Sharon Rider - Relativismo e Relatividade nas Ciências Humanas
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Sobre relativismo e relatividade nas Ciências Humanas•
Sharon Rider
Há várias maneiras de compreender-‐se a noção de relativismo. Aqui vou discutir uma forma geral, a saber, o relativismo como um termo genérico para um conjunto de problemas no interior e para as ciências culturais ou humanas (historicismo, interseccionalidade, relatividade linguística, etc). Considero que isso é distinto do fato da relatividade cultural, moral ou estética, ou seja, a percepção de que não importa quão evidente sejam nossas suposições, ou absolutas as nossas convicções em algum assunto, outras pessoas podem bem ter convicções diferentes, baseadas em pressupostos diferentes, não só em relação às mesmas questões, mas em relação a assuntos que podem muito bem ser dificilmente concebíveis para nós. Este tipo de relatividade é algo que nós, por assim dizer, nos defrontamos, como se fosse uma parede com que topamos. Somos obrigados, por vezes, a perceber o que Foucault chamou de "a forte impossibilidade de pensar isso."(1) Ou descobrimos que todos os argumentos estancam, pois não há o suficiente sobre o que concordar, até entender sobre o que é que discordamos. O outro se torna "o Outro", uma espécie de "continente negro" que exigiria anos de exploração para ser compreendido. Permitam-‐me dar um exemplo, mas, como eu disse, um exemplo que não vou discutir aqui. Lembro-‐me de ser tocada, enquanto uma jovem estudante, quando li que as mães espartanas tinham o costume de mandar seus filhos para a guerra com a advertência: “Volte com seu escudo, ou sobre ele”. (Voltar da batalha com o escudo era a prova de que o soldado não havia tentado fugir do local da batalha rapidamente, aliviando sua carga, e retornar sobre ele era a prova da morte honrosa em batalha). E, de fato, fiquei impressionada com a forte impossibilidade de pensar isso. Mas isso por si só nada diz sobre a superioridade da nossa civilização sobre os espartanos (ao contrário, não podemos avaliar o que nós não podemos sequer começar a entender). Na medida em que os gregos são inteligíveis para nós, ou que a nossa cultura poderia ser inteligível para eles, podemos imaginar o desdém que uma mãe espartana poderia ter para com as nossas atitudes decadentes em relação a virtudes como dever, coragem e auto-‐ sacrifício (que eram, como eu entendo, as atitudes que tinham em relação aos atenienses). A impossibilidade de oferecer meu filho para uma causa maior seria simplesmente um sinal de vício ou de falta de virtude cívica, aos seus olhos. (Podemos ter isso em mente hoje, quando protestamos, zombamos ou apenas psicanalisamos as mães dos homens-‐bomba ou dos soldados norte-‐americanos, que encontram significado e até mesmo consolo nas mortes heroicas de seus filhos, ou interpretamos o seu orgulho em termos inteligíveis para nós, tais como “On Relativism and Relativity in the Human Siences”. Publicado originalmente em Making a Difference: Rethinking Humanism and the Humanities. Ed. By Niklas Forsberg & Susanne Jansson. Riga, Thales, 2009. Sharon Rider é professora na Universidade de Upsala. Esta tradução foi feita apenas para uso didático em minhas atividades na Universidade Federal de Santa Maria. (Ronai Rocha) •
através da crítica da ideologia). Aqui nós temos um valor de relatividade que não vai ser superado por argumento. Poderíamos chamar isso de relatividade trágica, uma relatividade que é o nosso destino humano, e não a nossa escolha. Mas, se esse é o caso, qual o trabalho importante que as ciências humanas devem fazer? Em suma, se a crítica da ideologia, por exemplo, é apenas mais pensamento iluminista ocidental, ou logocentrismo, ou mitologia dos branco, ou grandes narrativas, ou qualquer outro termo que se queira, como ficam as pretensões de validade da nossa filosofia, de nossa antropologia, de nossa historiografia? Quando percebemos que até mesmo as nossas reivindicações conceituais, as descobertas científicas, os avanços tecnológicos, estão inextricavelmente ligadas a muitos valores não-‐científicos, pré-‐lógicos (como a preferência por métodos quantitativos sobre os qualitativos, por elegância e simplicidade em teorias, etc.), parecíamos estar confrontados com uma escolha.(2) Uma possibilidade é buscar fundamentos para esses valores (isso é algo que tem sido feito pela teoria da ciência, por exemplo); ou optamos por não buscar fundamentos, sob o argumento de que não há nenhum para ser encontrado. Se esta última posição é usada para questionar a validade da primeira, ela é muitas vezes é chamado de “relativismo”. No que se segue, vou examinar o problema do relativismo como um problema no interior das ciências humanas e sociais, e para elas. O trabalho está dividido em duas seções. Na primeira irei descrever brevemente o que eu considero ser a nossa situação atual, usando certos temas da sociologia do conhecimento como ponto de partida. Depois contrastarei algumas das conclusões que se tornaram lugar-‐comum, ou mesmo implicitamente assumidas, em resposta a esses estudos, com a minha compreensão da tentativa de Max Weber de tratar de tendências semelhantes um século atrás. Na segunda seção, eu considerarei o problema do historicismo como uma maneira de formular a posição relativista, e proporei uma ideia de conhecimento, inspirado por Weber, mas também por Nietzsche, Wittgenstein e Foucault, como uma forma útil de encontrar o nosso caminho para fora da garrafa. Por fim, concluirei com algumas observações sobre o papel do pensamento filosófico para a ciência e o conhecimento.
Objetividade nas Ciências Humanas
Pode-‐se dizer que o relativismo nas ciências humanas é um produto de, mas também um motor para o reconhecimento de uma perda de consenso religioso/moral/cultural/acadêmico/político. Em alguns campos, tais como os estudos de ciência e tecnologia (ECT) e dos estudos culturais, a concepção é que uma vez que reconhecemos a falta de fundamento de assuntos acadêmicos em algum “tema” que seja independente das ferramentas, das tradições e das instituições de conhecimento, devemos também admitir que a universidade e suas instituições já não podem mais agir como se fossem a principal fonte de produção de conhecimento, mas que são relegadas para “zonas de troca”.(3) Em uma palavra, a profecia de Lyotard de uma sociedade do conhecimento cada vez mais dispersa concretizou-‐se; trata-‐se apenas de aceitar esse fato. A partir desta
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perspectiva, a universidade clássica e suas disciplinas e outras instituições são parasitas do âmbito total da vida humana, e a noção acadêmica tradicional de conhecimento é vista como uma variação prescritiva (mesmo em nome da descrição) sobre os recursos de pensamento e ação, intrinsicamente.(5) Ou seja, não por acaso, mas por design. Em suma, pode-‐se dizer que o relativismo é o resultado da academia vindo a conhecer-‐se. Há uma série de elementos que concorrem para essa consciência emergente, muitos dos quais foram analisadas em estudos da sociologia do conhecimento, mas quero me concentrar em um par de dimensões filosoficamente relevantes. Um deles foi denominado de “perda de memória transgeracional", e está ligado à nossa impaciência cultural contemporânea (em relação ao progresso social e aumento da tolerância, tratamento justo e melhores oportunidades para as mulheres e as minorias, desenvolvimento sustentável, etc). Steve Fuller observa que essa impaciência leva a uma sensação de que os projetos universalistas foram apenas um erro desde o início (devido, por exemplo, a uma concepção de gênero “totalizante” e defeituosa, desconsideradora de como as coisas ficaram melhores a este respeito, ou a um etnocentrismo europeu ingênuo, desconsiderador da identidade moderna, urbana e intelectualista). O que é interessante sobre este ponto é que ele mostra como um estado de espírito cultural pode não só colorir, mas ainda dar origem a certas formas de conceituação. (De uma maneira nietzschiana, pode-‐se, provavelmente, ler a história do pensamento ocidental através do humor do período transmitido até mesmo nos tratados mais áridos). Este estado de espírito de impaciência é ao mesmo tempo uma expressão da alienação, resignação e cansaço-‐de-‐mundo, no qual até mesmo a esperança de compreender as coisas corretamente (conhecimento) ou fazer as coisas certas (política) não são sequer sentidas como uma possibilidade real. Assim, tiramos o melhor do fato de "nascer tarde demais", como diria Nietzsche, e ou nos deleitamos com a nossa distância em relação ao objeto de estudo (este é o ponto do método de "seguir os atuantes" de Latour), ou saltamos sobre os obstáculos teóricos e damos cambalhotas metodológicas para justificar nossas tentativas de dar voz ao não dito (ou seja, para justificar nosso falar em nome do Outro -‐ os oprimidos, as vozes silenciadas pela história oficial, etc.). Bloor (6) e Latour & Woolgar (7), cujas primeiras obras tiveram uma influência decisiva no desenvolvimento da sociologia contemporânea do conhecimento, são vistos como tendo revelado o cativeiro da filosofia "normativa" da ciência (ou seja, a filosofia analítica tradicional da ciência) em relação às ilusões sobre a história e a vida social do pensamento científico. Fuller escreve: Os filósofos escrevem como se os cientistas estivessem tentando viver de acordo com seus ideais normativos, mesmo que os próprios filósofos não possam concordar sobre quais são esses ideais. A STS mostrou que os filósofos sofreram menos de má-‐fé do que pura credulidade [...] Eles [...] cometeram o erro fatal de acreditar em sua própria conversa. Como imperialistas muito zelosos, os filósofos não conseguiram reconhecer a propriedade de “feito para exportação” de seu próprio discurso normativo.
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Ele conclui que o tão elogiado “método científico” teve mais impacto em "disciplinar as crianças na escola e arregimentar os não-‐cientistas" do que em regular as práticas de cientistas reais. Mas será que o nosso reconhecimento de que as condições materiais, sociais e econômicas do ensino e da pesquisa acadêmica são condições genuínas e não apenas um pano de fundo anedótico significa que essas condições são a soma e a substância da investigação científica? Em que sentido o reconhecimento da relatividade conceitual nos força a aceitar a tese do relativismo? Em um discurso frequentemente citado para estudantes, Max Weber comparou a complexidade polimorfa da civilização europeia moderna com o antigo politeísmo, e sugeriu que há limitações quanto ao que a ciência pode alcançar ao abordar este fato da vida moderna: Vivemos como fizeram os antigos quando seu mundo ainda não estava desencantado dos seus deuses e demônios, só que em um sentido diferente. Assim como os helênicos ofereciam sacrifícios primeiro para Afrodite e depois para Apolo, e, por fim, aos deuses de sua própria cidade, também hoje sucede o mesmo, embora o culto se tenha desmistificado e careça da plástica mística mas intimamente verdadeira que possuía na sua forma original. Acerca desses deuses e da sua eterna luta é o destino que decide e não uma “ciência”. Apenas se pode compreender o que é o divino numa ou noutra ordem, ou para uma ou outra ordem. Aqui termina tudo o que um professor pode dizer na sua cátedra sobre o assunto, o que, é claro, não significa que com isto se acabe o próprio problema vital. São muito diferentes dos da cátedra universitária os poderes que a este respeito podem usar da palavra.(9) •
Em grande parte da literatura na sociologia do conhecimento, há uma ênfase sobre o pesquisador como um membro ou representante de um coletivo (o seu tempo, o seu campo, seu país, seu departamento, seu grupo de pesquisa). Mas se concedemos o ponto que o pensamento, apesar de ocorrer em comunidade e ser linguisticamente formado e culturalmente específico, no entanto, ocorre no indivíduo enquanto indivíduo, então podemos pensar a possibilidade do estudioso, pesquisador ou professor, apenas fazendo bem o que faz, se esforçar para deixar de fora os valores que podem muito bem ser a motivação, alvo e fonte de inspiração de sua atividade científica, em sua atividade (ensino e pesquisa). Isso é um valor por si mesmo, é claro. Mas, de acordo com Weber, esta é a condição sine qua non do impulso científico. No caso da ciência, isso é o valor supremo, na medida em que trabalhamos como cientistas (na academia, na medida em que trabalhamos como acadêmicos, etc.). Weber afirma que um bom estudo científico é aquele que pode ser lido e compreendido por alguém cujos valores foram completamente alheios aos do(s) autor(es) e, mesmo que o conhecimento adquirido seja considerado inútil, sem sentido, banal ou mesmo prejudicial por este leitor, ele deveria ser capaz de julgar a validade desses resultados inúteis, sem sentido, banais ou prejudiciais. Se este leitor radicalmente estrangeiro entende bastante da questão norteadora da pesquisa para julgá-‐la como desinteressante ou tola, ele também pode julgar •
Usei aqui a tradução de Carlos Grifo, da Editorial Presença.
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que a resposta é adequada ou inadequada como uma resposta a essa pergunta, qualquer que seja o seu valor. Não está inteiramente claro se essa objetividade procurada é “real” para Weber; minha impressão é que ele a vê como uma espécie de ideal regulador, mas tal que ele é um pré-‐requisito para o conhecimento, no fim das contas: [a] premissa transcendental de qualquer ciência da cultura reside [...] na circunstância de sermos homens de cultura, dotados da capacidade e da vontade de assumirmos uma posição consciente face ao mundo, e de lhe conferirmos sentido. Qualquer que seja este sentido, influirá para que no decurso da nossa vida, extraiamos dele nossas avaliações de determinados fenômenos da convivência humana e assumamos perante eles, considerados significativos, uma posição (positiva ou negativa). Qualquer que seja o conteúdo desta tomada de posição, estes fenômenos possuem para nós uma significação cultural, que constitui a base única do seu interesse científico. (10)1
A objetividade, então, é a promessa de intersubjetividade genuína, quer ela seja ou não realizada na prática (pois dificilmente podemos dizer de fato que ela é cumprida; a intersubjetividade não é um fato sobre o mundo, no sentido de um fato científico, mas sim uma pré-‐condição para a existência de tais fatos). A ideia aqui é que nós, que estamos interessados na cultura humana, em virtude de nossa humanidade, podemos nos esforçar para compreender a importância dos fenômenos sob investigação, de tal forma que os nossos próprios valores no que diz respeito ao objeto de estudo não desempenhem um papel determinante nos resultados de nossa investigação. Se não conseguimos isso, não existe tal coisa como um estudo científico, há apenas política, retórica e ideologia. Weber considera que ao admitir as limitações da ciência, ele pode salvar o ideal, e com isso, a prática. Em outras palavras, ele acha que ainda é possível levar a ideia de ciência a sério, mesmo no que diz respeito às ciências culturais. Mas isso implica examinar auto-‐criticamente sua natureza. Ele pergunta: Que pensar de tudo isso? Terá o "progresso" enquanto tal um sentido cognoscível que vá mais longe que o puramente técnico, de modo que o seu serviço possa constituir uma vocação com significado? É imprescindível expor esta questão. O problema já não é pois apenas o da vocação do cientista, o do significado que a ciência tem para quem a ela se entrega. Trata-‐se de outra coisa, de determinar o que é a vocação científica dentro de toda a vida da humanidade e qual é o seu valor. (11)2
Sua resposta parece ser fundamentalmente kantiana: a ciência é possível como uma ideia, uma meta, um objetivo. E é essa ideia que deve orientar a prática, não a fé em uma determinada teoria ou método. Aqui Weber tem um tipo muito diferente de fé na ciência do que aquela normalmente associada aos defensores do “método científico”. Parece-‐me que os sociólogos da ciência muitas vezes implicitamente concordam com o próprio espírito positivista que eles criticam: eles aceitam a noção de que a essência da ciência está em seus métodos. E, tendo mostrado que esses métodos não sobrevivem às suas próprias 1 Reproduzi aqui a tradução de Amélia e Gabriel Cohn, no volume Weber (Editora Ática, 1979)
2 Adotei aqui a tradução de Carlos Grifo (O Político e o Cientista, Editorial Presença, Lisboa, 1973)
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pretensões de universalidade, eles pensam ter mostrado que a “ciência é o que a ciência faz”. Mas esses cientistas sociais, filósofos, linguistas, etc., que mantêm uma forte fé na ciência como um método universal, desenvolvem-‐se e agrupam-‐ se em áreas de especialização, em indústrias caseiras teóricas e metodológicas, que eles fazem avançar e expandir, em concorrência com outras fracções (“redes”), comportando-‐se, assim, exatamente de acordo com a imagem da ciência como uma atividade essencialmente social, política e econômica retratada na sociologia da ciência. A confiança de Weber na ideia de ciência social e cultural, por outro lado, aceita explicitamente o “politeísmo” metodológico como um fato da vida científica, na medida em que isso serve ao ideal maior, sem o qual o que nos resta é um monte informe de métodos, ismos, escolas técnicas e ferramentas sem objetivos e sem fim, um ecletismo cientificamente irresponsável. Mas, como Husserl, ele argumenta que a justificação do ideal da ciência não é algo que pode ser fornecido pela própria ciência. Assim, enquanto ele discute os vários benefícios práticos do valor da neutralidade no ensino e na pesquisa, o seu argumento para deixar os valores de fora da ciência é, em última instância, moral. Aqui vou usar o que considero ser uma distinção weberiana entre a ciência como um meio e a ciência como um fim em si mesmo, entre o interesse e os valores que orientam as perguntas que fazemos, e o objetivo científico de compreensão, clareza, e de ver o que é o caso (ou, para usar uma palavrinha um pouco exótica, de busca da verdade). Esta formulação é um tanto complicada, apesar de sua aparente simplicidade, porque implica, entre outras coisas, que os resultados científicos na verdade são os meios, e a atividade da ciência, seu próprio fim:
Na ciência, todos sabemos que o que acabamos de produzir será antiquado dentro de dez ou vinte ou cinquenta anos. É esse o destino e o sentido do trabalho científico a que este, ao contrário de todos os outros elementos da cultura, que estão sujeitos à mesma lei, está submetido e entregue. Toda a “aquisição” científica implica novas “questões”, e deve ser superada e deve envelhecer. E todo aquele que se quiser dedicar à ciência deve contar com isso. É certo que existem trabalhos científicos que podem manter a sua importância por forma duradoura como “instrumento de prazer” em virtude de sua qualidade artística, ou como meios de preparação para o trabalho. Em todo o caso, devo repetir que sermos necessariamente superados não é apenas o destino de todos nós, mas também a finalidade específica da nossa tarefa comum. Não poderemos trabalhar sem termos a esperança de que outros chegarão mais longe que nós, num progresso que, em princípio, não tem fim. Chegamos assim ao problema do sentido da ciência. Não será realmente fácil de compreender que algo que se encontra submetido a uma tal lei tenha, em si mesmo, sentido e seja, em si mesmo, compreensível.123
Temos hoje a tendência de desaprovar tais expressões de devoção em relação à essência e ao valor do pensamento científico, e vê-‐las com a mesma desconfiança com que respondemos ao tipo de otimismo científico desatualizado, digamos, de Karl Popper. Mas o ponto de Weber é radicalmente diferente. Weber vê a nossa situação contemporânea, as condições de nossas 3 Adotei a tradução de Carlos Grifo, p. 156.
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vidas reais, como a condição singular de toda a ciência social e cultural. E, naturalmente, esta situação vai ser diferente, para todos e cada um de nós, no que diz respeito às experiências, valores e premissas. Mas a própria particularidade de nossas vidas, a nossa familiaridade com um mundo comum, é o que torna possível para nós o estudo da cultura ou da sociedade; trata-‐se da condição para as afirmações mais gerais que fazemos sobre a evolução histórica, sobre as diferenças etnológicas, e assim por diante. E isso quer dizer que o estudo científico da cultura começa com questões específicas que surgem a partir de um determinado modo de vida e dos discursos e das práticas nele envolvidas; os problemas abordados pelas ciências sociais e culturais devem ser os tipos de questões e preocupações que alguém pode realmente ter, simplesmente em virtude de compartilhar esse modo de vida e refletir sobre ele. O que acontece com bastante frequência na área de humanidades, hoje, no entanto, é que as questões abordadas são tão misteriosas, são tão internas à própria atividade científica, isto é, tão integradas com um certo conjunto de doutrinas estabelecidas e com os debates e questões técnicas decorrentes destes, que a questão original a que essas teorias e técnicas foram originalmente propostas como respostas parciais, perdeu-‐se faz muito tempo. Mas, lembrando a questão do valor do empreendimento científico, a justificação das ciências sociais e culturais não pode ser a própria prática. A medicina não levanta a questão de saber se uma determinada vida deve ser salva, a estética não pergunta se deve haver obras de arte. E Que sucede hoje? À exceção de algumas dessas crianças grandes que frequentemente se movem através do mundo das ciências naturais – quem acreditaria hoje que os conhecimentos astronômicos, biológicos, físicos ou químicos nos podem ensinar seja o que for sobre o sentido do mundo, ou mesmo sobre o caminho pelo qual se podem encontrar indícios desse sentido, a admitir que ele exista? 134
Mas, mais relevante para os nossos propósitos, Ora, pensem vocês, para terminar, as ciências históricas e culturais. Elas nos ensinam como compreender e interpretar os fenômenos políticos, artísticos, literários e sociais, levando em conta as circunstâncias do seu aparecimento. Mas elas não nos dão nenhuma resposta para a questão de se tais fenômenos deveram ou devem existir, ou se vale a pena ter o trabalho de os conhecer. Elas pressupõem que há um interesse na participação, por meio desse procedimento, na comunidade dos "homens cultos". Mas elas não podem provar "cientificamente" que este é o caso; o fato de tomar como pressuposto a existência desse interesse não basta para o tornar evidente por si mesmo, coisa que, aliás não é de modo algum.14
É importante lembrar aqui que não se trata de o indivíduo estudioso pensar que o objeto de estudo “vale a pena”, como se fosse uma questão de preferência pessoal. Ao invés disso, é preciso que exista alguma preocupação viva em uma cultura que impele o pesquisador, em virtude de sua humanidade, a dedicar-‐se ao estudo científico daquele problema ou questão. Weber faz uma distinção entre a ciência como um chamado interior e as condições externas para a ciência. 4 Tradução de Carlos Grifo, ligeiramente expandida em relação a transcrição original da autora.
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Note-‐se que a distinção não é entre o pensamento científico como um método e as condições de facto da ciência (ou seja, a distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação), mas entre as atividades do pesquisador ou professor qua acadêmico, e as razões para ele ser o que é, o tipo de mundo em que alguém pode inclinar-‐se a escolher ser um estudioso ou cientista. Assim, a diferença entre uma abordagem científica e uma abordagem não-‐científica é fundamentalmente uma diferença da atitude ou de intenção do indivíduo, mesmo que estas só possam surgir sob certas condições culturais. Mas por causa do movimento perpétuo entre o aumento da especialização, para sentir confiança em suas próprias realizações científicas, o cientista tende a internalizar essa necessidade externa. Uma consequência desse desenvolvimento, eu diria, é a transformação do que Weber caracteriza como o espírito científico em um espírito técnico, no qual os meios da ciência tornam-‐se os fins, mesmo no cientista individual. Para quem é professor ou pesquisador na área de humanas, evitar a especialização estrita, manter-‐se fiel à sua motivação original para estudar filosofia, psicologia ou antropologia, significa sacrificar este sentimento de realização. Significa permanecer em dúvida quanto ao valor, não só de seu próprio trabalho, mas das ferramentas compartilhadas e técnicas, teorias e conceitos, de sua disciplina. Ao fazer isso, ele atende às questões que surgem, não de suas áreas de especialização, mas de sua humanidade. Portanto, há dois tipos de condições para o trabalho científico: materiais, sociais, políticas, organizativas e econômicas, por um lado, e o impulso humano para se ter clareza sobre as coisas que nos preocupam, por outro. A primeira leva, inevitavelmente, a especialização, e é este princípio que parece orientar a compreensão contemporânea da ciência e dos estudos. Isto é certamente algo que temos de aceitar, mas também me parece que perdemos de vista a segunda condição, e que é essencial para a sobrevivência das ciências humanas e sociais, tanto como instituição e ideia, que ela seja re-‐descoberta. De acordo com Weber, podemos admitir uma unidade de propósito para as ciências humanas que não se opõe ao fato da relatividade histórica, cultural e cognitiva, pelo menos não necessariamente. Pode-‐se dizer que o objetivo das ciências humanas é justamente nos lembrar quem fomos (história, literatura, etc.), indicar para onde podemos ir (economia, sociologia, estudos culturais, ciência política etc.), e, talvez, acima de tudo, ajudar-‐nos a ver mais claramente como certas noções padronizadas aceitas têm a sua própria história, sua própria finalidade(s), que pode e deve mudar. As ciências humanas não podem nos dizer o que devemos fazer, como devemos agir, ou o que devemos pensar, mas idealmente, elas podem nos ajudar a refletir criticamente, por nós mesmos ,sobre estes assuntos (por exemplo, ao mostrar que um determinado curso de ação provavelmente não terá os resultados esperados, devido a certas leis da economia). Por outro lado, quanto mais programáticas, politizadas e ideológicas as ciências humanas tornam-‐se, de forma explícita ou implícita, menos provável é que elas possam cumprir este propósito vital. E isto não porque existe uma única Verdade que todo o pensamento científico ou acadêmico visa revelar, mas precisamente porque não há.
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Relativismo, Filosofia e os Limites da Teoria (15) Se já não podemos levar a sério os discursos genéricos sobre a “natureza humana”, por exemplo, somos obrigados a aceitar o relativismo como um ponto de partida para os estudos nas humanidades? Mais uma vez, gostaria de dizer que podemos muito bem colidir com o fato da relatividade histórica (por exemplo, a dificuldade inerente em compreender textos produzidos em períodos muito diferentes do nosso), mas isso é um fato da nossa vida como acadêmicos, não uma tese geral. Não temos que defender uma visão relativista, simplesmente em virtude do fracasso do pensamento a-‐histórico, universalista. Podemos conceder uma série de afirmações historicistas sobre casos particulares, sem abraçar o historicismo como tal, isto é, podemos conceder seu ponto como crítica em muitos contextos, sem considera-‐lo como uma tese filosófica ou doutrina.(16) O historicismo, interpretado como uma tese geral (a tese do relativismo histórico) assume, ao contrário, antes da formulação de qualquer problema específico, que o problema deve ser formulado como sendo de contexto histórico, essencialmente. Mas não deveríamos primeiro ter clareza sobre o que é que queremos saber antes de assumir uma postura historicista? Como crítica, os trabalhos historicistas descrevem principalmente as condições de facto nas quais os pensadores do passado trabalharam, o debate intelectual do período, as conotações de certos termos e ideias em uma dada época e assim por diante. A motivação por trás desses estudos é a necessidade de responder, corrigir ou modificar a prática predominante, especialmente em historiografias intradisciplinares, de tratar pensadores do passado como se não existissem essas condições, como se os cientistas e os filósofos de fato não escrevessem em um determinado contexto e não em outro, mas apenas no ar altamente refinado do discurso científico, filosófico (cujos limites são, curiosamente, determinados ex post facto, em termos de interesses de pesquisa, hoje, que muitas vezes evoluíram suficientemente ao longo dos últimos cem anos). Como tal, o historicismo descreve uma prática cujo valor é demonstrado no relativo sucesso ou fracasso de tais tentativas de revelar insuficiências nas narrativas que elas visam complementar ou solapar. Como uma tese epistemológica ou ponto de partida, no entanto, o historicismo resoluto (como todas as formas de relativismo forte) é claramente problemático. Em primeiro lugar, a priorização de questões relativas ao viés cultural, por exemplo, muitas vezes é simplesmente dada como aceita, tendo em conta o ponto de partida historicista. A posição historicista fornece uma espécie de justificação metafísica para se colocar certas questões e simplesmente ignorar outras, como se elas se tornassem sem sentido no âmbito historicista (se aceitamos a tese historicista como um princípio universal, não podemos coerentemente argumentar, digamos, que a descrição de Kant das mulheres como intrinsecamente tímidas e incapazes de pensamento e ação baseado em princípios é incorreta). Em segundo lugar, o historicismo pressupõe que se possa dizer algo sensato sobre a cultura como um todo, e, portanto transita de um modus operandi para uma ontologia (argumentando, por exemplo, que o desenvolvimento da história intelectual europeia caracteriza-‐se por uma cultura racionalista abrangente decorrente do medo do corpo, da sexualidade e das mulheres). Se seguirmos esta linha de
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pensamento até sua conclusão natural, parece que somos forçados a adotar uma das seguintes conclusões: Os pensadores do passado (ou agentes) foram limitados pela cultura que habitavam. Por causa da nossa distância histórica, podemos ver mais claramente as condições que formaram o seu pensamento do que eles poderiam. Nós, como pensadores (ou como agentes) somos limitados pela cultura em que vivemos. Portanto, as coisas que consideramos compreender de outras culturas são, de fato nossas próprias projeções culturais.
O que é, no entanto, que nos torna reticentes em aceitar tais formulações drásticas sem reservas? Eu diria que uma lição a ser tirada da nossa relutância em aceitar qualquer uma das proposições acima, é que a nossa própria experiência nos vacina contra tal extremismo teórico na prática acadêmica (embora não na teoria). Não podemos fazer pesquisas baseados na primeira tese, uma vez que ela nos leva inexoravelmente à segunda. Nossos próprios produtos culturais, -‐ incluindo os resultados de nossa pesquisa, também serão vistos um dia a partir de uma distância histórica, e nesse caso ela será interpretada nos termos das condições culturais de sua produção para as quais estamos cegos. A segunda tese nega explicitamente qualquer outra possibilidade, ou seja, é uma declaração explicita de niilismo epistemológico. Somos incapazes de fazer pesquisas baseados nas alegações vistas acima (assim como não existem ateus convictos nas trincheiras, também não há relativistas convictos nos arquivos). Na prática, as teorias gerais sobre as condições do conhecimento são demasiadamente gerais para ter alguma utilidade. Assim, uma forma de lidar com as reivindicações historicistas é tratá-‐las como algo que deve ser decidido caso a caso, questão por questão. Não podemos, antes de se fazer pesquisas, decidir, por exemplo, que ou (i) não existe tal coisa como sexo e morte per se, mas apenas diferentes práticas culturais de, digamos, namoro e misticismo religioso, ou (ii) há apenas cópula e expiração, e estas são as bases para várias expressões culturais arbitrárias, como o casamento e as instituições religiosas. A questão da constância da natureza humana só pode ser decidida no contexto de uma questão muito mais específica, e com respeito a um uso predeterminado e, presumivelmente estreito da noção de constância. Como um princípio hermenêutico, isto significa que a extensão em que textos antigos, por exemplo, são inteligíveis ou ininteligíveis ao discurso moderno é simplesmente a extensão em que eles são inteligíveis ou ininteligíveis. A questão é, quais problemas você está tentando resolver? Se um texto antigo efetivamente lança luz sobre um problema, então ele é aparentemente que é inteligível no sentido relevante (mesmo que só a muito poucos), a saber, aos que têm problemas semelhantes e interesse e treinamento para serem capazes de reconhecer o problema como genuinamente similar): “é a nossa percepção da natureza humana que faz com que Platão e Aristóteles sejam inteligíveis para nós” (17) Mas, perguntar se tal percepção em geral é um artefato histórico ou uma parte da ordem natural, é colocar uma questão sobre se podemos obter clareza através de novas pesquisas. Uma maneira de lidar com o tipo de problemas decorrentes da nossa sede de generalidade, é notar que podemos ser levados a concordar com afirmações que dificilmente fazem sentido. Por exemplo, a noção geométrica de linha,
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alguém poderia dizer, é relativa ao horizonte cultural e linguístico a que ela pertence. À primeira vista isso parece estar certo. Não é natural supor que todas as culturas usam a noção de linha em todas ou mesmo em qualquer uma das várias e diversas formas que fazemos: temos varais, linhas de pesca, linhas de condado, linhas telefônicas, outlines, linhas partidárias, linhas de script , linhas de mercadorias, linhas em nossos rostos, linhas de argumentação, linhas de pensamento, linhas de cocaína, linhagens de reis, linhas de pesquisa. Podemos estar na linha, online e, obviamente, fora da linha. E temos a definição matemática de linha como um conjunto de pontos (x, y) que satisfazem a equação linear ax + by + c = 0 (mas esse não é o uso mais comum). Pode-‐se pensar que a noção de linha é tão multifacetada que dificilmente tem qualquer sentido coerente em Inglês moderno (ou que o Inglês é lamentavelmente pobre). No entanto, há claramente algum tipo de semelhança de família entre os diversos usos do termo em Inglês, e parece que ele ter a ver com extensão, continuidade, intervalo ou comprimento. Então, se tomamos a extensão como uma característica geral do uso comum, geométrico, por exemplo, pode-‐se perguntar: o que significa dizer que há culturas nas quais as linhas retas não têm comprimento? (Eu escolhi linhas retas como um exemplo por uma questão de simplicidade, ou seja, porque “em linha reta” também traz consigo a noção de extensão uniforme, unidirecional). Pode-‐se imaginar, por exemplo, que em alguma cultura as linhas retas não são percebidos como as percebemos; tal experimento mental poderia parecer que fornece uma contra-‐evidência para a noção de que a associação entre comprimento e linhas é algum tipo de fato sobre a psicologia humana, ou para uma concepção realista de medição. A este respeito, pode-‐se dizer que a atribuição de comprimento a linhas retas é uma convenção. Mas o que se entende por convenção aqui? Conceitualmente, a relação entre o comprimento e a noção de uma linha reta é interna às nossas práticas de medição e demarcação; o comprimento ou a extensão pertencem ao nosso uso da noção de linha reta. A noção de uma linha reta sem comprimento seria um uso diferente da palavra, um conceito diferente do nosso uso geométrico comum. Na medida em que o comprimento de linhas retas é relativo a todas as práticas em que estamos inclinados a usar e falar sobre as linhas retas, e depende delas, pode-‐se chamar isso de usar uma convenção. Mas isso não significa que ela é “meramente contingente”, no sentido de arbitrária ou opcional. Quando a polícia do trânsito verifica a sobriedade de motoristas suspeitos, pedindo-‐lhes para andar dois metros ao longo de uma linha reta, por exemplo, não há espaço para a possibilidade conceitual de haver linhas sem comprimento; ou seja, essa possibilidade conceitual, nesse contexto, não tem sentido (não tem nenhum uso). Mas esta observação não é nem normativa (não é uma proibição contra o uso de palavras como se deseja), nem informativa (não fornece nenhuma explicação); é uma descrição de uma característica que define o uso comum do conceito de “linha reta”. Ressaltar a relatividade absoluta de noções como a linha reta é realmente apenas o outro lado da moeda dos tipos de concepções dogmáticas que procuram propriedades universais; em ambos os casos, relega-‐se o caso em questão a uma exemplificação de uma construção teórica que foi decidida de antemão, com base em outros conceitos e problemas (geralmente dentro da disciplina de filosofia).
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O ponto do exemplo anterior é o de observar que as explicações sobre como temos a noção de linha reta sempre contarão com os conceitos compartilhados “reta” e “linha” e sem isso não saberemos o que é que estamos explicando ou sobre o que é que estamos discordando, em primeiro lugar. Na verdade, sem isso não haveria nada para ser explicado (ou seja, não haveria nenhum problema a colocar). Todas as explicações empíricas (ou seja, explicações sobre estados de coisas) dependem de conceitos comuns deste tipo. Dizer que uma linha reta tem comprimento é alcançar terra firme. É o tipo de comentário que poucos sonhariam em questionar, mas não por tratar-‐se de uma teoria implícita ou tácita. Pelo contrário, é o tipo de afirmação a que chegamos quanto tentamos definir do que é que se está falando, o que é que se está tentando explicar, o que é que queremos dizer. Em certo sentido trata-‐se de uma observação “transcendental”, na medida em que ela não nos diz nada que já não estivesse lá com a gente a partir do momento em que aprendemos o significado de “reta” e “linha”, e que simplesmente não tem utilização fora do contexto de tal reflexão. Creio que é este o ponto de Wittgenstein, quando ele observa: “O trabalho do filósofo consiste em reunir lembretes para um propósito particular. Se alguém tentar formular teses em filosofia, nunca seria possível debatê-‐las, porque todos concordariam com elas.”(18) As várias formas em que fomos treinados para usar “reta” e “linha”, o número quase infinito de circunstâncias em casa, nos parques infantis e até mesmo na sala de aula, não pode ser superficialmente estimado em uma teoria geral sem falsificação ou especulação indevida (o que não quer dizer que tal especulação e até mesmo a simplificação seja sempre injustificável. Podemos imaginar usos para isso, por exemplo, nos estudos de desenvolvimento da primeira infância, onde estamos interessados em testar vários métodos de instrução inicial para melhorar a compreensão espacial entre crianças em idade escolar). Alguém poderia querer dizer aqui que esta é apenas uma maneira de evitar tomar-‐se uma posição: deve ser o caso que ou há uma ordem natural/verdades universais/realidade objetiva/ideias inatas ou só existe construção/ ficção/narrativa /fabricação/retórica. Mas não é auto-‐evidente que esta suposta dicotomia nos diz algo que queremos saber sobre uma série de questões importantes para as ciências humanas, pois os termos dela são formulados no início, antes de se colocar qualquer questão particular. O fato das linhas retas terem comprimento não é uma “construção”, se com isso queremos dizer uma convenção arbitrária. Mais uma vez, não podemos descartar a possibilidade de utilizar a noção de linha reta de uma maneira que não pressuponha a extensão em algum aspecto, mas fazer isso acarretaria uma série de consequências para outros conceitos e práticas, ou seja, seria um uso diferente. Assim também não faz sentido dizer que o sexo ou a morte, como tal, são construções culturais contingentes, exceto em algum aspecto muito particular no que diz respeito a algum fenômeno particular, bem definido (digamos, mudanças nas regras e práticas do namoro nas vilas agrárias do norte, como resultado da cristianização da Suécia). De que modo isso é relevante para a questão do historicismo ou relativismo nas ciências humanas? Afirmar uma postura relativista no que diz respeito ao
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conhecimento é ver tudo o que chamamos de natureza e vida humana na investigação científica e acadêmica como uma construção teórica; mas há também uma tendência para fusionar nossas teorias científicas e sociais com o uso comum. A ideia de que a linguagem comum e a prática social, tais como o que estamos inclinados a dizer e fazer quando usamos “linhas retas” ou fazemos luto por uma morte, sejam “construções teóricas” no mesmo sentido em que os fatos científicos e as descobertas podem ser descritos como construções é frequentemente assumida sem mais delongas. Por quê? Uma resposta parcial é que há um uso predominante da noção de natureza, que é uma construção teórica, ou seja, a “natureza” das ciências naturais que é muitas vezes assumida de maneira indeterminada e fluida na discussão teórica nas ciências humanas e sociais. Palavras como “natureza” e “cultura” tendem a flertar no campo no discurso teórico. Aqui é tentador citar as famosas observações de Wittgenstein sobre trazer de volta as palavras, de seus usos metafísicos para o uso diário, ou seja, trazê-‐las de volta para o jogo de linguagem que é a sua casa original, (19) ou melhor ainda, trazê-‐las de volta ao trabalho depois delas terem saído “em férias”, como diz Wittgenstein.(20) Este é o sentido do “uso extraordinário” das palavras no discurso teórico, ao qual temos de aprender a resistir, se quisermos alcançar clareza. Mas clareza é conhecimento? Podemos dizer que “sabemos” que as linhas retas têm comprimento? Como eu poderia demonstrar satisfatoriamente, mesmo em princípio, que todas as linhas retas têm comprimento? Ou, indo mais ao ponto, como poderia sequer começar a duvidar de que as linhas retas tem alguma extensão? O que essa dúvida significaria? Em certo sentido, trata-‐se de algo indubitável, porque dificilmente saberíamos o que significa negá-‐lo (a não ser, é claro, se a intenção fosse introduzir um novo uso). Assim, o comprimento das linhas não é um fato sobre o mundo, mas um lembrete sobre uma determinada maneira de falar e movimentar-‐se no mundo. Assim, não é suscetível de provas. Evidências e justificativa, afinal, pertencem aos casos nos quais a dúvida é introduzida. Colocando a questão em termos perversos, só podemos saber a verdade sobre algo que podemos estar errados. Posso muito bem estar certo ou errado quando estimo o comprimento de uma linha reta em 7 polegadas; ou posso medir o comprimento em centímetros, em vez de polegadas. Mas faz sentido dizer “sim, isso é certo, essa linha tem comprimento”? É difícil imaginar um caso em que isso seria uma resposta significativa a uma pergunta, uma situação em que alguém estaria inclinado a afirmar que uma determinada linha tem comprimento: não um comprimento específico, apenas comprimento. Neste respeito, não “sabemos”, como uma proposição geral, que as linhas retas têm comprimento; o que podemos saber é como usar o conceito de “linha reta” (que, é claro, pode mudar, mas não durante a noite. Nós não mudamos as características básicas da nossa língua do modo como trocamos de camisas). Mas isso não abre as comportas do relativismo por atacado; aceitar que há certas coisas sobre as quais simplesmente não há margem para dúvidas, admitir que chegamos no fundo do poço, é meramente reconhecer os limites da teoria. Tem sido argumentado que a própria ideia da filosofia está obsoleta.(21) Se a filosofia ainda tem um papel a desempenhar no nosso pensamento hoje, é, sem dúvida, o de tomar como tarefa nos lembrar do que podemos fazer sentido e do que não podemos. Isso significa, entre outras coisas, deixar a justificação e a
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busca de evidências para outras disciplinas. Mas isso também significa que outras disciplinas não devem pedir que a filosofia proporcione novas teorias interessantes sobre a natureza da linguagem, sobre o pensamento humano ou sobre o mundo, mas que focalize os verdadeiros problemas que surgem em e através de seu próprio trabalho. A relatividade cultural pode muito bem ser um exemplo do tipo de problema que surge repetidamente em certas disciplinas (história, antropologia), mas, em seguida, é a natureza específica do problema a ser tratado que exige reflexão filosófica (como “como é que vamos pesar e interpretar os diferentes fatores envolvidos na eclosão da Guerra Civil norte-‐ americana, tendo em conta as perspectivas radicalmente diferentes sobre as suas causas na época e atualmente?”), e não “relativismo”, em geral. Aqui temos de ser cuidadosos. A especificação de uma questão ou de um conjunto de questões não significa, necessariamente, especialização. Podemos nos lembrar que os problemas que têm a ver com as consequências da especialização ou da fragmentação das ciências tem estado conosco desde o início do século 18. Na segunda metade do século XVIII, o grande enciclopedista Diderot reclamou que não conseguia acompanhar todos os desenvolvimentos mais recentes em diferentes áreas e, mais importante, não tinha tempo para refletir sobre como eles se encaixavam. A sensação de que o conhecimento estava explodindo em fragmentos levou alguns, mais notoriamente Hegel, a argumentar que o conhecimento enciclopédico não era suficiente; exigia-‐se uma visão geral da relação entre as ciências, ou seja, um sistema filosófico. Na sequência do desaparecimento da fé nos sistemas racionais surgiu, no século XX, a necessidade de alguma forma de condução das ciências humanas, que fosse, por um lado, relevante e útil, e, por outro, não tivesse nenhuma pretensão de sistematicidade. Parece-‐me que Max Weber revitalizou as ciências humanas simplesmente tentando formular perguntas novas, relevantes e significativas, em grande parte, ultrapassando as fronteiras das disciplinas tradicionais, a fim de encontrar respostas úteis. Suas investigações mais frequentemente começam com um problema ou uma pergunta, ao invés de uma teoria ou quadro metodológico. Mas, como Nietzsche, mesmo sendo profundamente cético em relação à sistematização, Weber conseguiu integrar campos de pesquisa muito diferentes em seu trabalho. Concentrar-‐se em problemas reais é algo muitas vezes interpretado nas ciências humanas e sociais de hoje como uma concentração nos nossos problemas como representativos de uma determinada posição teórica ou disciplina (a área de nossa especialização), isto é, sobre as doutrinas e métodos que vêm até nós prontas para uso, por assim dizer, quando estamos trabalhando como antropólogos profissionais, sociólogos, filósofos ou historiadores. Mas o emprego acrítico de alguns conjuntos preferidos de métodos, técnicas e conceitos em alguma categoria presumida dentro de nossa disciplina reflete uma compreensão burocrática, técnica do que constitui um verdadeiro problema, não uma compreensão humana. Houve também muita discussão quanto à possibilidade ou não da própria ideia de Humanidades estar obsoleta, ou, pelo menos, “fora de época”. A maior parte do trabalho de pesquisa e de ensino simplesmente assume o valor das disciplinas sem maiores reflexões ou argumentos. Quando pressionados (por diminuição do interesse entre os alunos, pela falta de interesse por parte de instituições de financiamento, etc.), facilmente incidimos em uma de duas
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estratégias de legitimação. Uma delas é a defesa do valor dos estudos humanistas na construção e elevação do caráter, das virtudes cívicas e do “pensamento crítico”. A outra alternativa sublinha a dimensão “libertadora”, onde os objetivos políticos e aspirações (multiculturalismo, igualdade de gênero, etc.) desejados são decisivos para a forma e o conteúdo do estudo. Mas, aparentemente, tais defesas soam vazias para a imensa maioria, incluindo-‐se os próprios humanistas, e o resultado é a popularidade do “anti-‐humanismo” e do relativismo doutrinal das últimas décadas, mesmo (ou especialmente) na academia. Eu acho que precisamos fazer um ajuste de contas com a fundamental falta de coerência e unidade de propósito nas ciências humanas, se queremos que elas sobrevivam como uma parte vital da educação e da cultura. E aqui de pouco vale apontar para o consenso dos mais excelentes pesquisadores nas melhores universidades, que publicam nas melhores revistas, pois isso significaria aceitar implicitamente que os critérios para o pensamento humanista relevante são os critérios do professorado, visto como uma profissão, em primeiro lugar e especialmente. Eu diria, assim, que o estudo da literatura, da filosofia e da história como áreas de investigação humana não pode e não deve ser reduzido às suas instituições (estruturas de poder, as condições econômicas, disputas doutrinais internas, redes, departamentos, rankings de revistas e agências de financiamento). Se nós mesmos não conseguimos ver um ponto e propósito além da utilidade política ou do profissionalismo, o conteúdo de nossas atividades será redutível a este último. Certas escolas de pensamento e instituições, por várias razões históricas e políticas, serão mais influentes em um dado momento. Essa influência terá consequências decisivas para o que é considerado relevante e interessante. Historicamente falando, no entanto, o pensamento mais radical e melhor de uma época está muitas vezes décadas à frente do pensamento academicamente sancionado na área de humanidades (isto é particularmente verdadeiro no caso da filosofia: pense em Saussure, Nietzsche, Foucault, nenhum dos quais eram filósofos profissionais). Por esta razão, é crucial que o significado da literatura, da filosofia e da história como áreas de investigação humana não se reduzam às suas instituições. Ou melhor, se nós, humanistas, não podemos oferecer uma descrição convincente dos objetivos e propósitos de nossos estudos que não consista em argumentos sobre a utilidade política ou em gestos vagos em direção a uma presumida herança cultural partilhada, então estamos de fato admitindo que a redução não é apenas razoável, mas adequada. Isso significa essencialmente reduzir o correto ao poder, uma das primeiras formulações da tese relativista. A sugestão de Weber a respeito de como responder ao politeísmo intelectual, que é o nosso fado, é aceitá-‐lo como o que eu tenho chamado de “fato da vida acadêmica”, ou seja, o reconhecimento das condições de nossa situação atual. Mas isso não significa a internalização de necessidades externas. Pelo contrário, significa aceitar que, no final das contas, ficamos com nossos próprios compromissos e decisões, incluindo os nossos compromissos e julgamentos em relação ao que vem ser uma questão relevante a ser colocada e quais critérios devemos usar para determinar a adequação das nossas respostas. E isso é algo que exige uma verdadeira reflexão humana, e não “pesquisa”.(22)
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Notas 1. Michel Foucault, The Order of Things: An Archaeology of the Human Science. (New York, 1970), Prefácio, p. xv. 2 Eu uso o exemplo de “pesquisa quantitativa versus qualitativa” com alguma hesitação. De fato, a prevalência da noção de que certos métodos são “qualitativos”, enquanto outros são “quantitativos”, merece reflexão mais cuidadosa. O que se quer dizer com a distinção é, naturalmente, que certos métodos técnicos são elaborados para produzir resultados matemáticos, como estatísticas, enquanto que os produtos de análise de discurso, leituras internas, estudos biográficos e comparativos, a maioria das formas de exegese e assim por diante não prestam-‐se a quantificação. Isto é, os objetos e os resultados de tais pesquisas são qualitativos, mais do que quantitativos. A alegação de que as ciências humanas e certas formas de ciências sociais têm o seu próprio conjunto de métodos, que são distintos, mas comparáveis aos das “ciências duras” parece principalmente servir uma função legitimadora. Muitos desses “métodos” não são, na verdade, métodos, e sim reflexões teóricas sobre o método (hermenêutica, a desconstrução, a fenomenologia, etc.). 3. Nowotny, H., Scott, P. & Gibbons, M., Re-‐thinking Science: Knowledge and the Public in an Age of Uncertainty Cambridge, 2000). 4. Jean-‐François Lyotard, The Postmodern Condition (1979; Minneapolis, 1983). 5. Veja Steve Fuller, "Is STS truly revolutionary or merely revolting?" (Science Studies, vol 18, 1 / 2005) 6. David Bloor, Knowledge and Social Imagery. (Londres, 1976). 7. Latour, B. e Wolgar B., Laboratory Life: The Construction of Scientific Facts (London, 1979). 8. Fuller, "Is STS truly revolutionary or merely revolting?" p. 79. 9. Max Weber, "Science as a Vocation”, in From Max Weber: Essays in Sociology, H. H. Gerth e C. Wright Mills, trans. & Ed. (1919; New York, 1946), p. 148. 10. Max Weber, "Objectivity in Social Science and Social Policy, In Max Weber, The Metodology of the Social Sciences (New York, 1949), p. 81. 11. Weber, "Science as a Vocation”, p. 140. 12. Ibid., p. 138. 13. Ibid., p. 142. 14. Ibid., p. 145. 15. Uma versão anterior de partes da seção seguinte deste artigo apareceu em “Onde minha pá entorta: sobre Filosofia, niilismo e o comum", em Eros and Logos: Essays Honoring Stanley Rosen, ed. N. Ranasinghe (South Bend, 2006), pp. 229-‐245. 16. Aqui a historicização do pensamento histórico, feita por Reinhart Koselleck em Crítica e crise: o Iluminismo e a patogênese da Sociedade Moderna (Boston, 1988) é relevante. A coincidência histórica do desenvolvimento do “pensamento histórico”, no sentido moderno e o advento da "crítica" é um lembrete útil para nós, que não somos tão auto-‐críticos em nosso perpétuo gesticular em direção à “contingência histórica” como uma espécie de fato neutro quanto deveríamos ser. 17. Stanley Rosen, Metaphysics in Ordinary Experience. (New Haven, 1999), p. 221. 18. Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations. (Oxford, 1958), §127, §128. 19. Ibid., § 116. 20. Ibid., § 38. 21. Para uma visão geral, consulte After Philosophy: End or Transformation?, Kenneth Baynes, James Bohman & Thomas McCarthy, eds. (1987; Cambridge, MA, 1996). 22. Eu gostaria de agradecer a Sören Stenlund e Pär Segerdahl pelos comentários e sugestões valiosas.
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