico. A biografia de Chan Kowk Wai apresentada no livro307 é a mais completa dentre as encontradas na literatura referente ao estilo. 303

Com grande alcance de mercado. São elas o chamado "Lien Bu Chan" e o "Tun Dah" (ou "Tuin Tah"), expressões que podem ser traduzidas, respectivamente e de forma aproximada, por "Passos de Treinamento" e "Luta Curta". O termo chinês para "rotina" (conjunto de técnicas que formam um encadeamento) é "kati", para o qual não encontramos tradução. A tradução dos termos é do mestre Lee Chung Deh (cons. verbal em 30.01.2004). 305 "Kung-Fu Shaolin do Norte", p. 17. 306 "Kung-Fu. Shaolin... ", p. 20. 307 Ibid., p. 25 a 29. 304

105

O diferencial da obra está no capítulo “Parte Prática - Cumprimento Shaolin”.308 Foi a primeira referência a um elemento de caráter ritual (de viés religioso) do Shaolin do Norte encontrada em um documento escrito. O cumprimento é realizado pelo praticante antes da entrada e da saída do salão de treinamento, no começo e no final das aulas, no início e final de lutas e em apresentações. Erguendo os braços até a altura dos ombros, ele une a mão direita fechada à esquerda, espalmada, inclinando ligeiramente o corpo (fig 31). 309 Na entrada e saída do salão, o cumprimento é direcionado ao altar onde ficam as fotos dos mestres falecidos; no início e final das aulas, aos mestres e ao professor.310 Em

nossa

importância gesto

não

avaliação,

a

principal

do

está

no

elemento corporal simples, mecânico, mas no fato de que ele é dirigido tanto a pessoas

(professores

e

companheiros de prática) quanto ao altar, que representa, entre outros valores, o da ancestralidade – que, por sua vez, é de corte religioso. O pesquisador Herbert Plutschow, da Universidade da Califórnia, aponta o aspecto universal do culto aos antepassados; em relação à China, ele informa da existência de indícios ligados a esse tipo de culto já na Dinastia Shang, quando sacrifícios eram feitos para aplacar a ira dos ancestrais da família real: Quando os males sociais começavam a proliferar e as relações nos clãs a se desintegrar, quando os rituais eram negligenciados e tabus quebrados, acreditava-se que os ancestrais haviam ficado desgostosos com os vivos e, por conta disso, provocavam desastres naturais, pesadelos, desarmonia social e outros problemas. Os ancestrais fundantes, que representavam um esteio na ordem que eles próprios haviam estabelecido, eram particularmente identificados com calamidades naturais e levantes sociais. Assim, eram 311 temidos por provocar os males e cultuados para controlá-los.

Ao dirigir o cumprimento para o altar e para os “patriarcas” falecidos, representados por fotos, o praticante vivifica sua presença e, a partir do gesto, os traz para a sua realidade. 308

Ibid., p. 43. Alunos da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis. Foto do autor. A perspectiva, no detalhe, é a do observador saudado. Assim, o punho fechado está no lado esquerdo. Foto do autor. 310 Um estudo mais amplo sobre o tema, de nossa autoria, pode ser encontrado em 309

106

Além disso, pode-se intuir que, ao saudar os mestres ancestrais em momentos críticos (entrada e saída do espaço de treinamento, início e fim das práticas), o praticante está prestando homenagem, “pedindo licença” e mesmo proteção para si no período em que troca a identidade comum por uma centrada na marcialidade. Afora esse capítulo - que pode ser considerado “extraordinário” diante da carência de referências diretas à prática ritual ou religiosa nas academias de Kung-Fu em outras fontes de representação e, principalmente, de auto-representação pesquisadas no presente capítulo de nossa pesquisa - não há, em “Kung-Fu Shaolin do Norte”, outras referências diretas a práticas religiosas ou rituais tradicionais do Shaolin do Norte no Brasil. As referências aos monges e a Shaolin seguem a tradição genérica do Kung-Fu, apresentando os clérigos como guerreiros e o mosteiro como uma grande academia de artes marciais. 4.3.3.2 - "Os Segredos do Kung-Fu" Escrito em 1984 e publicado no Brasil em 1996, “Os Segredos do Kung-Fu” é uma “obra de apresentação” do Kung-Fu. Nela, seu autor, que se define como praticante de Kung-Fu Shaolin, repassa informações centradas, principalmente, em técnicas que, segundo ele, pertencem à arte marcial chinesa. Os capítulos possuem títulos como “Condicionamento e Treinamento da Postura”, “Modalidades Agressivas”, “Os Movimentos de Animais” e “Técnicas de Chutes”. Dada a riqueza de estilos dentro da arte marcial chinesa, é preciso considerar essas informações como genéricas. De 173 páginas, 133 são dedicadas a aspectos “pragmáticos” e 13 a aspectos “tradicionais” do Kung-Fu (as demais são reservadas a elementos documentais como índice, apresentação e agradecimentos). Ainda que reserve um número menor de páginas aos aspectos históricos, filosóficos e religiosos, o livro fornece informações. Notável é o alerta sobre a confiabilidade dos dados presente no capítulo “História do Kung-Fu”: “A história do kung-fu é cheia de muitas lendas e ciladas que tornam qualquer tentativa séria de transmitir uma história compreensiva e puramente factual quase impossível. (...) Há muito poucas provas documentadas para sustentar qualquer história de kung-fu, já que a 311

PLUTSCHOW, H., “Archaic Chinese Sacrificial Practices in the Light of the Generative Anthropology”, art. disp. em (c. 16.07.2004). Trad. Livre do inglês. 107

maioria das histórias passam de pai para filho, oralmente, sem qualquer documentação 312 escrita para comprovar.”

Das informações apresentadas, porém, a maioria parece se basear na tradição oral genérica do Kung-Fu e em fontes bibliográficas não-identificadas (como a maior parte das obras analisadas neste capítulo, também esta “dispensou a necessidade” de revelar suas fontes). Os aspectos religiosos são abordados em “A Filosofia do Kung-Fu”,313 que busca conectar arte marcial, Taoísmo, Confucionismo e Budismo Ch’an (Zen). Segundo o autor, “para compreender e avaliar verdadeiramente a sabedoria do Kung-Fu, deve-se primeiro tentar compreender a mente chinesa através do entendimento de sua cultura e filosofia.” Ele apresenta informações genéricas sobre o Tao, Budismo e Confucionismo, bem como sobre personagens como Chuang Tzu e Confúcio. A maioria das informações parece ter sido extraída de fontes bibliográficas que não são referenciadas. De modo geral, os dados são semelhantes aos de obras como as de Allan Watts. Ainda assim, constatamos um erro grave de informação: na p. 26 Parulski se refere a Lao Tzu como sendo um personagem do século XVI a.C.; a tradição chinesa afirma que o personagem viveu mil anos mais tarde, no século VI a.C.. Há que se considerar que pode ter havido uma falha na tradução para o português – isso, porém, não invalida o erro de informação. O autor aproxima a marcialidade da religião ao descrever o Budismo Ch’an (Zen): “A melhor maneira para o aluno de kung-fu desenvolver seu eu interior é, em essência, não tentar. (...) Este não-cultivo (wu-wei em chinês) é alcançado pelo aluno de kung-fu, quando ele pratica sua arte como um meio de autocultivo sem esforço ou propósito deliberado. (...) Quando o aluno de kung-fu assimila este conceito, ganha uma espécie de sexto sentido em combate.”

O conceito de “wu-wei” é semelhante ao de Allan Watts;314 a aproximação feita por Parulski, porém, parece artificial – a prática das academias brasileiras não inclui informações ou práticas ligadas à “libertação” da mente. Essa “artificialidade” também é percebida quando confrontada com o aspecto instrumental da arte marcial chinesa.315 Outro indicativo é a adoção de um “foco nipônico”316 sobre o Kung-Fu: ao tratar do cultivo da “não deliberação” na prática marcial, o autor se refere rapidamente ao termo chinês 312

PARULSKI, "Os Segredos do Kung-Fu... ", p. 19. Ibid., p. 26 a 32. 314 WATTS, A., “O Budismo Zen” (quarta edição, Lisboa: Editorial Presença, 1990, 248 p.), p. 39. 315 Inclusive por parte dos monges de Shaolin. Ver cap. 2 desta dissertação. 313

108

wu-hsin e, em seguida, a mushin, sua tradução japonesa. A partir daí, centra sua explicação no termo nipônico e até usa um exemplo da marcialidade japonesa para explicar o que, segundo ele, seria o ideal espiritual do Kung-Fu. Outro detalhe deve ser aqui considerado: além de professor de Kung-Fu, Parulski também é faixa preta de Karatê e Judô, artes marciais originárias do Japão.317 4.3.4 – Sites brasileiros sobre Kung-Fu A popularização da internet no Brasil abriu espaço para a auto-representação. O Kung-Fu brasileiro também chegou ao ciberespaço e já conta com dezenas de sites, que permitem acessar a auto-representação de professores e praticantes. É necessário observar, porém, a complexidade implicada na análise de conteúdos da internet. É impossível, em um estudo da dimensão do que estamos realizando, elencar e analisar todos as informações, mesmo em relação a um objeto tão restrito quanto o Kung-Fu brasileiro. Diante disso - e da dinâmica da internet -, observamos que a coleta de informações não teve por finalidade produzir um “perfil geral de conteúdos”, prestando-se a uma amostragem e à verificação de aspectos comuns aos sites de academias, professores e entusiastas. As páginas selecionadas para a pesquisa dão uma idéia do universo temático do nosso Kung-Fu: entre os assuntos comuns estão a História do Kung-Fu (ênfase para os estilos), a “filosofia” (universo ético e religioso), o Chi Kung e os filmes do gênero. Há, também, fotos de competições e atletas. A leitura mostra que, assim como nas outras classes de documentos analisadas, também aqui há valorização da tradição oral; quando o tema é religião, filosofia ou ética marcial, as fontes parecem ser outros sites, livros ou revistas que raramente recebem crédito. Há que se observar, como elemento diferencial em relação às outras fontes, que o livre compartilhamento de dados no contexto da internet contribui para o estabelecimento de uma classe especial de “dados gerais”, formada por textos e imagens tidos como condizentes

316 317

com

o

“ideário

do

Kung-Fu”.

Esses

dados

geram

"cadeias

de

Ver cap. 2. PARULSKI,, "Os Segredos do Kung-Fu... ", p. 173. 109

compartilhamento" cuja origem é difícil estabelecer. Para descobrir tais "cadeias" basta aplicar frases dos textos em análise a mecanismos de procura como Google e Altavista. Para efeito do estudo, classificamos os sites como “institucionais” (de academias) e “pessoais” (criados por entusiastas). No campo de “sites institucionais”, tomamos como referência o endereço eletrônico da Academia Shaolin de Kung-Fu, de Valinhos (SP). A escolha do site institucional se justifica por se tratar de uma academia reconhecida dentro do estilo Shaolin do Norte, com professores de renome nacional, inclusive em competições internacionais (Valdir Cremasco e Nereu Graballos). O site da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo318 não foi incluído porque não apresenta grandes diferenças, em termos de linhas gerais, em relação ao libreto da mesma instituição analisado no item 4.3.2.1. Vale, porém, apresentar alguns dados sobre o site da Academia Sino-Brasileira: ainda que ensaie um aprofundamento de dados no link "Histórico", peca por manter em branco outros links relacionados ao tema ("O desenvolvimento", "O Mosteiro de Shaolin", "A Virada do século XIX", "A Nova República", "A República Popular" e "O Panorama Hoje"). O site se aprofunda em relação às biografias do grão-mestre Chan Kowk Wai e dos mestres Ku Yu Cheung e Yang Sheung Mo (não conseguimos determinar a origem das informações sobre esses dois mestres), mas não faz qualquer relação direta às religiões chinesas. O site também traz uma lista com os nomes de professores e instrutores autorizados do Sistema Sino-Brasileiro em todo o país.319 Para chegar a uma relação de sites pessoais brasileiros, usamos a ferramenta de busca Google,320 na opção “sites em português”. Foram usadas as palavras-chave “Kung-Fu”,321 “Shaolin” e “Shaolin do Norte”, com retorno, respectivamente, de 11 mil, 2.730 e 310 sites. A seleção do "site pessoal" em nossa pesquisa foi feita aleatoriamente, a partir dos resultados obtidos. Em função do já referido fenômeno de compartilhamento de conteúdos na rede, essa análise implicou em uma ampliação da pesquisa para várias outras páginas de conteúdo similar.

318

(c. em 26.01.2004). Acessos ao site entre nov. 2003 e jan. 2004. 320 (c. 17 a 23.05.2003). 321 Bem como as variantes "Kung Fu", "kung-fu" e "kungfu". 319

110

4.3.4.1 – Sites institucionais De modo geral, os sites institucionais são mais complexos do que os pessoais. É o caso do site da "Academia Shaolin de Kung-Fu", de Valinhos (SP). A academia pertence ao professor Valdir Cremasco, aluno do mestre Nereu Graballos, um antigo aluno do grãomestre Chan Kowk Wai.322 O site é organizado em doze links, a saber: "Academia", "História", "Estilo", "Mestre/Professor", "Dança do Leão", "Instrutores", "Filosofia", "Fotos", "Kung-Fu Kids", "Filmes & Livros", "Cadastre-se" e "Horários de Treinamento". Como a apostila de Florianópolis, agrega elementos "modernizantes" à tradição. Isso é visível nos links "Filmes & Livros"323 e em "Kung-Fu Kids", que traz as seguintes informações: Nossas crianças hoje em dia, carecem de atividades físicas que complementem o seu desenvolvimento integral. O objetivo das aulas de Kung Fu Kids é ensinar não só técnicas de defesa pessoal, como também desenvolver as capacidades físicas e mentais da criança de forma harmônica e recreativa, dentro da filosofia das Artes Marciais. A forma de pensar de algumas pessoas leigas no assunto de que a Arte Marcial é um esporte que incita a violência está totalmente errada. (...)324

A “modernidade” também pode ser encontrada na página índex,325 que traz notícias sobre premiações da academia. Os links relacionados ao nosso objeto de estudo são "História", "Estilo" e "Filosofia". É interessante notar o distanciamento em relação à tradição oral consolidada no libreto da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo. "História" mescla tradição oral e "informações gerais" de Kung-Fu: Os primeiros estilos foram criados pelos clãs (por isso atribui-se a expressão 'Família Kung Fu' a um professor e seus alunos) e mantidos em segredo através de gerações. O Kung Fu, traduzido literalmente, significa maestria, eficiência, treinamento, disciplina, esplendor ou tempo de habilidade. Para designar-se Arte Marcial dá-se preferência por WuShu (Wu=Guerra e Shu=Arte), ou segundo adoção do governo chinês a partir de 1928, Kuo Shu (Kuo=Nacional e Shu=Arte). (...) As diferentes escolas de Kung Fu recebem na China uma divisão (pedagógica) que as denomina como sendo escolas do norte e escolas do sul. (...) Daí surgiu o conceito: 'Na Kuen Pat Tui', ou seja, 'Punhos do sul e Pernas do norte'. (...) Um monge guerreiro graduado em Shaolin tinha que ser especialista em cinco áreas do conhecimento. Ele deveria expressar-se num chinês correto, ou possuir caligrafia de rara beleza, ou escrever poesia, ou conhecer textos clássicos, ou ter conhecimento de técnica de lutas, etc. Deveria ainda dominar procedimentos práticos da Acupuntura e massagem chinesa. (...) O Kung Fu no Brasil - O Kung Fu no Brasil iniciou-se e meados dos anos 60 com a vinda do Mestre Chan Kowk Wai o qual é o Mestre do estilo Shaolin do Norte (...) As

322

(c. 28.01.2004). (c. 28.01.2004). 324 (c. 28.01.2004). A intenção do autor, de afastar o Kung-Fu de uma imagem de violência, pode ser considerada moderna. 325 (c. 28.01.2004). 323

111

séries de televisão como as do ator David Carradine (Kung Fu - A Lenda) abriu as portas 326 para esta Arte no território brasileiro.

Ainda que se possa atribuir invenções importantes aos clãs em qualquer cultura, não há dados acadêmicos que comprovem a relação no caso marcial chinês. A informação seguinte, de ser esse o motivo pelo qual o professor e seus alunos são chamados de "Família Kung-Fu", também soa estranha: como praticante de arte marcial chinesa tradicional de longa data, o autor desta dissertação jamais havia ouvido essa expressão! As traduções dos termos Wu-Shu e Kuo-Shu se aproximam do que é aceito pelos pesquisadores. O único fator de estranhamento é a tradução de "Kung-Fu" como "esplendor" ou "tempo de habilidade". Não conhecemos a relação do termo com "esplendor". "Tempo de habilidade" parece ser uma tradução literal de expert timing, termo pelo qual o Kung-Fu é, muitas vezes, traduzido para o inglês. Em relação à divisão dos estilos em "Punhos do Sul e Pernas do Norte", o autor usa um dado comum à tradição genérica do Kung-Fu. Segundo ela, o rio Yang-Tzé representaria uma fronteira: ao norte, nas áreas elevadas, predominariam estilos baseados na força das pernas; ao sul, nas áreas alagadas, prevaleceriam as técnicas de braços e mãos. Stanley Henning dedicou um artigo ao tema. Segundo ele, as primeiras referências a essa diferença são do séc. XVI. Henning acredita que a atribuição "geográfico-corporal" das técnicas é mais teórica do que real.327 Sobre os monges de Shaolin, os dados não encontram respaldo na tradição do Shaolin do Norte ou nas fontes acadêmicas. A atribuição de "virtudes cavalheirescas" aos monges de Shaolin foge à imagem captada por fontes das Dinastias Ming e Qing, que lhes reconheciam apenas virtudes marciais e, em alguns casos, coragem. Aliás, algumas fontes do século XVI fornecem uma imagem negativa dos monges, acusando-os de desídia em relação à religião e até de associação ao banditismo. Aparentemente, a apresentação dos monges como "super-homens" parece estar ligada à mesma tradição que os conecta à origem das tríades.328

326

A parte do texto referente à origem do Kung-Fu também foi encontrada em outro site institucional, o da "Associação Phoenix de Kung-Fu Tradicional", de Campinas, (c. 29.01.2004). Essa academia não oferece aulas de Shaolin do Norte. 327 HENNING, S., "Southern Fists & Northern Legs - The Geography of Chinese Boxing", in Journal of Asian Martial Arts, vol. 7, n. 3, 1998, p. 25 a 31, p. 30.

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Por fim, o autor faz uma conexão entre a sua pessoa e a tradição do Shaolin do Norte a partir de um breve histórico do grão-mestre Chan Kowk Wai. Esse histórico não apresenta discrepâncias em relação aos dados de outras biografias do mestre encontradas na tradição oral. Ao final do parágrafo, o autor (provavelmente o próprio Valdir Cremasco) se refere ao papel do seriado "Kung-Fu" para a atração de alunos nos anos 70. Vale observar, aqui, a omissão do autor em relação à "genealogia clássica" do estilo, que liga o grão-mestre Chan Kowk Wai ao mosteiro de Shaolin e que é um elemento marcante na tradição do Shaolin do Norte. Em "Estilo", o autor reconhece a máxima da tradição oral do Shaolin do Norte, que afirma que o estilo advém dos monges de Shaolin. A essa informação acrescenta dados técnicos aparentemente extraídos do trabalho na academia ou de uma fonte não referenciada: “O Shaolin do Norte tem ênfase nos chutes e técnicas que utilizam as mãos, utilizando a completa extensão de um membro a fim de que os socos e chutes permitam alcances maiores sem a perda do poder de impacto, sem o comprometimento do equilíbrio e força.”329 Por fim, em "Filosofia", o autor apresenta uma série de aforismos não referenciados, divididos nos itens "Seis Princípios Básicos para o Shaolin Kung-Fu", "Dificuldades a Serem Vencidas", "Virtudes a Serem Adquiridas" e "Frases Filosóficas". O primeiro item, "Seis Princípios...", reproduz o texto apresentado na abertura da revista "Kung Fu Defesa Pessoal", analisada neste capítulo. Os itens "Dificuldades a Serem Vencidas" e "Virtudes a Serem Adquiridas" indicam uma ética marcial não expressa na tradição oral do Shaolin do Norte e, aparentemente, mostram uma preocupação pessoal do professor em relação à formação de seus alunos. Dificuldades a serem vencidas: A Surpresa; A indecisão; A dúvida; O medo; Virtudes a serem adquiridas: Cortesia : Respeito dentro e fora da Academia para com os Mestres, Professores, instrutores e alunos e em todo relacionamento do dia a dia; Domínio de si mesmo: Calma em qualquer circunstância e contra qualquer adversário; Honra: Respeitar os seus princípios; Saúde espiritual: Harmonia do corpo e do espírito; Perseverança: Ser 330 determinado em seus objetivos; Humildade: Simplicidade na maneira de ser e agir.

328

Ver cap. 2 desta dissertação. (c. 29.01.2004) O mesmo texto, com modificações, foi encontrado no site da "Associação Pequeno Dragão de Kung-Fu" c. 29.01.2004), de Salvador (BA), que oferece aulas de Shaolin do Norte. 329

113

É interessante questionar a lente usada para essa leitura da arte marcial. Como observado no cap. 2 desta dissertação, na China as artes marciais não foram relacionadas a um "Caminho"; sua função seria instrumental, ou, quando eivada de um caráter ideológico, ligada à rebelião. Por fim, em "Frases Filosóficas" o que se observa é uma reunião de 71 frases de fundo moral sem autoria definida. Ao rastreá-las, verificamos que todas são compartilhadas por sites relacionados ou não às artes marciais. A título de exemplo, apresentamos algumas das frases, seguidas do número de compartilhamentos encontrados na internet: frase 1 "Não lute contra as forças, use-as.” (5); frase 2 - "A vida só pode ser compreendida olhando-se para traz, mas só pode ser vivida olhando-se para frente." (6); frase 6 - "Só uma coisa torna um sonho impossível, o medo de fracassar." (86); frase 7 - "Existem derrotas, mas não existe o sofrimento. Um verdadeiro guerreiro que ao perder uma batalha está melhorando sua arte de manejar a espada, e saberá lutar com mais habilidade no próximo combate." (22); frase 20 - "Quando mais você entender de si mesmo, mais entenderá do mundo." (5); frase 35 - "Só a experiência própria é capaz de tornar sábio o ser humano." (19); frase 52 - "O que somos hoje e o que seremos amanhã depende de nossos pensamentos." (7); e frase 67 - "O segredo da felicidade está em olhar todas as maravilhas do mundo e nunca se esquecer da sua missão ou do seu objetivo." (68). Afora as referências à relação entre os monges de Shaolin e a marcialidade, não há, no site, referências diretas às religiões chinesas ou a práticas/elementos religiosos na academia. 4.3.4.2 – Sites pessoais Nem todos os praticantes podem abrir academias, editar livros, dar entrevistas ou comprar espaço em revistas. Com acesso a um computador e um pouco de competência, porém, é possível publicar um site gratuitamente. Nesses sites, os praticantes expressam a forma como vivenciam o Kung-Fu - o ciberespaço é um cenário de reprodução, interpretação e criação de conteúdos. Um exemplo típico de site pessoal é “Kung-Fu Shaolin do Norte” (fig. 32),331 de um praticante identificado apenas como “Rhuan SK8”.332

330

(c. 29.01.2004). Disponível em (consulta em 19.05.2003). 332 Que foi contatado pelo autor desta pesquisa através de e-mail entre 20 e 26.05 2003, mas não respondeu. 331

114

A análise do site pode ser feita a partir dos links: “Filosofia” (texto), “Estilos” (texto), “Chi Kung” (imagens), “Grão-Mestre” (informações e imagens do grão-mestre Chan Kowk Wai, patriarca do Shaolin do Norte no Brasil), “Shaolin do Norte” (texto), “Armas” (texto e imagens), “Bases” (imagens com legendas), “Ditados Chineses” (texto), “Kung-Fu” (texto), “Wall Papers” (imagens), “Fotos do Templo” (imagens), “Midi & MP3” (arquivos de som), “Fotos Variadas” (imagens), “Contando em Chinês” (imagens com legendas) e “Dicas de Filmes” (texto). Não há citação, na forma de links diretos, às religiões chinesas. Referências indiretas ao Budismo chinês, ao Taoísmo e ao Confucionismo aparecem, porém, em alguns links. Em “Shaolin do Norte”, por exemplo, o autor relaciona Budismo e arte marcial da seguinte forma: Segundo a História, um imperador com tendências religiosas determinou que fosse construído um templo de formação budista. Com o desenvolvimento de seu Kung Fu, o Templo Shaolin (Jovem Floresta), alcançou grande destaque, contudo o Wu shu de Shaolin era ensinado somente aos monges do mosteiro. E assim ocorreu até que o abade superior Chiu Jin resolveu abrir as portas do Monastério Shaolin e ensinar sua valiosa arte marcial a 333 pessoas que não eram integrantes do monastério.

333

(c. 19.05.2003). 115

Os dados não fogem muito dos que compõem a "tradição oral média” do Shaolin do Norte (a referência é a apostila da matriz do Sistema Sino-Brasileiro). No do link “Kung-Fu”, o autor aborda o ingresso dos monges em Shaolin: A aceitação e a escolha para se tornar um membro dentro de um Templo Shaolin era difícil. Como jovens meninos, a aplicação para se tornar um membro do selecionado grupo de alunos, era composta de tarefas fáceis e difíceis do trabalho relacionado a manutenção do Templo. Sua sinceridade e habilidade em manter segredos da ordem Shaolin era severamente testadas por anos a fio antes de se divulgar os mais importantes e preciosos segredos. Uma vez aceitos pela ordem superior do Templo, sua entrada no Kung Fu era considerada como uma porta de entrada para um novo mundo.334

Não há referências históricas nesse sentido. No mesmo link, o autor faz referências à controversa "rede de mosteiros" de Shaolin: Honan, Fukien, Kwantung, Wu Tang e O Mei Shan. A história de Bodhidharma, personagem considerado pela tradição religiosa como patriarca do Zen-Budismo e por muitos praticantes de Kung-Fu como o patriarca da arte marcial chinesa, é descrita em um texto sofisticado: A existência de Bodhi Dharma (Ta Mo, em chinês) é, ainda hoje, posta em dúvida por muitos historiadores. Dos que o aceitam como personagem real, alguns o tomam por um monge persa, outros o tomam por um indiano da casta dos Kshatriya. As datas de sua chegada em Kouang (Cantão - China), vindo de Kanchipuran (região próxima a Madeas [sic], Índia), variam do ano 479 a.C. ou até antes, ao ano 526 a.C. Chega a haver quem defenda, entre os estudiosos, a idéia de "Bodhi Dharma" referir-se a um grupo de monges e não a uma só pessoa. Bodhi Dharma teria sido o 3º filho do rei Sungandha - discípulo monástico de Prajnatara e 28º patriarca do Budismo indiano. O nome que lhe fora dado, "Bodhi Dharma", indica que era visto como a encarnação humana do "Despertar (Bodhi) e 335 da "Lei" (Dharma).

Observa-se, no texto, uma confusão de datas envolvendo a chegada de Bodhidharma à China. De acordo com a tradição, o monge teria chegado naquele país em 520 d.C. e não cerca de mil anos antes, como afirma o texto. Referências iconográficas ao Budismo podem ser vistas nos links “Fotos do Templo” e “Chi Kung”, que trazem, respectivamente, fotos modernas do Mosteiro de Shaolin e também de orientais caracterizados como monges budistas executando exercícios e participando de provas de resistência física. As referências ao Taoísmo aparecem no link “Filosofia”, onde há uma descrição do Tao: "O Tao... palavra intraduzível. Um modo de ser. O Caminho do Meio, por ser à [sic] busca do equilíbrio. O Sol e a Lua. O claro e o escuro. (...) Tao... que tudo engloba, nada separa. Linguagem da natureza, tão esquecida pelo homem. Harmonia do desequilíbrio. Yin e Yang. 334 335

(c. 19.05.2003). Ibid. 116

Céu, Terra. Tao... vivência do aqui e agora sem reações, pleno de observações. (...) Tudo 336 isso é o Tao e muito mais. Onde o sentir é mais importante que o saber."

O texto não foge dos encontrados em livros populares sobre o tema. Em “Ditados Chineses”, o autor elenca uma série de 17 aforismos, alguns dos quais por ele atribuídos a Confúcio e aos taoístas Lao Tzu e Chuang Tzu. A título de exemplo, citamos três: "Se a tranqüilidade da água permite refletir as coisas, o que não poderá a tranqüilidade do espírito." (Chuang Tzu); "Aquele que acumula muitos tesouros tem muito a perder." (Lao Tzu); "Milhares de rios deságuam no mar, mas o mar nunca está cheio. Mesmo que o homem pudesse transformar pedra em ouro, ainda assim seu coração jamais seria satisfeito."337 A ligação entre o autor da página e a tradição do estilo Shaolin do Norte está expressa no link “Shaolin do Norte”, e é feita a partir da genealogia "clássica".338 Por fim, vale destacar, ainda, a referência feita pelo autor ao grão-mestre Chan Kowk Wai, expressa no link “Grão-Mestre”. O link traz a transcrição de uma entrevista publicada pela revista Kiai e uma galeria de fotos antigas e recentes do grão-mestre. As características mais importantes encontradas no site “Kung-Fu Shaolin do Norte” são a quantidade e a riqueza de informações. Diante da ausência de referências a fontes,339 investigamos a origem dos dados a partir da colocação, no mecanismo de busca Google, de trechos de até dez palavras dos textos citados na pesquisa da página-âncora.340 Constatamos o compartilhamento de conteúdos: textos de “Kung-Fu Shaolin do Norte” foram encontrados em nove sites brasileiros específicos de Kung-Fu/artes marciais e em duas revistas especializadas! Em nenhum dos casos, porém, o compartilhamento de conteúdos foi total. O texto no link “Shaolin do Norte” foi encontrado em dois sites pessoais de Kung-Fu341 e na revista “Kung-Fu Defesa Pessoal”,342 de onde provavelmente

336

(c. 21.05.2003). (c. 21.05.2003). 338 (c. 20.05.2003). 339 A não ser na entrevista com o grão-mestre Chan Kowk Wai. 340 (pesq. 23.05.2003). 341 e (c. 23.05.2003) 342 “Kung-Fu Defesa Pessoal”, p. 8. 337

117

foi extraído. O texto que descreve a entrada dos monges no mosteiro de Shaolin, em “Kung-Fu”, foi encontrado, com pequenas variações, em cinco sites.343 Também a descrição da “rede de mosteiros” de Shaolin, presente em “A Aceitação de Novos Monges”, foi encontrada em dois sites pessoais de Kung-Fu.344 Uma pesquisa mostrou que, originalmente, o texto foi publicado pela revista “Trump!”.345 O único texto aparentemente “próprio” – ou, pelo menos, não compartilhado por outros sites – é o relativo ao Taoísmo. Como o autor não cita uma fonte e nem assume a obra como sua, porém, é difícil estabelecer sua origem. No caso dos aforismos de “Ditados Chineses”, alguns foram encontrados em outros sites,346 o que parece indicar uma fonte comum, provavelmente oriunda de fora da internet. Com relação às imagens, elas também estão presentes em outros sites.347 4.4 – Interpretação do material apresentado A análise das fontes de representação e auto-representação no Kung-Fu desde a instalação desse universo semântico em nosso país revela elementos importantes para a compreensão do pensamento histórico, ético e religioso dos praticantes brasileiros. Percebe-se, inicialmente, que o contato entre mestres originários e alunos brasileiros só se deu, de fato, a partir da veiculação de produtos culturais oriundos dos Estados Unidos nos primeiros anos da década de 70.348 Muitos desses produtos, é certo, possuíam raízes chinesas, não apenas em relação à temática, mas também em relação à estética (elementos técnicos como a aceleração da velocidade da câmera em cenas de luta, por exemplo, eram típicos do cinema marcial de Hong Kong e foram absorvidos pelo cinema 343

, , , e (c. 03.05.2003). 344 e (c. 23.05.2003). 345 “Trump!...”, p. 8 e 9. A revista não é citada como fonte em nenhum dos sites. 346 e (c. 23.05.2003). 347 , e (c. 23.05.2003).

118

norte-americano. Ao se desnudar de elementos transculturais e se voltar à tradição chinesa, "Crouching Tiger, Hidden Dragon", filme dirigido por Ang Lee em 2000, sacramentou essa influência).349 Ainda assim, é preciso considerar que foi através de uma "lente norte-americana" que as primeiras referências significativas ao Kung-Fu chegaram à sociedade brasileira. Isso seguramente influenciou os elementos históricos, éticos e religiosos da arte, transformando-os. Há que se considerar, por exemplo, a influência prévia do "olhar nipônico" na marcialidade norte-americana: esse olhar, relacionado ao Zen e ao estabelecimento, a partir dele, de um "caminho de transcendência pela marcialidade", foi incorporado pelo Ocidente como base para a interpretação de todas as artes marciais orientais.350 Com o passar do tempo, o universo do Kung-Fu brasileiro criou raízes próprias e a produção do conhecimento passou por um processo de nacionalização. Em relação aos aspectos históricos, observa-se que eles se baseiam na tradição oral genérica - formada por elementos gerais, que incluem informações transmitidas por mestres originários, dados do cinema/literatura popular e deduções dos próprios praticantes - e na tradição específica dos estilos, calcada na relação "informação do mestre" (aceita como verdade absoluta) x "entendimento do aluno". Em relação aos aspectos éticos e religiosos, o que se observa é que a ligação se dá através, principalmente, de consultas a livros de vulgarização do conhecimento. Vale observar que os autores das obras pesquisadas não fazem uma distinção clara entre "Filosofia" e "Religião" - nessa ótica, o Taoísmo, por exemplo, é uma filosofia. Apenas essa constatação é suficiente para a percepção da dificuldade dos praticantes em lidar com a religiosidade chinesa encontrada no Kung-Fu e na própria cultura chinesa. A presença de mestres chineses nesse campo é pequena, e, por hipótese, pode ser explicada pela dificuldade de transmissão de valores nascidos e apreendidos fora do esquema ocidental de pensamento; outra hipótese, mais pragmática, é a de que, por serem advindos da cultura popular, esses mestres não reuniriam elementos suficientes para transmitir valores da cultura erudita. Vale lembrar que a moderna arte marcial chinesa (nascida nas Dinastias Ming-Qing)351 se desenvolveu fundamentalmente junto às classes populares. 348

Ver cap. 3 desta dissertação. HUNT, L., "Kung-Fu...", p. 184 a 200. Para "Crouching Tiger, Hidden Dragon", ver (c. 06.02.2004). 350 Ver o cap. 2 desta dissertação. 351 Apesar do interesse de scholars chineses pela marcialidade desde, pelo menos, o séc. XVI. Ver cap. 2 desta dissertação. 349

119

Um elemento religioso muito presente, oriundo da tradição oral e, sem dúvida, da indústria do entretenimento,352 se refere à condição de "guerreiros invencíveis" dos monges budistas de Shaolin. Essa condição, como visto no capítulo 2 desta dissertação, vai muito além do enfoque apriorístico das academias. Fundindo elementos históricos e religiosos está a genealogia dos estilos, calcada na tradição oral e que, por conta da dificuldade de acesso a fontes primárias chinesas, não foi analisada em maior profundidade. Um elemento notável nos produtos analisados neste capítulo é a quase ausência de referências a elementos ritualísticos e de caráter religioso praticados nas academias. Eles estão centrados no tema "Chi Kung", relacionado à arte marcial por ser considerado fonte de poderes físicos extraordinários. Em relação ao entendimento de elementos iconográficos e práticas como a queima de incenso em altares, praticamente não há referências. Por fim, é importante observar como os conteúdos "não corporais" desse "Kung-Fu à brasileira" são transmitidos através dos produtos de representação/auto-representação. Acreditamos que a falta de referências a fontes na maioria das obras pesquisadas seja um indício de que seus autores buscam incluir elementos na tradição oral - nascidos, fundamentalmente, de suas próprias conclusões, produzidas com base nas fontes de conhecimento sobre Kung-Fu disponíveis no Brasil - e, assim, legitimar seu universo semântico. Isso implica, sem sombra de dúvida, em transformações radicais dos conteúdos originários (transmitidos e/ou suprimidos pelos mestres chineses que chegaram ao Brasil) e em plasticidade do universo semântico do Kung-Fu brasileiro. A replicação/transformação desses conteúdos se

dá,

muitas

vezes,

a

partir

do

compartilhamento

de

informações.

Esse

compartilhamento pode ser visto em sua forma mais explícita na internet.

352

A partir do seriado de TV "Kung-Fu". 120

5. OS BUDAS DA ACADEMIA: INTERPRETAÇÃO ACADÊMICA DA ICONOGRAFIA NO UNIVERSO SEMÂNTICO DO SHAOLIN DO NORTE 5.1 – Considerações preliminares Este capítulo tem por objetivo relacionar e "traduzir", com base em informações acadêmicas, a iconografia de caráter religioso encontrada nos ambientes de treinamento dos entrevistados - academias pertencentes ao chamado Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu (Shaolin do Norte). Vale observar que, ao colocar este capítulo à frente do referente à análise dos dados das entrevistas de campo, buscamos estabelecer uma estruturação prévia para a percepção do valor dado pelos praticantes à religiosidade oriental na arte marcial chinesa. Ao apresentar uma relação de elementos iconográficos de caráter religioso, delimitamos um referencial para a pesquisa de campo. Antes de seguir em frente, é preciso estabelecer um conceito fundamental de "iconografia" e informar como ele será utilizado em nosso trabalho. De acordo com o dicionário Aurélio, o termo "iconografia" é definido como "1. Arte de representar por meio da imagem. 2. Conhecimento e descrição de gravuras (gravuras, fotografias, etc.). 3. Documentação visual que constitui ou completa obra de referência e/ou de caráter biográfico, histórico, geográfico, etc. 4. P. ext. Seção encarregada da iconografia."353 Em um primeiro momento buscaremos observar a forma como, por meio de espaços específicos e elementos visuais, a arte marcial chinesa é representada nas academias brasileiras. 5.1.1 - Uma aproximação teórica Uma análise dos ambientes de prática de Kung-Fu nos permite afirmar que eles são característicos de um subuniverso de significação. Nas palavras de Berger e Luckmann, subuniversos de significação como o representado pelo Kung-Fu brasileiro decorrem de (...) acentuações da especialização de papéis, levada a um ponto em que o conhecimento específico de um papel torna-se inteiramente esotérico, comparado com o acervo comum do conhecimento. Estes subuniversos de significação podem estar ocultos à visão geral, ou não. 353

FERREIRA, A., "Novo Dicionário Aurélio", p. 472. 121

(...) Os subuniversos de significação podem ser socialmente estruturados de acordo com 354 vários critérios, sexo, idade, ocupação, tendência religiosa, gosto estético etc.

Em sua obra, Berger e Luckmann observam uma "graduação de proximidade" (a expressão é nossa) dos subuniversos em relação à realidade-padrão. Alguns podem ser intencionalmente apartados da realidade, como as sociedades secretas chinesas (curiosamente, instituições ligadas a práticas marciais). Não é o caso do subuniverso brasileiro do Kung-Fu, marcado por diferenças em relação à realidade-padrão, mas que, por conta de alguns fatores, não sofreu um processo de encapsulamento. Esses fatores são de ordem econômica - os professores precisam interagir com a realidade-padrão, visto que sobrevivem da difusão dos conhecimentos - e cultural, uma vez que, em nosso país, a marcialidade chinesa é pouco marcada pelo elemento étnico,355 tendo sido apropriada de uma forma sui generis pelos praticantes locais. E o que difere um ambiente de prática de Kung-Fu do "resto do mundo"? Fundamentalmente, a presença de elementos chineses (ou pseudochineses) associados à arte marcial; esse cenário também estimula um “redirecionamento do olhar”, que leva à transformação, por exemplo, de uma cana em um bastão de guerra, e da foto de um velho mestre na imagem de um antepassado marcial. Que, em maior ou menor grau, converte o espaço de treinamento em um "mini-mosteiro de Shaolin" e os praticantes em herdeiros de uma velha tradição de guerra e habilidades heróicas. Os praticantes se reconhecem, executam as mesmas rotinas marciais e usam expressões exclusivas da arte marcial chinesa.356 5.1.2 - A cor e a moldura do Kung-Fu praticado no Brasil Sendo o Kung-Fu um produto do universo cultural chinês transplantado para o Brasil, é natural que, nos ambientes de treinamento, estejam presentes elementos atribuídos a essa cultura. Tais elementos dão a "cor chinesa" e, mesmo, produzem uma "moldura chinesa" legitimadora; ambas serão mais ou menos aparentes de acordo com os seguintes fatores: 354

BERGER, P. & LUCKMANN, T., "A Construção Social da Realidade", 21ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2002, 247 p., p. 117. 355 A maior parte dos imigrantes chineses que chegou ao Brasil não possui conhecimentos profundos a respeito do Kung-Fu. Sobre o papel da imigração chinesa ao Brasil para a difusão da arte marcial, ver o cap. 3 desta dissertação. 356 Como os nomes de rotinas, posturas e técnicas específicas. 122

1 - A proximidade entre o praticante e uma fonte étnica de conhecimento: pode-se afirmar que, ao ter aulas com um mestre chinês (ou seja, um informante étnico), as chances de o praticante ter acesso a elementos originais da cultura chinesa - da música à alimentação é maior. Esses elementos podem ser caracterizados, por esse praticante brasileiro, como fundamentais para a legitimidade da arte marcial. 2 - As possibilidades econômicas de construção do "cenário chinês": apesar do aumento recente, em nosso país, do número de estabelecimentos comerciais que importam produtos kitsch357 da China - coisas como leques, lanternas, "bolas da saúde"358 e até dragões e divindades chinesas produzidos em resina que imita jade - deve-se observar que a montagem de um ambiente chinês mais veraz demanda investimento e conhecimento de causa (fig. 33 e 34). 359 Ainda que seja possível criar e adaptar objetos, armas originais decorativas ou de

treinamento

como

espadas

e

facões, por exemplo, não saem por menos

de

US$

30,00.

Elas

são

importadas da China e vendidas no Brasil por lojas de produtos marciais chineses localizadas, sobretudo, na cidade de São Paulo,360 o que, para os compradores de outras regiões do país, implica em despesas extras de postagem/transporte. Hoje, porém, já é possível adquirir esses bens por meio da internet. 3 - O interesse do proprietário do ambiente de prática em estabelecer uma relação de maior ou menor intensidade com elementos chineses, sejam eles destacados ou não do

357

"(...) kitsch é um objeto ou estilo que, simulando uma obra de arte, é apenas imitação de mau gosto para desfrute de um público que alimenta a cultura de massa (...) São exemplos de típicos de kitsch estatuetas de plástico que imitam obras clássicas, flores artificiais, certos móveis de fórmica (...)"; definição in FASCIONI, L. & VIEIRA, M., "O Kitsch na comunicação visual das indústria de base tecnológica", art. deps. em (c. 19.05.2004). 358 Esferas de metal decoradas, dotadas de guisos em seu interior, utilizadas para exercícios com as mãos. 359 Fig. 33: “estante chinesa” em casa de Curitiba. Fig. 34: armas de Kung-Fu. Fotos do autor (jun. 2004). 360 Em nossa pesquisa de campo (março de 2004) localizamos duas lojas de artigos de Kung-Fu, ambas situadas no bairro da Liberdade. Os dois estabelecimentos pertencem a chineses. 123

"universo marcial": esse interesse assume traços relacionados à representação ("o que é o Kung-Fu"; "como eu vejo o Kung-Fu") e à auto-representação ("como eu assumo e vivo esse universo"). Assim, se o professor não se interessar por nada além das técnicas nem mesmo por seus nomes chineses, o que implica na criação de denominações à brasileira como "técnica da banana", "chute sem pulo" ou "peão" -,361 é possível que ele mantenha apenas equipamentos para treinamento, uma barra para alongamento de pernas, um saco de pancadas e um espelho para auto-observação pelos alunos. No caso das academias mantidas por imigrantes chineses - em nossa pesquisa, as de Chan Kowk Wai e Lee Chung Deh - essa aproximação tende a ser, por razões étnicas, mais "natural". 5.2 - "As 18 Câmaras de Shaolin": construindo um espaço para a prática de KungFu Um salão de bom tamanho localizado em um prédio velho. Um ambiente normalmente empoeirado, cheirando a suor, chulé e incenso. Repleto de "quinquilharias" dignas de Fu Manchu, como armas de uma tecnologia anterior à pólvora, lanternas vermelhas, altares, sacos de pancada, quadros repletos de ideogramas e velhas fotos de orientais de olhar raivoso ou enigmático; um escritório que reúne escrivaninha, computador, livros e lembretes, telefone, equipamento de som, geladeira e algumas dezenas de troféus e medalhas. Às vezes, até uma cama. Ao entrar em uma academia de Kung-Fu, o neófito provavelmente vai encontrar um cenário semelhante ao descrito no parágrafo anterior (em maior ou menor grau, de acordo com os elementos enumerados no item 5.1.2). A descrição pode soar um tanto "literária" ou, mesmo, digna do "Cinema B" de Hong Kong. No entanto, ela se aproxima de um padrão médio - foi construída a partir da observação de várias academias: uma de São Paulo (SP), uma de Florianópolis (SC), uma de Joinville (SC), duas de Curitiba (PR), uma de Belo Horizonte (MG) e uma de Campo Grande (MS) - e seus elementos podem ser prospectados e justificados um a um.

361

Denominações encontradas no Shaolin do Norte. 124

5.2.1 - Um salão para o dragão A idade dos imóveis normalmente utilizados para abrigar academias está ligada tanto a fatores econômicos quanto de natureza funcional: normalmente, apenas edifícios antigos são capazes de cumprir as exigências de aluguel baixo, espaço amplo e pé-direito alto. A necessidade do aluguel baixo se justifica pela pequena capacidade de investimento por parte dos professores iniciantes, que precisam se instalar e "mostrar serviço"; a grandeza do salão é exigida tanto pelo fator econômico - a capacidade de abrigar turmas grandes 362

quanto pelo funcional -, um espaço suficientemente amplo para permitir a execução

dos "katis", as séries de movimentos que caracterizam os estilos tradicionais. O pé-direito alto também está ligado à prática dos "katis", uma vez que as técnicas com armas longas como bastões, lanças e alabardas (Kuan Tao) exigem tetos altos para evitar acidentes.363

Em nossa pesquisa, dois salões chamaram especialmente a atenção: o da matriz do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, em um antigo casarão de pé-direito alto, e o da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis, instalado na Academia do Colégio Catarinense (uma das mais tradicionais instituições de ensino da capital de Santa Catarina) em um espaço compartilhado com praticantes de balé (fig. 35 e 36).364 Nesse segundo ambiente, as aulas de balé são ministradas durante o dia; as de Kung-Fu, à noite. Vale observar que, nesse espaço, não parece existir 362

Ao tempo da pesquisa, a mensalidade em academias de Shaolin do Norte contatadas variava entre R$ 65,00 e R$ 200,00. Para obter uma renda mensal de R$ 2.000,00, portanto, um professor que cobre R$ 65,00 deve ter, pelo menos, 30 alunos. Há que se observar que os ganhos mensais devem cobrir despesas como aluguel, condomínio, luz, água, telefone, internet e materiais de limpeza. 363 Para uma lista de armas longas de Kung-Fu, ver MING, Y., "Ancient Chinese Weapons... ", p. 17 a 48. 364 Foto Florianópolis (jul. 2003). Foto São Paulo (jun. 2004). Fotos do autor. 125

qualquer tipo de restrição à iconografia marcial (religiosa ou não) por parte dos praticantes de dança. Equipamentos como espelhos e barras de alongamento são compartilhados. Um terceiro espaço, de uma academia de Shaolin do Norte não incluída em nossa pesquisa - a Senda, de Curitiba -365 também corresponde à descrição feita no primeiro parágrafo deste sub-item do capítulo: há mais de dez anos funciona em um antigo edifício no “Centro Velho” de Curitiba, junto à praça Tiradentes, área considerada “decadente” pelo mercado imobiliário local. 5.2.2 - Sobre o pó e os cheiros das academias A poeira e os cheiros de suor, chulé e incenso estão ligados ao tipo de atividade realizada nas academias. A quantidade de poeira depende, sem dúvida, do cuidado do professor em relação a seu ambiente de trabalho. Em academias como a de Chan Kowk Wai, certos dias da semana são reservados para que os alunos lavem o piso de concreto – repentinamente o mestre surge com uma mangueira de pressão e os alunos correm para apanhar vassouras, rodos e panos. Há que se considerar, porém, o tipo de público-padrão das academias: normalmente, adolescentes do sexo masculino, que costumam "não dar muita bola" para o problema. Além disso, a grande rotatividade de turmas faz com que, muitas vezes, não haja tempo para uma limpeza mais adequada. Há que se considerar, ainda, o grau de reverência aos espaços de treinamento dentro do Kung-Fu. Apesar de "separados do mundo" pela atividade desenvolvida e pela iconografia, com base nas observações de campo não se pode afirmar que tais espaços sejam objeto de uma reverência especial, pelo menos no que tange à limpeza. Sobre os cheiros, pode-se observar que equipamentos de treinamento como luvas, protetores peitorais, capacetes, tênis, sapatilhas e camisetas "deixadas para secar" produzem odores característicos. O cheiro de incenso pode estar relacionado tanto à representação do ambiente marcial quanto a práticas de caráter religioso ou pseudoreligioso. 365

Também afiliada ao Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu (Shaolin do Norte), a Academia Senda pertence ao professor de Educação Física e psicólogo Jorge Jefremovas, discípulo de Lee Chung Deh e praticante da mesma geração de um dos entrevistados de nossa pesquisa (o professor Rogério Leal Soares, de Florianópolis). 126

5.2.3 - A arca de Shaolin O terceiro elemento da descrição, que chamamos no item 5.2 de quinquilharias, se aproxima do nosso objeto de interesse no presente capítulo. Seriados de TV como "KungFu", bem como filmes de Bruce Lee e de Jackie Chan, certamente contribuíram para o estabelecimento, por parte dos praticantes brasileiros, de um cenário considerado "adequado" para a prática do Kung-Fu.366 Esse cenário está diretamente relacionado ao universo semântico da arte marcial. Da mesma forma, os mestres chineses que chegaram ao Brasil deram sua contribuição - de caráter étnico - para esse universo, carreando para dentro de suas academias elementos iconográficos, decorativos e semânticos de sua própria cultura. Na razão em que uma cultura não se limita ao religioso, pode-se deduzir que nem todos os "itens cenográficos" de uma academia de Kung-Fu possuem caráter religioso - mesmo porque a arte marcial chinesa não tem, em si, uma finalidade religiosa (seu caráter central, em nossa opinião, é de prática corporal voltada fundamentalmente à capacitação técnica para combate ou à saúde).367 Extraindo da análise os elementos de matriz religiosa - que será estudado em itens à parte neste capítulo - podemos dividir os demais nas seguintes categorias: 1. Elementos referenciais genéricos para a arte marcial: nessa categoria estão elementos que, de uma forma "mais simples" - ou mais próxima da representação inicial do Kung-Fu no Brasil -, identificam a arte marcial. As peças de maior presença aí, sem dúvida, são os pôsteres de artistas marciais como Bruce Lee - como observado anteriormente,368 o ator sino-americano é uma figura de referência para a arte marcial, um personagem lembrado com estima e visto como exemplo de praticante. Também podem ser incluídos, entre os elementos referenciais genéricos, pôsteres representando os modernos "monges de Shaolin", fotos dos professores quando eram alunos ou, então, de alunos em poses marciais ou em ocasiões festivas (como premiações em competições).

366

A respeito do papel da indústria do entretenimento para a formação do universo semântico dos praticantes brasileiros de Kung-Fu, ver cap. 4 desta dissertação. 367 A respeito da instrumentalidade da arte marcial chinesa, ver o cap. 2 desta dissertação. 368 No cap. 4 desta dissertação. 127

2. Elementos referenciais genéricos para a cultura chinesa: nessa categoria estão objetos como lanternas típicas, reproduções de quadros chineses (geralmente extraídas de calendários chineses) e móveis em bambu. Tal universo de objetos - que pode incluir até elementos de outras culturas orientais, como a do Japão - tem por finalidade relacionar o espaço de prática com uma cultura de raiz e, assim, reforçar uma "identidade étnica" (que, no caso de academias mantidas por brasileiros, acaba se caracterizando como "pseudo-étnica"). Essa "identidade" está ligada, sem dúvida, a um desejo de legitimação. 3. Elementos instrumentais para a arte marcial: nessa categoria estão os objetos utilizados para a prática marcial pelos alunos. Os mais característicos do Kung-Fu são, sem dúvida, as armas tradicionais, dentre as quais se destacam os bastões, lanças, facões, espadas, punhais e alabardas (fig. 37 e 38).369

Em algumas academias - no caso da nossa pesquisa, a de Chan Kowk Wai - é possível encontrar uma diversidade maior de armas (seu armeiro abriga tridentes, bastões articulados, correntes, chuços, martelos, lanças de ponta dupla e cavaletes); essa diversidade

está 370

mestre/professor.

normalmente Também

se

relacionada enquadram

ao

domínio

nessa

de

categoria

técnicas os

pelo

uniformes

(principalmente as camisetas, que cumprem uma dupla função, instrumental e semântica), equipamentos de proteção para Sanshou (boxe chinês), pisos de borracha para lutas de solo, espelhos e alteres.

369 Na imagem da esquerda são visíveis as chamadas “armas médias” (facões, espadas etc.). Na imagem da direita estão detalhes das “cabeças” de armas longas (São Paulo, junho de 2004). Fotos do autor. 370 Para uma relação de armas chinesas, ver MING, Y., "Ancient Chinese Weapons...", op. cit.

128

4. Elementos da "cultura brasileira" presentes nos espaços de prática de Kung-Fu: nessa categoria estão elementos desconhecidos ao universo cultural chinês - coisas como brasões de clubes de futebol, imagens de santos católicos e até fotos de políticos. Apenas a título de exemplo, vale citar o caso da Academia Senda, de Curitiba, onde, junto à porta de entrada, é possível avistar um quadro de São Jorge, evidentemente a cavalo, matando o dragão com uma lança; esse quadro está praticamente ao lado de um segundo quadro, que retrata Kuan Kung (Kuankun), divindade tutelar chinesa associada aos mosteiros budistas e às academias de Kung-Fu, igualmente a cavalo e portando uma alabarda (fig. 39).371 Em princípio, São Jorge está ali porque é o santo protetor do dono da academia, seu homônimo;

ainda

assim,

divindades

armadas,

a

presença

aparentemente

de tão

próximas em seu simbolismo - apesar de advindas

de

universos

religiosos

muito

diferentes - dá uma idéia de quão interessante pode

ser

o

cruzamento

de

elementos

iconográficos e de sua interpretação (a recíproca pode ser verdadeira para o "outro lado": no altar de um templo nas Filipinas, como mostra Keith Stevens, bodhisattvas aparecem acompanhados de um Jesus crucificado. Vale observar que, no passado das Filipinas, houve um cruzamento radical entre uma cultura européia – espanhola - e uma cultura local fortemente influenciada pela China).372 Apesar da "tentação" de se pesquisar a presença de elementos de religiões orientais e ocidentais em um mesmo ambiente de prática marcial, porém, vamos nos ater, fundamentalmente, à iconografia religiosa chinesa e à forma como ela é valorizada/interpretada pelos praticantes brasileiros. 5.2.4 - O gabinete do venerável mestre O escritório de uma academia de Kung-Fu costuma ser um espaço de múltiplo uso. É, em primeiro lugar, o nicho particular do proprietário, estando também reservado à realização das atividades burocráticas da academia (recepção de interessados, matrículas e 371 Academia Senda, Curitiba (março/2004). Foto do autor. Sobre Kuan Kung, ver nota 164 do cap. 2 desta dissertação. Ver, também, fig. 10. 372 STEVENS, K., "Chinese Gods... ", foto à p. 93.

129

pagamento de mensalidades), ao computador (quando há um), aos livros e troféus (fig. 40 e 41).373

No caso de professores que moram ou fazem refeições na academia, pode abrigar, também, uma cama e até uma geladeira. Abrimos espaço, dentro dessa categoria, para uma referência ao vestiário, lugar reservado para a troca de roupas pelos alunos. Em algumas academias, homens e mulheres compartilham esse espaço, respeitando, evidentemente, uma ordem de entrada (quando representantes de um sexo estão se trocando, os do outro aguardam fora). Os vestiários também estão associados a banheiros, que podem conter chuveiros. 5.3 - A iconografia religiosa Sintetizados todos os elementos "mundanos" que compõem o "ambiente Kung-Fu", nos dirigimos para os que nos interessam de forma mais direta: os de caráter religioso. No meio de todos os elementos cenográficos e instrumentais acima referidos, como localizálos? Nossa relação de elementos iconográficos de caráter religioso nas academias foi construída a partir de observações empíricas dos locais de prática marcial e dos uniformes dos entrevistados. Os limites dessa relação foram determinados a partir do olhar do pesquisador, um praticante de Kung-Fu de longa data, interessado no entendimento dos "conteúdos não-corporais" e acostumado com a observação de repetições iconográficas em academias de Shaolin do Norte. A confirmação do sentido religioso dos objetos relacionados foi feita a partir de sua leitura acadêmica.

373

Imagens: junho de 2004. Fotos do autor. 130

Em nossa pesquisa de significados fizemos uso, principalmente, do livro de Keith Stevens, "Chinese Gods - The Unseen World of Spirits and Demons",374 que traz informações a respeito de vários ícones ligados à religiosidade chinesa; para o entendimento de conteúdos do Taoísmo e do Budismo, apelamos para trabalhos de Marcel Granet,375 Allan Watts,376 John Blofeld,377 Juan-Eduardo Cirlot;378 no caso específico do Pa Kua, usamos as apresentações/traduções do I Ching feitas por James Legge e Richard Wilhem.379 A questão da "divindade tutelar" de Shaolin e das academias de Shaolin do Norte foi abordada a partir do cruzamento de dados de Stevens com os de Meir Shahar.380 Na análise dos altares incluímos elementos do trabalho de Dian Murray sobre os rituais das tríades chinesas.381 5.3.1 - Vencendo a barreira dos ideogramas Os elementos iconográficos que contém ideogramas chineses receberam um tratamento diferenciado em relação aos de caráter exclusivamente simbólico. Antes de chegar ao seu significado, foi preciso traduzi-los para o português. Para isso, contamos com o auxílio do mestre de Kung-Fu Lee Chung Deh (tradutor dos ideogramas da camiseta-padrão do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu) e do mestre acupunturista Pan Yi Bo (tradutor da "placa votiva" do mesmo Sistema). Os dois mestres são imigrantes chineses (o primeiro nasceu em Taiwan e o segundo na província de Henan, na China continental) e atualmente vivem em Curitiba. 5.4 - Elementos iconográficos de caráter religioso encontrados em academias Nosso objeto de pesquisa, neste capítulo, abrange os seguintes elementos iconográficos de caráter religioso encontrados nas academias de Kung-Fu do chamado Sistema SinoBrasileiro de kung-fu, criado no início dos anos 70 pelo imigrante chinês Chan Kowk Wai: 374

STEVENS, K., "Chinese Gods...", op. cit. GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, 1ª ed., Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, 415 p. 376 WATTS, A., "O Budismo Zen", 4ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1990, 249 p.; "O Zen e a Experiência Mística", 1ª ed., São Paulo: Cultrix, 1980, 148 p.; "Em Meu Próprio Caminho", 1ª ed., São Paulo: Editora Siciliano, 1992, 314 p. 377 BLOFELD, J., “Taoism – The Road to Immortality”, 6ª ed., Boston: Shambala, 2000, 195 p. 378 CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, 1ª ed., São Paulo: Editora Moraes, 1984, 616 p. 379 LEGGE, J., "I Ching", 1ª ed., São Paulo: Hemus, 1972, 520 p.; e WILHELM, R., & PERROT, É., "Yi King - Le Livre des Transformations", 8ª ed., Paris: Librairie de Médicis, 1973, 804 p. 380 SHAHAR, M., "Ming-Period Evidence... ", p. 359 a 413. 381 MURRAY, D., "The Origins...”, op.cit 375

131

-

Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu;

-

“Placa da Ética e da Ancestralidade”;

-

Altar com queimador de incenso e fotos de "mestres patriarcas" do estilo.

Vale observar, previamente, que há uma clara divisão em “conjuntos semânticos” dos elementos iconográficos enumerados. Enquanto a camiseta forma o primeiro desses conjuntos, a placa e o altar formam o segundo. 5.4.1 - Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu A camiseta-padrão adotada por boa parte das academias de Kung-Fu do Sistema SinoBrasileiro (Shaolin do Norte) foi criada pelo grão-mestre Chan Kowk Wai. Ela representa um conjunto semântico de caráter religioso centrado, fundamentalmente, no Taoísmo. Ela é composta por dois conjuntos de símbolos gráficos, um localizado na parte da frente e o outro na parte de trás da vestimenta (fig. 42 e 43).382

O primeiro conjunto (na frente) é composto por um brasão; e o segundo (nas costas) por um “dragão abraçando o Pa Kua”, símbolo reconhecido como tradicional do Shaolin do Norte no Brasil. Esses conjuntos constituem, em nossa avaliação, a mais complexa presença iconográfica de viés religioso encontrada no universo pesquisado. Tal complexidade decorre, fundamentalmente, de um mix de elementos budistas e taoístas que remete à fusão de partes das duas religiões verificada na China do séc. V d.C. e até hoje presente no universo religioso daquele país.383 Antes de seguir em frente, vale observar um elemento extra, ligado à base sobre a qual se assentam os símbolos: as cores das camisetas. Normalmente elas são brancas, com os elementos gráficos 382 383

Camisetas de Florianópolis e Campo Grande doadas ao autor. Fotos do autor. A respeito da fusão “budo-taoísta”, ver o cap. 2 desta dissertação. 132

serigrafados em preto ou, então, em azul e vermelho. Há, porém, registro de camisetas de cores diferentes, como o preto, vermelho e amarelo, com os elementos serigrafados em branco.384 Pelo que pudemos constatar em nossa pesquisa de campo, essa variação é aceita por seu caráter estético e não por determinações religiosas ou tradicionais.385 5.4.1.1 – A frente da camiseta – O Brasão O brasão circular que ilustra a parte da frente da camiseta reúne uma série de símbolos e ideogramas relacionados ao Taoísmo e ao Budismo.386 A predominância, apesar de o estilo Shaolin do Norte ser tradicionalmente associado a esta última religião - através de sua fonte histórico-mítica, o mosteiro de Shaolin em Henan, e de seu fundador mítico, o asceta indiano Bodhidharma -, é de elementos taoístas. O símbolo central do brasão é o Tai-Chi (representação gráfica do Tao), cercado pelos oito trigramas do Pa Kua; estes, por sua vez, estão cercados por dez ideogramas distribuídos em quatro “expressões” ou conjuntos semânticos – dois na horizontal e dois na vertical. A esse conjunto é somado o nome da cidade e/ou da academia - por exemplo: “Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu - Curitiba” -, apresentado em um dístico ao redor do círculo.387 Para facilitar a leitura iconográfica, faremos a seguir uma descrição esquemática dos símbolos de natureza religiosa que compõem o brasão das camisetas do Sistema SinoBrasileiro de Kung-Fu (a ordem numérica segue a determinação da fig. 44).

384

Nos anos 80, como praticante de Shaolin do Norte, o autor dessa pesquisa usou camisetas nas quatro cores referidas. 385 Vale observar, porém, que o vermelho e o preto são as cores que, nos combates desportivos de Kung-Fu (Sanshou), identificam os lutadores. 386 Em nossa análise, tomaremos como referência o trabalho de APOLLONI, R., & LEE, C., “O Significado dos Símbolos em sua Camiseta”, presente in (c. 27.05.04). 387 Por não se tratar de um elemento de caráter religioso, mas sim de identidade de cada academia, optamos por omitir o dístico da ilustração 29. Não há prejuízo para a análise a que nos propomos. 133

ELEMENTOS: (1) - Tai-Chi – O termo Tai-Chi pode ser traduzido do chinês, por aproximação, como “o mais alto”, “o maior”, “o grau supremo” ou “aquele que, por sua grandeza, não é mensurável”.388 Seu conceito nasceu provavelmente

dentro

do

Taoísmo,

filosofia/religião

chinesa

por

excelência, cujos registros mais antigos datam do século VI a.C. (é possível que o conceito seja anterior à formação de um “corpo filosófico” taoísta). Graficamente, a representação do Tai-Chi mostra as duas polaridades universais, Yin e Yang, interagindo dinamicamente. De acordo com a tradição sínica, os conceitos de Yin e Yang teriam nascido com astrônomos. Sua apresentação mais antiga estaria no Hi Zi, tratado do séc. V a.C. que, em tempos muito recuados, foi anexado ao I Ching.389 Nos termos da religião tradicional o Tai-Chi está ligado, essencialmente, a uma dinâmica universal formada por opostos que se complementam e que trocam constantemente de polaridade. Granet reforça o caráter criativo representado pelo Tai-Chi: “a figura pretende mostrar a união do Yin e do Yang no momento em que eles produzem os 10.000 Seres”.390 Guardada a advertência de Lao-Tzu – que observou a impossibilidade de

388

O termo determinante é Tai, que pode ser traduzido como “maior do que o maior”. GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 83 a 100. 390 Ibid, nota 403. Por “10.000 Seres” deve-se entender todas as coisas que compõem a realidade. 389

134

tradução, em termos racionais, dos conceitos taoístas –391 pode-se afirmar que Tai-Chi é, de fato, a melhor representação gráfica do Tao,392 expressão traduzida, no Ocidente, como “Caminho”. Em nossa avaliação, essa equivalência não reflete a verdade. Adotando uma definição mais acadêmica, do pensador espanhol Juan Eduardo Cirlot, temos a informação de que o Tai-Chi é o: (...) símbolo da distribuição dualista de forças, composto do princípio ativo ou masculino (Yang) e do passivo ou feminino (Yin). Aparece em forma de círculo dividido por uma linha sigmóide; os dois campos resultantes acham-se assim dotados de um sentido dinâmico do qual careceriam se a divisão se fizesse por meio de um diâmetro. A metade clara representa a força Yang e a escura a força Yin, mas cada uma delas tem um pequeno círculo no meio do tom contrário, para simbolizar que toda modalidade encerra sempre um 393 germe da oposta.

No Ocidente o Tai-Chi é conhecido desde, pelo menos, os anos 50 do séc. XX, quando foi incorporado ao universo intelectual;394 nos anos 60, foi abraçado pela “cultura pop”. Nessa época foi “ressignificado” e até associado ao mercado: uma das mais conhecidas empresas de artigos para surfistas, a “Town & Country”, tem nesse círculo cortado por um sigmóide sua marca registrada.395 Nas camisetas dos mestres e professores pesquisados é possível encontrar o Tai-Chi em duas posições: com a linha sigmóide alinhada à vertical e com a mesma linha alinhada à horizontal. Na camiseta da academia matriz do sistema (São Paulo), a posição é horizontal. Em outras, como a de Florianópolis, é vertical. Aparentemente, as duas orientações são entendidas como tradicionais. (2) – Pa Kua - No brasão, o Pa Kua (ou Ba Gua) aparece ao redor do Tai-Chi. Ele não é necessariamente associado ao símbolo do Tao e,

nas

representações populares chinesas,

pode ser

encontrado sozinho ou envolvendo um espelho circular, caso em que se associa a práticas de proteção contra espíritos malignos. Como amuleto, o Pa Kua espelhado ou ilustrado com figuras fantásticas é colocado na parte interna das casas, diante da porta de entrada: ao ingressar em um ambiente assim 391

“The name that can be named is not the enduring and unchanging name.” (Tao Te King, cap. 1, verso 1). Trad. de LEGGE, J., in (c. 27.05.2004). 392 Um estudo amplo a respeito do Tao pode ser encontrado em GRANET, “O Pensamento Chinês”, op. cit., p. 189 a 210. 393 CIRLOT, J., “Dicionário...”, p. 607. 394 O elemento certamente era conhecido dos primeiros sinólogos, que desde o séc. XVIII examinavam os aspectos filosóficos e religiosos da cultura chinesa. 395 A “Town & Country Surf Designs”, foi fundada em 1971, no Havaí, por Craig Sugihara. Site oficial da empresa: (c. 27.05.2004) 135

protegido, um fantasma ou demônio assaltante veria a própria face refletida e, assustado, fugiria (fig. 45).396 Pode-se afirmar que o Ocidente adotou o Pa Kua a partir de uma leitura que se aproxima daquela da religiosidade popular chinesa, de caráter mágico. Em anos recentes, graças à vulgarização de práticas como a do Feng Shui (arte de harmonização

de

ambientes 397

disposição de objetos)

por

meio

da

e do I Ching (obra usada

em práticas divinatórias), o símbolo passou a ser encontrado, como amuleto e enfeite, em lojas de artigos esotéricos e de produtos populares importados da China (fig. 45).398 Em uma tradição chinesa mais refinada, o Pa Kua está ligado ao I Ching (“Livro das Mutações”), obra escrita entre 1000 e 500 a.C, de caráter oracular e significado obscuro até para muitos chineses.399 Segundo James Legge, o termo I Ching encerra um princípio ligado a uma “dinâmica viva” dos elementos: O I Ching distingue três qualidades de mutação: falta de mutação, mutação cíclica, mutação em série. A mutação cíclica é a permuta periódica que observamos no mundo orgânico. A mutação em série indica a progressiva mutação no fenômeno que é produzida pela causalidade. Em outras palavras, mutação em série seria descrita em termos Ocidentais como mutação que se opera num mundo de causa e efeito, mecanicamente estruturado. A diferença primária entre o ponto de vista do Ocidente e do Oriente de mutação em série é que o I Ching usa a mutação em série para delinear a seqüência das gerações e por isso 400 considera-a alguma coisa “orgânica” e não “mecânica”.

De acordo com a tradição, os oito trigramas que formam o Pa Kua - cada um deles é composto por três linhas que seguem uma ordem binária, podendo ser contínuas ou segmentadas - encerram “as imagens do que se passa no Céu e sobre a Terra”.401 São as bases sobre as quais se assentam os 64 hexagramas do I Ching, que, na concepção chinesa, refletem as configurações possíveis da realidade.402 O trigramas que 396

Fotos feitas pelo autor em julho de 2004. Exemplos dessa vulgarização podem ser observados nos sites e (c. 27.05.2004). 398 Amuleto metálico adquirido em junho de 2004 em loja de artigos populares chineses em Curitiba. Frente: Pa Kua com leão no centro; verso: signos da astrologia chinesa com espelho no centro (foto do autor). 399 “Enfermant le passé et l’avenir tout entiers dans ler schema numerique, elles ont conféré au Yi King la reputation d’un livre d’une profondeur totalement incompréhensible.” WILHELM, R., & PERRAULT, É., “Yi King...”, p. 4. 400 LEGGE, J., “I Ching...”, p. 29 e 30. 401 WILHELM, R., & PERRAULT, É., “Yi King...”, op. cit., p. 5. 397

136

formam o Pa Kua têm os seguintes nomes:403 (1) – K’ien (Kian), “O Criador”; (2) – Souen (Xuan), “O Dócil”; (3) - Kan, “O Insondável”, “O Abismo”; (4) - Ken (Ken), “A Imobilização”; (5) – K’ouen (Kuan), “O Receptivo”; (6) – Tchen (Chen), “O Progresso Interrompido”; (7) – Li (Li), “O Aderente”; e (8) – Touei (Touei), “O Alegre”, “O Sereno”.404 Segundo Marcel Granet, a disposição dos trigramas em um octógono está relacionada aos “Oito Ventos”, do que se deduz que o Pa Kua também é uma representação da rosados-ventos.405 Na

forma

como

aparece

nos

brasões

das

academias do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu, segue tanto a chamada “disposição de Fu-Hi” (ou Fu Hsi, o “primeiro imperador”, personagem mítico que teria sido o inventor dos trigramas) quanto a “de Wenwang” (“do Rei Wen”).406 A diferença de posições toma por base a “Teoria dos Oito Trigramas” (fig. 46) 407 e segue entendimentos diversos a respeito da evolução ou conversão contínua dos fenômenos naturais.408 Com base apenas na iconografia, não é possível saber como disposições diferentes dos trigramas chegaram aos brasões das camisetas. Se, por um lado, o uso de formas tradicionais aponta para o conhecimento das disposições gráficas mais precisas, a não uniformidade na eleição de uma delas como de uso obrigatório pode indicar uma leitura livre ou um esvaziamento de conteúdo. Com base em nosso conhecimento empírico do universo brasileiro do Kung-Fu, acreditamos que a eleição das disposições não tomou por base a orientação dos mestres chineses, mas sim consultas a livros.409

402

GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 121. Para identificá-los na ilustração 26, atribuir o número 1 ao trigrama colocado mais ao alto e seguir em sentido horário – assim, o trigrama situado imediatamente à direita de 1 será o 2, e o situado imediatamente à esquerda, o 8. 404 As transliterações dos nomes chineses seguem, respectivamente, as presentes na obra de WILHELM, R., & PERRAULT, É., “Yi King ...”, p. 6, e as encontradas na obra de GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 121 (nomes entre parênteses). 405 GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 121 e 122. 406 Aquela também é conhecida como “disposição anterior” e, esta, como “posterior”. 407 Imagens extraídas e modificadas de GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 122 (E) e 121 (D). 408 A esse respeito, ver GONGBAO, Y., “La Melodie Interne de La Vie – La pratique chinoise du qigong”, 1ª ed., Beijing: Editions du Nouveau Monde, 1995, 156 p., p. 21 e 22. 409 A respeito do mix tradição oral x leituras populares, ver o cap. 4 desta dissertação. 403

137

(3) – Bei, Sao, Lin: Juntos, os ideogramas Bei, Sao e Lin (leitura da direita para a esquerda) formam o termo Bei Saolin, lido, no Brasil, como Shaolin do Norte. O termo Saolin (ou Shaolin) pode ser traduzido como “Floresta Nova”, e é identificador do lugar de Henan onde, em 495 d.C., foi erigido o mosteiro de mesmo nome. Sao indica juventude e Lin, uma floresta (o ideograma mostra duas figuras semelhantes a árvores). Bei, o primeiro ideograma, significa “Norte”, em oposição a Nan, “Sul”, indicativo dos estilos associados à tradição de Shaolin em Fujian (Nan Saolin – Shaolin do Sul).410 A associação do termo com a religiosidade chinesa é direta, uma vez que Shaolin é um dos mais famosos mosteiros budistas chineses. (4) – Yin, Yang: O termo formado pelos ideogramas Yin Yang (leitura de cima para baixo) parece servir como reforço ao Tai-Chi. O conceito foi gerado provavelmente antes da institucionalização do Taoísmo. Os ideogramas expressam o “binário universal” formado por opostos que se complementam. Uma análise mais ampla do significado das polaridades Yin e Yang pode ser encontrada nos parágrafos deste capítulo referentes ao Tai-Chi. (5) – Jin, Chi, Sen: O termo, formado pelos ideogramas Jin (ou Jing), Chi (ou Qi) e Sen (ou Chen), diz respeito aos chamados “Três Princípios” taoístas (a leitura é feita da direita para a esquerda). De acordo com Yu Gongbao, esses princípios podem ser traduzidos, respectivamente, como “Essência”, “Energia Vital” e “Espírito”.411 Ainda segundo esse autor, eles estão associados aos chamados “Três Elementos”, que correspondem ao corpo, coração e pensamento. Seu encontro se dá a partir do Chi Kung (Qigong), conjunto de práticas respiratórias, alimentares, sexuais e mentais voltadas à transcendência: O encontro dos Três Elementos é considerado como o estado de concepção, e a unificação dos Três Princípios como a formação do cinábrio. Sua realização resulta em vacuidade e em paz. Se o coração está vazio, será visível a união do espírito e do caráter; se o corpo está em paz, aliviar-se-á sua essência e sua sensibilidade; e quando o pensamento estiver 412 estabilizado, estará realizada a unificação dos Três Princípios.

410

Acerca do desenvolvimento marcial em Shaolin, bem como sobre a tradição que associa o mosteiro aos estilos do sul da China, ver o cap. 2 desta dissertação. 411 GONGBAO, Y., “La Melodie...”, p. 3 (sobre o conceito de Chi) e p. 30 (sobre os conceitos de Jing e Sen). 412 Ibid., p. 30. Trad. livre do francês. 138

O cinábrio (HgS, Sulfeto de Mercúrio), forma mais comum pela qual o mercúrio é encontrado na natureza, foi relacionado pelos chineses à transcendência. Essa relação nasceu, provavelmente, da observação do método de obtenção do mercúrio, a chamada ustulação (aquecimento em uma corrente de ar). Nesse processo, o sulfeto, vermelho ou negro, é convertido em um metal prateado, líquido, de aparência impressionante.413 Há, aí, uma relação com o conceito de “alquimia do ser”: assim como os alquimistas ocidentais, também os chineses buscavam – simbolicamente - transformar o nigredo (matéria ou condição inferior) em rubedo (matéria ou condição superior). Para isso, usavam o Chi Kung, base das práticas físicas existentes dentro do Sistema SinoBrasileiro de Kung-Fu.414 Ainda sobre o Chi Kung e sua relação com a religiosidade chinesa, vale citar Marcel Granet, que, a partir de vetustos tratados taoístas, aborda o papel dos exercícios chineses para a obtenção da transcendência: Para nutrir a própria vida e “conseguir o Tao” à maneira de Peng-tsu, que logrou durar mais de setecentos anos, é preciso entregar-se a exercícios de flexibilidade (tao yin), ou, melhor ainda, dançar e movimentar-se à maneira dos animais. Recomenda-se imitar a dança dos pássaros quando eles estendem as asas, ou a dos ursos quando se balançam, esticando o pescoço para o Céu. É com a ajuda dessa ginástica que os pássaros se exercitam em voar e os ursos se tornam trepadores perfeitos. Também há muito que aprender com os mochos e os tigres, hábeis em virar o pescoço para olhar para trás, e com os macacos, que sabem pendurar-se de cabeça para baixo. O primeiro benefício desses jogos é que eles proporcionam a leveza indispensável a quem quer praticar a levitação extática Eles servem também para purificar a substância (lian tsing). Na verdade, constituem uma disciplina da 415 respiração. Permitem ventilar o corpo inteiro, inclusive as extremidades.

(6) – Lho Hã - O termo é formado pelos ideogramas Lho e Hã, que podem ser traduzidos, respectivamente, por “seis” e “união” ou “harmonia”.416 De acordo com o médico acupunturista Pan Yi Bo,417 a idéia de “União dos Seis” – ou de “Seis Harmonias” - está vinculada a conceitos chineses que envolvem energia (Chi) e, por conseqüência, uma dinâmica universal. Segundo o médico, esse conceito, que foi absorvido pelo Taoísmo ainda durante a Dinastia Chou (1027 a 221 a.C.), pertenceria a um corpo de conhecimentos mais antigo. O scholar Marcel Granet reforça

413

O mercúrio era conhecido pelos gregos como ágyros khytós, “prata derretida”. Para uma descrição detalhada dos exercícios de aquecimento e alongamento no Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu, ver (c. 04.06.2004). 415 GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 310. Nos parece clara a relação entre os elementos enunciados por Granet e os chamados “Jogos dos Cinco Animais”. Sobre os Jogos dos Cinco Animais, ver cap. 2 desta dissertação. 416 Em chinês, o sentido de Hã se refere à união como harmonia entre opostos. 417 Em consulta verbal feita em Curitiba no dia 07.06.2004. 414

139

essa informação, observando que muito cedo os chineses associaram suas teorias cosmogônica, cosmológica, fisiológica e musical a certos números.418 Entre os números mais importantes estão o 5, 6, 7, 8 e 9. O primeiro deles é associado, por exemplo, aos elementos fundamentais (água, fogo, madeira, metal e terra), às atividades humanas (gesto, fala, visão, audição e vontade) e aos sinais celestes (gravidade, boa ordem, sapiência, bom entendimento e santidade). Os outros quatro números estão diretamente associados, por exemplo, ao I Ching, representando as quatro possibilidades de configuração de cada linha de um hexagrama a partir dos valores básicos 2 e 3. Assim, a soma de três números 2 gera uma linha de valor 6, chamada “movediça”; a soma de dois números 2 e de um 3 geram uma linha cheia de valor 7, chamada “yang jovem”; a soma de um número 2 e dois números 3 gera uma linha segmentada de valor 8, chamada “yin jovem”; e a soma de três números 3 gera uma linha de valor 9, chamada “movediça”.419 Observando o texto de Granet e as informações a nós transmitidas por Pan Yi Bo, fica claro que a valoração dada pelos chineses aos números como chaves para a organização/compreensão do universo é muito grande, não podendo ser expressa nas poucas linhas de uma dissertação. Independente disso, pode-se afirmar que os “grandes números” citados no parágrafo anterior guardam profundas relações entre si. Vale observar, ainda, que nos parece difícil fazer uma leitura estanque de um único deles. Ainda assim, diante do “desafio de Lho Hã”, podemos destacar algumas das “presenças do 6” no pensamento chinês. A tradição indica seis pontos de referência espacial: Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro (dividido em “Alto” e “Baixo”, equivalentes a “Céu” e “Terra”). Em termos de representação cartesiana, esses limites estariam dispostos, respectivamente, sobre os eixos x, y e z. O ponto localizado na interseção desses eixos – o zero do gráfico - estaria numa condição de Lho Hã. 418

GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 101 a 187 e 223 a 238. Para um aprofundamento a respeito da atribuição de valores numéricos na construção dos hexagramas do I Ching, ver LEGGE, “I Ching...”, p. 37 a 47.

419

140

Uma referência mais intrincada pode ser encontrada na divisão das estações do ano. Inicialmente, há que se considerar uma equivalência Yang-Yin feita pelos chineses para as estações: ao verão (Yang),420 equivale o inverno (Yin) e, à primavera (Yang), equivale o outono (Yin). Há, portanto, dois grandes pares de opostos – duas estações Yang e duas Yin -, que, a título de visualização, poderiam ser representados por dois Tai-Chi. Cada uma das estações, porém, é dividida em três fases, que equivalem à evolução de suas características típicas (início, meio e fim) e aos meses que a compõem (cada estação dura três meses). Desse modo, a cada terço de uma estação corresponde um terço de sua estação oposta. Assim, não há apenas dois Tai-Chi, mas doze; ou, para chegar ao “número áureo” de nosso estudo, seis Tai-Chi em cada um dos grandes pares de opostos. Nesse contexto, Lho Hã equivale à harmonia eterna que governa a relação entre o Céu, a Terra e o Tempo: se em determinada época do ano a superfície de um lago congela (inverno), em outra será batida pelo vento (verão); se em determinada época os peixes desse lago se reproduzem (primavera), em outra estarão devotados a preparar o próprio corpo para enfrentar os meses de frio (outono). Sendo o ente humano, ao mesmo tempo, um “pequeno” Tai-Chi (“microcosmo”) e um componente do “grande” Tai-Chi (“macrocosmo”), também nele o conceito de Lho Hã está presente. Vale observar que a construção de novos Tai-Chi (fig. 45, itens 2 e 3) é possível, ad infinitum, a partir da crista e vale da linha sigmóide gerada pelo Tai-Chi anterior (1). Por essa representação, Tai-Chi está em tudo. Dessa forma pode-se afirmar que, dentro do contexto marcial – foco de nosso estudo - a prática correta deve atentar para a União ou para a Harmonia dos Seis, ou, em outras palavras, para o equilíbrio das polaridades Yin e Yang. 5.4.1.2 – As costas da camiseta – O Dragão O dragão – em chinês, lung (

) - é uma figura simbólica universal (ver fig. 46).421

Presente em praticamente todas as culturas,422 ganhou especial deferência na China. De acordo com Juan-Eduardo Cirlot, o poder do dragão no imaginário se deve,

420

Originalmente, segundo Pan Yi Bo, o termo “Yang” se referia ao sol. Imagem da esquerda extraída de camiseta. Imagem da direita: placa no salão da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu em São Paulo. Os ideogramas significam “Shaolin do Norte” (imagem do autor: junho de 2004). 422 CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 213. 421

141

principalmente, ao fato dele representar o animal por excelência423 e, por conta disso, o inimigo.424 Essa relação animal x inimigo pode se referir a um medo atávico nascido em dias em que os seres humanos eram mais caça do que caçadores. Diante de uma tal configuração, matar o dragão equivaleria a destruir o Mal – daí porque a recorrência de enfrentamentos e vitórias míticas como as que envolvem

São

Jorge,

São

Miguel Arcanjo, Cadmo, Perseu, Siegfried

e

cristão.425

até

o

Autores

messias ocidentais

como Plínio, Galiano e Pascal atribuem ainda aos dragões atributos como força, vigilância e visão aguçada, que fariam deles os mais perfeitos guardiães de templos e tesouros, bem como seres sábios e capazes de prever o futuro. Ao contrário de seu parente ocidental, o dragão chinês não guarda uma relação com o Mal. Segundo Cirlot, “a China é, possivelmente, o lugar onde o dragão alcançou maior difusão e transfiguração (...)”.426 É um ser reverenciado

por

suas

características ao mesmo tempo divinas e humanas. O Lung é

423

Normalmente, é construído a partir de partes de animais ferozes como o tigre, a serpente, o crocodilo e até dinossauros (lidos a partir de fósseis). 424 CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 213. 425 “...e eis que era um dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre suas cabeças sete diademas.” BÍBLIA SAGRADA, Apocalypse de São João, 12, 3. Lisboa: Sociedade Bíblica Britannica e Estrangeira, 1955, 923 p., p. 231 (Novo Testamento). 426 CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 215. 142

manhoso, benfazejo, cruel, generoso, sábio e irritável. É possível que, por essas características – principalmente as relativas à sabedoria e ao poder - tenha sido associado muito cedo à casa imperial chinesa. De acordo com a tradição, o imperador mítico Fu Hsi era dotado de uma cauda de dragão; seu sucessor, Shen Nung, era filho de um dragão. Elementos “draconianos” eram associados à vida do imperador (fig. 47 e 48):427 seu trono era o “Trono do Dragão”, seu caminhar era a “Marcha do Dragão”, sua expressão, a “Face do Dragão” e suas palavras – é claro -, as “Palavras do Dragão”.428 No pensamento chinês, o dragão é associado a Yang e sua contraparte, Yin, à fênix;429 em muitas representações, porém (como a da ilustração 48), essa contraparte feminina é representada na forma de uma pérola. A respeito da relação pérola x dragão, Jorge Luis Borges escreveu: “é comum representá-lo com uma pérola, que ora engole, ora cospe; nesta pérola está seu poder. É inofensivo se despojado dela”.430 Entendemos que essa informação corrobora o conceito do conjunto dragão x pérola como representação do TaiChi: despojado da pérola, o dragão perde poder, ou seja, deixa de ser; da mesma forma, uma polaridade não subsiste sem a outra. Vale observar, ainda, o comentário de Borges a respeito de o dragão engolir e cuspir a pérola – a imagem parece se referir à permanente dinâmica de mutação entre Yin e Yang. A comparação entre os dragões representados nas ilustrações 46 e 48 aponta para um fato notável: ou o primeiro (da camiseta) foi decalcado do segundo, ou – hipótese mais provável – ambos derivam de uma matriz mais antiga. A única diferença importante entre as figuras está no elemento envolvido pelo dragão: enquanto na figura do Sistema SinoBrasileiro o ser mítico “abraça” um conjunto Pa Kua/Tai-Chi, na do robe imperial o elemento envolvido é a pérola. Com base nas informações referentes à identificação dragão/Yang e pérola/Yin, podemos afirmar que há um equívoco iconográfico na figura estampada nas camisetas do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu, uma vez que, diante da noção de equilíbrio proposta pelo Taoísmo, não há lógica em um elemento Yang (o 427

Imagem disp. In (c. 06.07.2004). Para inf. sobre Qianlong (1736 – 1795), ver SPENCE, J., “Em busca da China Moderna”, 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 817 p., p. 104 a 128. 428 Inf. presente in (c. 05.06.2004) 429 Idem. 430 BORGES, J.L. & GUERRERO, M., “O Livro dos Seres Imaginários”, 6ª edição, São Paulo: Editora Globo, 1989, 214 p., p. 63. 143

dragão) envolver um uma representação do equilíbrio Yang-Yin (o conjunto Tai-Chi/Pa Kua). O caráter de poder e de proximidade em relação um importante elemento nacional chinês (o imperador) parece ter sido determinante para a inclusão do dragão nas costas das camisetas das academias do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu. Assim como o dragão imperial, também o representado nas camisetas possui cinco garras. Ele é, de fato, uma versão estilizada do dragão imperial clássico. Há ainda que observar, nessa “conexão imperial”, a relação entre a presença do elemento iconográfico e a nobreza da vestimenta. De modo geral, dragões eram associados às vestes do próprio imperador ou, então, de seus representantes legais – burocratas, oficiais militares e administrativos. A ilustração 48, por exemplo, mostra o dragão bordado em uma túnica de seda pertencente a um mandarim da Dinastia Qing (do período ChiaChing, entre 1796 e 1820).431 A ilustração 47 é ainda mais incisiva: mostra o imperador Qing Qianlong portando uma túnica com o motivo do dragão bordado na altura do peito. Em outras palavras, pode-se dizer que, ao acrescentar o dragão, o designer da iconografia das camisetas do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu buscou aproximar seu “produto marcial” de dois elementos altamente valorizados pela mente chinesa tradicional: um ícone mágico-religioso de caráter étnico, altamente venerado, e um poder imperial “eterno”. Ao nos referirmos à “mente tradicional”, tratamos de uma configuração de longa data. O poder comunista, que negou esses valores, é muito recente diante dos quatro mil anos de História da China. Além disso, há que se considerar o fato de que, por mais ortodoxos que sejam, os ideólogos comunistas chineses dificilmente vão conseguir afastar sua sociedade de referenciais tão poderosos quanto os estabelecidos por uma tradição milenar. 5.4.2 – “Placa da Ética e da Ancestralidade” Este é, sem dúvida, o menos compreendido dos ícones do Shaolin do Norte. O motivo é simples: ele não apresenta figuras, mas exclusivamente ideogramas. Sua tradução, como pudemos constatar, não é das mais simples, mesmo para conhecedores da escrita e da 431

Imagem in . Outra túnica (séc. XIX) com o mesmo motivo in (c.05.06.2004) 144

filosofia chinesa (o nome que adotamos para denominá-lo, um tanto quanto “gongórico”, dá um indício dessa dificuldade). De acordo com o mestre acupunturista Pan Yi Bo, responsável pela tradução,432 os ideogramas são arcaicos e estão dispostos de acordo com uma configuração “clássica”, que implica em um sentido mais simbólico que o da escrita comum. Apesar do hermetismo, as placas estão presentes em várias academias do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu (fig. 49, 50 e 51).433 Em nossa pesquisa, encontramos o elemento em três academias - de Chan Kowk Wai, Lee Chung Deh e Rogério Leal Soares -, com diferenças mínimas entre si (de cor e tamanho). Normalmente, porém, essas placas são pintadas em vermelho, cor presente em muitos elementos chineses de natureza religiosa, como altares e ícones. Em seu estudo a respeito da iconografia religiosa chinesa, Keith Stevens examinou atentamente as placas e levantou uma série de informações importantes para a nossa pesquisa: Placas são freqüentemente encontradas nos altares chineses. Fabricadas em madeira, apresentam muitas variações locais e estilos diversos. Elas também possuem um número significativo de papéis e funções. Os chineses geralmente acreditam que toda pessoa possui três almas. Quando uma pessoa morre, sua primeira alma é enterrada com o corpo, a segunda é conduzida à sua placa ancestral e a terceira é enviada para o Submundo, para julgamento e eventual renascimento. As placas normalmente mais encontradas, portanto, são as ligadas à ancestralidade. Cada placa representa o repositório para o espírito de uma pessoa ou de marido e mulher. Elas geralmente são mantidas em casa, onde são reverenciadas pelos descendentes [da pessoa falecida]. Alternativamente, podem ser encontradas em salões especiais nos templos budistas. Os benefícios obtidos com as preces ditas pelos monges auxiliam os espíritos dos mortos no Além; ao mesmo tempo, desobrigam as famílias do oferecimento regular de incenso aos espíritos que habitam nas placas. Há, também, placas ancestrais dedicadas a uma geração inteira dentro de um clã. Elas são mantidas com placas de outras gerações no altar principal do templo do clã. Outras placas nos altares representarão uma divindade (ou grupo de divindades). Estas são geralmente vistas apenas em templos rurais, onde o custo do entalhe de uma imagem é muito alto para a comunidade. Entretanto, várias podem ser vistas em altares de templos mais ricos, ficando aos pés da divindade principal e funcionando como representações adicionais. Finalmente, há placas muito superiores [em qualidade] - raramente vistas hoje em dia - dedicadas ao imperador da época em que foram produzidas. O título imperial não estava na placa; ela simplesmente lhe desejaria vida longa. Essas placas costumavam ser obrigatórias em todos os principais templos taoístas e budistas. Elas ficavam na extremidade do altar principal. Através das placas, os oficiais locais saudavam o imperador em seu aniversário e no Ano 434 Novo Lunar.

A primeira coisa a observar em relação às placas do Shaolin do Norte é sua proximidade dos altares. Em todas as academias onde as placas foram encontradas (São Paulo, 432

Tradução feita em fevereiro de 2004 e acompanhada pelo autor. Foto 1 feita em junho de 2004. Fotos 2 e 3 feitas em junho de 2003. Acervo do autor. As placas 1 e 3 têm fundo vermelho. A placa 2 tem fundo amarelo “envelhecido”. Em todas, os caracteres foram escritos em preto.

433

145

Florianópolis e Curitiba), elas estavam relacionadas ao altar padrão, de forma direta (a placa no centro do altar) ou indireta (ao lado). A partir de uma leitura das partes que compõem a placa é possível verificar se há outros pontos de contato entre esse elemento iconográfico e as informações de Keith Stevens.Uma leitura geral da placa indica uma forte presença confucionista, com destaque para a recordação de ancestrais importantes e de caráter divino. O Confucionismo, doutrina filosófica (e, mais tarde, religiosa) fundada no século IV a.C. por K´ung Tzu ou Confúcio (551 – 479 a.C.), prega a retidão moral e o respeito à hierarquia e aos ritos. Suas premissas, de acordo com segundo Keith Stevens, são a Piedade Filial (Hsiao), Reverência Fraternal (Ti), Lealdade (Hsin), Polidez, Propriedade (Li), Honradez (I), Integridade (Lien) e Modéstia, Continência (Chieh).435 São valores que permeiam o código de ética chinês, sendo aplicáveis, de modo especialmente apropriado, às atividades de caráter marcial. A seguir, vamos interpretar cada um dos elementos da placa, de acordo com a numeração determinada na fig. 52:

434 435

STEVENS, “Chinese Gods…”, p. 23. Trad. livre do inglês. STENVENS, K., “Chinese Gods…”, p. 82. 146

Entendimento dos Termos: (1) – Título – Os ideogramas de “abertura” da placa do Shaolin do Norte (leitura da esquerda para a direita) são, seguramente, a melhor indicação do direcionamento confucionista desse elemento iconográfico. Literalmente, segundo o médico acupunturista Pan Yi Bo (tradutor), os ideogramas podem ser traduzidos por algo como “Mestre Exemplar, Modelo Eterno”, título tradicionalmente atribuído a Confúcio. (2) – Código Ético 1 - Nessa coluna (leitura de cima para baixo), segundo o tradutor, está delineado o papel do verdadeiro mestre de uma arte marcial. Literalmente, os ideogramas poderiam ser traduzidos por algo como “Ensinamento de Cultura, Filosofia e Artes Marciais – para Servir o Mundo”. Novamente, a

147

presença é confucionista, ligada, aparentemente, aos valores fundamentais de Reverência Fraternal (Ti), Propriedade (Li), Honradez (I) e Integridade.

(3) – Código Ético 2 – Nessa coluna (leitura de cima para baixo), segundo o tradutor, está uma afirmação da qualidade da arte ensinada. Literalmente, os ideogramas podem ser traduzidos por algo como “Conhecimento correto, forma, maneira, técnica, princípios – arte marcial ministrada é original e correta.” Aqui, os elementos se ligam, em um primeiro momento, à afirmação da qualidade do mestre; a “tradução confucionista” se dá pela associação com os princípios de Lealdade (Hsin) – para com os alunos, Propriedade (Li) – dos conhecimentos, Honradez (I) – na afirmação chancelada, por escrito, dos conteúdos que o mestre domina, e Integridade (Lien) – na correção e originalidade dos ensinamentos. (4) – “Oferecer” - Aqui, mais uma vez, está presente um elemento confucionista. “Oferecer”, sem dúvida, remete ao mandamento confucionista de “Servir o Mundo”. (5) – “Servir” – A palavra é a própria essência do Confucionismo, na razão em que remete à virtude e ao desprendimento como qualidades fundamentais ao ser humano correto. (6) – “Zhou Tong” –. A primeira referência encontrada relaciona Zhou Tong (o “Pequeno Rei”) a Yue Fei (14). Ele teria ensinado ao general de Song as técnicas de um estilo de Kung-Fu chamado Chuojiao.436 A segunda referência é literária: Zhou Tong é um dos personagens da novela clássica “Os Fora-da-Lei do Pântano” (também conhecida como “Crônicas da Margem das Águas”)437, escrita entre 1290 e 1400 por Shi Nai’na e Luo Guanzhong. A novela se refere a fatos reais ocorridos no período de vida de Yue Fei. (7) – “Zu Lai Tzu” – De todos os componentes da placa, este foi o de tradução mais incerta. Em princípio, Zu Lai é um termo budista chinês oriundo da transliteração do termo indiano Vairocana, “aquele que vem com o sol”. No

436

Inf. disp. no site chinês (c. 21.06.2004) Para um estudo acadêmico da obra, ver (c. 21.06.2004)

437

148

Budismo Mahayana, Zu Lai (Vairocana) seria a contraparte cósmica de Sakyamuni.438 O mais intrigante, em relação ao termo, é a terminação Tzu, que, em princípio, poderia ser traduzida como “Venerável” ou “Sábio”. Não acreditamos que essa terminação possa ser aplicada à divindade, uma vez que, normalmente, designa seres humanos. Além disso, há que se considerar o contexto da placa: em um elemento iconográfico quase que exclusivamente confucionista (à exceção dos elementos Ta Mo e Sao Lin, relacionados a uma existência temporal), a presença de uma figura budista altamente esotérica parece incongruente. (8) – “Zhang Xian” – Genro de Yue Fei (14), se manteve leal a ele. Acabou preso, executado e sepultado junto com o sogro e com o cunhado, Yue Yun.439 (9) – “Yue Yun” – A referência, nesses ideogramas, é a um indivíduo, mais propriamente a Yue Yun, filho mais velho de Yue Fei (14). Yue Yun viveu na passagem entre o período das chamadas “Cinco Dinastias e Dez Reinos” e a Dinastia Song (960 – 1279). As cinco dinastias foram Liang Posterior (907 – 923), Tang Posterior (923 – 936), Jin Posterior (936 – 946), Han Posterior (947 – 950) e Zhou Posterior (950 – 960); os dez reinos foram Wu (902 - 937), Shu Inicial (907 - 925), Wu Yue(908 - 978), Min (909 - 946), Tang do Sul (937 - 975), Chu (927 - 951), Han do Sul (917 - 971), Nan Ping (925 - 963), Shu Tardio (934 - 965) e Han do Norte (951 - 979). A

época, que sucedeu à Dinastia Tang,440 e antecedeu à Dinastia Song, foi de violentos confrontos pelo poder. Por volta de 1130, as tropas da Casa de Song, lideradas pelo general Yue Fei, haviam imposto sérias derrotas ao reino de Jin e estavam prestes a dominar a cidade de Kaifeng. Por instigação de um traidor chamado Qin Hui, o imperador Gao Zong foi convencido de que deveria abandonar o combate e adotar uma estratégia de paz e alianças. Por conta disso, Yue Yun, Yue Fei e Zhang Xian (9, 14 e 8) foram chamados a Nanjing, onde acabaram presos. Foram executados em 1141441 (fig. 442

53).

438

Ver (c. 21.06.2004) Inf. disp. em (c. 21.06.2004) 440 Sobre a Dinastia Tang, ver cap. 2 desta dissertação. 441 Informações em (c. 21.06.2004) 442 À esquerda, tumbas; à direita, ícones em pedra representando os personagens. Imagens extraída de 439

149

(10) – “Genealogia Shaolin”443 – A finalidade do texto central da placa do Shaolin do Norte é indicar a origem do estilo praticado. Tanto, que os dois primeiros ideogramas (leitura de cima para baixo) são Sao e Lin – Shaolin. A coluna ainda relaciona os nomes de Ta Mo (Bodhidharma)444 como fundador da arte marcial e, também, o de Yue Fei/Yue Wei (14).

(11) – “Sao Lin” (Shaolin) – “Floresta Jovem”, nome do mosteiro construído por volta de 495 na encosta do Monte Song (Songshan), em Henan.445 (12) – “Fundador” – Os dois ideogramas identificam Ta Mo (13) como fundador da marcialidade em Shaolin. (13) – “Ta Mo (Bodhidharma)” – Considerado o patriarca do Zen Budismo, Bodhidharma teria chegado à China no início do século VI. Ele teria vivido no mosteiro de Shaolin por sete anos, entre 520 e 527. Segundo a tradição das artes marciais, ele teria ensinado aos monges uma série de técnicas respiratórias que estariam na base do estilo de luta originário do templo.446 (14) – “Yue Fei/Yue Wan” – Como observado no item 9, Yue Fei foi um general da Dinastia Song. Ainda sobre este personagem, vale observar que ele foi alçado à

443

Por razão de editoração, dividimos a coluna em dois blocos. A leitura deve ser feita de cima para baixo, começando pelo bloco da esquerda. 444 Sobre Ta Mo, ver cap. 2 desta dissertação. 445 Sobre Shaolin, ver cap. 2 desta dissertação. 446 Sobre a historicidade do “mito de Ta Mo”, ver o cap. 2. 150

condição de divindade pela religiosidade popular. Herói nacional, passou a ser reverenciado como padroeiro dos exércitos e, no norte da China durante a primeira metade do século XX, como “Deus da Guerra”. Em tempos recentes passou, também, a ser a divindade tutelar de mercadores e lojistas (em Beijing, ainda hoje os lojistas chacoalham seus ábacos pela manhã para homenagear Yue Fei).447 5.4.3 – O Altar De acordo com Keith Stevens, os altares chineses podem ser divididos em dois tipos, de acordo com sua finalidade religiosa: um possui caráter institucional (para divindades) e o outro, doméstico (culto aos antepassados).448 Diante da configuração dos altares encontrados em academias visitadas durante a pesquisa de campo,449 tendemos a acreditar que eles cumpram, ao mesmo tempo, as duas finalidades, uma vez que tanto as fotos dos antepassados marciais quanto a placa com ideogramas são posicionadas sobre a mesma “mesa de oferendas”. Nas academias de Shaolin do Norte os altares ficam em lugar de destaque, na parede em direção à qual os alunos se voltam durante o treinamento. São colocados em uma posição alta, de modo geral acessível apenas pelo uso de uma banqueta ou por meio de um esforço de alongamento corporal. É a mesma posição adotada, normalmente, nos templos chineses e nas salas de culto doméstico aos antepassados (fig 54 e 55).450 São estruturas simples, semelhantes a encontradas na China; porém, enquanto nas academias brasileiras esses altares se caracterizam de modo absoluto pela simplicidade, naquele país eles apresentam vários graus de sofisticação, que vão de placas em madeira ou pedra assentadas sobre engastes nas paredes (como no caso brasileiro) até estruturas em forma de capela, ricamente talhadas e finamente coloridas. É para os altares das academias que professores e alunos se dirigem com a saudação tradicional quando entram e saem das áreas de treinamento e, também, quando iniciam 447

STEVENS, K., “Chinese Gods…”, p. 128. Ibid., p. 37 a 39. 449 São Paulo, Florianópolis e Curitiba (nesta cidade foram duas academias: a Sino-Brasileira de Kung-Fu e a Senda, cujo professor não pertence ao universo de entrevistados). Ver fig. 49, 50 e 51. 450 Fig. 54 em STEVENS, K., “Chinese Gods...”, p. 37. Fig. 55, imagem do autor (jul. 2004). STEVENS denomina “platform” (“plataforma”) o que chamamos de “mesa de oferendas”. A respeito da localização geográfica dos altares, ver STEVENS, K., “Chinese Gods”, p. 34 e 35. 448

151

ou terminam as aulas.451 É neles, ainda, que os integrantes das academias (via de regra, os mais antigos) colocam oferendas de incenso.

Não há um momento específico para “acender” as varetas aromáticas; muitas vezes, porém, elas são colocadas em queimadores no início das aulas. Além dos queimadores de incenso, as “mesas de oferendas” das academias podem incluir aquilo a que Stevens chama de “parafernália” – vasos de flores, estatuetas de Buda ou de bodhisattvas como Guanyin;452 nesse aspecto, não há diferença em relação aos altares chineses, onde também é comum a disposição de diferentes tipos de objetos relacionados ao culto.

A fig. 56 mostra a disposição normalmente encontrada em altares das academias brasileiras de Shaolin do Norte. A principal característica está no posicionamento das

451

Sobre a saudação específica do Kung-Fu, ver item 4.3.3.1. O melhor exemplo desse universo de oferendas está na Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo, onde, além do queimador de incenso, há arranjos florais e estatuetas de Buda. Ver. fig. 55. 452

152

fotos dos antepassados marciais. Em três academias visitadas,453 a imagem do mestre Ku Yu Sheung estava colocada à direita do observador, enquanto a do mestre Yang Sheung Mo aparecia à esquerda. Ainda que a uniformidade da disposição das fotos pareça indicar uma tradição, não há uma explicação teórica para ela e nem para a sua origem, uma vez que não se verifica no altar da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo (nela, a foto de Ku Yu Sheung aparece à direita da de Yang Sheung Mo). O altar de São Paulo é marcado, também, por uma importante diferença em relação aos demais: ele traz fotos de outros dois mestres (Fig. 57 e 58).454 Além dos relacionados diretamente ao Shaolin do Norte, aparecem os mestres Yan You Chin (do estilo Hung Sing Choy Li Fut) e Yin Yan Chui (estilo não identificado). Em

nossa

avaliação,

a

ausência dessas fotos nos altares

das

outras

academias pesquisadas se justifica por uma questão de opção do mestre Chan Kowk Wai: ainda que ele domine vários estilos – 13, segundo o libreto “Kung-Fu, versão curta de uma história muito longa” –455 e ensine suas rotinas (normalmente, para alunos avançados), optou pelo Shaolin do Norte como “estilo fundamental” (a melhor prova disso é a presença dos caracteres

- Shaolin do Norte - nas camisetas). Por conta disso,

as rotinas ligadas aos outros estilos – e, certamente, seus elementos tradicionais, como a genealogia – acabaram situados em um segundo plano, principalmente para os alunos de regiões distantes de São Paulo. A dificuldade de obtenção das fotos dos mestres faltantes nos altares não serve como justificativa para a “ausência iconográfica”, uma vez que várias fotos históricas relativas aos mestres Yang Sheung Mo e Ku Yu Sheung – obtidas provavelmente de Chan Kowk Wai - estão disponíveis em academias e na internet.456

453

Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis, Sino-Brasileira de Kung-Fu de Curitiba e Senda (Curitiba). Fig. 57: foto do autor; fig 58 extraída de “Kung-Fu, versão curta...”, p. 17. 455 “Kung-Fu, versão curta...”, p. 20 e 21. 456 Como em http://www.shaolincuritiba.com.br/fotos.html (c. 15.07.2004). 454

153

5.4.3.1 – Um conjunto semântico de prevalência confucionista Como observado na abertura deste capítulo, acreditamos que a junção fotos dos mestres x “placa da ética e da ancestralidade” x “mesa de oferendas” x “parafernália”, vista nos altares das academias pesquisadas, configura um conjunto semântico “fechado”, cujo significado sintetiza uma parte importante do elemento religioso no Sistema SinoBrasileiro de Kung-Fu (a outra parte está no conjunto semântico representado pela camiseta). A grande diferença entre esses dois conjuntos se refere ao que denominamos de “elemento ancestral”: enquanto nas camisetas prevalecem elementos taoístas (e prétaoístas), nos altares a prevalência é de elementos confucionistas, que se referem à ética e à devoção de antepassados marciais históricos e míticos. Nos dois casos, o Budismo aparece ligado, fundamentalmente, ao nome do mosteiro de Shaolin (em alguns altares aparecem, ainda, imagens budistas). A queima de incenso junto às fotografias e a saudação dirigida ao altar pelos praticantes quando da entrada no salão de treinamento nos parecem mostrar, claramente, uma prática ritual relacionada a um culto aos antepassados. Em nosso entendimento, a presença do altar e os rituais a ele relacionados indicam um aspecto institucional revelador: para a tradição chinesa, as gerações de praticantes do Shaolin do Norte – e, certamente, de outros estilos de Kung-Fu – guardam um parentesco marcial, uma chancela para o subuniverso cultural. Vale observar a existência de práticas semelhantes entre as chamadas “tríades”,457 o que, em tese, poderia indicar uma relação entre a prática marcial e o movimento sectário na China. 5.5 - Interpretação das informações do capítulo A “tradução” dos elementos iconográficos religiosos e não-religiosos encontrados nas academias brasileiras de Shaolin do Norte parece confirmar, em um primeiro momento, a configuração de um subuniverso semântico nos moldes apontados por Berger e Luckmann. Em relação à iconografia de caráter religioso, ela revela uma presença intensa de elementos ligados ao Taoísmo e ao Confucionismo; nesse contexto, o Budismo, ainda que diretamente relacionado ao nome do estilo – e à mente dos praticantes - aparece menos representado, o que remete ao apreço chinês por elementos culturais “autóctones” 457

A respeito das tríades, ver cap. 2 desta dissertação. 154

e para a fusão religiosa verificada na China no século V. A observação dos elementos iconográficos nos leva a crer que eles sejam produto da religiosidade popular chinesa, transmitida pelo introdutor do Shaolin do Norte em terras brasileiras – Chan Kowk Wai para seus discípulos ocidentais. O uso das camisetas e a queima de incenso nos altares apontam para três possibilidades: - a primeira, de caráter meramente institucional, relacionada à configuração do uniforme de prática marcial: caso das camisetas, que são usadas junto com calças pretas - com listas laterais azuis ou brancas -, e de um “ritual de academia” - o cumprimento ao altar e a queima de incenso - que se configuraria como “ingresso” ao ambiente de prática e ao subuniverso cultural do Kung-Fu; - a segunda, de caráter devocional, relacionada à percepção, por alunos e professores, do conjunto de valores religiosos presentes na esfera mental do Kung-Fu do Shaolin do Norte; - a terceira, de caráter misto, compreendendo a relação instrumental com a iconografia e um conhecimento respeitoso, mas superficial, da religiosidade envolvida. Esse conhecimento superficial, vale observar, estaria mesclado a concepções individuais a respeito da religiosidade chinesa.

155

6. “PARA CONHECER O FILHOTE DO TIGRE...” – APRESENTAÇÃO E LEITURA DOS RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO 6.1 – Considerações preliminares De acordo com um velho ditado chinês, alguém só é capaz de chegar a um filhote de tigre se adentrar à Montanha do Tigre.458 Em seu sentido tradicional, esse ditado é, ao mesmo tempo, uma fonte de inspiração e um aviso para o buscador. No pain, no gain: se há esforço, há resultado; se se deseja o resultado, deve-se encarar o esforço. Em nosso contexto geral de pesquisa, o “filhote de tigre” é a resposta aos questionamentos propostos com base nas hipóteses de trabalho e no quadro teórico. O “Tigre”, por sua vez, é o conjunto de desafios enfrentados para alcançar essa resposta. No contexto deste capítulo, porém, o ditado ganha contornos um pouco diferentes: ainda estamos marchando pela montanha e, por conta disso, não podemos descuidar do tigre, que é quem vai nos levar à preciosa cria. Até o momento, porém, através da análise de fontes documentais, apenas o cercamos: encontramos os ossos de seus pais, recolhemos as pistas deixadas na floresta, ouvimos histórias do povo e até captamos os urros da fera na distância. A partir de agora vamos encontrá-lo de fato, olho no olho, e com ele interagir. E quem é esse “pequeno-grande” Tigre? Neste caso - com a devida licença poética –, são os entrevistados. 6.2 – O universo da pesquisa Através de entrevistas com representantes de quatro gerações de praticantes buscamos descobrir o papel dos elementos histórico-religiosos do Kung-Fu para a formação de uma identidade e de uma tradição histórico-religiosa no subuniverso da arte marcial chinesa no Brasil. Procuramos observar os elementos semânticos “externos”, alheios à tradição, que influenciaram na conformação desse subuniverso. A partir desses dados - e de sua confrontação com as conclusões obtidas no levantamento junto às fontes documentais adquirimos os elementos essenciais para a confirmação ou refutação de nossas hipóteses

458

Citado pelo mestre Lee Chung Deh ao autor desta dissertação em uma conversa durante os anos 80 do séc. XX. 156

e, também, para a produção de um diagnóstico do futuro do Kung-Fu do Shaolin do Norte em relação a seus conteúdos não-corporais. Ao estabelecer o universo da pesquisa de campo, buscamos focalizar um grupo de indivíduos ligados entre si verticalmente, ou seja, por uma “genealogia marcial” direta: o representante de primeira geração transmitiu seus conhecimentos para o de segunda geração que, por sua vez, os transmitiu para os de terceira geração; estes, por sua vez, os estão transmitindo para os representantes de quarta geração. Essas gerações partem do mestre chinês que introduziu o Shaolin do Norte no Brasil, Chan Kowk Wai, e chegam a praticantes brasileiros avançados, orientados por professores não-chineses que dão aulas em regiões distantes da cidade de São Paulo.459 Ao todo foram entrevistadas dez pessoas, número que consideramos suficiente para a obtenção dos dados necessários ao esclarecimento das questões propostas pela pesquisa (fig. 59).

Ao optar por um pequeno número de entrevistados, seguimos o entendimento de HansJürgen Greschat sobre a relação extensão da pesquisa x profundidade: A maioria dos cientistas da religião (...) não dispõe de uma base técnica e dos recursos financeiros necessários para realizar entrevistas representativas de fiéis. Eles são obrigados a optar por um outro procedimento; isso não implica necessariamente, porém, em perda de 460 qualidade, uma vez que a profundidade compensa o reduzido universo de pesquisa.

459

Onde está instalada a academia de Chan Kowk Wai.

157

A questão da dispersão geográfica dos entrevistados foi levada em conta a fim de que pudéssemos observar, mais claramente, a existência de um núcleo semântico comum. O mestre introdutor dos conteúdos no Brasil vive e dá aulas na cidade de São Paulo (SP); o mestre de segunda geração vive e dá aulas em Curitiba (PR); os professores (terceira geração) vivem e dão aulas em Florianópolis (SC) e em Campo Grande (MS); seus alunos (quarta geração) vivem e praticam Kung-Fu nessas cidades. As entrevistas foram feitas, em sua maioria, nas próprias academias (São Paulo, Curitiba e Florianópolis); as entrevistas com o professor e os alunos de Campo Grande foram realizadas na academia Senda, em Curitiba, durante a realização de uma competição interestadual de arte marcial chinesa.461 Foram entrevistados os seguintes integrantes do subuniverso cultural do Kung-Fu do estilo Shaolin do Norte no Brasil: Quadro 3 - Entrevistados 1ª Geração

Chan Kowk Wai, 70, Cantão. Mestre de arte marcial chinesa. Proprietário da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu (SP).

Mestre Chinês 1

2ª Geração

Mestre Chinês 2

3ª Geração

Prof. Brasileiro 1

460

Tempo de prática marcial: 66 anos. Entrevista: junho de 2004

Lee Chung Deh, 52, Taiwan. Mestre de arte marcial chinesa. 462 Ministra aulas em clube de Curitiba (PR). Tempo de prática marcial: 30 anos. Detentor da denominação “Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Curitiba”. Entrevista: 16.08.2004.

Rogério Leal Soares, 47, Camaquã (RS). Grau de instrução: ensino médio completo. Professor de arte marcial chinesa. Dá aulas em academia dentro de escola de Florianópolis (SC). Tempo de prática: 29 anos. Detentor da denominação “Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis” Entrevista: julho de 2003.

GRESCHAT, H., “Was Ist Religionswissenschaft?”, Stuttgart, Berlin, Köln, Mainz: Kohlhammer, 1988, p.

66 461

A VII Copa Interestadual Senda de Kung-Fu, realizada nos dias 21 e 22 de junho de 2003. 158

4ª Geração Aluno Professor Brasileiro 1

4ª Geração Aluno Professor Brasileiro 1

4ª Geração Aluno Professor Brasileiro 1

3ª Geração

Prof. Brasileiro 2

4ª Geração Aluna Professor Brasileiro 2

Antônio Otolívio Henrique, 53, Florianópolis. Grau de instrução: superior completo. Cirurgião dentista. Tempo de prática marcial: 21 anos Entrevista: julho de 2003.

Daniel João Alves, 37, Santo Amaro da Imperatriz (SC). Grau de instrução: ensino médio completo. Vendedor. Tempo de prática marcial: 12 anos. Entrevista: julho de 2003.

Killian Johnny Hochsteiner, 40, Florianópolis. Grau de instrução: superior completo. Engenheiro eletricista. Tempo de prática marcial: 21 anos. Entrevista: julho de 2003.

Dirceu Coelho, 37, Campo Grande (MS). Grau de instrução: ensino médio completo. Professor de arte marcial chinesa. Proprietário de academia em Campo Grande (MS). Tempo de prática marcial: 21 anos. Academia Shaolin do Norte de Kung-Fu. Entrevista: 21 de junho de 2003. Juliana Justino, 21, Campo Grande (MS). Grau de instrução: superior incompleto (acadêmica de Educação Física). Tempo de prática marcial: 12 anos. Atleta da seleção brasileira de Kung-Fu/Wu-Shu. Entrevista: 21 de junho de 2003.

462

À época da pesquisa, era proprietário de academia na mesma cidade. Atualmente, ministra aulas na Sociedade Juventus, na mesma cidade 159

Aluno Professor Brasileiro 2

Robson Bambill, 38, Campo Grande (MS). Grau de instrução: ensino médio completo. Comerciante, prof. de Kung-Fu. Tempo de prática marcial: 18 anos. Entrevista: 21 de junho de 2003.

4ª Geração

Rodrigo Vieira, 22, Campo Grande (MS). Grau de instrução:

4ª Geração

superior completo. Publicitário. Aluno Professor Brasileiro 2

Tempo de prática marcial: 4 anos. Entrevista: 21 de junho de 2003.

6.3 – O modelo da pesquisa A fim de garantir a profundidade exigida por uma pesquisa com um número reduzido de participantes, adotamos como ferramenta para obtenção de dados a entrevista, realizada a partir de questionários previamente estabelecidos, construídos a partir de núcleos temáticos.463 A preocupação com a adoção de modelos específicos de questionário foi especialmente importante em relação a professores e alunos (terceira e quarta gerações), que tiveram suas respostas analisadas a partir da observação das semelhanças e diferenças. Ainda assim, nos casos em que julgamos necessário especificar mais as perguntas ou aprofundar respostas, realizamos desvios nos questionários (voltando, em seguida, ao modelo pré-estabelecido). No caso dos mestres originários - pelo fato de serem os únicos entrevistados em suas categorias - esse princípio foi afrouxado, com vistas, principalmente, à obtenção de respostas que esclarecessem tanto o significado da iconografia quanto o valor dado à transmissão dos conteúdos não-corporais do Kung-Fu. Partimos, fundamentalmente, de uma relação prévia de temas não informados aos mestres (eles sabiam, porém, que estavam sendo entrevistados para uma pesquisa de mestrado), que foram explorados sob a forma de perguntas gravadas. Há que se observar nesse caso, ainda, o fator domínio do idioma: especialmente na entrevista com Chan Kowk Wai – que chegou ao Brasil com a

160

idade de 26 anos – foi necessário colocar muitas das questões em um formato mais “compreensível” visando o entendimento, pelo mestre, do que desejávamos saber. No caso dos mestres originários buscamos, ainda, apresentar os elementos iconográficos de nosso interesse sob a forma de pranchas que eles deveriam observar e explicar. 6.4 – A construção dos questionários – perguntas e temas Ao construir os questionários buscamos abranger os núcleos temáticos que, de acordo com nossa avaliação, pudessem fornecer os dados necessários à produção das respostas às questões propostas no projeto de pesquisa. A seguir, vamos apresentar as perguntas feitas aos mestres chineses, bem como os questionários propostos a professores e alunos. A fim de facilitar a leitura e dinamizar o trabalho, optamos por apresentar, na seqüência das séries de perguntas e questionários, quadros com as conclusões obtidas a partir do cruzamento das respostas do entrevistados.464 6.4.1 – Entrevistado de primeira geração – grão-mestre Chan Kowk Wai Como observado no item 6.3, a entrevista com Chan Kowk Wai não seguiu um questionário formal. Isso se deveu, num primeiro momento, à inexistência de outros mestres de primeira geração e, portanto, à não-necessidade de cotejamento dos dados. Outro elemento que influiu para a adoção dessa tática foi o relativo à barreira de idioma. A fim de obter as respostas, algumas vezes houve a necessidade de se refazer as perguntas em termos mais simples. Não deixamos, porém, de pré-estabelecer grupos temáticos. A seguir, apresentaremos esses grupos temáticos, seguidos das questões propostas. Na seqüência faremos a apresentação do quadro de conclusões: 6.4.1.1 - Identificação: 1.1 - Nome: 1.2 - Idade: 1.3 - Nacionalidade: 1.4 - Escolaridade: 463

As perguntas foram apresentadas pelo pesquisador verbalmente e respondidas da mesma forma pelos entrevistados. Todo o processo foi registrado em fitas cassete que, depois, foram integralmente transcritas. 464 A íntegra da entrevista com cada um dos participantes da pesquisa, assim como as análises das respostas, estão disponíveis em (site no ar desde 31.07.2004). A entrevista com Chan Kowk Wai e a análise dos dados de pesquisa estão, respectivamente, em e em . 161

1.5 - Profissão: 465

6.4.1.2 - Questões de aproximação:

2.1 - Mestre, o senhor acaba de retornar do Canadá. O senhor foi receber uma homenagem?

2.2 - Pelo que eu estou vendo, o diploma é da World Organization of Wushu and Kung-Fu Masters Evaluation, em décimo grau. É o último grau? 6.4.1.3 - Chegada ao Brasil e início da transmissão de conteúdos marciais: 3.1 - O senhor chegou ao Brasil em 1960... 3.2 - O senhor começou a ensinar Kung-Fu assim que chegou ao Brasil? 3.3 - O senhor também deu aulas no Centro Cultural Chinês, é isso? 3.4 – Quando o senhor começou a dar aulas para brasileiros? 3.5 - Até quando o senhor deu aulas só para chineses? 3.6 - O senhor lembra de quando começou a ensinar na USP? 3.7 - Em 1973, 1974 a gente teve a aparição dos filmes do Bruce Lee, depois aquele seriado, “Kung-Fu”. Essas séries, na sua opinião, despertaram mais o interesse dos brasileiros para o Kung-Fu? (complemento: “E nessa época o senhor já tinha vários alunos brasileiros, não-chineses?”) 3.8 - O que levou o senhor a ensinar Kung-Fu para brasileiros? (complemento: “E assim foi que os brasileiros começaram a conhecer...”) 6.4.1.4 - Formação de alunos – Genealogia marcial no Brasil 4.1 – O senhor saberia dizer quantos alunos formou até hoje, no Brasil inteiro e no Exterior, como professores? 4.2 – O mestre Lee Chung Deh foi um aluno formado bem no começo pelo senhor. É isso mesmo? 4.3 – O senhor tem alunos também fora do Brasil. Espanha, Canadá... 4.4 - Atualmente o senhor tem quantos alunos na sua academia? 4.5 - No Pró-Vida o senhor ensina Shaolin do Norte, Tai-Chi? 4.6 - Aqui na João Moura, em Pinheiros, há quanto tempo está a academia? 6.4.1.5 - Iconografia e elementos histórico-religiosos do Kung-Fu de Shaolin 5.1 – O estilo Shaolin do Norte foi criado no Mosteiro de Shaolin? (Eu gostaria de conversar com o senhor sobre alguns elementos gráficos que a gente vê na academia e saber de onde eles surgiram...) 5.2 - Esta aqui, mestre [apontando para ilustração em prancha], é a figura da frente da camiseta. Essa figura já existia na China, o senhor a trouxe para o Brasil, o senhor a criou... (complemento: “Mas foi o senhor que criou este emblema, ou ele já existia?”). 5.3 - Esses elementos, Lho Hã, Jin-Chi-Shen e Yin-Yang são taoístas. Esse aqui [apontando para ideogramas de “Shaolin do Norte”] é budista... (complemento: “Antes, então, do Taoísmo?”) 5.4 - O senhor criou esse símbolo a partir de ensinamentos dos seus mestres?

162

5.5 - Então a gente pode dizer que o Kung-Fu do Shaolin do Norte tem elementos do Taoísmo, Budismo... 5.6 - A segunda figura que eu tenho aqui [em prancha] é o dragão das costas da camiseta. Esse dragão é um dragão imperial? 5.7 - Aqui [apontando para o dragão da camiseta], o senhor colocou um Pa Kua. Em outras ilustrações, ao invés do Pa Kua, aparece uma pérola. O que essa mudança significa? 5.8 - Eu estudei a placa

466

que está nas academias [mostra prancha]. Eu fiz uma tradução e descobri que

existem alguns nomes de pessoas que estão aqui, aqui... Este, por exemplo, é Yue-Yuan... 5.9 - Esse, mestre, é Bodidharma? 5.10 - O monge Ta Mo teve alguma influência na criação do Kung-Fu de Shaolin? 5.11 - Esse aqui [indica ideogramas de “Shaolin do Norte”] é mais antigo do que esse [indica ideogramas de “Yuan Fei”]. Esse [“Yuan Fei”] é da Dinastia Song? 5.11 - A gente tem, na sua academia, na do Rogério [Leal Soares] e do mestre Lee [Chung Deh], essa placa a que eu me referi antes. Qual o significado dela? (complemento: “Mas qual é o sentido da placa? A gente tem elementos confucionistas... qual é a finalidade da placa? É pra lembrar o aluno, pra lembrar o professor, como é? Então a finalidade principal é de respeito, mesmo...”) 5.12 – E ela [a placa] fica sempre junto do altar? 5.13 - É uma placa muito antiga? O senhor a trouxe da China? 5.14 – Seu mestre já possuía uma placa como essa? 5.15 - Eu tive fazendo uma pesquisa sobre o mosteiro de Shaolin e eu achei essa figura [aponta para placa do Jinnaluo]. O senhor lembra de ter visto essa figura na China? 467

5.16 - Todas as academias de Kung-Fu tem um “santo”, qielan shen, como Kuankung

... esse [Jinnaluo]

seria o espírito protetor de Shaolin, mestre? 5.17 - Mestre, a gente tem, junto das fotos dos mestres e das placas, um altar. A gente sempre queima o incenso, né. Esse incenso, é aceso para homenagear os antepassados, isso? 5.18 - Essa é a finalidade do altar, também? 5.19 - Isso seria uma coisa do Budismo, das religiões da China mesmo? 6.4.1.6 - Entendimento da iconografia pelos alunos 6.1 - Mestre, os seus alunos sabem o que significam todos os símbolos da camiseta, da placa, do altar? Eles perguntam, tem curiosidade? 6.2 - Então, o interesse depende do aluno? (complemento: “Então, os alunos chineses explicam...”) 6.4.1.7 - Presença das religiões orientais no Kung-Fu do Shaolin do Norte 7.1 - O senhor poderia falar, qual é a influência do Budismo no Kung-Fu? 7.2 - E do Confucionismo, seria pelo respeito ao mestre?

465

Ao iniciar a entrevista, percebemos que o mestre tinha muito interesse em falar sobre uma homenagem que, dias antes, havia recebido no Canadá. Assim, para facilitar a aproximação com o entrevistado, seguimos inicialmente essa linha. 466 “Placa da Ética e da Ancestralidade”. Ver item 5.4.2. 467 A respeito de Jinnaluo e Kuan Kung na tradição de Shaolin, ver item 2.2.3.6. 163

Núcleo Temático

Conclusão

6.4.1.1 – Identificação

- Chan Kowk Wai (ver quadro 3). Denominação: CKW.

6.4.1.2 - Questões de aproximação

a) – o mestre deu início à entrevista falando a respeito de uma homenagem recém-recebida no Canadá, de onde havia chegado há alguns dias; b) – o início da conversa a partir de um tema definido por CKW teve como resultados uma aproximação “mais positiva” em relação ao entrevistado e maior descontração para a entrevista

6.4.1.3 - Chegada ao Brasil e início da c) – O mestre confirmou sua chegada ao Brasil em 1960. transmissão de conteúdos marciais

d) – Aparentemente, a ligação entre a prática marcial de CKW e o elemento étnico se deu pela questão do domínio do idioma. Ele não ensinava para brasileiros porque não sabia falar português. No período de 10 anos em que só ensinou para chineses, as aulas foram ministradas em sua casa e no Centro Social Chinês (no bairro da Liberdade, em São Paulo); e) – O mestre disse não ter tido preconceito em relação a alunos não-descendentes de chineses, a quem começou a ensinar em 1970. Essa abertura se deu a partir de uma instituição de ensino superior, a Universidade de São Paulo, onde, a convite de um aluno, deu aulas de arte marcial chinesa; f) – O entrevistado considerou relativa a importância dos filmes e da série de TV “Kung-Fu” para o interesse dos alunos brasileiros. Segundo ele, a veiculação “ajudou”, mas, nos anos de 1971 e 1972 (ou seja, imediatamente antes da “Onda Kung-Fu”), já tinha muitos alunos brasileiros. Essa observação parece indicar um fato interessante, relacionado à diferença entre a difusão do Kung-Fu em São Paulo – onde havia um mestre chinês interessado em ensinar - e em outros lugares do Brasil, onde havia apenas indivíduos que se interessaram pela arte marcial chinesa.

6.4.1.4

-

Formação

de

Genealogia marcial no Brasil

alunos

– g) – CKW foi, de fato, o responsável pela difusão do estilo Shaolin do Norte no Brasil e mesmo em outros países, como Argentina, Estados Unidos e Espanha: como herdeiro direto de uma tradição marcial, veio ao país e não “quebrou a cadeia” da transmissão. Graduou cerca de 90 professores, a maioria absoluta brasileiros e, atualmente, dá aulas para cerca de 1.200 pessoas (200 na academia e cerca de mil em uma instituição de São Paulo);

164

h) – O mestre reconheceu Lee Chung Deh, nosso entrevistado de segunda geração, como um de seus primeiros alunos e como um de seus primeiros professores graduados. 6.4.1.5

-

Iconografia

e

elementos i) – CKW se mostrou crente de que a origem de seu estilo de

histórico-religiosos do Kung-Fu de Kung-Fu é o mosteiro de Shaolin. Essa é a principal informação de Shaolin

caráter tradicional transmitida por professores e alunos no país (o mosteiro dá nome ao estilo); j) – O mestre informou ter construído dois dos principais elementos iconográficos do Shaolin do Norte – o emblema da frente da camiseta e o dragão nas costas da mesma – a partir de dados de sua religiosidade pessoal. Essa construção desperta para um fato normalmente negado pelos ocidentais: que as “milenares” tradições orientais também estão sujeitas a uma dinâmica de transformações/recombinações que lhes dá um caráter modernizante; k) – CKW confirmou como elementos tradicionais “originais”, isto é, de reprodução pura, a “placa da ética e da tradição” e o altar de culto aos antepassados; l) – Todos os elementos da placa descritos na pesquisa documental foram confirmados pelo mestre; m) – De modo geral, a visão pessoal do mestre acerca de religiosidade no Kung-Fu se refere mais a um perfil popular, marcado pela não-necessidade de entendimento mais profundo e nem de explicações para “curiosos”;

6.4.1.6 - Entendimento da iconografia n) – O mestre disse ter dificuldade em responder às perguntas pelos alunos

feitas pelos alunos. Quando confrontado, indica alunos chineses para responder. Isso denota, em nosso modo de ver, a principal ruptura semântica do Shaolin do Norte no Brasil: enquanto os conteúdos corporais são transmitidos com rigor (o mestre vai à academia todos os dias da semana para ensinar, supervisionar alunos que ensinam e esclarecer dúvidas), os não-corporais (à exceção da História do estilo segundo a tradição, bem como sua genealogia) são “deixados de lado”. Isso abre caminho para a ressignificação dos elementos religiosos e iconográficos; o) – Sobre o conhecimento dos conteúdos religiosos por parte dos alunos, ele respondeu que uns os conhecem e, outros, não. Isso, porém, não pareceu preocupá-lo, o que denota a pouca importância por ele dada à transmissão desses elementos.

165

6.4.1.7

-

Presença

das

religiões p) – Apesar de reconhecer uma ligação entre Jinnaluo e o

orientais no Kung-Fu do Shaolin do mosteiro de Shaolin, o entrevistado disse desconhecer detalhes a Norte

respeito de tal divindade. Se tomarmos a relação entre o estilo Shaolin e o mosteiro, isso parece indicar um esvaziamento do culto a Jinnaluo dentro da tradição marcial no século XX; q) – Sobre o papel das religiões na arte marcial por ele ensinada, CKW observou que elas aparecem principalmente no respeito que os alunos devem ter aos professores e, principalmente, aos mestres falecidos. O entrevistado também observou a prevalência do Budismo nos chamados “estilos externos” (como Shaolin) e do Taoísmo nos “estilos internos” (como o Tai-Chi-Chuan); r) – Aparentemente, o culto aos antepassados, que é reforçado (ainda que com poucas informações) nas academias, está centrado na religiosidade popular. Apesar dos fortes indícios confucionistas tanto nesse tipo de culto quanto na “placa da ética e da tradição”, em nenhum momento durante a entrevista o mestre se referiu ao Confucionismo e a seu papel na conformação da arte marcial ensinada.

6.4.2 – Entrevistado de segunda geração – mestre Lee Chung Deh Assim como na entrevista anterior, a realizada com o mestre Lee Chung Deh não seguiu um questionário formal. Foi a última entrevista a ser realizada, e isso se justifica por alguns elementos: inicialmente, pelo fato de o mestre representar a “verdadeira ponte” entre gerações muito distintas: a do mestre chinês de primeira geração e a dos professores e alunos brasileiros. Foi, de fato, um entrevistado fundamental, posto que nos permitiu vislumbrar uma série de elementos que vão auxiliar imensamente na confirmação ou refutação das nossas hipóteses de trabalho. A seguir, apresentaremos as perguntas, seguidas das questões propostas. Na seqüência faremos a apresentação do quadro de conclusões: 6.4.2.1 – Identificação: 1.1 - Nome: 1.2 - Idade: 1.3 - Nacionalidade: 1.4 - Escolaridade: 1.5 - Profissão: 6.4.2.2 – Histórico pessoal na arte marcial

166

2.1 - Mestre, em Taiwan o senhor já treinava Kung-Fu? 2.2 - O senhor conheceu o mestre Chan [Kowk Wai] com que idade? 2.3 - Mestre, o senhor se formou depois de quanto tempo de prática? 2.4 - E o senhor deixou São Paulo nesse mesmo ano, o senhor foi para Porto Alegre... como foi? 2.5 - O senhor foi para Porto Alegre por determinação do mestre Chan, o senhor achou que deveria ir... como foi isso? 6.4.2.3 – Análise da representação da figura do “mestre” pelos praticantes brasileiros 3.1 - Mestre, conversando com os professores brasileiros que eu entrevistei (professores Rogério Leal Soares e Dirceu Coelho) e também com outros professores, e com os alunos deles, eu pude verificar que eles têm o senhor como referência principal, mais, até, do que o mestre Chan. O mestre Chan é uma figura mais afastada, eles têm o senhor como mestre. Como o senhor vê essa questão? 3.2 - Mestre, com relação a essa questão, inclusive da figura do mestre. A gente sabe que existe a pessoa e existe o mestre, que é uma figura “infalível”, aquela coisa toda. Como é isso? 3.3 - Mestre, a gente percebeu nos anos de 73, 74, 75, que houve aquela “explosão” da arte marcial chinesa através do cinema e da TV, como o seriado “Kung-Fu”. Como o senhor vê a importância desse período, dessa forma de divulgação do Kung-Fu pra disseminação da arte. O senhor ganhou mais alunos nessa época? 6.4.2.4 – Análise da compreensão dos praticantes brasileiros a respeito da presença de elementos religiosos no Kung-Fu 4.1 - Conversando com os professores e com os alunos, eu percebi que o desconhecimento é muito grande a respeito dos elementos religiosos dentro do Kung-Fu. Do Confucionismo, do Taoísmo e do Budismo. O senhor atribui a que essa falta de conhecimento? 4.2 - Mestre, mas com relação a esse aspecto da religiosidade: os alunos, o interesse vem do aluno. Conversando com o mestre Chan, ele comentou: “quando me perguntam, eu mando o aluno chinês responder”, quer dizer, ele não dá muita importância para que o aluno entenda o que é o altar, o que é aquela placa com os ideogramas. O interesse em saber mais sobre a religião parte do aluno? 4.3 - Então a gente pode dizer que a questão do interesse parte do aluno e que, de modo geral, os alunos são imaturos para receber essa informação, seria isso? 4.4 - Mestre, a gente pode dizer que o aluno brasileiro tem interesse apenas na forma, ou ele tem interesse em saber mais sobre a religiosidade no Kung-Fu? 4.5 - E o senhor acredita que os professores que o senhor formou, os professores brasileiros, que já não estão em contato com o senhor tão freqüentemente, eles têm esse domínio do aspecto religioso do Kung-Fu para passar par os alunos deles? 6.4.2.5 – Análise da iconografia encontrada nas academias de Shaolin do Norte 5.1 - Mestre, eu estou aqui com alguns elementos que eu captei da iconografia religiosa do Kung-Fu. A gente vê, por exemplo, nessa placa, que a gente tem quatro nomes que me parecem desconhecidos da grande maioria dos praticantes. Por exemplo, Yue Fei, Yue Yuan, Zhang Fei, Zu Lai Tzu. Mestre, porque os alunos não conhecem esses nomes? Eu, com dezoito anos de Kung-Fu, nunca tinha ouvido falar nisso. O que acontece com essa placa, que os alunos não tem acesso aos conteúdos dela?

167

5.2 - Mestre, essa foi a tradução que eu obtive conversando com o mestre Chan e com um tradutor, né. Essa placa, me parece, tem uma característica fundamentalmente confucionista. Esse título aqui [no alto], me parece que ele era atribuído a Confúcio. É isso mesmo? 5.3 - Quer dizer, dentro dessa fusão religiosa, que é aquela que a gente vê que começa no século V, mais ou menos, né... 5.4 - Mestre, e dentro do Kung-Fu, como é que o senhor vê? A gente observa que as artes marciais japoneses vêem a prática como caminho para a transcendência. Existe uma coisa muito forte nesse sentido. Pela minha pesquisa, eu pude perceber que a arte marcial chinesa é mais instrumental, inclusive ela inclui práticas mágicas, pro indivíduo se fortalecer, pra ele socar mais forte, pra ele sofrer menos o impacto. Qual o papel da religiosidade dentro do Kung-Fu? É meramente ético, ou o Kung-Fu pode ser um caminho de vida. Porque a gente não vê, nas academias, meditação? No mestre Chan não tem meditação. Como é que é isso? Qual o papel da religião dentro do Kung-Fu? 5.5 - Mestre, eu tenho aqui essas ilustrações referentes à camiseta. Que informação o senhor recebeu do mestre Chan sobre esse simbolismo? 5.6 - Mestre, então a gente pode dizer... eu notei nos entrevistados, inclusive, que os alunos não tem consciência do significado, eles não sabem o que quer dizer o Lho-Hã, coisas dessa natureza. Os alunos, então, estão nesse estágio de que o conhecimento é informado, mas que eles não vêem porque são muito jovens, muito inocentes ainda? 5.7 - Então tem esse contexto de o aluno não estar preparado para entender, ou para acompanhar, posto que ele veio de uma religião católica, cristã, de um mundo muito diferente, é isso? 5.8 - Passando um pouquinho para outro elemento da iconografia. Eu tive pesquisando e descobri essa figura aqui [Jinnaluo] como divindade tutelar de Shaolin. Uma coisa como Qielan Shen, divindade tutelar. O senhor tem alguma informação sobre isso? 5.9 - O senhor saberia traduzir pra mim? 5.10 - Mestre, conversando com o mestre Chan, quando eu mostrei essa figura [Jinnaluo], ele até deu risada, porque ele disse que conhecia de Shaolin, né, mas que ele nunca deu continuidade. Ele disse “conheço, mas ‘não pegou’”. A gente tem na sua academia a figura do Kuankun. Por que o Jinnaluo não foi transmitido dentro do Shaolin do Norte, já que é uma divindade tutelar que existe só em Shaolin? 5.11 - Mudando um pouco de assunto, mas dentro ainda da iconografia. Qual é a finalidade do altar? 5.12 - Então esse altar seria um altar de culto aos antepassados, é isso? 5.13 - A dificuldade de leitura dos ideogramas, na sua opinião, dificulta o acesso dos alunos às informações? 5.4.2.6 – O fator étnico nas academias e o perfil do praticante brasileiro 6.1 - A gente não vê muitos chineses praticando arte marcial chinesa. A gente tem o mestre Chan e o senhor como divulgadores importantes. A gente teve o ano novo em Curitiba onde nenhum chinês fazia, sabia nada de Kung-Fu. A que o senhor atribui a ausência de chineses nas academias de Kung-Fu do Brasil? 6.2 - Mestre, chegando no final, eu gostaria de saber qual a imagem que o senhor tem do aluno brasileiro, qual é a característica dele, qual é a diferença dele em relação ao aluno chinês?

168

Núcleo Temático

Conclusões

6.4.2.1 – Identificação

- Lee Chung Deh (vide Quadro 3). Denominação: LCD.

6.4.2.2 – Histórico pessoal na arte

a) – O mestre possui uma profunda relação com a arte marcial

marcial

chinesa. Pratica desde adolescente, tendo sido um dos primeiros alunos do mestre Chan Kowk Wai. b) – Apesar de ser imigrante, só começou a treinar arte marcial chinesa no Brasil. Segundo ele, em sua terra natal, como outras crianças, apenas “brincava” de lutar Kung-Fu. c) – Foi o responsável pela introdução do Shaolin do Norte na Região Sul do Brasil. Nos anos 70, quando formado professor (depois de oito anos de prática), deixou São Paulo e seguiu para Porto Alegre, onde montou um núcleo de prática que formou professores que, atualmente, atuam em várias partes do país. d) – O apoio de seu mestre foi fundamental para que o entrevistado se decidisse a abraçar profissionalmente a carreira de professor de Kung-Fu. LCD abandonou a faculdade de Educação Física e começou a dar aulas.

6.4.2.3 – Análise da representação da

e) – Questionado a respeito da admiração que seus discípulos lhe

figura do “mestre” pelos praticantes

devotavam, LCD disse acreditar que ela nasceu de um trabalho de

brasileiros

“chão de fábrica”, iniciado por um jovem mais interessado em ensinar do que na fama. f) – Sobre a “figura do mestre”, LCD observou existir uma diferença cultural: enquanto no Oriente ela está relacionada a uma condição parental, no Ocidente a relação é mercantil. Em seu trabalho, informou, sempre buscou valorizar a concepção oriental – daí, porque, seja tido como referência por muitos professores. g) – LCD confirmou a importância do boom Kung-Fu, nos anos 70, para a aquisição de alunos (citou o seriado de TV “Kung-Fu”). Segundo ele, essa fase passou em algum tempo porque os praticantes observaram a diferença entre a representação dos filmes e a prática real, que demanda esforço físico e mental.

6.4.2.4 – Análise da compreensão dos

h) – LCD observou que a aquisição de conhecimentos acerca da

praticantes brasileiros a respeito da

religiosidade chinesa é um trabalho pessoal e que demanda

presença de elementos

tempo, mesmo para um indivíduo nascido no ambiente cultural

religiosos no Kung-Fu

chinês. Em sua avaliação, a grande questão se refere à “vivência interna” da arte marcial. Os alunos, avaliou, devem conhecer a cultura chinesa (incluída, aí, a religiosa) para “romper uma barreira” dentro do Kung-Fu.

169

i) – O entrevistado observou que um dos fatores que “frearam” a transmissão de conteúdos tradicionais religiosos foi a dificuldade de expressão em português, pelo mestre CKW, de certos conceitos religiosos. j) – Para LCD, um dos ensinamentos essenciais de seu mestre foi o de facultar aos alunos a opção por aprender mais sobre a religiosidade envolvida com o estilo Shaolin do Norte. k) – O entrevistado desvalorizou uma “compreensão formal” da religiosidade chinesa, observando que o mais importante é “vivenciar a religião”, mesmo porque é difícil, na cultura chinesa, separar Budismo, Confucionismo e Taoísmo. Segundo ele, na China os “velhos mestres” dominavam várias artes, e isso era decorrente de uma visão ético-religiosa avançada. l) – Segundo LCD, não se pode afirmar que os alunos brasileiros sejam “imaturos” em relação aos conteúdos de caráter religioso. O que define seu interesse é a preferência natural por aspectos mais “agressivos” ou “filosóficos” da arte marcial. m) – Sobre a oferta de conteúdos religiosos pelos mestres, LCD observou que, por critérios até econômicos, ela depende da demanda (“vende o peixe de acordo com o gosto do comprador”). Ele criticou um movimento por ele verificado em outras artes marciais, que investem na violência gratuita e se esquecem dos elementos mentais que “temperam” a existência. n) – LCD se diz satisfeito com o grau de compreensão a respeito do “espírito do Kung-Fu” por cinco de seus alunos graduados, entre os quais está RLS. 6.4.2.5 – Análise da iconografia

o) – Confrontado com a placa “da ética e da ancestralidade”, LCD

encontrada nas academias de Shaolin

revelou um dado histórico inédito, de que ela seria uma “placa

do Norte

amenizada”, menos agressiva em relação a uma anterior. Esse dado, expresso com muita certeza, não havia sido relacionado por CKW e é interessante para se compreender a evolução da iconografia no ambiente marcial chinês mais antigo. p) – LCD confirmou praticamente todos os dados da placa e da camiseta obtidos na pesquisa de caráter teórico-bibliográfico. Voltou a lembrar, porém, que ela não deve ser lida em compartimentos estanques, mas segundo o aspecto da fusão religiosa verificada na China.

170

q) – A respeito da inexistência de uma definição mais precisa da religiosidade dentro das academias, LCD voltou a observar que ela depende do interesse do aluno. Assim, a visão da arte como “caminho da transcendência” dependeria não do mestre, mas do praticante. LCD acredita que o aluno não deve esquecer de sua própria religiosidade, sob pensa, inclusive, de se converte em mero “puxa saco”, em um macaqueador das atitudes do mestre. r) – Confrontado com a figura de Jinnaluo, LCD deu uma resposta interessante, observando que, como outras figuras do panteão budista, podem ter sido, de fato, encontradas em Shaolin. Segundo ele, não só Jinnaluo, mas outras figuras (como Lohan) fizeram parte da tradição de Shaolin e, mesmo, da tradição marcial. Confessou, porém, não possuir outras informações a respeito – segundo ele, essa é uma busca pessoal iniciada recentemente. s) – LCD confirmou o papel do altar como referente ao culto aos antepassados. Esse altar serviria tanto para reverenciar os espíritos divinizados dos mortos quanto para lembrar de sua existência. No caso do Shaolin do Norte, seria ainda uma lembrança voltada à valorização da arte pelos atuais praticantes – a arte, segundo LCD, só chegou até o presente graças ao esforço muitas vezes sobre-humano dos antigos mestres. t) – O entrevistado não acredita que a “barreira de ideogramas” seja o principal elemento de impedimento para que os praticantes cheguem a um conhecimento mais profundo de sua arte. A dificuldade

está, sim,

em

encontrar fontes

confiáveis

de

interpretação. 5.4.2.6 – O fator étnico nas academias

u) – Sobre a ausência de praticantes chineses, LCD disse ter

e o perfil do praticante brasileiro

“uma certa vergonha” de tal situação, já que o Kung-Fu é uma arte chinesa. Apesar disso, diz compreender, principalmente porque a maioria dos chineses se dedicou a atividades mais “pragmáticas”, como o comércio, que não abrem possibilidade de vislumbrar práticas menos importantes para a sobrevivência. Ele lamentou, porém, o fato de os chineses não enxergarem que a prática marcial pode representar um acréscimo de qualidade de vida, principalmente em relação à velhice.

171

v) – Questionado sobre a diferença entre os praticantes chineses e os brasileiros, LCD se afastou de uma “preferência étnica”. São, segundo ele, todos iguais. De acordo com LCD não existe diferença, e que atletas brasileiros podem compreender o espírito marcial do Kung-Fu de modo mais prefeito do que muitos praticantes chineses. Tudo vai depender da atitude mental do praticante, esteja em que porção do mundo estiver,

6.4.3 – Entrevistados de terceira geração - professores brasileiros As entrevistas com os dois professores brasileiros de Shaolin do Norte foram feitas a partir do seguinte questionário (observar a divisão em blocos temáticos):468 6.4.3.1 - Identificação 1.1 - Nome: 1.2 - Idade: 1.3 - Nacionalidade: 1.4 - Escolaridade: 1.5 - Profissão: 6.4.3.2 - Grau de inserção no subuniverso do Kung-Fu brasileiro 2.1 - Há quanto tempo você pratica Kung-Fu? Qual o seu estilo? Você já praticou ou pratica outros estilos de Kung-Fu? 2.2 - Além do Kung-Fu, você pratica ou já praticou outras artes marciais? Quais? 2.3 - O que levou você a praticar Kung-Fu? 2.4 - Qual a importância do Kung-Fu para a sua vida? 6.4.3.3 - O papel do mestre originário na transmissão dos conteúdos tradicionais do Kung-Fu e da cultura chinesa 3.1 - Qual o nome do seu mestre? Qual a genealogia do seu estilo? Aonde aparece, na sua genealogia, a figura do mestre ou professor chinês? 3.2 - Fale um pouco sobre a pessoa do seu professor ou mestre: como ele era na hora de ensinar? Ele era do tipo que explicava tudo, ou se prendia mais às técnicas, sem muita conversa? E como ele reagia na hora de esclarecer dúvidas? 3.3 - Você teve curiosidade em saber mais sobre a história do seu estilo? Conte a história do seu estilo de acordo com o que você aprendeu com o seu mestre: 3.4 - Seu mestre costumava ensinar outras coisas para os alunos além do Kung-Fu? Pergunto em relação a outros aspectos da cultura chinesa além da parte técnica... 468

Entrevistas disp. em e em . 172

3.5 - Especificamente sobre as religiões relacionadas ao Kung-Fu, você recebeu alguma informação específica de seu mestre? O que ele ensinou? 6.4.3.4 - O papel das fontes secundárias na formação do professor brasileiro de Kung-Fu 4.1 - Você costuma procurar informações sobre Kung-Fu em outras fontes, além do que foi ensinado pelo seu mestre? Indique estas fontes (livros, revistas, jornais, internet, filmes): 4.2 - No caso das informações sobre Kung-Fu obtidas fora da academia, você faz algum tipo de seleção da qualidade do material? Como você faz para distinguir o material sério do material pouco confiável? 4.3 - Além do Kung-Fu, você possui interesse por outros assuntos relacionados à cultura chinesa? Quais? Por quê? Aonde você procura informações sobre estes assuntos? 6.4.3.5 - A visão do professor acerca da importância dos elementos religiosos dentro do subuniverso do Kung-Fu 5.1 - Você percebe, entre os seus alunos, interesse pela cultura chinesa? Quais são os assuntos que mais interessam? Por quê? 5.2 - Segundo a tradição, o Kung-Fu possui uma relação bastante próxima com as religiões chinesas, principalmente o Budismo chinês e o Taoísmo. Você saberia localizar, na sua academia e nas aulas de que você participa, elementos da religiosidade chinesa? (nome do estilo ou de técnicas, queima de incenso, imagens, cumprimentos, conceitos relacionados a energia, oração e meditação)? (pedir ao entrevistado que descreva e/ou aponte os elementos por ele indicados) 5.3 - O que mais chama a sua atenção dentre esses elementos que você me apontou? O que, na sua opinião, é o mais importante dentro da religiosidade ligada ao Kung-Fu? 5.4 - Quando você tem dúvida sobre algum destes elementos – meditação ou queima de incenso, por exemplo – a que fontes você procura recorrer? 5.5 - Na sua prática de academia, o senhor investe no ensinamento de práticas religiosas relacionadas ao Kung-Fu? O senhor poderia localizar estas práticas? 5.6 - Na sua avaliação, qual a importância dos elementos religiosos para a formação de um praticante de Kung-Fu? 5.7 - Como o senhor avalia o interesse, por parte dos alunos, em relação aos aspectos religiosos envolvidos na prática do Kung-Fu? 6.4.3.6 – A relação entre os aspectos religiosos presentes na prática marcial e a religiosidade do professor brasileiro 6.1 - Você levou alguma das práticas religiosas da academia para a sua vida cotidiana? 6.2 - Você levou valores ensinamentos relacionados ao Kung-Fu – a “filosofia” – para a sua vida? Quais? 6.3 - Qual sua religião? Com que freqüência você participa das atividades da sua religião? Qual a importância da religião na sua vida? 6.4 - Especificamente sobre religiosidade oriental: você busca informações sobre o tema além do ambiente da academia? 6.5 - Você já falou sobre Kung-Fu no ambiente religioso que você freqüenta? Que tipo de resposta você obteve das pessoas ou do seu líder religioso? O que eles pensam sobre o Kung-Fu? E o que você pensa disso?

173

6.6 - Existe algum tipo de conflito entre a sua prática religiosa e os elementos religiosos presentes no KungFu? Fale a respeito: 6. 7 - Na sua opinião, o Kung-Fu poderia ter alguma importância na sua escolha religiosa? Você se converteria ao Budismo, por exemplo, em função do que você aprendeu com o Kung-Fu? 6.4.3.7. Avaliação da presença de chineses e sino-descendentes (elemento étnico) dentro do subuniverso do Kung-Fu no Brasil 7.1 - Na sua academia existem praticantes de origem chinesa? Quantos? 7.2 - A que você atribui esta presença ou ausência de chineses étnicos no ambiente da academia? 7.3 - Fora do ambiente de academia, você possui algum tipo de contato com integrantes da comunidade chinesa? 7.4 - Na sua opinião, a presença ou a ausência de elementos de origem chinesa na academia é importante para a qualidade do Kung-Fu ensinado? Núcleo temático

Conclusões

6.4.3.1 – Identificação dos entrevistados - Rogério Leal Soares (denominação: RLS); - Dirceu Coelho (denominação DC). (vide Quadro 3). do a) - Os professores guardam uma profunda relação com o entrevistado no subuniverso do Kung- Shaolin do Norte, tanto em termos pessoais (o Kung-Fu como 6.4.3.2

-

Grau

de

inserção

Fu brasileiro

gerador

de

respostas

a

questões

existenciais)

quanto

profissionais. O longo tempo de prática é um indício dessa relação. b) - As fontes populares de representação da arte marcial chinesa (revistas, cinema e televisão) exerceram um papel importante em sua aproximação do Kung-Fu. 6.4.3.3 - O papel do mestre originário na c) – Os entrevistados identificam Lee Chung Deh como seu transmissão dos conteúdos tradicionais verdadeiro mestre, não manifestando o mesmo grau de do Kung-Fu e da cultura chinesa

deferência para com Chan Kowk Wai, visto mais como uma “pessoa importante”. Nesse contexto, a definição de “mestre” proposta

pela

CBKF

possui

pouca

importância.

Isso,

provavelmente, se deve à maior proximidade de Lee Chung Deh, tanto em termos geográficos quanto pessoais (o mestre chegou ao Brasil muito jovem, o que parece ter influenciado para o estabelecimento de um contato mais fácil com os brasileiros nãodescendentes de chineses). d) – Os professores revelaram um conhecimento da História de seu estilo calcado, essencialmente, na tradição oral, tomada de forma apriorística.

174

e) – Os entrevistados afirmaram que Lee Chung Deh procurou aproximá-los de outros aspectos da cultura chinesa, como culinária e técnicas de massagem. A aproximação, porém, parece ter sido de caráter pessoal, desprovida de sistematização ou de contato com a arte marcial praticada. f) – Os professores deram respostas diferentes à questão da transmissão de conteúdos religiosos chineses pelo mestre. Enquanto RLS apontou uma manifestação mais pessoal e menos institucional, DC confirmou que a transmissão de conteúdos religiosos não ocupa um lugar central do universo semântico transmitido.

A conclusão é de que os aspectos

religiosos não se ligam à ortodoxia do estilo, mas ao interesse de mestre e alunos. 6.4.3.4 - O papel das fontes secundárias g) – As fontes secundárias ocupam um papel importante dentro na formação do entrevistado

da formação do universo semântico dos entrevistados, tanto complementarmente quanto em caráter de revisão/confirmação dos conhecimentos pessoais. h)



As

principais

fontes

são

a

internet

a

televisão

(documentários) e documentos trazidos à academia por alunos. i) – A sistematização do repasse de informações oriundas de fontes alheias à tradição oral depende, exclusivamente, do 469

interesse do professor, que utiliza fontes que julga confiáveis.

j) – O conhecimento de elementos genéricos da cultura chinesa depende, exclusivamente, do interesse dos alunos. A formação no Shaolin do Norte não prevê o repasse de informações de tal natureza e nem, portanto, uma aproximação étnica significativa.

469

Vale observar, aqui, um diferencial em relação a Rogério Leal Soares, que produziu uma apostila para seus alunos. Este documento mescla conteúdos da tradição oral com informações “de fora”. Há restrições, porém, em relação ao grau de comprovação científica das informações. 175

6.4.3.5 - A visão do professor acerca da k) – A enumeração dos elementos de natureza religiosa na importância dos elementos religiosos prática marcial pelos professores foi variável. O total de dentro do subuniverso do Kung-Fu

elementos apontados não chegou aos limites propostos no cap. 5. Um dos entrevistados não indicou nenhum elemento, mas se referiu a um aluno praticante do Budismo. As explicações, por sua vez, indicaram superficialidade em relação ao tema, o que revela a importância relativa dada a esses aspectos pelos professores

e

manifestações

o de

baixo

grau

natureza

de

institucionalização

religiosa.

Ainda

assim,

das eles

manifestaram respeito pela iconografia e pelos rituais de queima de incenso e de atenção aos mestres falecidos. Aparentemente, o que se constata é uma ressignificação dos elementos, que se esvaziaram do sentido religioso e ganharam uma dimensão “subuniversal”, relacionada à passagem da realidade-padrão para o subuniverso da prática marcial. l) – Dos ícones religiosos, o menos conhecido é a “Placa da 470

Ética e da Ancestralidade”, de orientação confucionista.

Esse

desconhecimento, aparentemente, está ligado à dificuldade de tradução literal ou simbólica do ícone, e tem reflexos sobre o entendimento, pelos professores, do universo religioso no estilo de Kung-Fu praticado (o Confucionismo não é citado entre as religiões relacionadas à prática marcial). m) – Apesar da demonstração de respeito aos mestres falecidos, os entrevistados não fizeram nenhuma referência direta ao culto dos antepassados, profundamente arraigado na religiosidade popular chinesa. n) – Sobre a forma de transmissão dos conteúdos de natureza religiosa, os dois professores se mostraram cuidadosos, principalmente para evitar qualquer conflito em relação às crenças de seus alunos. o) – Essa transmissão é importante – um dos entrevistados a considera fundamental para dar mais vida ao Kung-Fu -, mas deve ser feita na forma de uma “apresentação”, sem vinculação obrigatória à evolução dentro da arte marcial.

470

Para a explicação do nome atribuído à placa, ver capítulo 5. 176

6.4.3.6 - A relação entre os aspectos p) – Elementos da religiosidade oriental (ou assim entendidos religiosos presentes no subuniverso do pelos entrevistados) aparecem de forma difusa na vivência Kung-Fu e a religiosidade do professor

religiosa dos professores. A resposta ao questionamento básico deste núcleo teve respostas de caráter profundamente subjetivo. Foram identificados com valores orientais: a vivência de um “ritmo da natureza”, a tranqüilidade e a temperança. q) – Os entrevistados mantém uma relação aparentemente instrumental com a religiosidade “de raiz”, de caráter étnico de sua própria cultura. Enquanto um disse não possuir religião definida, o outro informou ser católico não praticante, desligado de uma prática mais freqüente ou de caráter mais ortodoxo. Essa atitude “liberal” face às religiões da realidade-padrão parece se reproduzir

na

visão

da

religiosidade

na

arte

marcial.

Aparentemente, eles mantém a mesma atitude face às religiões orientais presentes no Shaolin do Norte. 6.4.3.7 - Avaliação da presença do r) – A opinião dos professores acerca da importância da elemento étnico no subuniverso do presença de elementos étnicos na academia varia, mas ambos Kung-Fu no Brasil

não consideram esse um valor relevante. s) – O principal impedimento à presença de chineses não diz respeito a nenhum tipo de “quebra étnica” ou de desconfiança dos

chineses

em

relação

aos

brasileiros.

Segundo

os

professores, a questão está diretamente relacionada à ausência de chineses nas regiões onde mantém suas academias. t) – A fonte mais importante de contato com o elemento humano chinês é a figura do mestre.

177

6.4.4 – Entrevistados de quarta geração – alunos brasileiros Antes de apresentar o questionário aplicado aos alunos brasileiros, cabe informar que a seleção dos entrevistados ficou a critério dos professores. Solicitamos apenas que estes indicassem os alunos que julgassem os mais adequados para responder às questões. Ao seguir por esse caminho, buscamos estabelecer uma cadeia mais significativa de relação entre os entrevistados de terceira e quarta gerações. Os alunos escolhidos, sem dúvida, são vistos pelos professores como prováveis continuadores da tradição e da transmissão de conteúdos do Shaolin do Norte. A seguir, apresentamos o questionário aplicado aos alunos (observar a divisão em blocos temáticos):471 6.4.4.1. Identificação 1.1 - Nome: 1.2 - Idade: 1.3 - Nacionalidade: 1.4 - Escolaridade: 1.5 - Profissão: 1.6 - Tempo de prática de Kung-Fu com o atual professor: 6.4.4.2 - Grau de inserção do praticante no subuniverso do Kung-Fu brasileiro 2.1 - Há quanto tempo você pratica Kung-Fu com seu atual professor ou mestre? Qual o seu estilo? Você já praticou ou pratica outros estilos de Kung-Fu? 2.2 - Além do Kung-Fu, você pratica ou já praticou outras artes marciais? Quais? 2.3 - Quantas vezes por semana você freqüenta a academia? 2.4 - O que levou você a praticar Kung-Fu? 2.5 - Qual a importância do Kung-Fu para a sua vida? 2.6 - Você já participou ou participa de competições de Kung-Fu? Em que categoria? Se não participa, pretende participar? 2.7 - O que você imagina em relação ao seu futuro em termos de Kung-Fu? 6.4.4.3 - O papel do mestre na transmissão dos conteúdos “tradicionais” do Kung-Fu e da cultura chinesa 3.1 - Qual o nome do seu mestre? Qual a genealogia do seu estilo? Aonde aparece, na sua genealogia, a figura do mestre ou professor chinês? 3.2 - Fale um pouco sobre a pessoa do seu professor ou mestre: como ele é na hora de ensinar? Ele é do tipo que explica tudo, ou se prende mais às técnicas, sem muita conversa? E como ele reage na hora de esclarecer dúvidas?

178

3.3 - Durante a sua formação, que informações históricas você recebeu a respeito do Kung-Fu e do seu estilo? Conte a história do seu estilo de acordo com o que você aprendeu com o seu mestre: 3.4 - Seu mestre costuma ensinar outras coisas para os alunos além do Kung-Fu? Pergunto em relação a outros aspectos da cultura chinesa além da parte técnica... 3.5 - Especificamente sobre as religiões relacionadas ao Kung-Fu, você recebeu alguma informação específica de seu mestre? O que ele ensinou? 6.4.4.4 - O papel das fontes secundárias na formação do imaginário no subuniverso do Kung-Fu no Brasil 4.1 - Você costuma procurar informações sobre Kung-Fu em outras fontes, além do que é ensinado pelo seu mestre? Indique estas fontes (livros, revistas, jornais, internet, filmes): 4.2 - No caso das informações sobre Kung-Fu obtidas fora da academia, você faz algum tipo de seleção da qualidade do material? Como você faz para distinguir o material sério do material pouco confiável? 4.3 - Além do Kung-Fu, você possui interesse por outros assuntos relacionados à cultura chinesa? Quais? Por quê? Aonde você procura informações sobre estes assuntos? 4.4 - Você percebe, entre os seus colegas de academia, interesse pela cultura chinesa? Quais são os assuntos que mais interessam? Por quê? 6.4.4.5 - A visão do praticante sobre a importância dos elementos religiosos dentro do subuniverso do Kung-Fu brasileiro 5.1 - Segundo a tradição, o Kung-Fu possui uma relação bastante próxima com as religiões chinesas, principalmente o Budismo chinês e o Taoísmo. Você saberia localizar, na sua academia e nas aulas de que você participa, elementos da religiosidade chinesa? (nome do estilo ou de técnicas, queima de incenso, imagens, cumprimentos, conceitos relacionados a energia, oração e meditação)? (pedir ao entrevistado que descreva e/ou aponte os elementos por ele indicados) 5.2 - O que mais chama a sua atenção dentre esses elementos que você me apontou? O que, na sua opinião, é o mais importante dentro da religiosidade ligada ao Kung-Fu? 5.3 - Quando você tem dúvida sobre algum destes elementos – meditação ou queima de incenso, por exemplo – você costuma perguntar para o seu mestre ou professor? Como ele responde? 5.4 - Você levou alguma das práticas religiosas da academia para a sua vida cotidiana? 6.4.4.6 -A relação entre os aspectos religiosos presentes na academia e a religiosidade do praticante de Kung-Fu 6.1 - Você levou valores ensinamentos relacionados ao Kung-Fu – a “filosofia” – para a sua vida? Quais? Qual sua religião? Com que freqüência você participa das atividades da sua religião? Qual a importância da religião na sua vida? 6.2 - Especificamente sobre religiosidade oriental: você busca informações sobre o tema além do ambiente da academia?

471

Entrevistas disp. em 179

6.3 - Você já falou sobre Kung-Fu no ambiente religioso que você freqüenta? Que tipo de resposta você obteve das pessoas ou do seu líder religioso? O que eles pensam sobre o Kung-Fu? E o que você pensa disso? 6.4 - Existe algum tipo de conflito entre a sua prática religiosa e os elementos religiosos presentes no KungFu? Fale a respeito: 6.5 - Na sua opinião, o Kung-Fu poderia ter alguma importância na sua escolha religiosa? Você se converteria ao Budismo, por exemplo, em função do que você aprendeu com o Kung-Fu?

Núcleo Temático 6.4.4.1. Identificação

Conclusão a) - As idades dos entrevistados variaram entre 21 e 52 anos. Metade dos entrevistados está na faixa entre 35 e 40 anos, o que condiz com a hipótese da influência da indústria cultural para a escolha da arte marcial (os três eram crianças ou adolescentes quando do boom marcial chinês na mídia brasileira, no início dos anos 70). 472

b) - Os seis entrevistados são alunos “antigos”:

o tempo de prática varia

entre três e 20 anos. Esse dado revela o grau de envolvimento com o subuniverso do Kung-Fu do Shaolin do Norte. c) - Quatro entrevistados apresentam nível de escolaridade superior ao de seus professores (terceiro grau); dois possuem o mesmo nível de escolaridade. (*) – o critério de escolha dos professores pode ter pesado no perfil dos entrevistados. Além de indicar alunos antigos, certamente eles levaram em conta características positivas dos escolhidos 6.4.4.2 - Grau de inserção do

d) - Dos seis entrevistados, dois disseram ter praticado outras artes

praticante no subuniverso do

marciais, que foram abandonadas pela dedicação exclusiva ao Kung-Fu. Os

Kung-Fu brasileiro

outros quatro informaram ter se iniciado na arte marcial no Shaolin do Norte. Essa opção é reveladora, de per se, do grau de inserção do subuniverso do Kung-Fu. e) - Os motivos que levaram ao ingresso no subuniverso do Shaolin do Norte variaram (influência da família, busca da saúde e da redução do estresse, “liberdade” do Kung-Fu face a outras artes marciais), mas a prevalência foi a da influência da mídia: dos seis entrevistados, quatro informaram ter sido influenciados por filmes de Bruce Lee e pelo seriado “Kung-Fu”.

472

Tomamos por referência o tempo mínimo de prática de dois anos, por nós estabelecido com base em observações de caráter empírico: o aluno que ultrapassa esse tempo costuma se ligar mais intensamente à prática marcial.

180

f) - Os entrevistados dedicam um tempo significativo à prática do Kung-Fu: o tempo-mínimo semanal relatado foi de quatro horas, e o máximo, de 18 horas. O grau de inserção também pode ser medido pela participação em competições: dos seis entrevistados, cinco participam ou participaram de competições, e um é arbitro formado pela Confederação Brasileira de KungFu (com participações em várias competições). g) - Todos os entrevistados disseram que a prática marcial possui muita importância em suas vidas. Cinco informaram que pretendem evoluir até o grau de maestria e que desejam, no futuro, ministrar aulas (dois deles já ministram). Para todos eles a arte marcial está ligada a palavras como serenidade, equilíbrio, tranqüilização mental e cultivo do corpo. 6.4.4.3 - O papel do mestre na h) - Os seis entrevistados identificaram como “mestre” seus professores transmissão dos conteúdos mais próximos (RLS e DC). Lee Chung Deh (LCD) também aparece, nesse “tradicionais” do Kung-Fu e contexto, como “mestre” - uma pessoa extremamente respeitada, apesar de da cultura chinesa

muitas vezes distante do ponto de vista geográfico (ele vive em Curitiba, longe dos centros onde realizamos as entrevistas). LCD encarna o “arquétipo do mestre chinês” e, por estar no Brasil desde muito cedo (chegou aos 14 anos), estabeleceu uma importante ponte de ligação entre as culturas chinesa e brasileira. i) - O “mestre” (RLS e DC) é admirado por possuir características tais como dedicação, calma, paciência e conhecimento marcial. Observa-se, nas respostas, uma percepção do mestre brasileiro, também, como pessoa, e não apenas como um “ícone marcial infalível” (o que não acontece em relação a LCD, encarado com uma “deferência extra”). j) - Nos dois grupos de entrevistados observou-se um afastamento em relação ao mestre Chan Kowk Wai (CKW). Isso pode ser explicado pelo fato de seus professores não terem sido formados por CKW, mas por LCD; há, também, o aspecto da disponibilidade do mestre: enquanto LCD viaja para ministrar cursos, CKW raramente participa de eventos fora de São Paulo (a não ser no Exterior). k) - O conhecimento dos entrevistados acerca da genealogia se prende, fundamentalmente, ao presente e à tradição oral do estilo. O elemento reconhecido como “mais antigo”, porém, é CKW. Mestres anteriores, como Yang Sheung Mo e Ku Yu Cheung, pertencem a uma “esfera histórica chinesa” que não faz parte do dia-a-dia da academia e nem se converte em conteúdo institucional do subuniverso. Eles incorporaram à árvore genealógica, de modo muito intenso, a figura de LCD e de seus professores (DC e RLS). Dado o pouco contato com a religiosidade tradicional chinesa (ligada ao culto aos antepassados), pode-se afirmar que, enquanto novos ramos da árvore genealógica se consolidam, há um “ressecamento” dos ramos mais antigos.

181

l) - O papel do “mestre” na transmissão de conteúdos chineses extramarciais foi relativizado. O professor não repassa informações de maneira institucional (tais conteúdos não são programáticos); as demandas surgem dos alunos. m) - A respeito da transmissão de conteúdos referentes às religiões chinesas, as respostas dos entrevistados denotaram uma profunda ausência de dados. As informações transmitidas são muito raras, essencialmente empíricas e de caráter fragmentário (ver item 5). 6.4.4.4 - O papel das fontes n) - As principais fontes de consulta dos entrevistados são a internet, livros e secundárias na formação do revistas. Elas ocupam um caráter complementar em relação à tradição oral., imaginário no subuniverso do prestando-se a cobrir as suas lacunas Os entrevistados expressaram Kung-Fu no Brasil

dificuldade em apontar com clareza como fazem para separar as informações das fontes de acordo com o critério da confiabilidade. Isso não os impede, porém de ira às fontes e de, certamente, incorporar (em maior ou menor grau) seus conteúdos. o) - Os entrevistados admitiram ter dificuldade em reconhecer fontes confiáveis, o que não os impede de fazer consultas e aceitar os dados, principalmente em função de seus gostos pessoais e da repetição de informações em várias fontes. p) - Os entrevistados mostraram interesse em certos aspectos extra-marciais da cultura chinesa. Essa disposição, porém, não tem caráter sistemático (não está ligada a nenhum pensamento de reforço institucional em relação ao Kung-Fu) e, muitas vezes, encontra na academia um canal de acesso que nem sempre – por conta da falta de informações - é dos mais estimulantes. As respostas indicam o grau de distanciamento entre o KungFu praticado no Brasil e a cultura chinesa. Isso abre uma porta para a ressignificação e, de certa forma, indica o “esvaziamento étnico” da prática marcial (é possível que a presença de chineses instigasse os praticantes a procurar mais informações sobre essa cultura).

6.4.4.5 - A visão do praticante q) - As respostas sobre os elementos religiosos revelaram um esvaziamento sobre

a

importância

dos de sentido em relação aos ícones presentes no Shaolin do Norte. Esse

elementos religiosos dentro esvaziamento concorre para uma “identificação cenográfica” desses da

subcultura

brasileiro

o

Kung-Fu elementos – de caráter institucional, sem dúvida, e ligada ao subuniverso do Kung-Fu – e abre caminho para a sua ressignificação. r) - As respostas dos entrevistados mostraram a relativa importância dada aos elementos iconográficos de caráter religioso nas academias. Enquanto numa delas aparecem o altar, a placa “da ética e da ancestralidade” e os quadros dos mestres, na outra não há qualquer desses elementos. Os alunos das duas academias utilizam camisetas tradicionais (ver fig. 42 e 43). As respostas indicaram, ainda, uma grande dificuldade no reconhecimento de tais elementos.

182

s) - No caso da academia onde os elementos iconográficos se fazem presentes, foram apontados como religiosos a queima de incenso, o altar e as fotos dos mestres (referências fragmentárias ao culto aos antepassados). Não houve referências aos elementos da camiseta e, nem, à placa “da ética e da ancestralidade”. t) - Na academia onde os elementos não estão presentes foi dado grande valor ao cumprimento tradicional, visto, porém, como de natureza ética e não religiosa. Os alunos dessa academia também não se referiram aos símbolos da camiseta. u) - Não houve referências à prática do Chi Kung como de caráter mágico ou religioso; no entanto, a prática da meditação – não sistematizada na Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo – foi citada por alguns dos entrevistados. v) - Um dos motivos para o afastamento seria o desconhecimento dos conteúdos por parte do mestre. A falta de aplicações práticas para esses conhecimentos, segundo alguns dos entrevistados, também parece ter motivado sua desvalorização. 6.4.4.6 - A relação entre os w) - Dois seis entrevistados, quatro se disseram católicos não-praticantes, aspectos religiosos presentes um informou ser budista praticante (seguidor do Budismo Nitiren-neichonin, na academia, a religiosidade e do Movimento Sokka Gakai) e um disse não seguir religião alguma, apesar a vida do praticante de Kung- de possuir uma forte ligação com as premissas filosóficas e práticas de Fu; a interação do praticante caráter empírico do Movimento da Projeciologia Consienciologia. com a realidade-padrão x) - Dos seis entrevistados, quatro disseram que não se converteriam a uma religião por conta do Kung-Fu. Um deles admitiu a possibilidade, desde que não precisasse abrir mão do Catolicismo. Outro informou que até poderia, mas que, por já ser budista, tal hipótese não teria como se configurar. Acreditamos que, aqui, se mostre um elemento decorrente da relação arte marcial x componente étnico. Se ela se desenvolvesse em um ambiente fortemente étnico – o que ocorre artes marciais japonesas ultra-ortodoxas, como o Kendo (esgrima japonesa) -, certamente levaria os praticantes a uma atitude mais “aguda” em relação à religiosidade do subuniverso marcial. y) - Os entrevistados foram unânimes, porém, em afirmar que incorporam, ao seu universo religioso, elementos da religiosidade do Kung-Fu. Não há, porém, uma imagem muito nítida desse constructo, que é relacionado, principalmente, a elementos não necessariamente religiosos, como a tranqüilização mental, a ética e fraternidade. z) - Eles informaram, ainda, não ver grandes problemas de aceitação por parte da família e da sociedade em relação à prática do Kung-Fu. A visão “dos outros”, ao contrário, é ligada a elementos como saúde, nobreza, força e destreza física, assim como à tranqüilidade. Dos seis entrevistados, apenas um se revelou incomodado com as brincadeiras por parte de nãopraticantes que só conhecem a prática marcial por fontes anedóticas.

183

6.5 - Interpretação das informações do capítulo O sexto capítulo fornece em detalhes as respostas dos dez entrevistados aos questionamentos relacionados ao nosso objeto de pesquisa. A partir delas é possível verificar alguns elementos, tais como a ausência de uma “ortodoxia não-corporal” dentro do Kung-Fu do Shaolin do Norte, bem como o desinteresse de mestres e alunos em aprender mais a respeito dos elementos religiosos presentes em sua prática marcial. Revelou, também, um acelerado distanciamento entre as gerações mais novas, o mestre mais antigo e os conteúdos semânticos não-corporais mais tradicionais. Com o avanço das gerações, pode-se perceber um esvaziamento do significado da iconografia religiosa dentro da tradição do Shaolin do Norte e a conversão dos ícones em “elementos cenográficos” do ambiente de prática de Kung-Fu.

184

7. SÍNTESE DOS RESULTADOS DA PESQUISA Como foi possível observar, ao final de cada capítulo da pesquisa incluímos um subitem denominado Interpretação das Informações do Capítulo. Mais do que funcionar como uma “conclusão pontual”, esse subitem teve por finalidade construir a base de dados depurada, objetiva, que será aplicada nosso construto teórico. A partir da leitura de cada um dos subitens finais dos capítulos é possível estabelecer as sínteses necessárias à produção dos dados que serão tomados em conta quando da produção, à luz do constructo teórico, das respostas às indagações feitas na introdução desta dissertação. Para facilitar o processo de produção das sínteses teórica e empírica, optamos por dividir as conclusões pontuais (referentes a cada capítulo) em tabelas. Ao todo, os capítulos de caráter teórico-bibliográfico redundaram em um total de 25 conclusões; o de caráter empírico, em 20 conclusões. A fim de dinamizar o trabalho e evitar o desestímulo dos leitores – afinal, a “frieza” das tabelas pode afugentar, dentre eles, até mesmo os mais estóicos -, achamos mais apropriado apresentar as sínteses teórica e empírica na forma de textos descritivos.473 Os três capítulos de corte teórico-bibliográfico (2, 3, 4 e 5) revelam dados importantes para o entendimento da História, dos mitos de criação e do valor dado, na antiga China e no Brasil atual, ao elemento religioso nas artes marciais: (cap. 2) - A primeira conclusão se refere à religiosidade na arte marcial. As práticas guerreiras chinesas possuem pelo menos 3.500 anos. O ingresso institucional de práticas religiosas, porém, é cerca de dois mil anos mais recente, o que indica que, por muito tempo, as artes de guerra foram fundamentalmente instrumentais.474 Mesmo com a entrada dos elementos religiosos, porém, elas mantiveram esse caráter: muitos praticantes incluíram práticas mágicas voltadas ao aumento da força e à proteção contra inimigos.475 Do que se deduz que, ao contrário do que aconteceu no Japão a partir 473

As tabelas com as conclusões pontuais – capítulo a capítulo – podem ser encontradas em 474 Não se pode esquecer, porém, que a lida com a guerra envolve um componente religioso fundamental: a morte. De modo que, ao nos referirmos ao ingresso mais recente de elementos religiosos, estamos nos referindo a um ingresso institucionalizado. 475 Sobre a relação entre comportamento humano e guerra, ver COSTA, G. (org), “Guerra e Morte”, 1ª ed., Rio de Janeiro: Imago, 1998, 217 p. 185

do século XVI, na China as artes marciais jamais tiveram o perfil de “caminho para a transcendência”. Essa constatação é chave para se entender a relação entre os mestres chineses e os elementos religiosos na arte marcial, assim como a forma como tais conteúdos foram transmitidos aos praticantes brasileiros. (cap. 2) - A segunda conclusão é a de que a arte marcial foi, de fato, praticada em Shaolin, principalmente nos séculos XVI e XVII, nos moldes instrumentais já referidos. É possível, pois, que Shaolin seja a fonte das rotinas do estilo Shaolin do Norte.476 Na própria China, os monges de Shaolin foram representados como defensores absolutos da justiça e portadores de uma técnica marcial insuperável. Essa representação chegou ao Brasil pelas mãos dos mestres e pela “mídia marcial” dos anos 70, principalmente por meio do seriado televisivo “Kung-Fu”. Por seu caráter “mítico-arquetípico”, ela se converteu em dogma para os praticantes brasileiros de Shaolin do Norte, nãopassível de contestação, mas de acréscimos decorrentes da apropriação das informações e da necessidade de sua afirmação no subuniverso brasileiro de prática marcial. (cap. 2) - A terceira conclusão do capítulo se refere ao uso, no Brasil, do termo KungFu477 para denominar a arte marcial chinesa. Como na China o uso do termo não tem a mesma conotação,478 pode-se deduzir que o ingresso da arte marcial chinesa, no Brasil, não se deu apenas por um esforço catequético de mestres originários, mas, principalmente, pelo fator-chave “indústria cultural”. (cap. 3) – A quarta conclusão se refere ao papel da imigração para a transplantação do Kung-Fu no Brasil. A imigração chinesa para o Brasil foi tardia. Mesmo assim, a existência de mestres originários dentre os imigrantes indica que ela foi relevante para a afirmação do Kung-Fu no país. O Kung-Fu, porém, não foi relevante para a afirmação da identidade chinesa no Brasil. O número de mestres originários é reduzido, assim como o de chineses ou descendentes praticantes; esse dado tem como justificativas a baixa dispersão no território nacional, bem como o desinteresse dos indivíduos pela arte 476

Não se pode esquecer, porém, da possibilidade de ligação do estilo com o mosteiro por conta dos mitos de criação das tríades. 477 A partir dessa parte do texto, será possível observar o uso generalizado tanto de “Kung-Fu” quanto de “Shaolin do Norte”. Entendemos que as conclusões válidas para o estilo analisado valem, também, para o conjunto da marcialidade. Assim, não há conflito entre os termos. 478 A não ser na recentemente, depois da “onda Kung-Fu” no Ocidente. 186

marcial. Esse desinteresse pode ter sido motivado por uma necessidade premente de se estabelecer economicamente ou pela visão da arte marcial como algo desnecessário para a identidade cultural. A constatação do afastamento étnico permite entender porque a arte marcial chinesa foi tão bem assimilada pelos brasileiros: ela não exigia mais do que a vontade de praticar e o respeito a regras institucionais facilmente assimiláveis.479 (cap. 4) – A quinta conclusão se refere ao papel da indústria do entretenimento para a transplantação do Kung-Fu ao Brasil. Quando chegou ao Brasil, o Kung-Fu já tinha características de elemento transcultural. Essa transculturalidade pode ser observada em relação aos conteúdos não-corporais, que, por não serem bem compreendidos, são apropriados e modelados de acordo com a visão de mundo local. A dificuldade de transmissão de conteúdos não-corporais pelos mestres, a presença de uma tradição oral fundamentada apenas na genealogia e a oferta de produtos culturais populares, assim como o desejo de expressão e de compreensão por parte dos praticantes, deram origem a um universo de “dados gerais de Kung-Fu”. Esse universo é caracterizado por se afirmar como “incrivelmente antigo e venerável”, mesmo sendo novo e extremamente dinâmico.480 (cap. 5) – A sexta conclusão diz respeito à existência de um “cenário de Kung-Fu”. As academias de Shaolin do Norte, via de regra, mantêm características cenográficas comuns, tais como as referentes à presença de armas tradicionais, elementos decorativos e de disposições arquitetônicas. Tal configuração, assim como sua relação com os praticantes, se apresenta como elemento de apoio à tese de que o Kung-Fu brasileiro, apesar de seu reduzido grau de tensão em relação à realidade-padrão, se caracteriza como subuniverso semântico.481 (cap. 5) – A última conclusão teórico-bibliográfica diz respeito à existência de elementos religiosos na iconografia e nos rituais de academia do Shaolin do Norte. Apesar de o estilo 479

Outras artes marciais também foram bem assimiladas. O caso do Kung-Fu, porém, é sui generis, posto que chegou há pouco tempo e foi assumido por professores sem qualquer vínculo direto com a colônia chinesa. 480 Um mestre chinês transmite conteúdos não-corporais a um aluno brasileiro; este apela para outras fontes, de onde extrai dados que vão suprir as lacunas deixadas pelos “ruídos de comunicação”; formado professor, funde as informações e as repassa como “tradicionais”. Seus alunos repetem o processo: em poucas gerações, o conjunto de informações terá mudado substancialmente. 481 Conceitos de Berger e Luckmann. 187

tomar como principal referência o Budismo, pode-se constatar a presença de elementos do Taoísmo e do Confucionismo. O predomínio é de caracteres pré-taoístas e taoístas, seguidos por caracteres confucionistas e, então, por caracteres budistas. Todos possuem grande significado religioso, calcado, principalmente, na religiosidade popular chinesa (em especial no culto aos antepassados). Esse significado não se desvela de per se, permanecendo oculto por barreiras de compreensão simbólica e de

domínio

da

escrita

chinesa.

Esse

ocultamento

produz

especulações,

ressignificações e, principalmente, a desvalorização de tais conteúdos. O capítulo de corte empírico (6) permite confirmar ou negar, a partir de dados da realidade fática, as conclusões estabelecidas na leitura teórico-bibliográfica. Permite vislumbrar, também, as transformações do universo semântico não-corporal do Kung-Fu ao longo das gerações de entrevistados. - A principal conclusão extraída da análise dos dados de campo diz respeito a um esvaziamento dos conteúdos originais de natureza não-corporal, em especial os ligados à religião. Esse esvaziamento, verificado nas duas gerações não-chinesas de praticantes de Shaolin do Norte, é provocado por três fatores: em primeiro lugar, a relação dos mestres chineses com os elementos religiosos presentes no Kung-Fu, calcada na religiosidade popular e na percepção de que a prática marcial não é um “caminho de transcendência”, mas, fundamentalmente, de sobrevivência; em segundo lugar, a dificuldade de transmissão das informações por esses mestres (especialmente no caso do mestre chinês de primeira geração);482 em terceiro lugar, o desinteresse dos alunos em conhecer os elementos religiosos presentes na sua prática marcial, que faz com que os mestres tenham ainda menos estímulo para “dar o primeiro passo”. - O desinteresse dos praticantes brasileiros não guarda relação com qualquer tipo de conflito envolvendo seus valores religiosos pessoais e os valores presentes na arte marcial. Diz respeito, sim, à relação que eles estabelecem com a religiosidade em geral: dos oito brasileiros entrevistados, cinco se disseram católicos não-praticantes, um se disse avesso a qualquer “religião dogmática”, um se disse crente em uma espécie de “supra-religião” de caráter pessoal (e características universalistas) e um informou ser 482

No caso do mestre chinês de segunda geração, esse repasse foi facilitado por seu melhor domínio da expressão em língua portuguesa e, também, por uma compreensão “mais tranqüila” da mente brasileira (ele chegou ao país no início da adolescência).

188

budista praticante. Dos oito, apenas um afirmou que poderia considerar a possibilidade de se converter a uma das religiões relacionadas ao Kung-Fu – desde que não precisasse abandonar o catolicismo. Podemos deduzir, pois, que a relação dos entrevistados com os elementos religiosos do Kung-Fu é semelhante à que estabelecem com a religiosidade em geral – de respeito, mas sem grande envolvimento. Por terem pouco acesso às informações dos valores religiosos do Kung-Fu, porém, acabam por se afastar desse segmento do universo semântico não-corporal. - Os alunos brasileiros demonstraram um grau relativo de conhecimentos acerca da história do estilo praticado. Seu conhecimento se baseia, sobretudo, nas informações transmitidas por seu professor, bem como em consultas a livros, revistas e sites. Esse conjunto de informações configura o que nós denominamos, ao longo deste trabalho, “dados gerais de Kung-Fu”. Aparentemente, eles não julgam necessária uma investigação mais profunda acerca dos dados não-corporais presentes no Kung-Fu do estilo Shaolin do Norte. - Os professores e alunos brasileiros apontaram a indústria cultural como sendo de grande importância para a sua escolha pelo Kung-Fu. Principalmente para os professores e para os alunos mais velhos, a veiculação do seriado “Kung-Fu” e dos filmes de Bruce Lee foi determinante para o início da prática marcial – e, certamente, para o estabelecimento de um “modelo de comportamento marcial”. - Os professores e alunos brasileiros mostraram, via de regra, pouco conhecimento acerca dos elementos iconográficos de natureza religiosa presentes no “cenário de Kung-Fu”, incluindo-os na relação de marcas identificadoras gerais do ambiente de prática. De todos os entrevistados brasileiros, apenas um (professor) soube explicar em detalhes o elemento iconográfico mais complexo, a “placa da ética e da ancestralidade” – os demais sequer a apontaram. Questionados sobre os elementos e os rituais “religiosos”, os alunos indicaram o altar e a queima de incenso.483 Não souberam explicar, porém, seu significado de acordo com a religiosidade chinesa.

483

Elementos centrais no ambiente de prática e, sem dúvida, mais próximos da “representação religiosa média” dos ambientes marciais orientais. Afinal, que filme de artes marciais – em especiais os recentes, estrelados por atores não-orientais – não possui uma cena em que o protagonista aparece queimando incenso e meditando em uma ermida, diante de uma katana (espada samurai) ou próximo de um altar? Essa lente tem por fulcro o olhar nipônico da marcialidade. 189

- Os entrevistados brasileiros relacionaram a prática marcial a fatores como “tranqüilidade” e “equilíbrio”. Essa relação mostra, de certa forma, uma “percepção do sagrado” na arte marcial. Esse “sagrado”, porém, parece estar ligado ao chamado “foco nipônico” que permeia a visão ocidental acerca de todas as expressões marciais do Extremo Oriente. Parece estar ligado, também, a um poderoso fator de caráter simbólicopsicológico: o da “reserva voluntária de tempo” para uma prática física que, além de combater o estresse, também conecta o indivíduo a elementos de grande valor simbólico, como o combate individual e armas antigas (como a espada),484 bem como a outros indivíduos que possuem interesses semelhantes. - Os entrevistados brasileiros (principalmente os de quarta geração) mostraram uma visão bastante específica a respeito da própria genealogia marcial. Ao invés de valorizar mestres mais antigos, preferiram concentrar a própria história marcial na figura de seu “mestre” e, quando muito, na do mestre deste. Essa configuração demonstrou afastamento, inclusive, em relação ao mestre chinês de primeira geração, citado com respeito, mas, ao mesmo tempo, de forma impessoal e “distante”. Esse dado mostra que, em termos genealógicos, a arte marcial chinesa está adquirindo um perfil cada vez mais brasileiro, desligado tanto de mestres originários quanto de valores chineses tradicionais. - Os entrevistados disseram não possuir qualquer tipo de conflito em relação à sociedade em função da prática do Kung-Fu. Ao contrário, a prática marcial é vista pelas pessoas “de fora” como positiva, já que pressupõe, em relação ao praticante, valores como seriedade, dedicação, serenidade e habilidades marciais.

484

Sobre o simbolismo da luta, ver CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, op. cit., p. 355-356; sobre o da espada, ver, na mesma obra, p. 236 a 239. 190

8. CONCLUSÃO Monges boxeadores, técnicas secretas, dragões coleantes e ermidas taoístas em meio ao ritmo entrópico das grandes cidades brasileiras. Em pouco mais de quatro décadas, a arte marcial chinesa conquistou uma parcela importante do público brasileiro afeito às proezas dos artistas marciais. Tomando por base uma referência de caráter histórico, constatamos que esse é um período de tempo ínfimo, mesmo levando-se em conta a “aceleração dos relógios” motivada pelo desenvolvimento tecnológico-científico e pelo maior contato entre as culturas: basta pensar, por exemplo, que a moderna marcialidade chinesa, caracterizada pela sistematização de boa parte dos estilos praticados atualmente (como os da família Shaolin, Hsing I, Tai-Chi e Pa Kua), tem quase a mesma idade do Brasil. O mesmo vale para a consolidação, entre os habitantes do “Celeste Império”, da imagem dos monges budistas de Shaolin como “guerreiros invencíveis”: enquanto os clérigos de Henan submetiam piratas a golpes de bastão em rios e canais da China Central, em meados do século XVI, portugueses, espanhóis e franceses mal “arranhavam” a costa brasileira. Pois, em apenas 40 anos, o Brasil assimilou cinco séculos de arte marcial organizada em estilos e pelo menos 35 séculos de movimentações guerreiras chinesas, dos bronzes de Shang à genial doutrina militar de Sun Tzu, da fusão médico-mágica budo-taoísta de Hua To à efervescência das tríades e dos boxers. Isso, sem ter recebido um número significativo de imigrantes chineses ou de mestres de Kung-Fu originários daquele país. Diante de tais observações, estabelecemos as nossas hipóteses de trabalho. Neste capítulo final, depois de uma “jornada de mil li”,485 pretendemos respondê-las e – para usar a linguagem figurada do capítulo 6 - “chegar ao filhote do tigre”.486 Antes de chegar à análise teórica pura – que tomará por base a teoria de Martin Baumann acerca da transplantação religiosa, bem como conceitos de Peter Berger e Thomas Luckmann sobre a “realidade não-padrão” e a formação de subuniversos -, faz-se necessário explicar o caminho que adotamos para conferir objetividade à etapa final do trabalho. A partir das conclusões de corte teórico-bibliográfico e empírico é possível emitir pareceres às seis hipóteses “particulares” estabelecidas na introdução desta dissertação: 485

Referência ao ditado chinês “Uma jornada de mil li começa pelo primeiro passo”. Um li ( ) equivale a 500 metros. Inf. cf. (c. 26.07.2004).

191

1. “A prevalência de uma tradição oral centrada no valor atribuído à informação do ‘mestre’ (chinês ou brasileiro), a ausência de obras acadêmicas sobre arte marcial chinesa, a obtenção empírica de conhecimentos e, principalmente, a forte presença de conteúdos não-corporais sobre Kung-Fu em produtos da indústria cultural (a partir dos anos 70), implicaram na formação de um universo semântico não-corporal sui generis, moderno e de fulcro transcultural.” O Kung-Fu brasileiro – visto em sua totalidade ou, especificamente, em relação ao estilo Shaolin do Norte – foi formado a partir da fusão de valores tradicionais chineses (a arte marcial chinesa como produto nacional) e de valores transculturais (a arte marcial chinesa como produto não adstrito às fronteiras nacionais). Enquanto os elementos corporais (no caso do Shaolin do Norte) foram plasmados a partir de informações tradicionais chinesas, os de natureza não-corporal receberam sua principal influência da senda transcultural, calcada, sobretudo, em produtos da indústria do entretenimento e em leituras locais do Kung-Fu. Nesse contexto, a tradição oral é tomada com respeito, mas complementada por informações de várias fontes. Assim, a primeira hipótese geral se confirma, uma vez que, de fato, o subuniverso semântico de natureza não-corporal do Kung-Fu é moderno e de fulcro transcultural. 2. “A dificuldade de acesso a informações originárias da China, assim como de entendimento dos dados culturais daquele país, levaram os praticantes locais a buscar informações ‘extra-academia’ - em livros, revistas, filmes e internet. Tais informações teriam por fim sacramentar as atividades desenvolvidas nas academias como arte marcial ‘de fato’, ou seja, como prática de agressão transformada em ‘caminho de vida’ por meio da inserção de fatores éticos e de caráter legitimador.” A presença de um número relativamente expressivo de publicações populares, assim como de sites brasileiros relacionados ao Kung-Fu, permite afirmar que a busca dos praticantes locais por informações “extra-academia” é significativa. Não se pode afirmar, porém, que essa busca tenha por fim garantir ao Kung-Fu um aspecto de arte marcial de corte transcendental, uma vez que, como as entrevistas com os alunos e professores revelaram, não há grande interesse pelos aspectos religiosos ou filosóficos de sua prática. 486

Ver abertura do cap. 6. 192

As “informações extra-academia” se referem, fundamentalmente, a aspectos gerais da arte marcial, tendo por fim, muitas vezes, o compartilhamento de impressões a seu respeito. Dessa forma, não se pode afirmar que a segunda hipótese esteja totalmente confirmada: em relação à busca extra-academia por informações, sim; em relação à finalidade “legitimadora” da busca, não. 3. “As diferenças culturais existentes entre os mestres chineses que chegaram ao Brasil e os praticantes brasileiros (a começar pelo idioma) teriam criado uma ‘barreira semântica’ que dificultou a transmissão de valores religiosos e ético-filosóficos que, originalmente, formavam o ‘substrato espiritual’ do Kung-Fu.” Essa hipótese é confirmada pelas entrevistas com os mestres chineses. Como vimos nas entrevistas, eles têm dificuldade de expressar valores religiosos e ético-filosóficos; não apenas por conta de um problema de domínio do idioma, mas, também, pelo fato de que muitas das suas percepções foram calcadas em uma “visão chinesa de mundo” e em uma religiosidade de corte popular que é de difícil expressão em termos racionais (trata-se de uma religiosidade do sentir). Vale observar que a transmissão de conteúdos corporais – técnicas e rotinas – não constitui problema, se colocando, mesmo, como fulcro da prática marcial chinesa tradicional no Brasil. 4. “A ausência de uma colônia chinesa numericamente expressiva no Brasil e a falta de interesse dos próprios chineses em conhecer a arte marcial de seu país de origem implicaram em um ‘esvaziamento étnico’ no Kung-Fu brasileiro. Esse esvaziamento teve como principal conseqüência uma apropriação, por parte da população local, da arte marcial chinesa, com conseqüências diretas para seus conteúdos não-corporais.” A quarta hipótese é confirmada por dados da pesquisa teórico-bibliográfica e, também, por observações de caráter empírico. É possível afirmar que a arte marcial chinesa sofreu um processo de “esvaziamento étnico” no Brasil. O primeiro elemento a considerar é a inexistência de uma colônia chinesa expressiva, em termos numéricos, no Brasil. Em segundo lugar, é preciso observar que, por uma série de fatores, grande parte dos chineses que emigraram para o Brasil não manifesta interesse pela prática do Kung-Fu: a presença de chineses é pequena, mesmo nas academias de cidades onde há colônias, como São Paulo e Curitiba; nos locais onde não há chineses, evidentemente, não há

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praticantes chineses de Kung-Fu – mas há academias. A inexistência de tensão étnica, que forçaria os praticantes brasileiros a lutar pela própria legitimação dentro do subuniverso do Kung-Fu, facilitou o processo de valoração/ressignificação dos conteúdos não-corporais presentes na arte marcial chinesa. Nesse contexto, a presença de mestres chineses não parece ter grande peso – eles são, sem dúvida, “guardiães da ortodoxia corporal”, ou seja, prestam muita atenção à forma como seus alunos apreendem e replicam as técnicas e rotinas ensinadas. Em relação aos conteúdos não-corporais, esbarram nos elementos relacionados na hipótese anterior. 5. ”Práticas rituais e ícones chineses associados originalmente à religiosidade no Kung-Fu foram esvaziados de seu sentido original e convertidos em símbolos de caráter ‘cenográfico’, ou seja, de representação do universo marcial. Segundo essa visão, uma estátua do espírito tutelar Kuan Kung, por exemplo, perderia seu caráter devocional e passaria à condição exclusiva de peça necessária à legitimação do ambiente marcial.” Essa hipótese é confirmada, principalmente no caso dos alunos brasileiros, que demonstraram profundo desconhecimento acerca dos elementos iconográficos de viés religioso presentes em suas academias. Os elementos “religiosos” que mais chamaram a atenção desses alunos foram o altar – que ocupa uma posição central, muito visível, na área de treinamento –, o cumprimento (visto como “altamente ético”) e a queima de incenso. Eles não souberam, porém, explicar em termos precisos seu significado. Em relação a essa hipótese é preciso reafirmar o que foi observado anteriormente no que respeita à transmissão, pelos mestres originários, de conteúdos não-corporais. Pudemos comprovar que o subuniverso do Shaolin do Norte é muito rico em elementos de cunho religioso relacionados às três religiões que floresceram na China. No entanto, esses elementos não são transmitidos – a não ser, muitas vezes, em termos meramente cenográficos – pelos mestres. Às dificuldades de cunho lingüístico e semântico somam-se outras duas: uma, relativa ao interesse dos alunos pelas “religiões do Kung-Fu”, que reflete sua atitude pessoal em relação à própria religião (de respeito e distanciamento); a outra, relativa à espera dos mestres pelos questionamentos: se os alunos não questionam, é porque o tema não lhes causa incômodo – como esse tema não tem sua transmissão estabelecida como parte da formação do aluno, por que se manifestar?

194

6. “A visão do Kung-Fu como atividade desligada de conteúdos que não os de caráter puramente marcial ou de condicionamento físico fez com que os praticantes não investigassem e nem se interessassem pelos elementos religiosos, promovendo uma desvalorização dos mesmos no universo da arte marcial.” Essa hipótese é parcialmente confirmada com base nas respostas anteriores. Se os professores brasileiros foram às academias movidos pelas técnicas mortais e pelas atitudes éticas e espirituais de figuras como Bruce Lee e Kwai Chang Caine, o mesmo não se verifica em relação a seus alunos (principalmente os mais jovens), que viveram um período posterior ao do “boom Kung-Fu”. Não se pode afirmar, porém, que os entrevistados de quarta geração considerem o Kung-Fu como prática desligada de um conjunto razoável de conteúdos não-corporais: apesar de não manifestarem o mesmo interesse de seus professores, eles não o tomam, certamente, por uma atividade como a ginástica aeróbica ou a musculação (a longevidade na prática e o respeito devotado ao professor parecem demonstrar isso). Estabelecidas as considerações relativas às hipóteses “particulares”, podemos partir para a verificação da hipótese “geral” ou “fundamental”, aplicando o construto teórico por nós estabelecido para esta pesquisa: “O Kung-Fu praticado no Brasil teve seu universo semântico não-corporal condicionado por fatores que implicaram em uma valoração e em um entendimento particulares, por parte dos praticantes locais, dos elementos da religiosidade chinesa associados à prática marcial original.” Com base nas respostas às hipóteses particulares, afirmamos que a hipótese “geral” ou “fundamental” é plenamente confirmada. O Kung-Fu brasileiro, de fato, teve seu universo semântico não-corporal condicionado por fatores muito específicos. Iniciamos nossa análise definitiva a partir de um construto teórico empregado, inicialmente, no âmbito dos estudos da religião.487 No artigo “O Budismo no Brasil – um

487

O Kung-Fu, como afirmamos anteriormente, não é uma religião, mas uma prática que relaciona uma série de dados da cultura chinesa – entre eles, alguns de natureza religiosa. Ainda assim, cremos na validade da aplicação do constructo à nossa pesquisa. 195

resumo sistemático”,488 Frank Usarski aponta três linhas principais nas quais estão incluídas as formas de Budismo encontradas no Brasil: são as do “Budismo de Imigração”, do “Budismo de Conversão de ‘primeira geração’” e do “Budismo de Conversão de ‘segunda geração’”. Dentre as características do modelo “de Imigração”,489 uma cabe à análise da transplantação do Kung-Fu ao Brasil: é a que se refere ao caráter étnico da prática religiosa (no nosso caso, da prática cultural); nesse modelo, a prática surge fortemente relacionada à questão da identidade étnica e cultural. Ela se destina, fundamentalmente, à comunidade que a transplantou, funcionando como elemento de coesão grupal e de “esteio psicológico” face ao desafio de enfrentar a vida em um ambiente cultural potencialmente hostil. Como tal, não possui caráter inclusivo, mas de tensão em relação aos elementos “de fora” que buscam fazer uma aproximação. Diante da dinâmica da sociedade brasileira, parece fadado a desaparecer, tanto em função do falecimento de seus propugnadores quanto pela não-replicação dos valores iniciais por seus descendentes. Como os dados de nossa pesquisa revelaram, o Kung-Fu brasileiro não se configura como “prática cultural de imigração”. Foi trazido por chineses e, em tese, poderia ter se configurado como elemento relevante para a identidade étnica ou à coesão grupal.490 Os sino-brasileiros, porém, nunca lhe deram grande atenção: apesar de viverem em grupos relativamente fechados – ou seja, caracterizados por um forte fator étnico, centrado principalmente na língua e em hábitos domésticos – não o mantiveram “escondido em sua própria cidadela”; pelo contrário, parecem não tê-lo reconhecido como produto de sua cultura. Diante disso, os mestres originários interessados em propagar sua arte se voltaram ao público local, que a ela aderiu com entusiasmo. Este é o primeiro fator de constituição do “Kung-Fu à Brasileira”: por não ter sido tomado pelos imigrantes chineses como fator de identidade étnica, chegou aos brasileiros como uma espécie de “res derelicta”, ou seja, como um produto cultural 488

USARSKI, “O Budismo no Brasil – um resumo sistemático”, in “O Budismo no Brasil”, op. cit., p. 9 a 33. O autor aponta três características, a saber: a) – fusão do Budismo com o culto dos ancestrais; b) – ênfase na devoção e na recitação segundo a tradição nos moldes do Amida-Budismo; e c) – a prática de abrangência familiar. 490 Mesmo porque, na China, há uma forte tradição folclórica, literária e mesmo política ligada à prática marcial. 489

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abandonado pelo conjunto de seus possuidores originais, que, por conta disso, foi livremente apropriado pela população não-chinesa.491 Pode-se afirmar, porém, que o Kung-Fu brasileiro se enquadra na categoria de “prática cultural de conversão”? Sem dúvida, uma vez que seu crescimento no país foi condicionado pelo interesse dos brasileiros pela prática marcial chinesa. Em relação à linha de “conversão de primeira geração” do Budismo, que se caracteriza pela intelectualidade de seus representantes, podemos afirmar, tranqüilamente, que tal característica não foi encontrada: os primeiros praticantes brasileiros, que se iniciaram na arte marcial chinesa em meados dos anos 70, foram movidos pelo excepcional valor atribuído ao Kung-Fu pela indústria cultural. Eram, em sua maioria, adolescentes, certamente mais afeitos aos sonhos próprios da idade e menos aos livros.492 Em relação à linha de “conversão de segunda geração” do Budismo, que se caracteriza pela diversidade racial, dispersão geográfica e heterogeneidade, pode-se afirmar que essa característica compõe, de forma cada vez mais intensa, o quadro local da arte marcial: Chan Kowk Wai informou ter graduado cerca de 90 professores no Brasil, em sua grande maioria não-chineses; esses professores, por sua vez, estão formando outros professores em várias partes do país, que transmitem não só os conteúdos tradicionais (corporais), como, também, os originados de seu próprio entendimento do Kung-Fu (nãocorporais, dentre os quais os religiosos). Essa “dinâmica de transformação“ de conteúdos não-corporais caracteriza, sem dúvida, algo semelhante ao que Usarski define como heterogeneidade. A expressão mais radical dessa dinâmica pode ser observada em relação aos professores brasileiros que, literalmente, criam estilos de Kung-Fu (os chamados “piratas”). Este é o segundo fator de constituição do “Kung-Fu à Brasileira”: ele se caracteriza por uma abordagem não-intelectual, inclusiva e dinâmica em relação aos conteúdos não-corporais. Também se caracteriza por sua relativa proximidade de uma “ortodoxia corporal” (elemento mais “vigiado” pelos mestres chineses) e pelo

491

A expressão latina “res derelicta”, empregada no campo jurídico, se refere à coisa (res) abandonada (derelicta). Nosso uso, apesar de figurado, não foge ao significado original da expressão. 492 Vale observar que os dois professores brasileiros entrevistados, que começaram a treinar em pleno “boom Kung-Fu”, não cursaram o terceiro grau. Ao invés disso, preferiram se dedicar ao aprofundamento nos conhecimentos marciais. 197

afastamento dos elementos não-corporais. A formação de novas gerações de professores brasileiros (quarta, quinta e até sexta gerações em relação ao mestre originário), porém, tende a fazer com que até os mesmo conteúdos corporais sejam reinterpretados e reformulados. Em um estudo também relacionado ao Budismo,493 Martin Baumann observou que a disseminação dessa religião em todo o mundo no século XXI é facilitada, sobretudo, por uma “intensidade de comunicações desconhecida anteriormente.”494 O mesmo é verificado em relação ao Kung-Fu, tanto em termos de contato remoto (pela internet, por exemplo), quanto de contato direto (atualmente, praticantes de todo o país e até do Exterior seguem para a Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu para “revisar katis” ou, então, para aprender novas rotinas com Chan Kowk Wai; os mais ricos, inclusive, podem viajar até o mosteiro de Shaolin para fazer turismo). Este é o terceiro fator de constituição do “Kung-Fu à Brasileira”: ele se submete, de forma radical, à modernidade. Ao mesmo tempo em que ela facilita o contato com fontes originais, também abre caminho para a disseminação e assimilação, em larga escala, de entendimentos pessoais e, até mesmo, de novos dados. Isso é verificado, por exemplo, no intenso compartilhamento de informações nãoreferenciadas sobre Kung-Fu na internet (que torna praticamente impossível a determinação da fonte). Em outra obra relacionada ao mesmo tema,495 Baumann enumera as cinco fases que, de acordo com sua interpretação, contemplam a transplantação do Budismo para o Ocidente. Vamos fazer uso desse construto para analisar a chegada do Kung-Fu ao Brasil e, desta forma, reforçar nossa conclusão acerca da hipótese geral de trabalho. Segundo ele, o Budismo (para nós, o Kung-Fu) se estabeleceu a partir dos seguintes momentos: Contato – A primeira fase é caracterizada pela chegada de uma tradição religiosa estrangeira (em nosso caso, de um conjunto semântico de caráter marcial estrangeiro) em uma nova cultura. Segundo Baumann, ela pode se dar por meio de indivíduos, grupos ou, 493

BAUMANN, M., “A Difusão Global do Budismo”, in “O Budismo no Brasil”, op. cit., p.35 a 71. Ibid., p. 36. 495 BAUMANN, M., “The Transplantation of Buddhism to Germany: Processive modes and strategies of adaptation”, art. publ. in Method & Theory in the Study of Religion”, 6/1, 1994, p. 35-61. 494

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de forma impessoal, por meio de textos e escrituras. No caso do Kung-Fu brasileiro, essa primeira fase se deu de forma sui generis: tratou-se, sem dúvida, de um contato “de dupla origem” ou, para usar um termo que estabelecemos ao longo do trabalho, de uma “transplantação cruzada”. Ao mesmo tempo em que, nos anos 60, chegavam os mestres originários (o equivalente aos “indivíduos religiosos” ou “missionários”), a indústria cultural configurava um movimento de aproximação em relação à arte marcial chinesa (o equivalente moderno aos “textos e escrituras”) que viria a desembocar no movimento que denominamos boom Kung-Fu. Enquanto os poucos mestres traziam informações de caráter corporal aos brasileiros (como já vimos, algumas barreiras impediram a transmissão de conteúdos nãocorporais, dentre os quais os relativos às religiões chinesas), a indústria cultural, por meio da configuração de um “herói de Kung-Fu”, estabelecia um modelo que viria a influenciar profundamente a primeira geração de praticantes. Vale observar que essa configuração se deu a partir de uma lente “ocidentalizante”, baseada em valores melhor compreendidos pelas massas e, também, no “olhar nipônico” para as artes marciais (como “caminho para a transcendência”). Essa construção “ortodoxo-heterodoxa” se mantêm até hoje. Em nossa avaliação, ela é o elemento fundamental de caracterização do “Kung-Fu à Brasileira”. Ao se somar uma tradição corporal original a elementos não-corporais “híbridos”, criouse um produto caracterizado por uma dinâmica fantástica, em que a ortodoxia legitima a ressignificação e, esta, por sua vez, facilita a penetração daquela na sociedade-palco da transplantação. Confrontação e Conflito – A segunda fase do construto de Baumann se refere uma espécie de “reação corporal” da sociedade-palco da transplantação religiosa ao “corpo religioso estranho”. No caso do Kung-Fu, como vimos, essa fase não se configurou, mesmo porque seu ingresso não provocou qualquer tipo de conflito (é possível, porém, que certas mães tenham ficado preocupadas com os filhos que “matavam aula” para treinar; este “efeito”, porém, nos parece desprezível: até onde sabemos, ninguém “se desviou do caminho” por gostar de Bruce Lee e de freqüentar academias...). A bem da verdade, a sociedade brasileira, há muito invadida por produtos culturais norteamericanos (filmes, músicas e seriados de TV) não teria como rechaçar “enlatados”

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importados dos Estados Unidos e vendidos como “grandes atrações” pelos grupos locais de difusão da cultura de massa (o seriado “Kung-Fu”, por exemplo, era apresentado pela Rede Globo em horário nobre). A ausência de uma variável étnica também favoreceu o processo: como os chineses não atribuíam muita importância à sua arte marcial, não havia a quem confrontar. A ausência de conflito consolidou a presença do Kung-Fu no Brasil. Por suas características positivas, pode-se afirmar, mesmo, que a prática do Kung-Fu foi incentivada pela sociedade na primeira metade dos anos 70. Ambigüidade e Adaptação – A terceira fase trata do aprofundamento do contato entre a religião transplantada e a sociedade que a recebeu. Segundo Baumann, mal-entendidos e interpretações errôneas são absolutamente comuns. “Para integrantes da cultura hospedeira é possível apenas interpretar e compreender símbolos, rituais ou idéias da tradição religiosa transplantada a partir de suas próprias concepções. As bases da religião transplantada compartilham problemas similares de compreensão a respeito da nova cultura e sociedade.”496 Essa fase nos parece presente dentro do Kung-Fu brasileiro. Ao analisarmos o caso do Shaolin do Norte, pudemos verificar os dois elementos apontados por Baumann: confrontados com questões a respeito da iconografia religiosa nas academias, os praticantes brasileiros forneceram informações desprovidas de conteúdo; em alguns casos, demonstraram, mesmo, “cegueira” em relação a tais elementos, que foram reduzidos a uma finalidade cenográfica nem sempre valorizada. Os mestres originários, por sua vez, se esquivam das respostas a eventuais questionamentos sobre elementos não corporais, optando por delegar as respostas ou, então, a silenciar até que um aluno mais curioso chegue e pergunte. A adaptação, portanto, se dá por uma “cegueira implícita” dos sujeitos da relação. Quando precisam de informações sobre sua arte marcial, os alunos buscam fontes externas não-referenciadas ou, então, chegam a conclusões por conta própria ou no contato com outros praticantes. Essas aquisições semânticas heterodoxas vão, literalmente, “tapar os buracos” do universo não-corporal do Kung-Fu, vindo a se converter em uma “milenar tradição nascida ontem à noite, depois da ‘Sessão Faixa-Preta’”. 496

BAUMANN, M., “The Transplantation…”, op. cit., p. 41. 200

Recuperação – A quarta fase diz respeito a um movimento caracterizado pela análise da prática religiosa no ambiente de transplantação a partir de um olhar para o ponto de partida da tradição transplantada, sua cultura de origem. Como vimos, o Kung-Fu é um produto de “dupla paternidade” no Brasil: se, por um lado, esse movimento de recuperação pode ser visto nos alunos de outros Estados que vão a São Paulo a fim de “repassar e corrigir rotinas”, por outro ele é um produto transcultural (em seus aspectos não-corporais), que, por ter deixado a China há muito tempo, não demanda de qualquer comparação. Acreditamos que a fase de recuperação dos conteúdos não-corporais estaria caracterizada se houvesse um número mais expressivo de obras acadêmicas (críticas) sobre Kung-Fu. Elas, porém, praticamente inexistem em nosso país. No Brasil, o movimento de recuperação se refere, quando muito, ao retorno de alunos à fonte original (Chan Kowk Wai) para corrigir ou aprender novas rotinas. Mantém-se, então, a ortodoxia; por outro lado, não há um movimento de recuperação dos conteúdos não-corporais do Kung-Fu, que pertencem a um conjunto semântico transcultural. Auto-Desenvolvimento Inovador – A fase final apontada por Baumann se refere a uma aquisição completa da religião transplantada pela sociedade-solo da transplantação. Essa fase se caracteriza por uma afirmação cada vez maior dos “novos religiosos”, que reinterpretam e “reescrevem” a religião; esse movimento normalmente produz atritos e confrontações com os “guardiães da tradição” e pode implicar em cisões e na criação de novas organizações. No caso do Kung-Fu, ele só poderia ser identificado em situações de confrontação professor-aluno referentes ao entendimento de técnicas corporais. A competição entre duas gerações de professores (o que graduou e o graduado) por alunos – situação mais comum - também pode implicar em rupturas sérias. Aparentemente, inclusive, ela esteve presente na configuração de estilos tradicionais na própria China em tempos passados. A ausência de um objeto de discussão relacionado a elementos não-corporais no Kung-Fu brasileiro é determinante para a ausência de cisões dentro dos estilos. Essa possibilidade existe quando se refere ao entendimento de técnicas corporais

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e, de modo mais sério, quando da competição por alunos em uma mesma base geográfica. Antes de chegar a um diagnóstico a respeito do futuro do Kung-Fu no Brasil a partir do entendimento de seus conteúdos não-corporais, julgamos necessário reforçar o aspecto de não-tensão entre o subuniverso da arte marcial chinesa e a chamada “realidadepadrão”. Essa não-tensão é fundamental para a dinâmica de transformações no Kung-Fu brasileiro. Por não estar “encapsulado” dentro da realidade-padrão por uma ortodoxia ou por elementos desafiadores do statu quo, os praticantes da arte marcial chinesa podem trocar informações e tomar referências da sociedade em que seu subuniverso se insere. Para isso, vamos nos valer de conceitos estabelecidos por Peter Berger e Thomas Luckmann na obra “A Construção Social da Realidade”.497 Os conceitos de “subuniverso” e de “realidade-padrão” são fundamentais para a compreensão da relação entre a comunidade de praticantes de Kung-Fu e a sociedade brasileira. De acordo com os dois autores, pode-se entender subuniverso como um segmento do mundo social objetivado por um conhecimento específico, que pode ser replicado. Tomado como verdade objetiva no curso da socialização, esse conhecimento se interioriza como realidade subjetiva que não molda apenas um indivíduo, mas um grupo de indivíduos que ingressam em uma realidade diversa da realidade comum a toda a sociedade. Por esta definição, é possível afirmar que os praticantes de Kung-Fu – do Shaolin do Norte ou de qualquer outro estilo – se inserem em um subuniverso. Esse subuniverso, por sua vez, é subdividido em segmentos específicos, que guardam relação com técnicas corporais e genealogias diferentes. Mesmo assim eles se comunicam e, segundo um determinado prisma, voltam a se constituir em um único subuniverso – essa unificação se dá por meio dos chamados “dados gerais de Kung-Fu”, que implicam, por exemplo, no compartilhamento de textos por sites de praticantes de estilos distintos. Como foi observado ao longo do trabalho, os praticantes de Kung-Fu não estabelecem qualquer forma de tensão em relação à sociedade em que vivem. Desempenham papéis, como observam Berger & Luckmann, tanto em seu subuniverso – por exemplo, executando rotinas, usando roupas específicas e se referindo a termos desconhecidos por não-praticantes – quanto no grande universo da institucionalização social. A inflexão se 497

BERGER, P, & LUCKMANN, T., “A Construção Social…”, op. cit. 202

dá nos vestiários, na passagem da roupa “civil” para a marcial e, no final da aula, desta para aquela. Poderia haver conflito se, por exemplo, os praticantes saíssem das academias vestindo “fardões de Kung-Fu”; ele seria quase certo se, além da roupa, eles saíssem à rua portando facões, espadas ou lanças; seria certo se, para resolver seus problemas, apelassem para o uso das mortais técnicas da arte marcial chinesa. Essas situações, porém, não costumam acontecer e, portanto, não geram controvérsia.498 Os autores entendem por realidade-padrão (ou realidade da vida cotidiana) aquela que se caracteriza por ser predominante, que é tomada pelos membros ordinários da sociedade como uma realidade certa, à qual não cabem reproches. Essa realidade se origina nos próprios indivíduos, na vasta teia de relacionamentos que implica na instituição de regras de conduta social que, ao longo do tempo, se consolidam e acabam por se tornar “invisíveis” por conta de sua tamanha “normalidade”. O que dizer da realidade-padrão face ao subuniverso do Kung-Fu? Mais uma vez, aqui, podemos usar um exemplo prosaico: o das mães de praticantes adolescentes de Kung-Fu. Muitas delas, apesar de pouco conhecerem a respeito do vestuário chinês, produzem os “coletes e túnicas típicas” usados por seus filhos nas aulas e, principalmente, nas competições. De modo geral, os donos de academias não protestam contra esses uniformes – desde que, por baixo deles, os alunos estejam usando a camiseta “institucional” da academia (que não é apenas um símbolo subuniversal, mas também uma fonte de renda das academias). Diante do que foi observado nos dois últimos parágrafos, o que dizer da relação entre realidade-padrão e subuniverso de Kung-Fu? Inicialmente, que há um subuniverso formado pelos amantes das velhas práticas guerreiras chinesas; por outro, que ele se relaciona absolutamente bem com a realidade-padrão, mesmo porque seus integrantes normalmente sabem diferenciar os espaços de adoção de papéis (eu não treino de terno e não trabalho com uma espada chinesa na cintura). Essa convivência também se dá sob a forma de troca de conteúdos: é possível levar algumas práticas da academia para o cotidiano (é o que ocorre, por exemplo, com a popularização do Tai-Chi-Chuan) e algumas prática do cotidiano (ou de outros subuniversos) para as academias (como o uso de relógios para marcar o tempo das aulas ou de tênis para a prática marcial). Nos termos 498

Um exemplo de conflito entre subuniverso marcial e realidade-padrão foi visto na década de 90, a partir da afirmação dos chamados Bad Boys do Jiu-Jitsu brasileiro. Alguns dos praticantes cariocas se envolveram em brigas e agressões em bares e boates, o que mobilizou a polícia e produziu uma imagem negativa de sua prática marcial junto à sociedade. 203

da nossa hipótese geral, podemos afirmar que essa relação “de alta permeabilidade” fortalece a afirmação de que o Kung-Fu praticado no Brasil teve seu universo semântico não corporal condicionado por fatores externos. Um bom exemplo disso é a relação que os praticantes entrevistados mantém com os elementos religiosos tradicionais encontrados no Shaolin do Norte. A postura de “respeito e afastamento” apenas reflete uma relação estabelecida entre o indivíduo e sua religião no contexto da realidadepadrão. E qual o futuro do Kung-Fu praticado no Brasil? Diante dos dados de pesquisa, podemos afirmar que ele tende, cada vez mais, a se abrasileirar. Esse processo vai se dar pela difusão cada vez maior de “conteúdos tradicionais produzidos ontem”, pelo afastamento entre as novas gerações de praticantes e os mestres originários e pelo desaparecimento das informações originais a respeito dos conteúdos religiosos chineses presentes nas academias. Assim, os ideogramas que antes representavam, por exemplo, as “Seis Harmonias” (Lho Hã), perderão seu significado esotérico e vão adquirir um caráter de mero identificador de um cenário subuniversal. Esse processo já é visível e há de se consolidar quando os mestres originários desaparecerem. Por fim, pensamos que é possível afirmar que a “tropicalização do Kung-Fu” vai alcançar até mesmo as técnicas corporais. Esse processo, mais lento, tende a ocorrer por conta da grande dispersão geográfica da prática marcial e, também, pela replicação de entendimentos pessoais acerca das técnicas que compõem a arte marcial chinesa.

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Em nossa relação de referências buscamos estabelecer uma divisão que permitisse ao leitor vilsumbrar com clareza a origem das fontes de consulta. Assim, elas foram divididas em “acadêmicas”, “de representação” (produzidas - por exemplo, por praticantes de Kung-Fu - sem fundamentação acadêmica) e “ferramentas e softwares de apoio”. A ordem de colocação do tipo de fonte (livros, artigos, etc.) buscou seguir um critério de importância para a produção da dissertação. 205

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TÚNICA IMPERIAL, informações em (c. 05.06.2004) ________________, informações em (c. 26.06.2004). VAIROCANA, informações sobre em
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