Sharon Needles como tensionamento disciplinar: Uma análise de RuPaul\'s Drag Race a partir da ótica de Michel Foucault

May 28, 2017 | Autor: Lívia Pereira | Categoria: Pop Culture, Michel Foucault, Drag Queens, RuPaul's Drag Race
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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Sharon Needles como tensionamento disciplinar: Uma análise de RuPaul's Drag Race a partir da ótica de Michel Foucault 1 Lívia PEREIRA2 / Maddie Killa Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB Thiago SOARES3 Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE

Resumo A partir de um debate em torno dos sistemas disciplinadores e do corpo dócil propostos por Michel Foucault (2014), este paper debate o reality show “Ru Paul's Drag Race” (2009, Logo TV) como um sistema disciplinante dentro da cultura drag. Postula-se que o formato do programa consagra determinadas formas culturais hegemônicas dentro da cultura drag, sem também apontar contradições dentro destas identidades. Verticalizamos o debate ao analisarmos a performance da drag Sharon Needles, que a partir de um conjunto de referências performáticas e tensivas (nazismo, black face) politiza seu corpo e aciona uma reflexão em torno dos acionamentos de rupturas nos sistemas disciplinares. Palavras-chave: RuPaul’s Drag Race; corpos dóceis; drag queen; cultura pop; Michel Foucault.

Disciplinar é o ato de controlar, instruir e moldar algo ou alguém, geralmente ligado a moral e costumes. No campo militar, a disciplina é a observância do cumprimento das regras e ordenamentos da profissão. O que torna um soldado um bom soldado é o quão adestrado seu corpo está dentro do sistema, o quão “dócil” ele é às instâncias superiores. Ser um soldado, entretanto, só era considerado natural ou orgânico até meados do século XVIII, quando se torna algo fabricado (FOUCAULT, 2014); a disciplina se torna uma condição produzida e fabricada pela vigilância e, em caso de não obediência às regras, punição. Ainda militarmente falando, o soldado possui um tempo de adequação, onde é submetido a constantes provas para que, ao final do treinamento, seja útil ao sistema que está inserido e aproveitado. Caso contrário, é mais um corpo indisciplinar e descartável. Na tentativa de fazer um paralelo entre o sistema militar de fabricação de corpos úteis e a sociedade civil, buscamos neste artigo aporte teórico em Michel Foucault (2014), ao

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Trabalho apresentado na Divisão Temática de Estudos Interdisciplinares, da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2

Estudante de Graduação 8º. semestre do Curso de Jornalismo da UFPB, email: [email protected]

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Orientador do trabalho. Professor do Curso de Jornalismo da UFPE, email: [email protected] 1

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contar por meio de estudos historiográficos e documentais a história dos corpos, suas formas de dominação, adequação e punição para pensarmos um atrativo de entretenimento televisivo que, numa primeira hipótese desenhada neste trabalho, parece trabalhar sob a lógica da vigilância e punição em torno dos corpos disciplinados. O objeto de análise neste artigo, portanto, recai sobre “RuPaul’s Drag Race”, um reality show norte-americano que estreou em 2009 no canal de TV à cabo Logo TV. O programa seleciona artistas drag queen para competir pelo título da próxima “drag superstar” dos Estados Unidos. Durante as nove temporadas, o programa se manteve com a mesma fórmula: semanalmente, as competidoras participam de desafios orientadas por RuPaul, onde são testadas suas habilidades em canto, dança, costura, humor, talento e personalidade. Usualmente, a cada episódio uma drag é eliminada para, ao final da temporada, sobrar três participantes que compõe o “TOP 3” e irão à grande final do programa. Num primeiro olhar, podemos reconhecer que reality shows, em sentido amplo, parecem operacionalizar sob a égide da consagração e também da punição por determinadas condutas. Se verticalizarmos e observarmos mais atentamente “Ru Paul's Drags Race” observaremos singularidades desta narrativa que debateremos ao longo deste texto. Diante das dinâmicas sociais, percebemos que somos constantemente condicionados a nos portar de maneiras, de “ser algo” ou “existir” de alguma forma que se encaixe em padrões, lógicas performáticas que fazem parte de um quadro que Ervin Goffman já apontou como uma espécie de “invenção do eu na vida cotidiana”. Estes ditames performáticos conduzem ações sociais, que podem ser inclusivas ou excludentes, sugerindo normas e premissas que, a depender dos contextos e situações comunicacionais, revelam afastamentos e desvios de sujeitos dentro de aparatos sociais. Um dos campos de produção de saber e conhecimento corporal e performático mais evidente dentro das lógicas e normas sociais é a sexualidade. Historicamente a sexualidade foi sempre alvo de constante vigilância e repressão quando expressada de forma desviante às normas sociais. As punições não aparecem (sempre) de forma física, mas podem tornar o sujeito vigilante de suas próprias atitudes. Para Foucault (2014, p. 167), a disciplina se torna um poder que carece de três instrumentos: “o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.” Segundo o autor (2014, p. 135), o poder disciplinar produz corpos não apenas para que se faça o que se quer, “mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’.” Desta forma, os corpos dóceis são corpos que tiveram suas forças aumentadas (treinadas) para utilidades

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econômicas, mas ao mesmo tempo diminuídas nas questões políticas de obediência. Para Foucault os métodos disciplinares

permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidadeutilidade, são o que podemos chamar de disciplinas. [...] As disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. [...] Têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo. (FOUCAULT, 2014, p. 135)

O debate que aqui propomos se direciona para a reflexão em torno de um reality show televisivo que substancialmente agendou a “cultura drag” de maneira midiática, RuPaul’s Drag Race (LOGO TV, 2009). Num primeiro momento, debateremos a questão das identidades pós-modernas como atenuações de um discurso vigilante e, a partir de então, mais aberto para a diferença dentro de um contexto mais amplo e a produção de drag queens que são úteis (e higienizadas) para se tornarem produtos de consumo aceitáveis dentro da cultura pop mainstream4.

APONTAMENTOS SOBRE IDENTIDADES E GÊNERO NA PÓS-MODERNIDADE

Para entender como é possível larga audiência de um reality show sobre a drag queens no cenário da cultura atual, se faz necessário entender como se dá a (des)construção das identidades pós-modernas, a descentração do sujeito e sua fluidez entre gênero e sexualidade. Como aponta Hall (2006), com amparo em textos de Marx e Engels (1973), a principal diferença entre as sociedades “modernas” e as “tradicionais” são que as primeiras estão sempre em mudança constante e de forma rápida. Além disso, uma característica particular da modernidade é o que Hall chama de “forma altamente reflexiva de vida”, onde “as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações recebidas sobre estas mesmas práticas.” (GIDDENS, 1990, p. 38, tradução nossa) Essas transformações ocorridas no contexto social produz o sujeito pós-moderno, que já tendo vivido uma identidade estável, entra em colapso como consequência das mudanças “estruturais e institucionais” as quais Hall (2006) se refere. O sujeito cultural inscrito nessa 4

Para Martel (2012, p. 11), mainstream é “a produção de bens culturais criados sob a égide do capitalismo tardio e cognitivo que ocupa lugar de destaque dentro dos circuitos de consumo midiático”.

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nova realidade é, portanto, multifacetado “composto não só de uma única, mas de várias identidades” (HALL, 2006, p. 12). O teórico explica que isso se dá também porque à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2006, p. 13)

Ampliando as discussões de gênero e identidade na pós-modernidade, recaímos sobre o conceito de queer, especialmente no que diz respeito à teoria queer, como forma de oposição à heteronormatividade compulsória. A palavra queer pode ser traduzida como estranho, excêntrico, além de ter se tornado uma forma pejorativa de denominar os homossexuais. Entretanto, o termo foi assimilado e ressignificado por uma vertente dos movimentos homossexuais para “caracterizar sua perspectiva de oposição e contestação.” (LOURO, 2013, p. 39). A partir dos anos 1990, um grupo de intelectuais passou a utilizar o termo para designar seus trabalhos e o conjunto de produção teórica bastante diversificada, porém com bases similares. Seidman (1995), citado por Louro (2013), aponta que esses trabalhos se apoiam fortemente na “teoria pós-estruturalista francesa e na desconstrução como um método de crítica literária e social.” A teoria queer abre espaço para a discussão do que Butler (2016) chama de corpos abjetos, ou seja, sujeitos que escapam da norma. A premissa de que de um sexo biológico decorre um gênero e este, por sua vez, indica um desejo pode ser negada a qualquer momento. As normas que garantem essa sucessão necessitam, entretanto, de esforços constantes das instâncias de poder social e cultural, como as igrejas, leis, famílias, escolas e mídia para que não sejam subvertidas. A drag queen dentro da teoria queer desempenha esse papel de subverter, ultrapassar os limites de gênero e parodiar a ideia de um gênero original feminino (ou masculino, no caso de drag kings) dentro do sistema binário heteronormativo. O discurso da drag perturba o conceito do gênero como natural a determinados corpos, ele subverte as marcas do corpo que designariam um gênero e/ou sexo e expõe a natureza cultural de ambos. Como explica Louro (2013, p. 88),

a drag assume, explicitamente, que fabrica seu corpo; ela intervém, esconde, agrega, expõe. A drag propositalmente exagera os traços convencionais do feminino, exorbita e acentua marcas corporais, comportamentos, atitudes, vestimentas culturalmente identificadas como femininas.

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Dessa forma, a drag pode ser considerada como uma paródia de gênero. O poder crítico da paródia reside no fato de que essa apropriação dos códigos é capaz de nos fazer “repensar ou problematizar a ideia de originalidade ou de autenticidade” refletindo sobre seu caráter construído.

SER DRAG É POP: DRAG QUEENS E A CULTURA MIDIÁTICA

Para entender o papel que a presença das drag queens na cultura pop midiática tem dentro das tessituras das identidades pós-modernas de gêneros e sexualidade, primeiro é importante ressaltar o valor do que se entende como cultura pop hoje. O termo pop é a abreviação da palavra inglesa “popular” que designa produtos produzidos para serem populares, ou seja, para as culturas de massas, ou grande público, dentro da indústria da cultura. Nesse contexto, são consideradas “pop” produções cinematográficas, televisivas, musicais etc. Na língua portuguesa, entretanto, o termo adquire um significa para além do “popular midiático”, podendo ser usado quando nos referimos à cultura popular ligada ao folclórico (que em inglês, seria o folk) (SOARES, 2015). Neste texto vamos trabalhar a cultura pop com seu significado voltado para o consumo midiático, destacando seu “papel como cultura dinâmica, produtora de novos significados e de novas sociabilidades.” (CASTRO, 2015)

Pensado sob o prisma de produtos de alto alcance e, portanto populares midiáticos, o pop foi associado ao que “pipoca”, ao que não se consegue parar de mastigar, devido a “supostos” artifícios das indústrias culturais, uma cultura do bubble gum (chicletes) e da pop corn, guloseimas que se confundem com a fruição e o entretenimento pop. (JANOTTI, 2015)

Quando o reality show televisivo “RuPaul’s Drag Race” estreia, em 2009, ele passa a possibilitar e dar visibilidade a cultura drag, que passa então a habitar o cenário e imaginário da cultura pop midiática. RuPaul leva essa cultura, outrora escondida nas tessituras de uma cena cultural marginalizada nas boates e bares, para as massas, criando um novo público consumidor para as drag queens. Nesse contexto, a cultura midiática se apropria da drag queen como produto para satisfazer os desejos do sujeito pós-moderno que tem sua identidade de gênero descentralizada e fluida, abalada por inúmeros movimentos e revoluções socioculturais do século XX (HALL, 2006, p. 34-46). Passamos então a compreender a drag como um produto midiático a partir do momento que se torna agente dentro da cultura de entretenimento com 5

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orientações econômicas marcadas pela lógica do capital, retorno financeiro e do que Martel (2012) chama de mainstream. Como produto mainstream, a cultura drag potencializada e vendida pelo reality “RuPaul’s Drag Race” atinge os sujeitos já desconstruídos em suas identidades – sujeitos fluidos – que encontram na arte drag uma forma de exprimir suas vivências de gênero e sexualidades. A drag surge como um agente que empurra em diferentes direções nossas identidades já confrontadas pela multiplicidade de “sistemas de significação e representação cultural.” (HALL, 2006, p 13) RUPAUL’S DRAG RACE: DRAG QUEENS COMO PRODUTO POP Quando estreou em 2009, não era esperado que o reality show “RuPaul’s Drag Race” tivesse vida longa. Apresentado por uma das drag queens mais famosas do mundo, RuPaul, que teve o ponto alto de sua carreira nos anos 1990, o programa buscava a sucessora da apresentadora no posto da drag superestrela dos Estados Unidos. Segundo ela, para se tornar uma surperestrela a drag deve possuir quatro características fundamentais: carisma, singularidade, coragem e talento (ou em inglês, charisma, uniqueness, nerve e talent, constantemente abreviadas no programa pela sigla C.U.N.T.). O programa, entretanto, logo se tornou sucesso do canal de TV voltado para o público LGBTQIA5 Logo TV e hoje acumula oito temporadas, duas séries derivadas – Drag U6 e RuPaul’s Drag Race All Stars7 – e um programa paralelo que mostra as competidoras interagindo nos bastidores do episódio principal de cada temporada. Embora tenha mantido praticamente o mesmo formato8 com o passar das temporadas o objetivo inicial de encontrar a sucessora de RuPaul acabou perdendo o sentindo, visto que anualmente era coroada uma nova drag superstar. O reality então passou a adotar o conceito de “reinado” anual para cada uma 5

Variação para a sigla LGBT, considerada mais inclusiva por contemplar as identidades queer, intersexual e assexual, que vem ganhando espaço nas ciências sociais e discussões de gênero. Para o professor e autor do livro “Gaga Feminism: Sex, Gender and the End of Normal”, Jack Halberstam, há na nova geração muitas pessoas com diferentes concepções de gênero e sexualidade. “Quando você vê um temo como LGBTQIA é porque as pessoas estão percebendo todas as coisas que fogem do binarismo e exigindo que elas sejam nomeadas”. (Tradução minha). Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2016. 6

Drag U foi uma série spin-off de RuPaul’s Drag Race, onde ex-participantes do programa original ajudavam a fazer transformações em mulheres biológicas. Segundo o site da LOGO TV, o programa era uma “escola para garotas, onde mulheres biológicas passavam por extremas transformações no estilo drag queen.” (tradução nossa). Disponível em: < http://www.logotv.com/shows/rupauls-drag-u>. Acesso em: 21 jun 2016. 7

RuPaul’s Drag Race All Stars é um reality que mantém a mesma estrutura do programa original onde as participantes são ex-competidoras que se destacaram no original, porém acabaram não ganhando o grande prêmio. A primeira temporada foi exibida em 2012 e a segunda temporada já foi anunciada para estrear em agosto de 2016.

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das campeãs, sendo que no ano seguinte o legado deixado por ela era passado para sua sucessora. O sucesso do programa, transformado em franquia pop9, visibiliza a cena drag em todo o mundo e gera adeptos para uma nova geração de consumidores desta cultura. A partir do encantamento gerado, percebemos o aumento exponencial de outros artistas drags que começam a fazer sucesso na cultura midática, a exemplo das americanas, saídas do próprio programa, Adore Delano 10, Sharon Needles11 e Alaska Thunderfuck12, que hoje emplacam suas carreiras como cantoras drags e lotam boates com suas apresentações mundo afora. Entretanto, ao mesmo tempo em que o programa se propõe a apresentar a cultura drag ao mundo mainstream, com as diferentes vertentes, estilos e possibilidades que pode assumir, ao longo das oito temporadas do reality é perceptível observar o que chamaremos de higienização e padronização da arte drag através das escolhas das vencedoras dos desafios propostos nos episódios. Para julgar o desempenho das competidoras, RuPaul estabelece padrões baseados em sua visão do que é ser uma drag completa, com potencial para se tornar uma superestrela, da mesma forma que ela se tornara nos anos 1990 quando assumiu o título supermodelo ao ser a primeira drag a estrelar uma campanha mainstream de cosméticos, da marca canadense M.A.C.

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Partindo do conceito proposto por Jenkins (2008, p. 45) de franquia como “empenho coordenado em imprimir uma marca e um mercado a conteúdos ficcionais”, adotamos neste artigo a franquia pop como uma marca que se torna rentável mercadologicamente, capaz de produzir diversos produtos (sendo eles midiáticos ou não) e gerar engajamento de um grupo de pessoas em torno deste nome. De acordo com Massarolo e Alvarenga (2010), foi a partir da década de 1980, que “o termo franquia começou a assumir um significado cultural e passou a ser usado para descrever tanto os processos de propriedade intelectual corporativa quanto à gestão das formas culturais serializados que dela resultam (linhas de produtos como a franquia Star Trek ou a franquia Star Wars, por exemplo).”. 10

O álbum de estreia de Adore Delano “Till Death Do Us a Party” chegou ao 3º lugar na categoria de “Dance/eletronic Albums”, estabelecendo um recorde entre as cantoras drag que tinham entrado para as listas até 2014. Seu segundo álbum “After Party”, ficou em 1º lugar na mesma lista em 2016. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016. 11

Sharon Needles lançou seu primeiro álbum “PG-13” em 2013 e chegou a ficar em 9º lugar na lista de Dance/Eletronic Albums. Seu segundo lançamento “Taxidermy”, chegou ao 11º lugar em 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016. 12

Alaska Thunderfuck emplacou na lista “Dance/Eletronic Albums” da Billboard em 3º lugar, com o seu debut “Anus” em 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2016. 7

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Fig 1. Campanha estrelada pela drag queen RuPaul para a marca de cosméticos M.A.C em 1994

As regras do programa sugerem que a evolução durante os desafios de cada participante é levada em consideração para sua eliminação ou permanência na competição, mostrando que não é apenas o desempenho individual do episódio exibido que conta. Entretanto, o programa cai em contradição em alguns casos, quando participantes são eliminadas mesmo com bons históricos na competição, sendo estes casos mais comuns nas temporadas mais recentes, nos fazendo perguntar até que ponto a noção de drag como produto mercadológico entra nos critérios de julgamento de RuPaul. Um dos casos mais recentes, durante da 8ª temporada do reality, e controversos para o fandom13 é o da eliminação de Acid Betty (Jamin Ruhren), participante da oitava temporada. Acid foi eliminada, porém não era, nem de longe, a drag com o pior histórico na altura do seu episódio fatal. O desempenho fraco no desafio principal daquela semana a levou ao “lipsync for your life” contra a outra participante com desempenho inferior no desafio, Naomi Smalls (Davis Heppenstall), e mesmo com dublagem e histórico superiores à concorrente direta, Acid foi eliminada. O desempenho de Acid até aquele momento contabilizava três "high", que na linguagem do programa significa que a concorrente obteve um bom desempenho, e um “safe”, ou um desempenho regular. Naomi, por outro lado, possuía três “safe” e um “high” em um desafio de grupo (Fig. 2). 13

Assumimos aqui o termo “fandom” para nos referir às comunidades online de fãs, como os grupos nas redes sociais como Facebook e WhatsApp. Também é possível citar fórums online como o Reddit “oficial” de fãs de RuPaul’s Drag Race (Disponível em: http://www.reddit.com/r/rupaulsdragrace/. Acesso em: 10 jul. 2016.)

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Fig 2. Tabela de comparação do desempenho das drag queens Naomi Smalls e Acid Betty, ambas julgadas com os piores desempenhos no 7º episódio da 8ª temporada de “RuPaul’s Drag Race”.

Tal percepção nos leva a pensar no formato do programa como um poder disciplinar dos corpos drag queen, onde RuPaul e sua visão se tornam o resultado específico a ser buscado. Foucault (2014) explica que este fenômeno é possível a partir de transformações técnicas – no caso apresentado do reality, dos objetivos do programa. A unidade torna-se uma espécie de máquina de peças múltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a uma configuração e obter um resultado específico. As razões dessa mudança? Algumas são econômicas: tornar útil cada indivíduo e rentável a formação, a manutenção, o armamento das tropas; dar a cada soldado, unidade preciosa, um máximo de eficiência. (FOUCAULT, 2014)

Antes de entrar para o reality show, Acid Betty já era conhecida na cena drag norteamericana por suas “montações” excêntricas, fugindo do padrão de feminilidade esperado pelo estilo fishy14 de drag, no qual as queens tentam fidedignamente mimetizar o dito gênero feminino, e aproximando-se do visual club kid15 e um nome de referência dentro do seu estilo. Esses fatores destacavam Acid Bety dentro do elenco da 8ª temporada de RuPaul’s Drag Race e seu trabalho visual considerado exemplar a colocava na lista de favoritas para chegar à final. Entretanto, assistindo sua trajetória dentro do programa, sua eliminação era algo a se esperar: Acid Betty não se submeteu ao que semanalmente os juízes da competição lhe pediam – sua arte não aceitou ser disciplinada. Acid Betty não é um corpo dócil e, portanto, inútil para os propósitos mercadológicos intrínsecos ao título drag superstar almejada por RuPaul. 14

Dentro da cultura drag, “fishy” é uma drag queen extremamente feminina ao ponto que poderia ser confundida com uma mulher real. 15

O termo “club kids” foi usado para nomear um grupo de jovens personalidades da noite de Nova Iorque no final dos 1980 e início dos anos 1990, liderado principalmente por Michel Alig, James St. James, conhecidas por suas roupas e maquiagens extravagantes. Os membros do grupo logo se tornaram celebridades locais e até nacionais, como RuPaul e Amanda Lepore. Atualmente, na cultura drag, é utilizado para definir as drag queens que não performam feminilidade da forma usualmente esperada, mas que criam personagens excêntricos e que vão além da atuação do feminino.

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Fig. 3. Alguns dos looks apresentados pela drag queen Acid Betty durante sua participação no reality show RuPaul’s Drag Race.

Penso no programa RuPaul’s Drag Race como a “cerca” a qual Foucault (2014, p. 139) se refere como necessária para aplicar uma disciplina. O programa é o ambiente heterogêneo fechado para que seja possível vigiar o comportamento e “conhecer, dominar e utilizar” os corpos e suas habilidades para que se tornem úteis a um sistema maior e superior, cada um com seu papel. Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los; mas também articular essa distribuição sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias. É preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos “postos”. (FOUCAULT, 2014, p. 142)

SHARON NEEDLES: UM CASO (NEM TÃO) DESVIANTE Apesar do caso Acid Betty não ser o único no curso das temporadas de RuPaul’s Drag Race a nos fazer questionar os critérios para a eliminação de uma participante, uma drag queen se destaca por ser visualmente o oposto da disciplina proposta por RuPaul e sua equipe e ter tido uma trajetória de sucesso no programa. Sharon Needles (Aaron Coady) participou da 4ª temporada do reality show e é um caso desviante dentro da narrativa disciplinar construída ao longo da história do programa. Sharon foi corada a drag superstar com looks exóticos, muito preto, sangue falso, lentes de contato brancas e tendo seu talento e mérito questionados pelas próprias participantes do programa. Durante sua trajetória, Sharon se manteve fiel ao seu estilo “horripilante”, muitas vezes parecendo uma personagem saída de um filme de terror ou uma adolescente de uma festa de Halloween. Aparentemente sem docilizar seu corpo, Sharon passou por 12 desafios, ganhou 4 e dublou “pela sua vida” apenas uma vez. Apesar da desobediência ao poder 10

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disciplinatório, Sharon foi inteligente ao compartilhar sua vida pessoal – na época ela namorada a drag queen Alaska Thunderfuck (Justin Honard) e explicitou que o maior sonho do parceiro era entrar no programa – e histórias sobre bullying durante o período escolar. A narrativa da personagem de Sharon dentro do programa ganhou a empatia de milhares de fãs, sendo aquela a primeira final do reality a ser gravada em um novo formato e considerando a mobilização dos fãs nas redes sociais. Pela primeira vez, a decisão não estava nas mãos de um único sensor todo poderoso e o público aparentemente tinha voz ativa para decidir a vencedora.

Fig. 4. Alguns dos looks “fora da caixa” trazidos por Sharon Needles durante a 4ª temporada de RuPaul’s Drag Race.

Para falar da exceção de Sharon é preciso, entretanto, contextualizar o momento vivido dentro da cultura pop especialmente voltada para o público LGBTQIA no ano da sua coroação, em 2012. Qual é o contexto que uma drag queen cujo nome é uma brincadeira com com as palavras “share” (compartilhar) e “needles” (agulhas), fazendo alusão ao uso de drogas e a uma das principais formas de contágio do vírus HIV poderia se tornar o ideal da “America’s Next Drag Superstar”? A própria Sharon explicou em entrevista que acha que seu sucesso com os fãs do reality show se deve ao sucesso da cantora pop Lady Gaga com a comunidade LGBTQIA e o fato de ter conseguido empatia dos fãs através das suas experiências pessoais. Fame Monster16 tinha acabado de sair e o mundo gay estava realmente interessado em deixar seu lado esquisito livre. Todo mundo estava muito interessado em aceitar uns aos outros, em se expressar visualmente. Então eu acho que por causa do sucesso de Lady Gaga as pessoas realmente gostaram de mim. E eu acho que eles se identificaram com a minha história... Não é

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Álbum da cantora Lady Gaga, lançado em 2009.

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como se eu tivesse sido a única pessoa a sofrer bullying, mas foi pedido que eu contasse a verdade e então eu fiz. (NEEDLES, 2016, tradução nossa)17

Apesar de ser um “caso de sucesso” entre as drag queens com estilo diferente, coroada em plena ascensão do próprio reality show e constantemente na mídia, Sharon precisou adaptar rapidamente seu visual e apresentações chocantes os quais a tornaram conhecida na cidade americana de Pittsburgh (Pensilvânia). No período anterior ao reality show, ela fazia parte de um grupo de drag queens locais. Sempre que cita a Haus of Haunt18, Sharon se refere como sendo um grupo de “gente esquisita, punk rock, bagunçadas e com muito talento”. A Haus of Haunt era conhecida pelas performances chocantes e controversas e talvez um pouco disso tenha sido mostrado por Sharon durante sua participação em RuPaul’s Drag Race, porém, é possível encontrar Sharon em performances que vão além de utilizar elementos de horror – é fácil encontrar uma Sharon Needles usando uma suástica nazista e se utilizando de maquiagem para fazer black face.

Fig. 5. Sharon Needles foi acusada de racismo por performances usando suástica nazista e black face.

Fora do programa, Sharon precisava mais do que a empatia do público para ganhar dinheiro como drag queen. Como o rosto de uma grande franquia de cultura pop, era preciso dar o que o público queria – o que significa potencializar ou amenizar disposições discursivas e performáticas. Bastante emblemático e problemático, no entanto, é a espectatorialidade pop

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Sharon Needles em entrevista ao talk show Hey Qween, exibido . Acesso em 04 jul. 2016.

no

YouTube.

Disponível

em:

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Alaska Thunderfuck, que também participava da Haus of Haunt, esclareceu alguns pontos sobre o grupo emu ma nota escrita em 2012 em sua página oficial no Facebook. “Just who did creat the Haus of Haunt?”. Disponível em: < https://www.facebook.com/notes/alaska-thunderfuck/just-who-did-create-the-haus-of-haunt/10151277868246224/>. Acesso em: 04 jul. 2016.

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mainstream assistindo ao show de uma drag queen com símbolos nazistas. O que temos visto desde a sua coroação é uma Sharon que constantemente precisa se adequar e obedecer a uma disciplina que vai muito além da visão de arte drag de RuPaul e as regras de um programa televisivo. É preciso sobreviver na “vida real” e como profissão a drag queen precisa se tornar rentável e obediente à ordem econômica. Sharon – a sobrevivente esquisitona das regras – necessita ser lapidada para que se torne palatável ao público mainstream. Por sua trajetória bem sucedida ao se adaptar, pode-se também se referir ao processo de Sharon pós-RuPaul como uma ruptura de padrões disciplinares impostos: Foucault (2014, p. 157) explica que as técnicas administrativas e econômicas de controle acabam manifestando, no futuro, a “descoberta de uma evolução em termos de ‘progresso’.” Sharon pode não ter se mostrando um corpo dócil durante sua passagem no reality show, mas como parte indissociável da cultura pop drag viabilizada pelo programa, foi obrigada a, sutilmente, se disciplinar para que se tornasse útil, afinal, “o poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor.” (FOUCAULT, 2014, p. 167) Sharon não abandonou o seu estilo, mas o transformou em algo que pudesse ser aproveitado pelo sistema.

Fig. 6. Evolução: Sharon Needles de volta a passarela do reality show na 8ª temporada em versão mais “clean”

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